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Historia da Litteratura Clássica

TYP. DA EWFfi. L1TTER. £ 7VPCGRAPHICA OíficiDa* movidas a electricidade jf) R. DA BQAV:STA 32! « PORTO » MCtyXXH

DO MESMO AUCTOR:

0 Espirito Histórico, 3.a edição.

Historia da Critica Litteraria em Portugal, 2.» edição.

A Critica Litteraria como sciencia, 3.a edição.

Historia da Litteratara Romântica, (esgot.)

Historia da Litter atura Realista, (esgot.)

Historia da Litteratura Clássica, 2 vols. (o 1.° em 2.* edição).

Características da Litteratura Portuguesa, 2." edição.

Estudos de Litteratura, 3 vols.

Portugal nas guerras europêas.

Como dirigi a Bibliotheca Nacional.

Revista de Historia (direcção e coilaboração), 10 vols.

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BiBLIOTHECA DE ESTUDOS HISTÓRICOS NACÍONAES-VÍ

F1DELINO DE FIGUEIREDO

Historia da Litteratura Clássica

1.» EPOCHA: 1502-1530.

2.' EDIÇÃO, REVISTA

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LISBOA LIVRARIA CLÁSSICA EDITORA

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A. M. TEIXEIRA & C.a (Filhos)

17. PRAÇA DOS RESTAURADORES, 1T

1991

Apesar dt noutro volume termos exposto a nosso, concepção da critica litteraria, cremos que será de conveniência accentuar, á frente deste livro, que neste novo ensaio de critica não pretendemos fazer investigações novas sobre as biographias dos andores ou sobre a bibliographia de suas obras, nem indagações de historia politica ou social, e menos ainda de philologia. Foi nosso propósito fazer exclusivamente uma analyse esthetica das obras, interpretá-las cri- ticamente, quanto possível explicar a sua contextura litteraria e avaliá-las como obras de arte, qzie a exprimir belleza e emoção visaram sempre, segundo deliberado intuito de seus andores. Da biographia, da bibliographia e da histotia nos soccorremos quando ellas podiam de algum modo contribuir para o ?iosso escopo, sem deixar de ter bem presente qual este fosse.

Problemas, que foram longo tempo conhovertidos, mas que á data da redacção deste volume se achavam de vez solucionados, apenas os relembrámos para prestar homenagem aos C7"uditos que na sua solução collaboraram e para recapitular as phases das co?i- troversias.

O rápido bosquejo sobre a litteraiura medieval, o humanismo e o renascimento, que conslitue a matéria da introducção, ê fundado sobre trabalhos de insignes medieva listas ; organizámo-lo para oppôt a esthetica litteraria medieva á neo- clássica, principal assumpto do livro.

Ao publico curioso de historia litteraria desejámos apresentar

uma pessoal interpretação do quinhentismo português. Com os dados que hoje a erudição proporciona, argamassados pelas nossas idéas geraes e pelos nossos princípios críticos, tentámos erguer uma construcção , que pudéssemos considetar como não alheia, onde ao menos nos fosse legitimo reconhecer a marca de alguns elementos pessoaes. Diligenciámos converter os milito s factos dispersos, a vasta matéria inorgânica, que se ha produzido sobte a nossa littera- tura do século XVI, em sysiema dejuizos. Condensando em synthese, abslrahi?ido, generalizando e julgando é q?ce o espirito passa do dado sensorial á idéa ; porque não experimntar fazer trabalho semelhante em critica liiterariaf Não faz mal a este ramo de estu- dos um pouco de espirito philosophico,

E se a nossa tentativa fôr insuficiente, não provará isso con- tra o critério, mas contra o andor.

Lisboa, jj de Março de i<jrj.

F F.

Para a nova edição revimos o texto, achializando as suas ba- ses de erudição perante os progressos desta e os seus conceitos críti- cos perante o nosso espirito, que se não immobilizou em idéas feitas.

Lisboa, de Dezembro de 1020.

F. F.

1NTRODUCÇÃO

A LITTER ATURA MEDIEVAL - O HUMA1 O RENASCIMENTO.

Gil Vicente e de Miranda, os iniciadores do nosso quh:hentismc, não foram os pioneiros da cultura litteraria deste paiz, o qual no tempo delles tinha uma vigorosa individualidade histórica e occupava no concerto internacio- nal um lugar que não era secundário; antes dessa iniciação no gosto clássico, durante os quatro séculos incompletos da vida medieva do paiz, havia-se formado uma tradição litteraria, que levou Portugal a collaborar com brilho nos principaes géneros da litteratura coetânea. Desde que Paio Soares de Taveiros, enamorado de Maria Paes Ribeiro, compôs a sua pequena poesia amorosa, em 1189, até que Gil Vicente, em 1502, lançasse a pedra inicial da grande fabrica do seu theatro, o povo português, apesar de occu- pado primeiramente na constituição do seu território e sua organização interna, e logo depois nas disputas com Leão e Castella, na lucta intestina das classes e nas empresas ultra- marinas, pôde encontrar algumas horas de lazer para se dar á elaboração artística. Em todos os tempos, por mais com- batidos de objectivos cuidados que andem os ânimos, por mais que a azáfama interesseira do trato commercial, o mal-

8 Historia da Litteratura Clássica

estar económico ou os sobresaltos da guerra absorvam os espiritou, sempre dentre estes alguns haverá que do theor da vida preoccupada, que vivem, saibam extrahir matéria de belleza e traduzi-la com os meios de expressão de que possam dispor. Quaes os rincões da vida medieval escolhi- dos para elaboração litteraria e que expressão de belleza os revestiu é o que vamos rapidamente expor por meio dum conspecto genérico da litteratura anterior a 1502.

Occupar-nos-hemos da poesia em primeiro lugar. E desce declaramos que, de harmonia com o critério por nós ado- ptado, deixamos de lado, não por desinteressante ou desva- liosa, mas por estranha ao nosso propósito, a litteratura popular, anonyma, que oralmente circulou e se differenciou, litteratura occasional que não apresenta cunho de indivi- dualidade. Só á litteratura culta, pessoal, assignada, delibe- radamente elaborada com intenção artística, que seu auctor fica testemunhando e gozando, faremos referencia.

Pelos monumentos, que da nossa poesia medieval hoje nos restam, nós não poderemos com rigor medir a intensi- dade e viveza da tradição poética, que chegou á corte de D. João 11. Todavia, os muitos nomes de poetas, que enchem os quatro cancioneiros conhecidos, os do Vaticano, da Ajuda, de Colocci-Brancuti e de Garcia de Rezende, per- mittem presumir que o cultivo da poesia de gosto proven- çal foi intenso e que nas mais altas espheras elle encontrou favor, pois ao lado de simples jograes vemos os reis e os nobres a poetar suas canções. O accesso de D. Affonso 11 ao throno, que de Bolonha viera para succeder a seu irmão desthronado, determinou um recrudescimento no fervor poé- tico, que por influencia pessoal do seu su.ccessor se prorcgou ao longo do século xm.

Os três primeiros cancioneiros contêm exclusivamente a matéria poética trobadoresca, metrificada de acccrdo com a gaia scicncia. Essa matéria poética está longe de ser a expres- são esthetica duma superior belleza. Com a obliteração da

Historia da Lilterafura Clássica 9

civilização romana, também se quebrara a corrente da sua cultura, de modo que, como as sociedades medievas longo tempo se agitaram perplexas em procura dum equilíbrio estável de intrínseca composição primeiramente as mcnar- chias barbaras, logo o império de Carlos Magno, depois o communalismo e o feudalismo até ás nacionalidades mo- dernas— assim também para constituir a sua litteratura tiveram de ensaiar tentativas varias. Dessas, a que reper- cussão maior teve em Portugal foi a do provençalismo. Não havia uma opulenta herança a tomar, que abrigasse um conteúdo considerável de themas litterarios, de formas e modelos, toda uma esthetica theorica e pratica, como o século de Augusto herdara dos precedentes e da Grécia; era uma tradição que principiava, que a si mesma se constituía. Língua, matéria a elaborar, gosto e publico, tudo havia que crear. E essa creação fez-se com adoptar uma forma poética popular, na forma e no fundo rudimentar, e com insuíiar-ihe alentos vigorosos, que a dignificassem e divulgassem. Dessa origem popular sempre se lembrou o lyrismo provençal, pois foi sempre rudimentar na forma e no fundo. Rudimentar na forma, porque a sua lingua é ainda indecisa, mal caracteri- zada na differenciação em que se ia dispersando o latim vulgar, e não possue riqueza de vocabulário, variedade de construcções syntaxicas, nem regularidade, nem harmonia que proporcionassem aos poetas meios eloquentes e vivos de expressão. Rudimentar no fundo, porque vulgares e desinte- ressantes são os sentimentos, os themas e conceitos que nessa forma se expressam. O sentimento do amor, a sau- dade, o desejo de ir foliar com o namorado, a ausência ansiosa, o elogio da formosura, os soffrimentos dum amor contrariado e a dor de amar quem nos aborrece sentimen- tos eternos são que nas almas mais rudes e nas mais selectas, em todos os tempos, oceuparam lugar exigente. E, porém, necessário que duas condições se verifiquem para que tão persistentes sentimentos se tornem matéria de arte

10 Historia da Litteratura Clássica

litteraria, condigna matéria de arte litteraria: é a primeira que a "alma, que os experimenta, tenha individualidade typica, característica, que a causas tão communs opponha reacções pessoaes, com evidente cunho seu, que ame, soffra, se encolerize e sinta saudades de modo pessoal e com con- sequências inteiramente suas pesscaes, a tudo imprimindo o cunho da sua alma; é a segunda condição que essa alma, por si ou por outrem, saiba dar expressão de relevo e de belleza a essa individual maneira de sentir. Certo é que vidas curiosamente combatidas ou muito aventurosamente agitadas decorreram, sem que as almas que taes vidas vi- veram fossem almas de eleição, antes sendo muito com- muns; mas então o interesse, que essas biographias ou esses simples casos offerecem, não é um interesse lyrico ou psychologico, é um interesse romanesco ou maravi- lhoso— e este não faltou na idade media turbulenta e incerta. O que faltou foi a individualidade: individualidade moral no modo de viver a vida, de a sentir, reflectir e interpretar, e individualidade artística para encontrar para a primeira a expressão litteraria própria. Não obstante, em Portugal, como por toda a parte nesse tempo, exuberantemente campeou o individualismo que não é individualidade, differenciação das almas, mas egoismo arrogante, audácia volitiva, prepo- tência desordenada, ainda que em todas de igual modo se revelem esse egoismo, essa audácia e essa prepotência. Não faltaram exemplos do individualismo, reis turbulentos e ca- prichosos, infantes ciumentos que contra seu pae se rebella- vam, amores constantes, amizades fieis até ao heroísmo. Taes exemplos são porém ou a exaltação de sentimentos vulgares ou a demonstração heróica do conceito de honra do seu tempo ; estão inteiramente de accordo com o seu tempo, com o modo de sentir e opinar do seu tempo. Mesmo assim seriam excel- lente matéria litteraria; mas a ulterior litteratura, do clas- sicismo e do romantismo, aproveitaria esses themas, quando o heróico entrou no gosto culto. Os poetas do século XIII,

Historia da Litteratura Clássica 11

xiv e xv principalmente dos dois primeiros confinaram- se estrictamente na gaia sciencia, compondo ingénuos canta- res de amor e cantares de amigo; ingénuos artisticamente por demonstrarem uma concepção de arte infantil ou popular, não porque acatem supersticiosamente as conveniências, que pelo contrario com extrema indifferença maltratam. Recita- das na corte e nos bailes populares, pelos reis, por nobres cortezãos e por simples jograes, as albas, as serranilhas, as pastoreias, as bailadas ou bailias, as barcarolas e as romarias contêm e exprimem os mesmos sentimentos e empregam a mesma forma, sentimentos e formas nuns e noutros rudi- mentares — o que confirma o nosso asserto de carência de individualidade. Distinguem-se estas espécies não pelo seu conteúdo marítimo, pastoril ou religioso, mas apenas por summarias e vagas referencias á madrugada que rompe, ás ondas do mar, a alguma romaria de grande devoção, adorno artificioso que acompanha a affirmação de factos muito com- muns, repetidos com variantes na expressão métrica. Como se enganaria o critico que ao folclore actual, que corre oral- mente, fosse buscar assumpto para investigações de psycho- logia do caracter e para apreciações estheticas assim se illude o que for abeirar a obra poética de D. Diniz, Ayres Corpancho, de Martim Codax, Pêro Dardia ou Pêro Garcia para estudos de psychologia, de esthetica e alta critica. Prin- cipalmente elementos para a historia da métrica e da lingua contem a producção desses poetas, dominados pelo gosto provençal e ligeiramente tocados da influencia do gosto épico da Bretanha, que sem fim repetiram os mesmos themas e formas.

A satyra poética diffundiu-se muito, satyra pungente pela intensidade e grosseira pelo seu conteúdo ; ella consti- tuía uma prerogativa dos poetas, que pelas suas sirventêses e tenções mostravam o reverso das almas enamoradas das cantigas de amigo e davam curso á malevolencia e ao des- contentamento do seu tempo, desempenhando desse modo

12 Historia da Litteraturu Clássica

funcção semelhante á dos soberanos maldizentes, que eram os bobos. Esse legado medieval ha-de tomá-lo Gil Vicente.

Em matéria de poesia épica, não fallando do curso oral das canções de gesta popularizadas, restam-nos um fragmento e uma recordação: o poema em latim de Soeiro Gosuino, do século xiv, sobre a tomada de Alcácer do Sal, acerca de cujo auctor ainda se não dissiparam as duvidas respeitantes á sua nacionalidade ('); e a lembrança dum poema sobre a batalha do Salado, de Affonso Giraldes, cuja existência foi referida por Frei António Brandão (2) e que parece haver sido traduzido para castelhano.

Passando a occupar-nos do Cancioneiro geral, colligido por Garcia de Rezende, lhe não poderemos attribuir cara- cterização análoga á que acima proposémos para os cancio- neiros provençaes, pois o seu conteúdo é muito mais com- plexo e trahe influencias mais variadas, correntes estheticas mais dispares. Mais largo é o fôlego poético dos auctores, que se affoitam a composições bem mais extensas, é mais comedida a sua satyra, accusa pruridos de classicismo pelas, suas allusões mythologicas e a Ovídio; o elemento dantesco da descida ao inferno também no Cancioneiro geral se revela e avulta o elemento épico com elaboração de mo- tivos da historia nacional. A grossaria sincera e franca do provençalismo succede a lisonja cortesanesca e galante da vida palaciana, artificiosamente dissimulada. São, porem, muito raros os poetas de elevado mérito dessa galeria nume- rosa, apesar de nella figurarem nomes que vieram a illus- trar-se na epocha litteraria seguinte, como de Miranda,

('; V. Portuçaliae Momtmenta Histórica, volume I, fascículo I, Pag. 101-104.

('-) Também viram esse poema Fr. Francisco Brandão e o P.e Francisco José Freire.

Historia da Litteratura Clássica 13

Bernardim Ribeiro e Gil Vicente. (') O Cancioneiro geral é um documento de subida valia para a historia, da litteratura portuguesa, da sociedade palaciana de Portugal ; está po- rem muito longe de ser uma collectanea de superiores obras de arte (*). Têm merecido especial attenção, dentre as suas composições, o pleito intitulado Cuidar & Suspirar, em que muitos fidalgos poetas intervieram ; os primeiros ensaios poé- ticos de Gil Vicente, de Miranda e Bernardim Ribeiro; as trovas de Garcia de Rezende á morte de Ignez de Castro; a formosa Cantiga partindose de João Rodrigues Castello Branco; as traducções de Sabino e Ovidio por João Rodri- gues de Lucena; o inferno dos namorados de Duarte de Brito, imitação dantesca; as composições epo-historicas de Luiz Henriques (s); e as coplas do infante D. Pedro, (1420- 1466) condestavel de Portugal, filho do infeliz vencido de Alfarrobeira e elle mesmo vencido por D. João 11 de Aragão. D. Pedro teve relações litterarias com Juan de Mena, o poeta castelhano mais estimado no seu tempo ; a elle dirigiu versos de louvor, a que o poeta respondeu, e sob a sua influencia escreveu o poemeto moralista De contempto dei mundo e a

(') V. na edição Kaussler, Stuttgart, 1852, 3 vols., pag. 316, a.° vol., pag. 389 e 539, 3.0 vol. O sr. Braamcamp Freire data a colla- boração de Gil Vicente de 1509.

(â) Como fonte da documentação histórica o tem considerado pre- dominantemente o sr. A. Braamcamp Freire. Recommendamos princi- palmente os seus estudos sobre o Cancioneiro geral e sobre Garcia de Rezende publicados no vol. Critica e Historia, Lisboa, 1910; e o seu. indice de nomes próprios organizado de collaboração com o sr. Júlio de Castilho, Índice do Cancioneiro de Resende c das Obras de Gil Vicente, Lisboa, 1900. V. também A Corte em Setúbal e os Porquês anonymos, no vol. Gente dalgo, sr. Conde de Sabugosa, Lisboa, 1915, pag. 169-195.

(3) Sobre uma composição erótica deste poeta, veja-se o artigo do sr. F. M. Esteves Pereira, Trovas de Luiz Ànrriquez a l/iia moça, publi- cado no Boletim da Segunda Classe da Acad, das Sc. de Lisboa, Lisboa, 1914, vol. VII.

11 Historia da Litieratura Clássica

Sátira da felice c infelice vida, (*) Erudição vasta, elevação de pensamentos, a nobre e serena melancholia da sua inspiração poética e o perfeito conhecimento da lingua castelhana deram a este escriptor português um distincto lugar na historia iit- teraria hespanhola e fizeram-no um dos espíritos mais curio- sos desse período de transição. A este illustre filho do aus- tero regente do reino dirigiu o Marquês de Santilhana uma celebre epistola sobre matéria litteraria. (2)

No género romance, a nossa litteratura medieval iegou- nos uma discutível tradição, a noticia duma versão portu- guesa do Amadis de Gaula, cuja forma castelhana de Garcia Rodriguez de Montai vo, apparecida em 1508, se tornou ini- cio duma corrente de favor enthusiastico que produziu o

(*) Os principaes estudos sobre o condestavel D. Pedro são : }. M. Octávio Toledo, El Duque de Coimbra y su hijo El Condestabre D. Pedro, na Revista Occidental, Lisboa, 1875, pags. 295-313; J. Coroleu é Inglada, El Condestable de Portugal, rey intruso de Cataltnla, na Revista de Ge- rona, Gerona, 1878, vol. 2.0. ; A. Balaguer y Merino, Don Pedro, el Con- destable de Portugal, considerado como escritor, erudito y anticuario (1420-1466) Estúdio histárico-bibliográfico, Barcelona, 1881, 69 pags., separata do vol. 2.0 da Revista de ciências históricas; D. Carolina Mi- chaèlis de Vasconcellos, Uma obra inédita do Condestavel D. Pedro de Portugal, em Homenaje à Mcncndez y Pelayo, vol. i.°, Madrid, 1899.

(2) O texto desta carta foi publicado por auetor anonymo no vol 11 dos Annaes de Sciencias e Letras da Academia Real das Sciencias de Lisboa, Lisboa 1858, pags. 284-305, sob o titulo de Carta do Marques de Santilhana, Don Inigo Lopes de Mendoza, a D. Pedro, Condestavel de Portugal. O texto é precedido de uma introducção explicativa e de alguns dados biographicos de Santilhana.

Historia da Litiefatura Clássica 15

cyclo dos Amadises (l), tão abundante e persistente que no cyclo dos Palmeirins teve um rival. Se bem que a ori- gem desta novella de cavallaria seja ainda hoje um myste- rio, que as mais pacientes e methodicas investigações ainda não conseguiram devassar, sobre a instável base de areia do que chamámos uma discutível tradição, construiu um auctor (3) a sua certeza de ser essa obra originariamente portuguesa e redigida successivamente por toda uma família, João de Lobeira, Vasco de Lobeira e Pedro de Lobeira. (*) Tal hypo- these é dum subtil e imaginoso lavor, mas carece de funda- ções que a sustentem contra o mais pequeno embate da ar- gumentação.

Vejamos, muito summariamente, quaes as bases de cré- dito, em que se funda a tradição da auctoria portuguesa. Essa auctoria pretende attingir os três primeiros livros, porque o quarto está hoje geralmente assente que foi addi- tado por Montalvo, que é talvez seu redactor original (4). .

(*) Do cyclo dos Amadises se occupou o sr. Henry Thomas no tra- balho intitulado The Romance of Amadis of Gani, cuja primeira edição se publicou em Londres, 1912, e a segunda em Lisboa, a pag. 1-33 do 5.0 vol. ca Revista de Historia, 1916.

(2) E este auctor o sr. Theophilo Braga, que varias vezes se tem occupado do Amadis de Gaula. O trabalho que representa mais comple- tamente a sua opinião é o vol. intitulado Recapitulação da Historia da Literatura 1. Edadc Média, Porto, 1909, pag. 299-346.

(3) Sobre a familia Lobeira, que assistiu em Elvas, colleccionou alguns documentos o fallecido erudito elvense, António Thomaz Pire3. V. Vasco de Lobeira, Elvas, 1905, 63 pags. A peça mais importante é o testamento dum João de Lobeira, feito em 1386.

(4) V. Menéndez y Pelayo, Ori genes de la novela, Tomo 1, Ma- drid, 1905, pag. ccxMii.

Uma das causas do interesse pelas origens do Amadis de Ga/da foi a convicção, em que por muito tempo se esteve, de ser essa obra a no- vella de cavallaria mais antiga. Tal presumpção não é exacta, pois é conhecida outra novella, El Caballero Ciíar, da primeira metade do sec.° xiv.

16 Historia da Litter atura Clássica

i.° Argumento É este mais antigo testemunho também um dos mais poderosos. No Cancioneiro Colocci'Brancuii, sob os n.'4 230 e 232, figuram duas peças poéticas attribuidas a João de Lobeira, (') poeta da corte de D. Diniz, da segunda metade do século xm, nas quaes se usa o estribilho empre- gado na canção de Oriana, contida na versão castelhana do Am adis de Gania, publicada em 1508. Esse estribilho é o se- guinte :

Le [o] noreta sin roseta, bella sobre toda fror, sin Roseta nome metta en tal coi [ta] uosso amor.

2.0 O segundo vestigio contem-se na seguinte passa- gem da Chronica do Conde Dom Pedro de Menezes : « Estas cou- sas diz o Commentador, que primeiramente esta Istoria ajun- tou e escrepveo, vão assy escriptas pela mais chã maneira que elle pôde, ainda que muitas leixou, de que se outros feitos menores, que aquestes poderam fornecer: jaa seja que muitos auctores cubiçosos de alargar suas obras, for- neciam seus livros recontando tempos, que os Príncipes passavam em convites, e assy de festas e jogos, e tempos alegres de que se nom seguia outra cousa se nom a deieita- çam d'elles mesmos, assy como som os primeiros feitos de Ingraterra, que se chamava Gram Bretanha, e assi o Livro d'Amadis, como quer que soomente este fosse feito a prazer de hum homem, que se chamava Vasco Lobeira, em tempo d'El Rey Dom Fernando, sendo todas-las cousas do dito Li- vro fingidas do Autor. . . » (2). Este testemunho de Azurara

(') É evidente que este João de Lobeira, em 1258 e 1285 refe- rido como fidalgo da corte de D. Diniz e depois de D. Afibnso iv, não c o pae de Vasco de Lobeira, que também se chamou João de Lobeira e que fez testamento em Elvas, em 1386, no reinado de D. João 1.

í2j Collecção de livros inéditos de historia portuguesa. Lisboa, 1792, Edição da Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo 2.0, pag. 422.

Historia da Litteratura Clássica 17

remonta a algum dos annos, que decorrem de 1458 a 1463, epocha em que deve ter sido escripta a Chronica donde o extractamos. Como, porem, esta obra esteve inédita até 1792, quando o famoso P.° Corrêa da Serra a fez publicar, o tes- temunho de Azurara terá participado muito escassamente na formação da tradição do original português; pelo menos os testemunhos, que se lhe seguiram, são tão diversos que nelle se não podem filiar. Esta circunstancia antes augmenta do que diminue o seu valor.

3-e No Cancioneiro Geral, colligido por Garcia de Re- zende e publicado em 15 16, figuram algumas estancias com- postas por Nuno Pereira e Jorge da Silveira para o certamen do Cuidar cf Suspirar em 1483, ou seja com uma anterioridade de vinte e cinco annos sobre Montalvo, nas quaes ha refe- rencias a Oriana, a amada do lealdoso Amadis:

S; o disesse Oryana & Iseu allegar posso. . .

Alegays-me vos Iseu & Oriana com el!a .". .

4.0 O doutor João de Barros, que se não deve confun- dir com o homonymo historiador da Ásia, na sua obra, ainda ha pouco inédita, Libro das Antiguidades e cousas notáveis de Antre Douro e Minho ('), provavelmente escripta em 1549, refere-se a Vasco de Lobeira, como portuense illustre, nos termos seguintes: « E daqui (Porto) foi natural vasco lo- beira, que fez os primeiros 4 libros de amadis, obra certo mui subtil, e graciosa e aprovada dos gallantes; mas como estas cousas se seção em nossas mãos, os castelhanos lhe mudaram a linguagem, e atribuirão a obra a si».

0) V. esta obra manuscripta na Bibliotheca Nacional de Lisboa, folhas 32 verso, ras n.° 216.

H. da L. Cr^seiCA, vol. 1.» 2

13 Historia da IÀUe <<

5.0 António Ferreira, em dois sonetos de sabor ar- chaico, propositalmente imitado, refere-se ao assumpto do Amadis: num claramente faz a attribuição da alteração do episodio de Briolanja a Vasco de Lobeira; noutro apenas ha o nome de Briolanja, a amada de Galaor, mãe de Perião e Garinter. A estes sonetos se referiu o filho do poeta, Miguel Leite Ferreira, organizador da edição dos Poemas Lusitanos ; na seguinte nota: «Os dous sonetos que vão ao foi. 24 fez meu pay na lingoagem que se costumava neste Reyno em tempo dei Rey Don Dinis, que he a mesma em que foi com- posta a historia de Amadis de Gaula por Vasco de Lobeira, natural da cidade do Porto, cujo original anda na casa de Aveiro. Divulgarão-se em nome do Infante Don Affonso, filho primogénito dei Rey Don Dinis, por quão mal este princepe recebera (como se da mesma historia) ser a fermosa Briolanja em seus amores maltratada»'.

Estes sonetos estão incluídos na edição posthuma dos Poemas Lusitanos. Lisboa. 1598, e são do theor seguinte:

«NA ANTIGA L1NGOA PORTUGUESA

SONETO XXXIIII

Bom Vasco de Lobeira, e de grã sen, De prão que vos avedes bem contado O feito d'Amadis o namorado, Sem quedar ende por contar hi ren.

E tanto nos aprougue, e a também, Que vós seredes sempre ende loado, E entre os homes bôs por bom mentado, Que vos lerão adeante, e hora lem.

Mais porque vós fizestes a fremosa Brioranja amar endoado hu nom amarom Esto cambade, e compra sa vontade.

Ca eu hei grã de aver queixosa

Por sa gram fermosura, e sa bondade.

E er porque ó fim amor nom lhe pagarom.

a IJtUmrura Clássica 19

SONETO -\K\V.

Vinha amor pelo campo trebelhando Com sa fremosa madre, e sas donzellas, El rindo, e cheo de ledice entre ellas, de arco, e de sas setas non curando.

Brioranja hi a sazom sia pensando Na grã coita, que ella ha, e vendo aquellas Setas de Amor, filha em sa mão húa dJellas, E mette-a no arco, e vay-se andando.

Deshi volveo o rostro hu Amor sia,

Er, disse, ay traydor, que me has fallido,

Eu prenderey de ti una vendita.

Largou a mão, quedou Amor ferido, E catando a sa sestra, endoado grita : Ay mercê, a Brioranja, que fugia. >

(Ed. Rollandiana, 2.0 vol., pngs. 94 e 95, Lisboa, 1829).

6.° Jorge Cardoso aliudiu também ao Amadis de Gaula do modo seguinte, no seu Agiologio Lusitano: «E por seu mandado trasladou de francês em a nossa língua Pêro Lo- beiro, Tabalião d'Eluas, o liuro de Amadis (que a parecer de vários doctos) he o melhor, que saio á luz de fabulosas historias» (}). Este mandado é do Infante D. Pedro.

7.0 Outro argumento, extrahido do próprio Amadis, da edição castelhana de 1508, a mais antiga conhecida, é a de- claração inserta no texto de se haver alterado o desfecho do episodio de Briolanja, por exigência do infante D. Affonso, que outro não era senão o futuro rei Affonso iv, o heroe do Salado : «...aunque el senor infante D. Alfonso de Portu- gal, habiendo piedad desta formosa doncella, de otra guisa

^ij Lisboa, 1652, pag. 410, tomo

20 Historia da Litter atura Clássica

lo mandase poner. En esto hizo lo que su merced fue, mas no aquello que en efecto de sus amores se escribia.»

8.° Finalmente apontaremos uma adducção recente do sr. Th. Braga, auctor que numerosas vezes se tem occupado deste difficil problema (l). Consiste ella nas seguintes alle- gações :

O sr. Th. Braga chegou ao conhecimento duma edição hebraica, sem data, do primeiro livro do Âmadis, de que exis- tem exemplares completos no Museu Britannico e no Semi- nário Judaico, de Breslau, e um breve fragmento em posse dum particular, de Londres. Esta versão, muito mais resu- mida que os textos conhecidos em outras línguas, teria sido anterior a Montalvo e feita sobre a lição portuguesa, cujos vestígios idiomáticos ainda se trahiriam nessa traducção hebraica. Montalvo teria feito uma amplificação, a qual seria a fonte commum das traducções para francês, italiano e in- glês, o

Se se interpretarem estes argumentos com são critério, desannuviado de nacionalismo parcial, reconhecer-se-ha que elles são insufncientes para fundamentar em solida base a certeza da auctoria portuguesa, e que nem sequer são con- cordes; mas reconhecer-se-ha que delles se tiram conclusões várias, que não são para desprezar. Uns têm de ser comple- tamente postergados, outros diversamente interpretados o que tudo se pôde conciliar com a conclusão geral que a este respeito é hoje mais acceita: que o Amadis tem por fontes principaes as novellas bretonicas do Tristão e do Laçarote e que por completo se ignora em que língua foi primitiva- mente redigida essa obra, hoje conhecida em castelhano,

(>) V. a lista dos seus escriptos sobre esta matéria em Critica Litter ária como Sciencia, 3.* ed., 1920, pags. 168-175.

(2) V. Versão hebraica do « Amadis de Caída », nos Trabalhos da Academia de Scicncias de Portugal, i.a Serie, tomo 2.0 e 3.0, Coim- bra, 1915-1916.

Historia da Litteratura Clássica 21

mas que pelo seu assumpto é completamente estranha á península e a qualquer outro lugar concretamente identifi- cável.

E como se faz então a conciliação daquelles testemu- nhos, por nós acima resumidos, com que se pretende justifi- car a auctoria portuguesa, e desta opinião? É ao que nós, em seguida, vamos responder. O primeiro argumento, o do estribilho das canções do poeta trobadoresco João de Lo- beira, indica que este é pelo menos o auctor da canção con- tida na edição de Montalvo ; que neste tempo era conhe- cido o texto do Amadis e que foi elle talvez o recenseador do episodio de Briolanja, por ordem do sensivel infante D. Affonso. Este mesmo argumento, combinado com o ultimo declaração sobre este episodio de Briolanja por Mon- talvo — faz crer que antes correria algum texto mais an- tigo, em que doutro modo se contassem os amores de Brio- lanja. Assim temos o Amadis de Gania lido na corte de D. Diniz, ou seja antes de 1325, em que Affonso iv occupou o throno.

O testemunho de Azurara fica implicitamente rebatido. Tardia é a epocha do rei D. Fernando I para se lhe attri- buir a origem desta obra, que em tempo de D. Diniz era estimada. Azurara poderia ter feito este conhecimento de leviana outiva e fazer confusão de nomes, visto que vários Lobeiras houve.

O dr. Henry Thomas, que com mestria tem estudado a novellistica peninsular, lembra que poderia occorrer uma confusão : Vasco, com sua nomeada de guerreiro, poderia offuscar o mal conhecido escriptor João e usurpar-lhe, no conceito publico e sem o querer, a auctoria da novella. Deste modo, attribuindo-a a João de Lobeira e não a Vasco, não ha incompatibilidade chronologica com a referencia feita a Amadis na obra De regimine principum, de Egidio Colonna, traduzida para castelhano por João Garcia de Castrogeriz, á volta de 1350. Tara ser auctor da novella, Vasco teria de ser

22 Historia da Litteratura Clássica

um escriptor excessivamente precoce ou um guerreiro exces- sivamente serôdio. (*)

As referencias no Cancioneiro de Rezende terceiro argu- mento— confirmam a voga da novella; esses poetas conhe- ciam, de os lerem, os amores de Amadis, e nas suas compo- sições deixaram passar reminiscências dessa dilecta leitura.

O quarto argumento, testemunho do auctor do Espelho de Casados, Dr. João de Barros, foi recentemente muito aba- lado na sua solidez. Em 1919 a Bibliotheca Publica do Porto publicou o seu manuscripto inédito intitulado Geograpkia d' entre Douro e Minho e Traz os Montes, pelo Doutor João de Barros. Naquella bibliotheca ha cinco copias da obra, mas todas incompletas. O sr. J. M. Augusto da Costa, que diri- giu a edição, escolheu a n.° 1109, que é a mais antiga e que tem na catalogação do estabelecimento a nota, certamente não infallivel, de « que é o original do auctor <>, que viveu no século xvi ; e em casos de incerteza recorreu ás outras. Neste manuscripto agora publicado não ha tal passagem sobre o Amadis. Comparando-o com o da Bibliotheca Nacional, a nosso pedido, o sr. Pedro de Azevedo verificou que elle conferia em muitos passos, mas que também divergia em muitos completamente, e que era escripto em calligraphia do século xvii. Que valor poderá ter, em vista disto, esse testemunho attribuido a João de Barros, se no mais antigo dos seus manuscriptos e único que ao seu punho ou á sua epocha se attribue, não existe? Possível é que seja uma interpolação de copista que, ao reproduzir a obra, a ia com- pletando com novas informações. O próprio caracter pole- mico do passo faz crer que elle foi redigido, quando corria mundo a reivindicação dos hespanhoes.

O quinto testemunho, os dois sonetos de António Fer-

(l) V. Spanish and Portitgnese Romances 0/ Chiialry, Cambridge, 1920.

Historia da Lit ter atura Ghssí . 23

reira, deve ser a forma adulterada da tradição; houve effecrivamente uma modificação no texto por um Lobeira, mas não foi Vasco, que viveu muito depois de D. Affonso IV. E indica também leitura da obra num texto antigo, em for- mas linguisticas que não eram as usadas pelo poeta refor- mador. Esse texto, porem, mesmo o alterado por João de Lobeira, poderia ser uma versão portuguesa, mas não o texto primitivo. A própria liberdade com que se fez a alte- ração está a indicar o papel irresponsável do traduetor, que na edade media gozava do mais amplo e discricionário poder de alterar, corrigir e ampliar.

A hypothese engenhosa do sr. Th. Braga foi plena- mente invalidada, com razões de peso, pelo sr. H. Thomas, que examinou com minúcia o exemplar do Museu Britan- nico. Apesar de não ter data, é possivel attribuir uma com segurança a essa edição hebraica. A traducção é do phvsico Jacob ben Moses ot Algaba e a edição é de Eleazar ben Gershom Soncino, da celebre farnilia de impressores, sobre a qua! ha estudos especiaes, biographicos e bibliographicos. Este Eleazar exerceu, bem como seu pae, a sua arte em Constantinopla e editou muitos livros, de aspecto typogra- phico muito semelhante ao Amadis, entre 1534 e 1547. De Constantinopla e desse lapso de tempo deve ser a edição do fragmento hebraico, feita sobre o texto hespanhol como abreviação, em vez duma traducção do texto português, «rhetoricamente» amplificado por Montaivo \}).

A critica dos outros testemunhos está comprehendida na discussão dos precedentes, excepto o de Miguel Leite Ferreira sobre a existência do original na casa de Aveiro. Tal indicação não é sufficiente prova. Saberia o filho do auetor da Castro distinguir entre o manuscripto duma versão

{') V. Spanish <{.hí .' , ices <■;/ Chivahy, Cambridge,

1920, pags. 59-63.

24 II Litterafu

portuguesa, anterior á castelhana impressa e divulgada nesse tempo, e o texto primitivo, sem a alteração de João de Lobeira e sem o quarto livro de Montalvo? Sim, iem- bremo-nos de que a questão não consiste em saber se o Amadis foi primitivamente escripto em lingua portuguesa ou em lingua castelhana; consiste em apurar em que lingua elle foi originalmente escripto, a qual pode muito bem não ser nem a de Portugal, nem a de Castella. Tal problema é evi- dentemente mais vasto nestes1 termos, do que sob a forma de pleito a dirimir entre as duas principaes litteraturas peninsulares. Será opportuno recordar que uma terceira parte se apresenta a reivindicar para si a paternidade: a França.

Esta fá-lo por duas formas. A primeira reivindicação foi feita gratuitamente pelo mais antigo traductor francês, Nicolas d'Herberay des Essarts, 1540-1543, que afnrmou ter visto o texto manuscripto da novella em lingua picarda; esta afíirmação infundada não é considerada pela critica. François de la Noue, em 1587 ('), mostrava que não cria no asserto de Herberay.

A outra forma, por que a critica francesa reivindica a paternidade do Amadis, é mais arguta e mais difíicil de con- troverter. A novella seria o desenvolvimento de germens franceses, da moAiere de Bretagne ; e forçoso é confessar que muito poucos elementos peninsulares ostenta. Esta these pertence mais ao domínio da critica de fontes e, qualquer que seja o veredictum final, não será incompatível com a auetoria peninsular.

Menéndez y Pelayo, analysando cts varias razões ailega- das pró e contra a auetoria portuguesa, opinou que Mon- talvo seria o coordenador de três versões antigas; que João de Lobeira, auetor da canção Lonoreia sin roseta, teria sido o

(i) D\scuur< politiques et militatres, Bale, 1587, pag. 134.

Historia da Liderai m a Clássica 25

recenseador do episodio da reconhecida Briolanja; que no fim do século XIII existia indiscutivelmente um Amadis na península, mas que não é possível, com os dados que se pos- suíam no tempo em que escrevia, 1905, derimir o pleito da lingua primitiva. A tradição da novellistica cavalheiresca foi mais viva em Portugal, mas o desenvolvimento da sua prosa foi mais tardio, no século XV, no tempo de Fernão Lo- pes, pondera Menéndez y Pelayo (l).

Henry Thomas, sem deixar de fazer transparecer um pouco de indifferença pelo pleito, conclue conciliadoramente ; « Modem opinion indeed may be summed up in a manner that distributes the international honours very evenly. Great Britain provides in the main the scene and the actors of the story, which reached the Iberian Península through the mé- dium of the French jongleurs. Spain has the earliest known version and the eariiest mention of Amadis, but Portugal has a tradition of an author which appears to justify itself to an even remoter period. Did Spain or Portugal receive the story íirst? Its most natural progress wouid seem to be from French literature into the Portuguese via Galicia; but it must be remembered that its route thither lay through two ancieut capitais bf Castile, Burgos and León, both of which offered opportunities for a leakage into the Castí- lian > (2).

Hoje se conhece o texto castelhano de 150S, revisto e acerescentado por Montalvo, em cuja lingua ha antigas referencias também, como as de Pêro López de Ayala, no seu Rimado de Talado, composto entre 1357 e 1403, e as do Cancioneiro de Baena, de 1445, as quaes podem coexistir a par da tradição portuguesa, quando a obra era conhe- cida por toda a península. A tradição portuguesa é Insuffi-

(!) Origenes de te Novela, vol. i.°, Madrid, 1905. vote (-') V. Obra citada, pag. 59.

26 Historia da Littet -atura Clássica

ciente ainda, mas 6 a única, sequente e acatada, que se ostenta durante os séculos, e como tal, resolvidas certas in- congruências chronologicas sem devaneios demonstrativos, faz pender o juizo a favor de João de Lobeira, o velho poeta um momento offuscado na sua reputação litteraria pela gloria militar do seu parente Vasco, como verosimilmente opina o sr. H. Thomas.

Eis quanto de seguro se pôde concluir a respeito da querella de Amadis de Gaula, a mais famosa novella de ca- \ aliaria, o patrono de todo o género e uma das mais influen- tes obras litterarias das línguas românicas.

É também isto que a respeito da novella na nossa litte- ratura medieval ha a dizer, talvez faltando pôr em relevo que na tradição litteraria dos tempos anteriores ao nosso quinhentismo, na atmosphera de idéas, gostos e themas lit- terarios, no mundo ideal, sobrejacente á vida quotidiana, que a leitura e a cultura artistica criam, occupavam proemi- nente lugar as figuras do Amadis e da sua plêiade heróica e amatória: Galaor, Florisando, Esplandião, Lisuarte da Gré- cia, Amadis da Grécia, Florisel, Oriana, Briolanja e Sarda- mira.

Não tomando como theatro as peças dialogaes dos cancioneiros provençaes, sirventeses, bailadas e tenções sa- tyricas e amorosas, que não sabemos se seriam recitadas por diversas personagens, que juntassem á dicção a mimica, es- cassos são os vestígios do theatro medieval, que poderemos apontar. Esses vestígios são testemunhos e referencias, não obras, nem fragmentos de obras. Outras litteraturas, como a francesa e a hespanhola, ostentam ainda hoje abundantes textos da forma litúrgica do seu theatro medieval. Em Por- tugal, podemos com perfeita segurança aífoitar que o thea- tro religioso de Gil Vicente, comediographo do século

Historia da Litteratura Clássica 27

xvi, é que representa o theatro medievo, de mysterios e moralidades. Antes do monologo da Visitação, apenas teria havido em Portugal, quanto informam os vestígios débeis que possuímos, as grandes representações da Igreja, com seu cerimonial complicado e imponente, e em theatro pro- fano os momos e entremeses referidos em vários testemunhos.

No Elucidário de Fr. Joaquim de Santa Rosa Viterbo, contem-se uma passagem, abaixo reproduzida, em que ha referencias a dois bobos, do tempo de D. Sancho I, de no- mes Bonamis e Acompaniado que faziam arremedilhos : «No (anno) de 1193 El-Rei D. Sancho 1 com sua mulher, e filhos fizerão Doação de hum Casal, dos quatro que a coroa tinha em Canellas de Poyares do Douro, ao farçante ou bobo, chamado Bonamis, e a seu irmão Aconpaniado, para elles e seus descendentes. E por Confirmação ou Rébora se diz : Nos mimi supranominati debemus Domino nostro Regi, pro roboratione unum arremedillum». D. Affonso 11 confirmou esta doação de seu pae nos seguintes termos: «Ego Alffon- sus secundus Dei gratia Portugaliae Rex... roboro et con- firmo vobis Bonamis, et comsuprinis vestris, filliis de Acon- paniado, Cartam Illam, quam Pater meus Rex Dommus Sancius boné memorie vobis fecit de illo casali, quod vobis dedid in villa, que vocatur Canelas » ('). Havemos de confes- sar que este testemunho se refere a uma forma de theatro muito rudimentar, pela epocha a que remonta, pelos próprios termos em que está concebido.

No noticioso Cancioneiro Geralt de Garcia de Rezende, ha algumas referencias a representações de momos dos tem- pos immediatamente anteriores a Gil Vicente, que é no- meado por Rezende na sua Miscellanea. O poeta Álvaro Bar- reto declara numas trovas a el-rei D. Affonso V :

('] V. Memorias para a historia das cotjf.nnaçõds régias neste reino, João Pedro Ribeiro, Lisboa, 1816, Doe. 1.

08 Historia da Litterafura Clássica

Ruy de Sousa, que bem cabe nesta terra em que somos, por tal fazedor de momos, qual ante nós se nam sabe, Nam no podemos cheguar, assy aja eu boa fym ! (1)

Duarte de Brito, um dos mais fecundos e lamentosos poetas do Cancioneiro, refere-se numas trovas endereçadas a João Gomez da Ylha ás representações scenicas feitas por o ocasião do casamento da infanta D. Leonor, filha de D. Affon- so v, com o imperador da Allemanha:

Eram vossos tempos autos nas festas da imperatriz, mas agora calar chj^z nam he tempo de crisautos. (â|

Duarte da Gama, o censor das «desordeens que aguora se costumam em Portugal», declara que:

Nom ha hy mays antremeses no mundo onyversal do que ha em Portugal nos Portugueses". ^3)

O que eram estas representações facilmente se de- prehende, combinando os dados que Garcia de Rezende nos proporciona na sua Chronica e no seu Cancioneiro, acerca dos momos celebrados em Évora para festejar o casamento do filho de D. João II :

« E logo a terça feira seguinte houve na sala da madeira muito excellentes e singulares momos reaes, tantos, tão ricos e galantes, com tanta novidade e differenças de entremeses,

(J) V. Cancioneiro Geral, ed. Kaussler, vol. 1, pag. 276-7. (-') V. Idem. vol. i, pag. 367. (') V. Idem, vol II, pag. 514-5.

Historia da Lu lera/, ura Clássica 29

que creio que nunca outros taes foram vistos. Entre os quaes El-rei entrou primeiro para desafiar a justa que havia de manter com invenção e nome do Cavalleiro do Cirne, e veio com tanta riqueza e galantaria quanta no mundo podia ser.

Entrou pelas portas da sala com nove bateis grandes, em cada um seu mantedor, e os bateis mettidos em ondas do mar feitas de pano de linho e pintadas de maneira que parecia agua ; com grande estrondo de artelharia que tirava, e trombetas, atabales, e menestris altos que tangiam, e com muitas gritas e alvoroços de muitos apitos de mestres, con- tra-mestres e marinheiros, vestidos de brocados e sedas com trajos de allemães, e os bateis cheios de tochas, e muitas velas douradas accesas com toldos de brocado, e muitas e ricas bandeiras.

E assi vinha uma náo á vela, cousa espantosa, com muitos homens dentro, e muitas bombardas, sem ninguém ver o artificio como andava, que era cousa maravilhosa. O toldo e toldos das gáveas de brocado, e as vellas de tafetá branco e roxo, a cordoada d'ouro e seda, e as ancoras dou- radas. E assi a náo como bateis com muitas vellas de cera douradas todas accesas, e as bandeiras e estandartes eram das armas d'El-Rei e da Princesa todas de damasco, e dou- radas; e vinham deante do batel d'El-Rei, que era o pri- meiro, sobre as ondas um muito grande e formoso cirne, com as pennas brancas e douradas, e após elle na proa do batel vinha o seu cavalleiro, em pé, armado de ricas armas e guiado d'elle, e em nome d'El-Rei sahio com sua falia, e em joelhos deu á Princesa um breve conforme a sua tenção, que era querê-la servir nas festas do seu casamento, e sobre conclusão de amores desafiou para justas d'armas com oito mantedores a todos os que o contrario quizessem combater. E por rei d'armas, trombetas e officiaes para isso ordenados, se publicou em alta voz o breve e desafio com as condições das justas e grados d'ellas, assi para o que mais galante viesse á teia, como para quem melhor justasse.

Historia da Litteraturã Cias-:'

E acabado, os bateis botaram pranchas fora, e sahio KI-Rei- com seus riquíssimos momos, e a náo e bateis que enchiam toda a sala se sahiram com grandes gritos e estrondo de artelharia, trombetas e atabales, charamelas e sacabuxas, que parecia que a sala tremia e queria cahir em terra.

El-Rei dançou com a Princesa, e os seus mantedores com damas que tomaram ; e logo veio o Duque com fidalgos de sua casa com outros riquíssimos momos.

E veio outro entremês muito grande em que vinham muitos momos metidos em uma fortaleza entre uma rocha e mata de muitas verdes arvores, e dois grandes selvagens á porta com os quaes um homem d'armas pelejou e desbara- tou, e cortou umas cadeias e cadeados que tinham cerradas as portas do castello, que logo foram abertas, e por uma ponte levadiça sahiram muitos e mui ricos momos, e em se abrindo as portas sahiram de dentro tantas perdizes vi- vas e outras aves, que toda a sala foi posta em revolta e cheia d'aves que andavam voando por ella até que as to- mavam.

E sahido este grande e custoso entremês, veio outro em que vinham vinte fidalgos todos em trajo de peregrinos com bordões dourados nas mãos, e grandes ramaes de contas douradas ao pescoço, e seus chapeos com muitas imagens, todos com manteos que os cobriam até o joelho, de broca- dos, e por cima com remendos de veludo e setim, e dado seu breve deitaram os manteos, bordões, contas e chapeos no chão. e ficaram ricamente vestidos todos de rica chaparia, e os manteos e todo o mais tomavam moços da camará e reposteiros e chocarreiros quem mais podia, e valiam muito, que cada manteo tinha muitos covados de brocado. E assi vieram outros muitos e ricos momos, que não digo, com singulares entremeses, riquezas, galantaria, e muitos com palavras e invenções d'ardileza acceitavam o desafio com as mesmas condições, e dançaram todos até ante-manhã, e foi tamanha festa que se não fora vista de muitos que ao

Historia da Li tu,, atura Clássica 31

presente são vivos, eu a não ousara escrever» (l). O mesmo escriptor nos informação das letras dessas justas, espécie de divisas poéticas e galantes que designavam o papel attribuido a cada figurante. Assim quem representava o sol ostentava a seguinte letra ou cimeira :

Sobre todos rresplandece

my dolor,

porque es el qu*es mayor.

Outro que representava Júpiter:

Aqueste suele dar vida ai que mas servir se alha, y vos ai vuestro quita-lha (*).

Como se vê, o que de theatro se fez em Évora, em 1490, em tempo de el-rei D. João 11, em pouco se resume: muito effeito scenico, vistosa scenographia, imprevistos artifícios de magica e como únicos elementos litterarios as letras ou cimeiras e os breves, isto é, somente aquelles dizeres que a galantaria e a boa intelligencia dos momos tornavam indis- pensáveis. De theatro, considerado como integral represen- tação da realidade da vida, apenas os simulacros de comba- tes cavalheirescos, que também não eram a predominante característica da vida portuguesa de então, na metrópole. O elemento, que mais actualidade possuía, era a lucta com os selvagens, influencia da expansão colonial. E se nós quizérmos fazer, ainda que conjecturalmente e sob reservas, uma distincção entre os significados dessas palavras, tão confundidas ordinariamente, proporemos a seguinte: enfrentes teria um sentido mais comprehensivo, designaria todo o

(1) V. Garcia de Rezende, Chronica de El-rei D. João II, ed. Mello de Azevedo, Lisboa, 1902, 2.0 vol., pag. 94-96.

(2) V. Cancioneiro Geral, vol. 3.0, pags. 333-4.

o2 -Historia da Litteratura Clássica

conjuncto de representações scenicas, todo o iniermezzo thea- tral de- determinado momento, de determinada solemnidade festiva; o momo significaria o episodio particular, a acção cómica, e vários eram os momos que successivamente, numa mesma noite e com a mesma scenographia, se representa- vam. No termo entremês quereria assim significar-se mais a parte espectaculosa, e no momo a parte episódica. Isto con- firma a combinação das referencias coetâneas dessas exhibi- ções. O breve era, afora a cimeira oii^ letra, que terá sido tal- vez uma particularidade occasional dos entremezes de Évora, de 1490, era toda a elocução (I).

Dos Mysterios, essas longas composições litúrgicas que chegavam a ter oitenta mil versos e cuja representação che- gava a durar mais dum mês, não ha noticia entre nós, o dissemos; é Gil Vicente quem nos seus Autos nos os pri- meiros exemplos de íheatro religioso. Somente houve, pois, durante a epocha medieval da litteratura portuguesa, os momos escassamente dramáticos e, dentro dos templos, o cerimonial do culto, que produzia então como hoje formosas e ostentosas representações que, sem transcender os limites prefixados pelas normas do culto e sem chegar á vida própria de género autónomo, nem por isso deixavam de possuir certo caracter theatral, com seu dialogo ainda que numa lingua morta, com seus trajos, alguma enscenação e um evidente pro- pósito de ao vivo reconstituir perante o publico certa acção.

Garcia de Rezende ainda pôde referir-se a Gil Vicente, mas como introductor da pastoral dramática, imitada de Encina:

(M É um typico exemplo de breve a peça desse género reprodu- zida por Garcia de Rezende, a pag. 157 do vol. 2 ° do seu Cancioneiro ('trai, sob o titulo de Breue do conde de Vymioso d' um momo que fez sendo desavyndo, no quall levava por antrernes kuum anjo &■ huitni diabo. & ho anjo deu esta contigua a sua dama. Segue-se uma prévia explica- rão em prosa e a annunciada cantiga.

ia da Lítleraiura Clássica 33

E vimos singularmente

fazer representações

de estilo mui eloquente,

de mui novas invenções

e feitas por Gil Vicente;

elle foi o que inventou

isto ca, e o usou

com mais graça e mais doutrina,

posto que João dei Enzina

o pastoril começou (*).

Em matéria de historia, a nossa litteratura medieval não foi menos abundante e substanciosa que em matéria poética, se nos reportarmos, como devemos, ao critério histórico da epocha e aos meios de acção disponíveis então. Convém accentuar que nos queremos referir somente a trabalhos intencionalmente históricos, a registos de factos proposital- mente feitos por seus auctores com a deliberada intenção de produzir historia. Com esta restricção, poderemos ainda distinguir na nossa historiographia medieval quatro formas ou maneiras: a) a dos chronicons; b) a das agiographias; c) a dos livros de linhagens; d) e a das chronicas. Fácil é distribuir a productividade historiographica, que chegou até nós, por essas quatro alineas, para depois determinar as essenciaes características de cada uma delias:

a) —Chronicons: Chronicon conimbricense (fragmento do sec.° XII ou principio do sec.° XIII), Chronica gothorum (fragmento), Chronicon complutense (fragmento do fim

0) V. Misccllanca, appensa á Chronica, vol. 3.0, pag. 199-200, ed. de 1902.

H. da L. Clássica, vol. :.• 8

34 Historia da Litteratura Clássica

do século xm), Chronicon laviecense (fragmento do século xiv), Chronicon lauibanénse (fragmento do principio do século XIl) ; Breve Chronicon Alcobacense (fragmento do século Xlll), Chronica breve do Archivo Nacional (do século Xiv):

b) Agiographias e matéria ecclesiasíica : S. Rudesindi Vi/a et Miracula (sec.° XIl), Vita Sanctce Senorincc, Mia Sancii Gcraldi, Viia S. Martini Sauríensis, Vita Tello- nis Archidiaconis, Vita Sancii Theotoni, Exordium Mo- nasterii S. Joannis de Tarouca, Indicnlum fundaiionis Monasierii S. Yicentii, lianslalio et Miracula S. Vin~ centii, Legenda Mariyrum Marochii, Vita Sancii Antonii;

c)— Livros de linhagens: Livro velho com um fragmento de outro nobiliário de epocha anterior, Nobiliário do Collegio dos Nobres, Livro dos Li7ihagens do Conde D. Pedro;

d) Chronicas : Chronicas breves e vie?uorias avulsas de Santa Cruz de Coi?nbra, De expugnatione Scalabis, De expu- gnatione Olisipo?iis A. D. MCXLVJI, Chronica do Con- destabre, Chronica do infante D. Fernando de D. Frei João Alvares; Chionicas de D. Pedro L, D. Fernando e D. João L, de Fernão Lopes; Chronica de D.João L (cont.), Chronica do conde D. Pedro de Menezes e de Dom Duarte seu filho e Chronica da Conquista da Guiné, por Gomes Eannes de Azurara.

Em maioria, os monumentos históricos enumerados na primeira alinea são em língua latina, carecem portanto da essen- cial feição numa obra de arte litteraria nacional, a língua, e não podem aceusar os desvelos de forma e de expressão, que igualmente são também essenciaes; como composições históricas reduzem-se a uma tabeliã de ephemerides, secca- mente ordenadas segundo o nexo chronologico. São, quando muito, uma collecção de apontamentos, em que se fixou a memoria dos acontecimentos, um repertório de factos, tão

Historia da Littcmtara Clássica 35

longe da complexidade exigente duma construcção histórica como a sua barbara linguagem distava do dizer clássico dum Tito Lívio. A arte de narrar e descrever, a arte de ordenar e compor, e a sciencia de apurar e criticar fontes não appa- recem nelles, não se trahem pelo menor indicio. São, porem, os primitivos embryões da nossa historiographia nacional, pois ao menos a particularidade de se occupar da mesma matéria têm- na: e não foram sem utilidade, como peças tão vetustas, para cautelosa referencia de testemunho.

As agiographias eram um progresso, porque são uma exposição seguida, são um todo, a biographia e os milagres dos santos ou os progressos da religião christã. A carência da lingua nacional permanece, pois é ainda o latim a lingua preferida, numas peças porque a lingua nacional estando ainda numa atrazada phase de differenciação não podia ser considerada como instrumento litterario, noutras por aberta preferencia do latim por parte de seu auctor, como sendo uma lingua mais nobre que o cahotico romance plebeu e provadamente mais expressiva, até mais de accordo com a matéria religiosa de taes escriptos. Essas agiographias care- cem totalmente de espirito critico, são apologias do milagre e do sobrenatural, e occupam-se de matéria ainda estranha ao quadro da historia nacional, por lhe ser, em alguns ca- sos, anterior,

São os livros de linhagens que trazem a maior novidade da historiographia medieval. Foi essa novidade a de bos- quejar um quadro genérico da historia universal, desconhe- cido dos clássicos que não julgavam condigna matéria his- tórica quanto antecedesse ou excedesse as suas evoluções nacionaes. Se Tácito, César e Sallustio excederam na appa- rencia esses limites, quando se occuparam dos bárbaros ger- manos, dos bárbaros gauleses e dos bárbaros numidas, foi para seguir ainda a expansão do povo romano. Não trans- cenderam as fronteiras da Itália, levados por quaesquer sen- timentos de humana sympathia ou por alguma comprehen-

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são da solidariedade e continuidade da civilização humana. Longe dum romano imperialista ou dum grego mais res- trictamente cidadão tão amplos sentimentos. Foi a Igreja que aos homens trouxe esses sentimentos, foi ella que deu sentido e calor á expressão humanidade, foi ella, em corres- pondência, que creou a expressão de historia universal e fo- ram os seus historiadores, como Eusébio e Orosio, que es- corçaram os primeiros quadros de historia universal. Em Portugal foram os nossos livros de linhagens os introducto- res dessa novidade, que não mais valor critico a esses trabalhos, antes lh'o retira, mas que lhes attribue mais accen- tuada intenção histórica.

Não suppôr-se que todos os livros de linhagens, conhecidos entre nós, são precedidos deste quadro. O Livro Velho e o fragmento de um outro que o acompanha, por al- guns infundadamente considerado como uma segunda parte do mesmo, são apenas listas de nomes, nuas de qualquer consideração por parte de seus auctores, que desse modo julgavam preencher cabalmente os fins úteis dessas linha- gens. (*) Eram esses fins habilitar os nobres a exercer o seu direito de padroado, isto é, saber se era pertença sua tal ou tal fundação religiosa, da qual por isso haviam de receber dotes de casamento, prendas de cavallaria e comedorias ; era o desejo de se conhecerem todos os graus de parentesco para evitar casamentos entre próximos em graus prohibidos pela Igreja ; o direito de avoenga que dava a preferencia aos pa- rentes na arrematação dos bens em bocca de venda ; e final- mente a prosápia nobiliarchica, tanto do tempo. O terceiro nobiliário é entresachado de alguns episódios, dos quaes é

(}) V. Alexandre Herculano, Memoria sobre a origem provável dos Livros de linhagens, publ. nas Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, tomo i.°, parte i.a, pag. 35, Lisboa, e a Introducçâo que pre- cede a edição dos mesmos Livros de Linhagens, nos Portugália? Monu- mento Histórica, vpl. I, fase. 11.

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o principal a muito desenvolvida e bem movimentada des- cripção da batalha do Salado (*) ; o quarto tem mais des- envolvimento, nelle se exemplificando o alludido quadro de historia geral. Logo após o prologo, em que o Conde D. Pe- dro adduz sete utilidades em justificação do seu trabalho, começa a «linhagem dos homeens como uem de padre a fi- lho des o começo do mundo e do que cada hun uiueo e de que uida foy e começa em Adam o primeiro homem que Deus fez quando formou o çeeo e a terra >. (8) Este quadro alcança até meio do titulo vil, em que principia a matéria portuguesa, e é organizado com um mixto de noções bíbli- cas e de informações da historia phantastica da epocha, sal- titando de paiz em paiz segundo uma poética geographia. Não é sem significado este' quadro, vasta genealogia que de geração em geração, de paiz em paiz, vem ligando os homens e os reis, fazendo do nexo histórico um fio de paren- tesco; não é sem interesse porque traduz as noções que pos- suía um estudioso do século XIV e até do século XIII, pois é provável que este nobiliário seja obra de vários auctores, anteriores e posteriores ao Conde D. Pedro, de Barcellos. Não se perdera a memoria de Roma, sob a forma de impé- rio. Os seus imperadores perseguidores do christianismo são lembrados por este linhagista erudito que citava Aristóteles em abono duma utopia de pacifica fraternidade: «Esto diz Aristotilles que sse os homeens ouuessem antressy amizade verdadeira nom averiam mester rreys nem justiças, ca ami- zade os faria viuer seguramente en o serviço de Deus. » (') Ainda que aqui e acolá o esmalte algum episodio, o Livro de Linhagens, conhecido pelo do Conde D. Pedro, é predo- minantemente o que seu titulo e objectivos indicam : um

(l) V. Portugália' Monumento, Histórica, vol. i, fase." 2.°, pa£ 185-rço.

(*) V. Idem, pag. 230.

[9) V. Ibidem.

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nobiliário, lista de nomes acompanhados da rubrica explica- tiva sobre o grau de parentesco que os unem. Tanto dos livros de linhagens como dos lacónicos chronicons se servi- ram com proveito os nossos antigos chronistas, sempre que se houveram de occupar dos nossos primeiros reis.

Da quarta alinea e principal agora diremos. Cabe a D. Duarte a gloria de haver creado, em 1434, o cargo de chronista-mór do Reino, que tradicionalmente andou ligado ao de guarda-mór do archivo da Torre do Tombo. Foi nelle provido, como ninguém ignora, Fernão Lopes. Este, o ano- nymo auctor da Chronica do Condestavel e Fr. João Alvares, auctor da chronica do Infante Santo, é que são verdadeira- mente os creadores da historiographia nacional. Probidade na narrativa, escrúpulo na escolha dos materiaes a aproveitar, methodo na ordenação delles, clareza e cuidados na compo- sição estructural da sua obra, concentração da attenção num único assumpto, e esse sabiamente escolhido; isso fizeram estes auctores em suas obras, primeiros monumentos da nossa historiographia. Evidentemente é muito grande a distancia entre um chronicon e a vida do condestavel, tal como a conta o seu anonymo auctor (1). A probidade em Azurara chegou ao ponto deste historiador passar ás partes de Africa, onde haviam decorrido os feitos que se propunha narrar; Fernão Lopes inquiria testemunhas e enjeitava por impro-

(') Aproveitamos o ensejo para lembrar que a expressão anonymo auctor começa a perder o significado de desconhecido auctor, pois apesar de se não haver declarado, ha sólidos fundamentos para crer que o auctor da Chronica do Condestavel seja Fernão Lopes e que essa obra tenha sido composta entre os annos de 1431 e 1443. Sobre esta muito plausível conjectura veja-se a introducção do sr. A. Braamcamp Freire á sua edição da Chronica de D. João I, i.a parte, Lisboa, 1915, e a nota lida em sessão de 4 de Março de 1915, da Academia das Sciencias, pelo sr. Francisco Maria Esteves Pereira, e publicada a pags. 380-389 do vol. ix do Boletiy.i da Segunda Classe da Academia das Sciencias de Lisboa, Lisboa, 1915.

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vados os acontecimentos mal testemunhados. A documenta- ção começa a ter papel na construcção histórica, atj então reduzida ao registo das tradições de memoria; e a linguagem, a principio o latim bárbaro, torna-se instrumento litterario, estylo, mais simples e pittoresco em Fernão Lopes, mais pretensioso em Azurara, que se comprazia em ostentar eru- dição. O estylo do chronista dos Condes de Vianna mantem- se sempre a uma altura de digna gravidade, esmaltada de citações e ás vezes prejudicada peia tendência para o que Herculano chamou «philosophar trivialidades». O que, po- rem, cumpre fixar é que biographar circunstanciadamente uma grande figura nacional, ou fosse rei, ou fosse o Condes- tavel, o Infante Santo ou os Condes de Vianna, expondo os acontecimentos com lógica, fazendo-os depender necessaria- mente de antecedentes próximos ou remotos e mostrando- no-los a desenrolar- se com sequencia quanto possível exhaus- tiva, era fazer historia. Um senão possue essa historiogra- phia : um amor dos pormenores ás vezes tão vivo forma extrema da probidade litteraria que faz perder a noção de valor para a escolha desses pormenores. Esse defeito não impedirá de se reconhecer que a historiographia seja, como o lyrismo provençal, um género litterario copioso, e que a sua parte do século xv, pelo escrúpulo de verdade da nar- ração, pela linguagem acurada em estylo, pelos assumptos, pela personalidade litteraria de seus auctores e até pela prio- ridade de alguns assumptos (T) seja a principal actividade

(1) O Visconde de Santarém lembrou no seu prefacio á edição da C/ircnica da Conquista da Guiné, de Paris, 1841, que esta obra é «o pri- meiro livro escripto por auctor europeu sobre os paizes situados na costa occidental d'Africa além do Cabo Bojador, e no qual se coordenarão pela primeira vez as relações de testemunhas contemporâneas dos es- forços dos mais intrépidos navegantes portugueses que penetrarão no famoso mar Tenebroso dos Árabes n . . . V. Opuscidos e Esparsos, Lis- boa, 1910, voi. 2.0, pag. 350.

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litteraria da nossa edade média e mesmo o único quinhão da cultura medieval que o quinhentismo herdará com proveito. Esse gérmen que, convém não desconhecer, representa uma tendência precursora do renascimento do classicismo fecundará e ha-de preparar no século dezaseis a magnifica galena de chronistas da metrópole e do ultramar.

A Virtuosa Bemfeitoria do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, é uma das obras mais demonstrativas da edade média. Ella revela que seu auctor recebera, por estudo e lei- tura, a profunda influencia das letras e da philosophia clás- sica e a encorporára em seu espirito tão intimamente que o mecanismo da sua intelligencia faz-se de modo differente do dum pensador caracteristicamente medieval. Alimentado de Aristóteles, de Plutarcho, de Cícero e sobre todos de Séneca, •«que antre os moraes philosophos tem o principado», compôs o martyr de Alfarrobeira o seu curioso tratado de ethica. De Aristóteles recebeu a concepção metaphysica, dos mora- listas clássicos a disposição de austeridade severa e da sua christã o finalismo e a estimação de valores, que a philo- sophia aristotélica lhe explicava e que a moral estóica lhe ensinava como se alcançavam. O seu livro é um modelo de boa composição, da mais lógica estructura, dum equilíbrio perfeito e sem igual em toda a productividade medieva. Denuncia carinhos de auctor que o pensamento português e a prosa portuguesa antes delle n£o conheceram. Fácil seria, se a outra matéria se não destinasse o presente volume, re- duzir a Virtuosa Bemfeitoria a um eschema, que comprehen- deria toda a sua matéria. O infante D. Pedro, serenamente e firmemente, sem se perder em divagações nem accumular citações, diz-nos qual o objectivo da sua obra, justifica com três razões a sua utilidade, explica-nos philosophicamente e até etymologicamente o seu titulo; estabelece a differença entre beneficio e bemfeitoria; prevê as objecções e rebate-as uma por uma; classifica as varias categorias de bemfeitorias, e a todas analysa detidamente. Dentro de cada um dos seis

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livros, a mesma orgânica estructura. Foi o infante uma con- sciência já transformada por influencias extra-medievaes; foi bem um precursor da cultura clássica, como moralista e es- criptor. (')

O Leal Co7iseUieiro, do rei D. Duarte, que elle mesmo chamou o «abe da lealdade», é um monumento linguistico e um elucidativo escripto moralista, mas não é uma obra de arte. Filia-se nas mesmas correntes de pensamento e com o mesmo propósito da Virtuosa bemfeitoria se justifica; tem o mesmo equilíbrio de composição, a mesma ordenada estru- ctura, que aceusa capacidades de auetor, mas por taes méritos seria obra de arte (2). Iguaes observações se pode- rão fazer á cerca do seu Livro da Ensynança de bem cavalgar ioda sella, cujo assumpto D. Duarte soube tornar digno da sua penna philosophica, vendo nelle lições moraes.

Ha noticia de numerosas obras perdidas, redacções ori- ginaes e traducções livres, como na epocha se faziam. O sr. Th. Braga deu- nos um quantioso elencho dessas perdas (').

O conspecto, que acabamos de descrever e que melhor se completará com as lembranças que cada um conserva da nossa litteratura medieval, pois não podemos descer a ana-

(!) Não assim como doutrinário politico. V. As theorias politicas medievaes no « Tratado da Virtuosa Bemfeitoria», sr. Prof. Manuel Paulo Merca, na Rnista de Historia, vol. 8.°, Lisboa, 1919, pags. 5-21.

(2) V. a edição de F. I. Roquete, prefaciada pelo 2.c Visconde de Santarém, Paris, 1842. No mesmo volume se comprehende a Ensynança de bem cavalgar toda sella.

(3) V. Edade Media, Porto, 1909, pags. 507-8. A Academia das Sciencias publicou em 1918 um monumento medievo, até então inédito, o Luro da Montaria, de D. João f, sob a direcção do sr. F. M. Esteves Pereira.

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lyses minuciosas e a exemplificações, mostrará que esta esthetica era em extremo rudimentar, barbara e grosseira, hesitante e imperfeita e mais do que insufficiente para tra- duzir as novas aspirações e os altos ideaes, o delicado gosto e abundante cabedal de ideas geraes, que enchiam a alma e a intelligencia dum homem do século XVI. A esta parca litteratura succedeu a litteratura clássica, designação com que se pretende genericamente designar toda a creação litteraria que decorre do século XVI ao romantismo, por se inspirar da imitação das velhas litteraturas hellenica e latina em Portugal desde Gil Vicente a Garrett, ou episodicamente desde a representação do Monologo do Vaqueiro á publicação do Camões. Tomamos Gil Vicente como pioneiro do gosto clássico, apesar do muito de medievalismo que na sua dra- maturgia se contém, porque é um imitador do classicismo, Juan dei Encina, quem lhe a suggestão inicial. Esta litteratura apparentemente, quando executada inintelligente- mente ou desacompanhada de outros phenomenos, veio transportar para outra parte longínqua e muito fora da tra- dição litteraria dos paizes, o centro de attenção dos espí- ritos, a base esthetica das litteraturas novo-latinas, mas verdadeiramente o que essa imitação de gregos e romanos veio trazer foi a expressão ampla ás novas aspirações do espirito humano, que não podiam caber na exhausta litte- ratura medieval. Ã. confusa indifferenciação de géneros da edade media vinha ella oppôr uma extrema variedade de géneros bem extremamente caracterizados, exemplificados por uma vasta galeria de obras que iam do talento ao génio, todos com sua theoria regulada; á forma inculta e perplexa cppunha o estylo fixado por essas mesmas obras primas de modelo, e o amor da forma, como essencial condição da obra de arte; á monótona versificação medieval oppunha essa variedade grande de metros que nos clássicos se admira. Não se poderia, sem as mais amplas consequências, fazer o paralello entre as canções de gesta e os poemas

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homéricos e a Eneida, entre os chronicons e Heródoto, Thu- cydides ou Tácito, entre Horácio e os trovadores medievaes. A maior dessas consequências foi a imitação e a entrada das litteraturas românicas, mal desembaraçadas das vestes confusas e pobres do medievalismo, numa éra em que segui- ram por novos trilhos.

Essa entrada em novo trilho, na historia litteraria por- tuguesa, deveu-se á causa próxima da suggestão de Juan dei Encina sobre Gil Vicente e dos italianos e castelhanos sobre de Miranda. O movimento reformador de Castella é um movimento de repercussão, que na Itália fora origi- nal, porque na Itália algumas causas se verificaram. A importação do novo mundo de idéas e sentimentos que em Itália, de Miranda assimilara e o avultar do raro veio de cultura clássica, que entre nós anteriormente corria, produziram o fácil triumpho do novo ideal litterario. Não será, por isso, inopportuno desenhar rapidamente a génese dessa intensa renovação operada na Itália e apontar o leito desse fino veio nacional.

A evolução politica da península itálica fizéra-se em sentido inverso do que observamos nas outras principaes unidades politicas da Europa. Nestas triumphou a realeza absoluta, em meio do antagonismo das classes. Pela pri- meira vez depois da ruina do império romano apparece, expressa e realizada, a idéa de Estado, com seu próprio machinismo administrativo, para si reservando todas as pre- rogativas soberanas e igualando perante si, sob a mesma dependência, todas as classes sociaes. É claro que não foi sem grande resistência das classes prejudicadas que os reis conseguiram fundar a sua realeza absoluta. Para unificar em suas mãos o território e também nellas centralizar todos os poderes, tiveram de vencer os obstáculos das immunidades da nobreza feudal e do clero, ajudando-se do desconten- tamento do terceiro estado. Restringindo privilégios e appoiando-se no povo cujas liberdades provisoriamente

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fomentavam por meio da concessão de foraes ou da liberta- ção das communas e da convocação repetida das cortes geraes os reis crearam uma forma intermédia para passa- rem da máxima descentralização feudal da edade média ao absolutismo a que aspiravam : a monarchia representativa. Mas as immunidades foram postergadas, as próprias liber- dades populares foram coarctadas por desnecessárias e o monarchismo absoluto pôde emfim triumphar: na França com Luiz xi; na Hespanba com Fernando de Aragão e Tzabel de Castella; na Inglaterra com os Tudores, desde Henrique vil; na Allemanha com Maximiliano i; em Portu- gal com D. João li. em Itália se não effectuou essa cen- tralização, já porque era muito fragmentaria a divisão poli- tica daquella península, porque a sua evolução histórica foi sempre muito perturbada pela invasão estrangeira, que tem feito da península itálica, como da Bélgica, um campo de batalha da Europa.

Dominava então na Itália um sentimento que a antigui- dade não conhecera, o culto egotista da individualidade. Pretendeu Guizot que fora esse sentimento da livre perso- nalidade uma novidade moral trazida pelos bárbaros invaso- res (*). Assim poderá ter sido, pois em ser muito dominada pelo individual egoísmo infrene dos nobres se caracteriza a edade média em opposição ao mundo romano, que disso conheceu umas rápidas manifestações na passagem da repu- blica para o império por meio dos triumviratos e ainda sob a ordinária forma de ambição politica, que é de todos os tempos. Poderá ser: mas o que para uma bôa intelligencia cumpre distinguir é o conteúdo de cada palavra: individua- lismo e culto da individualidade. Individualismo é a dispo- sição moral que consiste em não reconhecer ainda a solida- riedade dos laços sociaes e cuidar de exercer o interesseiro

[}) V. Historia da civilização na Europa, 2.a lição.

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egoísmo pessoal; cabe em muitas almas ao mesmo tempo, das mais vulgares, e todas o podem exercer de semelhante modo, como o exercem os rudes camponeses que das suas immediatas necessidades e conveniências se preoccupam. Culto da individualidade é o desejo de desenvolver ampla- mente, em todas as suas zonas, uma alma e de lhe imprimir um sentido original, prepondo aos interesses collectivos esse desvelo de ser soberanamente e originalmente uma alma bem individualizada, differencialmente bem característica. Esta forma de egoísmo, que consiste em procurar oppôr ás acções do mundo externo reacções volitivas, affectivas e in- tellectuaes muito pessoaes, de modo nenhum vulgares, de modo nenhum resignadas aos baixos interesses quotidianos, e em seu desvelado cultivo e livre expansão se acurar, não é um estádio psychologico inferior, antes implica deli- cadeza e cultura espirituaes não triviaes. Ella existiu princi- palmente em Itália, fomentada pelo seu estado social, com suas luctas intestinas, com as ambições despertadas pelo re- gimen de tyrannia aberto ao primeiro audacioso e com a defeza astuciosa a que obrigava os indivíduos não favoreci- dos do poder, mas por elle perseguidos. Q) Tal feição dos caracteres, se foi um óbice poderoso á centralização monar- chica, foi muito determinante factor no grande phenomeno da renascença. (2) Esse culto da individualidade produziu umas vezes o amoralismo e o cynismo (a), outras o cosmopo-

(!) V. De Dante à VAreiin, Lefebvre de Saint Ogan, Paris, e Lo~ renzino de' Mediei e il Hrannicidio nel Rinascimento, F. Martini, Floren- ça, 1882.

(2) Tão poderoso factor elle foi, que desde que Burckhardí o pôs em relevo na sua celebre obra La civilisation en ltalie au temps de la Renaissance, trad. fr. em 2 vols., a interpretação deste grande movi- mento soífreu um impulso considerável.

(3) V. Esquisse Psychologique des Peuples europiens, A. Fouillée. « Gráce ao culte renaissant de la Nature, au culte naissant de la Science, au développement parallèle de Tindividualisme, la faculte de raisonner

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litismo (l), outras o amor apaixonado da belleza, da belleza formal' sobretudo, (2) outras essa vasta receptividade que tornava os espíritos genericamente curiosos de todos os ra- mos do saber e para muitos delles genialmente dotados. O amor da natureza, a ambição da gloria, o exercício do sarcasmo cáustico como profissão e força social, perante o qual a satyra antiga e medieval é uma innocente maledicên- cia, tiveram um pujante desenvolvimento no espirito italiano dessa epocha. A grande obra da Renascença italiana deve-se mais a uma plêiade de homens de génio, de espirito pluri- lateral, excepcionalmente e multimodamente comprehensivo do que ao esforço collectivo dum povo. (*) Ás pessoas tam- bém, individualmente, se tributaram as maiores honras, até se lhes relevando o seu amoralismo. Era o que o papa Paulo III exprimia, affirmando que os homens do mérito de Cellini estavam acima das leis.

Uma das primeiras consequências deste cultivo da indi- vidualidade foi o vivo interesse por quanto respeitava ao homem, o qual fora da theologia e da litteratura christã en- contrava uma nova via a trilhar: a observação de si próprio. Tal descoberta, apparentemente tão banal mas de tão largo alcance, estivera o mysticismo a ponto de a fazer, mas disso o impedira o propósito escravizante que o dominava, de vi- giar que o espirito não sahisse da única matéria que se lhe

sur les causes et les effets remplaça celle de juger la valeur cie Ia con- duite», pag. 77.

(') V. The Renaissance in Italy, Symonds, Londres, principalmente 02o vol., The Revirai of The Leaming.

(-; V. Burchkardt, ob. cit. V. também as vivas descripçôes de H. Taine na sua Philosophie de Vart.

(3) V. « The work achieved by Italy for the world in that age was less the work of a nation than that of men of power, less the collective and spontaneous triumph of a puissant people than the aggregate of in- dividual efiorts animated by an soul of the íree activity, a common =tri- ving after name, » V. Symonds, ob. cit., tomo 2.0

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permittia para meditação. Foi essa descoberta que constituiu o humanismo, que é assim não uma simples tendência litte- raria, mas o súbito rasg'ar de horizontes novos ao espirito soffrego, horizontes não menos vastos que os novos conti- nentes e novos céus que á humanidade deslumbrada revela- vam os navegadores portugueses e hespanhoes. (*) Era uma nova concepção da vida e do mundo que surgia : o homem no novo systema geral do mundo subalternizavase, mas pela razão outra soberania adquiria; e o mundo, agora mais largo, era explicável de outro modo, organizando-se em systemas as conclusões dcs descobrimentos marítimos e os progressos das sciencias. Os portugueses, dirigidos sempre por um so- lido critério scientiíico por elles mesmos creado, (s) revela- ram as ilhas do Atlântico central e meridional e toda a costa occidental do continente africano; Bartholomeu Dias desco- bre o limite austral desse continente ; Vasco da Gama des- cobre o caminho marítimo para a índia ; Colombo e Alvares Cabral descobrem o novo mundo; ainda portugueses desco- brem territórios da America do Norte e penetram pela pri- meira vez na christa Abyssinia, na China e no Japão ; Ma- galhães emprehende a sua viagem de circumnavegação. Aluia de vez o systema das espheras de Aristóteles e a restricta geographia hellenica. Tycho Brahé propõe o seu systema do sol como centro das orbitas planetárias, excepto a da terra, em torno da qual ainda o mesmo sol subalternamente girava. Era comtudo um passo considerável para o radical heliocen- trismo de Copérnico. (3) Kepler descobre a forma das orbitas dos planetas e formula as leis do seu movimento (4), e

(') V. Histoirc de la philosophie moderne, Harald Hõffding, i." vol., trad. franc. Paris, 1908, 2.a ed.

(4) V. L ' Astronomie naulique au Portugal à Vcpoque des dccouver- tes, Joaquim Bensaude, Berna, 1912.

(5) V. De orbium coelesliiim rcvolutionibiis libri zr, Nuremberg, 1543

(4) V. Astronomia Nova, Praga, 1609.

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mais tarde Galileo revela o duplo movimento da terra por meio de telescópio de sua invenção, descobre os satel- lites de Júpiter e determina a lei das revoluções desses sa- tellites. Leonardo de Vinci e Frascator fazem notáveis pro- gressos em physica, óptica e mecânica ; Viète applica a álgebra á geometria ; Napier inventa os logarithmos; Vésale funda a anatomia humana; Miguel Servedo, Realdo Co- lombo e André Cisalpino descobrem a circulação do sangue; Pietro Pomponazzi e Xicolo Machiavel encetam a philosophia psychologica.

Outras causas, de diverso alcance, operaram também de modo determinante. Mais viva que noutra parte era em Itá- lia a tradição clássica, em Itália, que fora berço da civiliza- ção romana, ainda muito povoada de ruinas evocadoras, e onde, sob o nome de grande Grécia, florescera um impor- tante foco da cultura hellenica. Para Itália também emigra- ram os grammaticos e eruditos do império romano do Oriente, quando os turcos definitivamente o conquistaram (*). Deve-se a Barlaam, Leôncio Pilatos, a Dante, Petrarcha e Boccacio, o impulso inicial em favor do gosto das letras clássicas, para o qual no século xv grandemente contribuiu o ensino de Jorge Gemistho, deputado ao concilio de Florença, que ahi se estabeleceu, attrahido pela munificência de Cosme de Me- dicis, e fundou a Academia Platónica. Bessarionte, também grego, continua a sua iniciativa, oppondo o seu ensino do platonismo ao do aristotelismo doutros gregos, como Gen- nadio, Theodoro de Gaza, conquistando grande numero de adeptos. Marsilio Ficino traduz Platão e ensina-o do púlpito, prégando-o como doutrina religiosa. Eruditos como Aurispa^

(') Faz falta uma monographia em que pormenorizadamente se es- tude este movimento migratório dos eruditos, grammaticos e philosophos de Constantinopla para o interior da Europa no fim do século xv. De or- dinário esta causa do renascimento da cultura clássica é mais apontada do que exemplificada e demonstrada.

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Guarini e Filelfo, que na propaganda e ensino das letras clássicas vivamente se haviam empenhado, tornam-se credores de summa gratidão, pois foram elles, no dizer de Francesco De Sanctis, os Colornbos deste mundo novo ('). Fundam-se academias e os homens de letras reunem-se em verdadeiras cortes litterarias, sob o generoso patrocínio de Nicolau v, Pio ii, Júlio ii, Leão x, Paulo m, Afronso o Magnânimo, Cosme de Medicis, Lourenço o Magnifico e os duques de Este (*). A imprensa, recemdeseoberta, é posta ao serviço deste renascimento e começam a apparecer edições dos clás- sicos gregos e latinos. Os effeitos deste facto nunca serão demasiado encarecidos; por um lado a fácil e larga divul- gação, por outro lado o apparecimento de novas formas de actividade intellectual, restituição de textos, commentarios o exegeses, e o ávido alvoroço com que os estudiosos se lan- çaram á busca de manuscriptos, pois cada achado era uma nova porta de entrada que se abria para esse novo mundo. «O mundo greco-latino apresenta-se ás imaginações como uma espécie de Pompeia, que todos querem visitar e estu- dar." (*) Desse movimento de restauração nasce a nobre cri- tica literária, a principio no secundário papel de cotejo tex- tual e de exegese explicativa, logo se erguendo a uma autonomia condigna, com Th. Morus, Erasmo, Lipsio e Boc- calini, Machiavelli, Vasari e Sassetti. A funcção de tradu- ctor transforma-se, restringindo-se a licenciosa liberdade de adulterar de que na edade média gozara, mas ganhando em

(') V. Storia delia Lettcratitra Italiana, De Sanctis, i.° vol., Mi- lão, 1912, pag. 289.

(2) Como observámos a respeito da emigração dos eruditos by- zantinos, também é para estranhar que ainda não haja uma obra bem documentada, em que se evidenciasse e medisse a parte que cabe á pro- tecção dos papas e dos nobres no renascimento intellectual do século xvi.

(3) V. Storia delia Letteratura Italiana, Francesco De Sanctis, pag. 289, 1.0 vol.

H. da L. Clássica, vol. l.« *

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escrúpulos e rigor; assim fizeram traducções de Virgílio, Ovidio'e Tácito, os italianos Annibal Caro, Giovanni Andrea deH'Anguillara e Bernardo Davanzati. E os primeiros en- saios de obras originaes que tentam renovar esse ideal clás- sico apparecem com Vittoria Colonna, Gaspara Stampa, An- gelo Poliziano, Mateo Maria Boiardo, Ariosto, Pulei, Alberti, Bembo e Sannazaro. Estava fundada uma Htteratura, que achara a complexa e eloquente expressão que o espirito en- riquecido de ideaes novos em vão procuraria exercer nos moldes, nesse tempo obsoletos, da Htteratura medieval. (*) Vê-se, pois, que humanismo e renascimento das lettras clássicas foram phenomenos diversos, antes de se haverem conjugado. Grande era o passo dado pelo humanismo, que ao homem interior descobrira e sobre elle fizera convergir

(1) Mais duma vez tem sido defendida a opinião de que a renas- cença litteraria veio fazer abortar a Htteratura medieval quando esta se mostrava ainda vigorosa e de que esse movimento humanístico viera desnacionalizar a cultura dos paizes. Esta these tem sido vigorosamente rebatida por toda a parte com a eloquência dos factos e sua justa inter- pretação. Veio depois a opinião de na litteratura medieval termos maio- res bellezas que admirar ou pelo menos iguaes ás que nos proporciona a epocha dominada pela imitação dos clássicos, opinião que é verdadei- ramente um prejuízo. O sr. Th. Braga em todas as suas obras de histo- ria litteraria e o sr. H. Raposo na sua these Sentido do Humanismo, Coimbra, 1914, mostram perfilhar tal opinião que hoje cremos pouco defensável. Geralmente é essa opinião determinada por sentimentos po- líticos, que fazem da idade média a epocha do puro nacionalismo, e ainda por influencia dos philologos. Em França foi ella vivamente impugnada por Brunetière, o critico mais denodamente paladino do classicismo que alli houve. Por essa impugnação começou aquelle escriptor a sua carreira de critico em 1879, por meio do artigo Uêrudition contentporaine et la Httêrature francaise dti tnoyen âge, que grandes protestos suscitou da parte dos philologos. Brunetière apenas respondeu no anno seguinte a Auguste Boucherie, director da Revue des Langues Romanes. Bom seria que as razões adduzidas pelo grande critico fossem divulgadas e ipre- ciadas também em Portugal.

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as attenções e que aos espíritos enriquecera de concepções novas, que transformavam por completo a sua visão moral e metaphysica, quando a Renascença surgiu, vindo dar expressão artística ao mundo revolto de novos sentimentos e concepções que combatiam a intelligencia dos séculos XV e xvi. Duas ricas litteraturas, até então muito mal conheci- das, e toda uma philosophia grandemente ignorada surgiam de repente complexas e opulentas. Logo começou a imita- ção. Mas, convém desde esclarecer com vigor, esta imita- ção não foi mais do que uma pbase de iniciação. Como o espirito do humanismo tinha movimento próprio, seu pro- gressivo evoluir, cumpria insuflar vida e movimento a essas imitações de mortas litteraturas, com que se propunham dar- lhe expressão. Era também necessário que essas littera- turas neo-classicas evoluíssem de vida própria, de si tomas- sem consciente posse, de forma que os modelos de Grécia e Roma exercessem não uma esmag"adora tyrannia, mas a permanente suggestão do seu equillibrio, da sua consciente e experiente perfeição. Dentro da conformação bem ampla, mas bem definida também que o Renascimento dava ás litteraturas, urgia achar a autonomia, crear uma critica, con- tinuar uma tradição, e a seguir á tragedia, á comedia, ao lyrismo, á epopêa. de gregos e romanos, fazer accrescer de inventiva própria uma nova tragedia, uma nova comedia, um novo lyrismo, uma nova epopêa, que aproveitassem da lição dos clássicos, mas que com originalidade os conti- nuassem.

as litteraturas, que tal conseguiram, chegaram real- mente a executar cabalmente o novo ideal clássico e a crear nova belleza, sua própria. Na conclusão desta obra diligen- ciamos apurar em que medida attingiu a nossa litteratura o cumprimento deste programma se alguma vez cm língua portuguesa se objectivou esse programma.

CAPITULO I

GIL VICENTE

Quando na noite de 7 de Junho de 1502 Gil Vicente, caracterizado de pastor, aos repellões, irrompeu pela camará da rainha D. Maria, doente do nascimento de D. João, futuro rei, terceiro do nome, para lhe recitar o monologo da Visi- tação, o poeta quinhentista lançou a base de uma instituição nova: o theatro português. Com o seguimento da sua obra fecunda veio a merecer dos seus pósteros o nome de creador do theatro português. Neste primeiro capitulo do nosso tra- balho vamos, antes de segundo o nosso processo critico historiar a evolução artistica do comediographo, diligenciar discernir os elementos próprios e alheios da construcção vi- centina, limitando assim, mas precisando e aclarando a crea- ção, que ao notável lyrico se attribue.

O género dramático é um género, de tom variado como todos os outros géneros litterarios, grave ou serio, trágico, cómico e mixto, em que ainda como em todos se busca re- constituir uma parcella da vida, porem por meio duma repre- sentação quanto possivel integral, como em nenhum outro género. O dramaturgo tem ao seu dispor muitos meios re- presentativos para o seu objectivo: personagens, seu dialogo, seus trajos, movimentos e gestos, sua expressão physiono- mica, scenario adequado, ao vivo tudo visto e ouvido para attingir a resurreição duma parcela de vida moral. Mas pode

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dizer-se que a característica differencial e typica do theatro é o dialogo vivo e que o theatro nasceu, quando se empregou o dialogo vivo como meio de resurreição artística perante espectadores. Todo o restante aperfeiçoamento technico nada mais é que consequência da evolução do próprio meio litte- rario do dialogo. Assim considerando a expressão theatro, perguntaremos que havia de theatro em Portugal e no es- trangeiro, principalmente em Hespanha, ao tempo da entrada graciosa e ao mesmo tempo genial dum poeta cómico pela carnara da rainha D. Maria, segunda esposa de D. Manuel I? Ou, tornando mais explicita a nossa curiosidade: em que medida continuava Gil Vicente uma tradição nacional, antiga ou recen- te, e em- que medida obedecia a uma estranha suggestão?

Quaes são os muito ténues vestígios de actividade dra- mática em Portugal durante a edade média, que de segu- rança hoje conhecemos na Introdacção dissemos. Se mais não foram realmente, pois é justo estabelecer differença entre a realidade que vivamente decorreu e a imagem que delia creámos com as incompletas informações proporcionadas pela historia, se mais não foram, havemos de confessar que muito pequena base tinha, dentro de fronteiras, o nosso poeta para assentar a sua obra. De além fronteiras lhe veio a prin- cipal suggestão, da vizinha Hespanha, que viria a ser uma das grandes pátrias do génio dramático.

no século xv a Hespanha tinha algum theatro. Na Catalunha, mesmo no século xiv, se representavam algu- mas obras de caracter litúrgico ; mas estas de certo não chegaram ao conhecimento de Gil Vicente e o nosso objectivo é reconstituir as influencias que provavelmente se hajam exercido no espirito do auctor da Ignez Pereira e não esboçar um quadro geral do primitivo theatro hespanhol. Do drama litúrgico de Castella também ha vestígios, mas menores.

É Gomez Manrique (141 2-149 1?) que ensaia o theatro profano para festejar o nascimento dum irmão do rei Henri- que IV, com uma peça na qual é attribuido á infanta Izabel

Hisi i Litteratura Clássica 55

o papel duma das musas, particularidade que accusa certa tendência clássica. Torres Naharro e Juan dei Enciha é que são verdadeiramente os fundadores do theatro hespanhol. O primeiro, cujas datas de nascimento e morte se ignoram, representou em Itália as suas peças. Publicadas sob o titulo geral de Propaladia, em 15 17, quando ia adiantada a car- reira litteraria de Gil Vicente e não havendo probabilidade de antes dessa data chegarem ao conhecimento do nosso dramaturgo, não é legitimo attribuir lhe qualquer influencia sobre o auctor de Ignez Pereira. Vém-nos confirmar nesta opinião, a que somos levados por considerações externas de chronologia, os dados da própria analyse intrínseca das obras contidas na Propaladia. Torres Naharro divide as suas peças em cinco actos, que denomina jornadas; fixa o numero das suas personagens entre seis e doze, ainda que ira Tinel- laria fizesse grupar vinte figurantes: classifica o drama em duas categorias, a comedia de noticia e a comedia de phaniasia; cada peça sua abre com um intróito, em que* se pede ao publico attenção e indulgência e se apresenta um pequeno resumo da intriga caracteres estes que se não verificam no theatro vicentino ('). Ao segundo dramaturgo alludido,

(') Fallando de Torres Naharro occorre-nos dizer que eile é auctor dum drama allegorico intitulado Comedia Trofea, que tem por assumpto os feitos da epocha do nosso rei, D. Manuel r. Menéndez y Pelayo no seu estudo sobre Bartolomê de Torres Naharro y su Propaladia, repro- duzido na 3-a serie dos Estúdios de Critica Literária, Madrid, 1900, ver- sou este problema da influencia de Naharro sobre Gil Vicente, apontando dois pontos concretos : um artificio métrico, combinação dos versos da arte maior com o seu hemistichio, que o poeta português empregou no Breve Summario da Historiei de Deus e no Auto da Feira; e uma sug- gestão da Aquilara de Naharro sobre a Comedia do viuvo, de Gil Vicente. Versaremos em artigo especial esta matéria, bem discutível ainda, para a qual nos chamou a attenção o sr. Prof. Georges Cirot no artigo gen- tilissimo e profundo que dedicou á i.a edição desta obra na Revuc Criti- que, Paris, i.° de agosto de 192T, pags. 288-292.

56 Historia da LU 'ler atura Clássica

Juan dei Encina (1469-1533?; é que Gil Vicente deveu indis- cutivelmente as primeiras suggestões.

Do theatro de Encina, hoje reduzido a quatorze peças, presume-se que as éclogas representadas perante os duques de Alba, em Alba de Tormes, o fossem em 1492, e a sétima e oitava, que Ticknor pretendia fossem partes da mesma obra, sabe-se que foram representadas respectivamente em 1494 e 1495. E portanto a maioria do theatro conhecido de Encina anterior á estreia litteraria de Gil Vicente. Essas quatorze peças, posto que constituam um espolio muito reduzido, bastam para attestar uma evolução artistica e para muito lucidamente caracterizar uma physioncmia litte- raria. Começou Encina por autos religiosos, celebrados pelo Natal ou outras datas religiosas, nas quaes se discorria apologeticamente sobre certos mysterios da religião, Natal, Paixão, Resurreição e em que as personagens, ordinaria- mente pastores, concluem por entoar um vilancico de edifi- cação religiosa umas vezes, de lisonja cortezã para com os duques de Alba, outras vezes. Nessas éclogas de devoção ha o elemento sobrenatural, representado pela apparição dum anjo, que dialoga com as personagens humanas. A sexta écloga é já, embryonariamente, uma écloga de costumes, porque ao mesmo tempo que nos reproduz o discorrer dos pastores sobre a Quaresma no-los apresenta ceando e fol- gando confraternalmente.

O mesmo se poderá dizer da seguinte, que Ticknor dizia ser sua continuação. Mais pronunciadamente se faz pintura de costumes na écloga oitava, em que quatro pasto- res despreoccupadamente conversam do tempo e das chuvas grossas que cahern e da morte dum sachristão, quando um anjo persistência do maravilhoso christão lhes vem annunciar o nascimento do Salvador, que todos vão visitar e adorar; ha portanto uma mistura de elementos profanos e religiosos. Desde então o vilancico final, nas primeiras obri- gado, quasi desapparece. Da nona em diante accentua-se o

Historia do Litteratura Clássica 57

predomínio dos elementos profanos. Esta nona écloga, a mais estimada dentre o theatro de Encina, é a narração dum caso de amor desgraçado, pois termina por um suicídio. O lyrismo toma azas e sobe de inspiração, o desenvolvi- mento da peça proporciona-se ás necessidades do assumpto, os metros variam. A écloga undécima narra um episodio entre pastores que vendiam no mercado e uns estudantes que os molestam; é um caso do tempo, que se narra, em plena independência, e que assim afiirma a adolescência do espirito de Encina, alforriado da tutela religiosa, sob que nascera a sua inspiração dramática.

Na écloga de Plácida y Vitoriano, em que figuram nove personagens, narra-se outro caso de amor, que seria fatalmente desgraçado se não fosse a benéfica intervenção de Vénus e Mercúrio que rcsuscitam e restituem a Victo- riano a sua bem amada Plácida; portanto não ha simples autonomia do maravilhoso christão, ha preferencia pelo ma- ravilhoso pagão e até reducção do recato. Em Christino e Phebva o passo é mais ousado: é o Deus do amor, por me- diação duma nympba sua mensageira, quem vence as almas de dois ermitães, que, havendo-se consagrado ao serviço de Deus, o abandonam para regressarem á vida solta do século e do amor.

Estavam, pois, dados por Juan dei Encina os passos mais ousados na creação do theatro peninsular, quando Gi! Vicente fez a sua estreia em 1502: nascera o género dra- mático de envolta com a liturgia catholica, sob os auspícios do mecenatismo dos Duques de Alba e depois do príncipe D. João; das suas faixas infantis se fora desprendendo para ser um pouco theatro de costumes simples conversas de pastores por emquanto ; lançara mão do maravilhoso mythologico e até ousara tratar themas de amor com liber- dade, não livremente os narrando, mas affoitamente lhes pospondo as coisas divinaes. Estes mesmos passos rapida- mente percorre Gil Vicente, com a firmeza e decisão rápida

58 Historia da Liitcralura Clássica

de quem segue trilho conhecido, e chegado á phase ultima, "creada por Juan dei Encina, alarga-se não em comprehsnsão de limites, mas também em expressão, se- guindo o próprio movimento do género e as próprias sollici- tações do seu talento litterario.

Historiando a evolução do theatro vicentino melhor se destacará a parte que nesse theatro ultrapassou os prodro- mos lançados por esse Encina que, convém não esquecer, os próprios contemporâneos de Gil Vicente tiveram como seu antecessor :

« E vimos singularmente

fazer representações

de estilo mui eloquente,

de mui novas invenções

e feitas por Gil Vicente ;

eile foi o que inventou

isto cá, e o usou

com mais graça e mais doutrina,

posto que João dei Enzina

o pastoril começou» (').

('} V. Miscellaneaj Garcia de Rezende no 3.0 vol. da Chronica de D. João Ilj pag. 199-200, ed. de 1902.

Muito pouco se sabe da vida de Gil Vicente. Poderia ter nascido nos annos de 1470 e 1475, data que arbitrariamente lhe foi fixada pela sua declaração de ser velho, vizinho da morte, em 1531, numa carta a D. João ih; o sr. Braamcamp Freire, num estudo notável publicado no 6.° volume da Revista de Historia, propõe sob reserva o anno de 1460 para data do nascimento. Também se não sabe a sua naturalidade: das suas obras apenas se conclue que muito bem conhecia e prezava a pro- víncia da Beira, como primeiramente notou o sr. Anbrey Bell. Gil Vi- cente foi pessoa muito acceita na corte, acceitação que terá tido bòa parte nos seus triumphos dramáticos e que derivaria dos cargos de ourives da rainha D. Leonor, viuva do rei D. João 11, e de mestre da balança da Casa da Moeda, de Lisboa. Ignora-se como e quando entrou para o serviço da rainha velha; para a Casa da Moeda entrou em 1513, segundo carta regia ainda existente, cujo apparecimento veio de vez

Historia da Litteratura Clássica 59

i.a PHASE

(1502-1508)

Começou Gil Vicente em 1502 a sua carreira dramática peio monologo da Visitação. Trajado e caracterizado de pas- tor, entrou de surpresa na camará da rainha D. Maria, doente do parto do príncipe D. João, futuro rei, terceiro do nome liberdade em parte explicável pelo seu cargo de ourives da rainha velha. Ahi saudou a rainha graciosamente, fiagindo-se deslumbrado da opulência da camará e, chamando uns com- panheiros, offereceu uns presentes que elles traziam. No Natal seguinte, em língua castelhana como o primeiro mo- nologo, fez representar o Auto Pastoril Castelhano, muito no gosto de Encina, em que ainda se reconhecem as hesitações de quem tenta um género novo. tem dialogo, mas ainda

confirmar a identificação do poeta e do ourives, por ter no alto a cota seguinte lançada por mão contemporânea : Gil Vicente trovador, mestre da balança.

São poucas as datas positivas conhecidas na sua biographia. Em 1509 é nomeado vedor dos trabalhos de ourivesaria para o Convento de Thomar e mosteiro de Nossa Senhora de Belém. Em 1512 é eleito para a Casa dos Vinte e Quatro e delegado dos mesteiraes junto da vereação de Lisboa. Em 1513 é nomeado mestre da balança da Casa da Moeda, de Lisboa.

A sua estreia litteraria fez -se em 1502, pelo Monologo do Vaqueiro, provado como está pelo sr. Braamcamp Freire que a sua collaboração no Cancioneiro Geral, de Rezende, é de 1509, por ter occorrido nesse anno o Processo de Vasco Abul, em que Gil Vicente também deu o seu parecer. Em 1506 concluiu o poeta-ourives a famosa Custodia de Belém, lavrada com o ouro das primeiras páreas trazidas do Oriente por Vasco da Gama. Foi casado com Branca Bezerra, de quem houve um filho também Gil, que militou na índia; o sr. Braamcamp Freire fixa este casamento entre os annos de 1490 a 1492, mas sob reserva. Em 1520 foi

60 Historia da Litteratura Clássica

pouco mais é alem duma narrativa. Havendo começado por propoT dois assumptos, um moral, o caracter contemplativo do pastor Gil, outro material, a perda dos gados do pastor Lucas, ambos esses assumptos são bruscamente abandona- dos; um anjo annuncia o nascimento do Redemptor e todos partem, cantando, para o adorar. Logo nessa segunda peça, Gil Vicente inclue o elemento coral, que é um dos typicos componentes do seu theatro e que não pouco teria contri- buido para a sua boa fortuna. O Atito dos Reis Magos, con- servando a feição religiosa, comprehende elementos novos, pois admitte personagens não pastoris, como um ermitão e um cavalleiro, mas ainda a todos reúne no mesmo pro- pósito religioso, que neste auto é também a adoração do Redemptor. O Auio de S. Martinho, incompleto, contaria o milagre da capa do santo, dada ao mendigo da estrada.

Estas quatro peças, de caracter religioso e de perso- nagens pastoris, constituem a primeira phase da evolução

por D. Manuel i encarregado de dirigir os festejes com que o Município de Lisboa celebrava a chegada da rainha D. Leonor, irmã de Carlos v e sua terceira mulher, e em 1531 intervém inteligentemente junto do clero santareno que attribuia um recente tremor de terra ao desconten- tamento com que Deus via os christãos-novos ainda em Portugal; o poeta esclareceu sensatamente o caso e conseguiu apaziguar os ânimos. Morreu em Évora, provavelmente em fins de 1536. Têm controvertido os problemas da biographia de Gil Vicente principalmente Camillo Cas- ello Branco, Sanches de Baena, Sousa Viterbo e os srs. Braamcamp Freire, Th. Braga, D. Carolina Michaêlis de Vasconcellos, Brito Rebello e Aubrey Bell. Pòde-se'ver uma rememoração das varias phases dessas investigações nas Notas Vicentinas I, da sr.a D. Carolina Michaêlis, Coim- bra, 1912, nas notas á conferencia CU Vicente e a sua obra, Lisboa, 1914, do sr. Queiroz Velloso, e na introducção ao artigo do sr. Braamcamp Frei- re, CU Vicente, trovador, mestre da balança, publ. nos 6.0 e 7.0 vols. da Revista de Historia, Lisboa, 1917 e 1918. Para a bibliographia destes estudos póde-se consultar o appendice bibliographico do nosso trabalho Critica Lit ler ária como Sciencia, 3.* ed., Lisboa, 1920, pags. 176-180.

Historia da Litteratura Clássica 61

dramática de Gil Vicente, então ainda adstricto á imitação das éclogas de Encina e reduzido a themas religiosos, de propósitos apologéticos. O caracter pessimista e lyrico da sua poesia também se confessa nessa primeira phase e principalmente no inacabado S. Martinho.

A chronologia das rubricas de suas peças, taes como se exaram na edição de 1562, remette para este periodo inicial outras obras como a Sibylla Cassandra, o Auto da e o dos Quatro Tempos, mas as investigações do sr. Braamcamp Freire organizaram outra chronologia mais de harmonia com os successos coevos. Ha que acatá-la, ainda que nem sempre se accorde plenamente com a lógica evolução artís- tica do poeta. Os argumentos de ordem intrínseca e esthe- tica são muito contingentes, mas para os que sentem as differenças subtis da technica artística são tão imperiosos como os da concreta historia episódica. Estas perplexidades derivam por certo de que, se muitas vezes é possível fixar a data da representação das peças, outras tantas é impossível fixar-lhes a da composição, muito mais importante para o seu desenvolvimento artístico.

Nãp deixou também a nova chronologia de tornar mais verosímil a evolução espiritual do escriptor, em alguns ca- sos, e um delies foi a deslocação do Auto da Alma, de 150S para 15 18, mais próximo da phase madura e quando elle re- volvia com inspirada mão a matéria religiosa para compor as suas Barcas.

Alliviando-se de producção litteraria esta primeira phase. torna- se também mais viável a execução de numero- sas e complicadas obras de ourivesaria, que haverá que attribuir-lhe, uma vez que se assente na identidade do poeta com o ourives, a qual tem feito progressos importantes.

02 Historia da Litt era tara Clássica

2.a PHASE

(1508-1516)

A farsa de Quem tem farelos?, representada em 1508, ao vulgo e em 15 n, no paço da Ribeira, perante D. Manuel 1, inaugura o seu theatro de critica social, que é um passo muito além do theatro de Encina, exclusivamente religioso ou lyrico. Essa farsa ainda não contem um thema tratado completamente, com intenção artística, intima e mais profunda que a que logo se apresenta, não é obra do moralista ou do pensador, que adiante se revelará Gil Vicente, nem sequer do dramaturgo ; é apenas um episodio, um quadro do viver commum da sociedade do tempo. Dois creados conversam; através da sua maledicência sabemos do theor de vida do escudeiro, que um delles serve, o qual occulta sob a mais blasonante apparencia miséria extrema. Entretanto chega o mesmo escudeiro, que debaixo da janella duma burguesi- nha lança um descante namorado. Surprehende-os a mãe desta, que esconjura o escudeiro e reprehende a filha. É tudo e tudo isto não chega a ser theatro. É um estudo de typos da epocha. habilmente caricaturados, que veremos repeti- rem-se na obra de Gil Vicente, e de futuro figurando como comparsas numa acção, não em ensaios soltos,- como aqui. São esses typos : os creados descontentes e maldizen- tes, o fidalgo pobre, fanfarrão e ocioso, a donzella burguesa agastada da sua humilde condição, que muito presume das suas prendas, dada á phantasia, propensa aos amores roma- nescos e enjeitando o trabalho, como indicio servil, e final- mente a velha plebêa, rabujenta, quasi bruxa. A partir deste feliz ensaio feliz pela mestria com que foi executado e mais feliz pela popularidade de que veio a gozar Gil Vi- cente nunca mais abandona o theatro de satyra social e de caricaturas moraes e, segundo a lei do progresso, a da diffe-

Historia, da Li l ler atura Clássica 6Í5

renciação, diligenciará discriminar o que é theatro litúrgico do que é theatro contemporâneo, mais tarde pela tragico- media vindo a crear um género mixto.

Mais completo quadro é o Auto da índia, do anno imme- diato ('), em que com vivos diálogos nos descreve a levian- dade e hypocrisia duma mulher que, alegrando-se com a ausência do marido numa armada na índia e delia aprovei- tando, recebe amantes e se entrega á esperança de que elle não volte. Mas elle regressa e a esposa infiel alvoroçada- mente finge júbilos e protesta recatos e penas. Este typo de mulher do povo, ligeira e fácil nos amores, que perseguia com afan os prazeres, é muito vicentino e por todo o thea- tro se repetirá bastas vezes.

É neste Auto da índia que se encontram aquelles versos muito citados pelos detractores da nossa expansão maritima e commercial no Oriente :

Fomos ao rio de Meca, Pelejámos e roubámos, E muitos riscos passámos, ÀJ vela, e arvore sêcca.

Abarcando agora um vasto lapso de tempo, o que de- corria da partida do marido até ao seu regresso, ou sejam três annos, Gil Vicente começava a usar um expediente que era na sua technica um importante elemento, mas que 6 sempre um vicio contra a verosimilhança, lei imprescindível da obra de arte : a dilação do tempo da acção com a con- sequente precipitação dos acontecimentos. O Auto da Fé,

(1) E' também de 1509 o parecer de Gil Vicente no Processo de Vasco Abul. V. o texto no Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende, e a demonstração dessa data na obra fundamental do sr. A. Braamcamp Freire, Gil Vicente-trovador, mestre da balança, Lisboa, 1919, pag. 42-44.

(14 Historia da Lit ter atura Clássica

de 15 io, decorrido ainda entre pastores, tem de novo a in- troducção, como figurante, da personificação da Fé, primeira personagem abstracta do theatro vicentino, que, falando em português, quando as outras personagens falam em cas- telhano, fcos pastores explica os mysterios da religião.

No Auto das Fadas occupa-se Gil Vicente duma pratica muito divulgada no tempo e a um tempo receada e desejada, a feitiçaria. Tida em desdém e perseguida pelas justiças, a feitiçaria quando se reduzia a certos limites, á previsão de males e á sua explicação, era uma pratica inoffensiva e até pittoresca. Isso mostra Gil Vicente audaciosamente, fazendo dessa matéria de desdém um objecto de gracioso entreteni- mento para a corte. A feiticeira, com sua barbara liturgia e mais bárbaros exorcismos, chama um frade, que discursa sobre o thema suggestivo Amor omnia vincit, thema de que o clérigo, apesar da sua qualidade, se mostra miudamente conhecedor. Nesse sermão fervilham as allusões aos amores dos circunstantes, tácitos entendimentos que alli se denun- ciam ou simples inclinações silenciosas e discretas, que o poeta malevolamente expõe. Vêm depois as fadas marinhas que aos reis e infantes e a alguns cortesãos dizem as sortes, sessenta e quatro sortes que indicam o limite minimo da assistência dessa representação. Esta peça, que é simulta- neamente uma peça de costumes, de lisonja cortesã, senti- mento inicial do theatro de Encina, pelo assoalhar da intriga amorosa do paço, revela que Gil Vicente alli occupava situação tal que lhe permittia a miúda observação dos mais íntimos segredos e a livre satyra, sem se temer de inimiza- des. Um poeta cómico, espécie de jogral medievo, que fosse chamado ao paço para dar as suas representações scenicas espaçadas, não se julgaria em situação segura para o fazer; seria sempre um dependente e receoso subalterno.

Os clérigos continuaram e os médicos começaram a experimentar a satyra de Gil Vicente na Farsa dos Pkysicos, de 15 12. Um clérigo, contra as prudentes advertências dum

Historia <ht ÍÂUemtum Clássica ' 65

creado desabusado, deixase tomar de peccaminosa paixão por uma moça, que o desdenha. Adoece e vêm physicos, cada qual com seu diagnostico e sua therapeutica, e até com seu estribilho. Um confessor, que ouve o doente de paixão e que parece mais versado nesses mysterios do amor, escla- rece-o da natureza do mal e dá-lhe indulgências generosas. Pelo prazo de duração da doença, que declara a cada um dos quatro médicos, e que é cada vez maior, se reconhece o propósito do poeta representar um longo percurso de tempo, que no caso presente é de dez dias. Lembremonos de que no Auto da índia era de dez annos.

No Velho da Horta é ainda um episodio, que se narra, um quadro da epocha, em torno das tontarias dum velho, serôdio apaixonado duma moça, que o auctor faz casar com noivo digno; nelle nos descreve um typo novo, a alcoviteira, ihteresseira, perseguida pela justiça. Mais ainda que nos antecedentes, o dialogo desta peça é de grande naturalidade, graciosamente encadeado, denotando uma grande observa- ção do fallar popular, das reacções de certos espíritos vul- gares ao que lhes diz o interlocutor. A Exhortação da guerra, de 15 13, retocada em 1534, é a primeira tragi-comedia vicen- tina, género- mixto de assumpto grave, tratado em grande liberdade, que admítte a satyra cómica, soltura de linguagem, a heteróclita promiscuidade de personagens. Não se pode fixar a data do apparecimento desta nova maneira do theatro de Gil Vicente, porque a obra contem allusões a aconteci- mentos posteriores á data consignada na rubrica ; ou soffreu retoques ou essa data não é exacta, como acontece a outras semelhantes. A tragi-comedia vicentina, pela liberdade de composição, \ da heterogeneidade das personagens, corres- ponde á moderna magica. O elemento grave da Exhortação da guerra é o quadro final, apotheose patriótica, a-proposito glorificador do rei D. Manuel I, que então mandava uma expedição ao norte da Africa.

Na Sybilla Cassandra reapparece o velho thema religioso

j{. 1M L. ClArfltCA, VOl. 1." 5

6K Historio, da Litterctfura Cia

da adoração do Redemptcr, apenas retardado pelos diálo- gos, naturaes e graciosos,, em torno da presumpção de Cas- sandra, que se não quer casar por julgar que delia nasceria o Senhor.

Na Comedia do Viuvo se narra a romanesca ave dum namorado, nobre senhor de grande nascimento, simul- taneamente apaixonado por duas irmãs orphãs de mãe, para seguir as quaes se disfarça de pastor, que o viuvo, pae delias, toma a seu serviço. O apparecimento dum irmão do falso pastor, que o vem procurando, favorece o desfecho, e as duas irmãs casam com os dois irmãos. E uma passagem curiosa na peça o contraste entre a saudade da mulher morta, que a cada momento o viuvo vivamente confessa, e o tédio que da mulher viva inflamma um seu compadre. Esta peça, ainda que á primeira vista o não pareça, também é portadora de algum elemento novo no theatro vicentino; eUa introduz o maravilhoso romanesco ao serviço do amor. Essa pratica ao depois tão usada e abusada nos romances quinhen- tistas, que nas complicações desse maravilhoso romanesco cifrariam o seu maior interesse, como demonstração das habilidades e atrevimentos de que é capaz o amor, essa pra- tica usa-a sempre Gil Vicente, muito comedidamente, não por força da mesma brevidade do auto, mas também por causa do espirito, que anima esses disfarces e aventuras, o amor muito burguês que pelo casamento conclue e se satis- faz; não pode ter as complicações intrincadas do romance, nem tem a plangencia de fatalidade irremediável.

No Auto da Fama é o elemento patriótico da Exhortação da guerra que toma corpo e que constitue o próprio assumpto da peça. Uma pastora humilde symbollza a fama portuguesa, rendidamente sequestrada e em vão por um francos, que representa a França, por um italiano, que representa a Itália, e igualmente por um castelhano. A todos resiste, oppondo aos próprios louvores, que aquelles desfiam, o elogio calo- roso dos feitos portugueses, os descobrimentos e conquistas

Historia da Lit ter 'atura Clássica 67

do ultramar, então ainda recentes. Finalmente a e a For- taleza vêm coroar a pastora a fama portuguesa, que posta em carro triumpbal ó conduzida entre musicas, depois da recitar uma apologia. Não havia para os meios do tempo, num theatro incipiente, modo mais saliente, mais intenso e eloquente de lisonjear o rei do que esta allegoria patriótica. A apotheose, que o século XIX tanto usaria e que o theatro popular cansaria, inventou-a Gil Vicente, no século XVI, no momento histórico, em que assistia á consumação dos gran- des feitos. O encómio final, recitado pela Fé, é metrificado noutra medida, em verso heróico, que se ser então praticado, mas as oitavas vicentinas perdem a naturalidade e fluência de seus versos curtos, sem ganharem a grandilo- quencia que lhes é própria. A epopêa não era o pendor espontâneo da musa vicentina. Não deixa de ser elucidativa a comparação dos modos por que o poeta cómico e o poeta épico -exprimem o mesmo pensamento: o maior valor dos feitos reaes dos portugueses ante os feitos fabulosos da anti- guidade heróica:

« Os feitos Troianos, também os Romãos, Mui alta Princeza, que são tão louvados, E neste mundo estão collocados Por façanhosos e por muito vãos, Em o regimento de seus cidadãos, E alguas virtudes e moraes costumes, Vós, Portugueza Fama, não tenhais ciúmes, Que estais collocada na flor dos Christãos.»

F.m Camões:

Cessem do sábio grego, e do Troiano As navegações grandes que fizeram, Calle-se de Alexandre e de Trajano A Fama das victorias que tiveram ; Que eu canto o peito illustre Lusitano A quem Neptuno e Marte obedeceram : Cesse tudo que a Musa antiga canta ; Que outro valor mais alto se alevanta.

68 Historia da Litter atura Clássica

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas, Phantasticas, fingidas, mentirosas, Louvar os vossos, como nas estranhas Musas, de engrandecer-se desejosas : As verdadeiras vossas são tamanhas, Que excedem as sonhadas, fabulosas ; Oue excedem Rodamonte, e o vão Rogeiro, E Orlando, inda que fora verdadeiro.»

Mesmo depois de abatidas as circunstancias dos dois momentos em que os poetas escreveram, é evidente o con- traste. A boa acceitação desta peça de apologia está implí- cita na declaração da rubrica de se haver repetido, declara- ção que outras peças não contêm.

E' nesta altura da carreira dramática do Gil Vicente que o sr. Braamcamp Freire colloca a representação do Auto da Festa, que o sr. Conde de Sabugosa possue em fo- lheto volante e que o mesmo escriptor divulgou e estudou em 1906, Lisboa, Auto da Festa, Obra desconhecida com uma explicação previa. O sr. Braamcamp fundamenta o seu alvitre do modo seguinte: Gil Vicente, no estado de viuvez po- deria incluir estes versos no auto, em que são ditos pela personagem designada de Velha:

Olhay, filho, eu vos direy, me a mim mandou rogar muitas vezes Gil Vicente, que faz os autos a Elrey, porem eu não vou contente, antes me assy estarey.

Em 15 14 o poeta estava viuvo, em 15 17 estava cas; do de novo, segundo o seu erudito biographo, e neste currículo ha disponível para attribuição da peça o Natal de 15 15. Porem, como conciliar este corollario com a premissa do mesmo sr. Braamcamp Freire que estabelece como provável o nascimento do poeta em 1460? Em 15 15, havendo nascido

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em 1460, o comediographo não poderia passar dos sessenta annos, como elle mesmo declara, num passo muito próximo do allegado pelo seu insigne biographo. Sollicitada a dizer por que recusava ao poeta para marido, a Velha respondeu :

He logo mui barregudo E mais passa dos sessenta.

Estes versos não merecerão menos credito que os que indirectamente alludem á sua viuvez. Nesta allusão á sua idade, se ateve o sr. Conde de Sabugosa para propor a data de 1532. Contando desde 1470, anno que este escriptor toma para nascimento do poeta, passaria este dos sessenta em 1470. Percorrendo um a um os annos que medeiam de 1530 até 1536, ultimo da sua carreira dramática, ha dois Nataes disponíveis para essa attribuição, o de 1532 e o de 1535. E' este ultimo o adoptado pelo sr. Conde de Sabugosa.

Esta segunda hypothese é, em nosso parecer, mais coherente com as premissas acceitas pelo demonstrador, mas contraria a data de 1460, do sr. Braamcamp Freire, por que optamos, e não se harmoniza muito com a evolução artística do poeta. A estructura da obra é vicentina plenamente, mas é tarda, atrazada digamos mesmo, em relação á maturidade espiritual de quem em 1535 havia produzido as suas obras primas, de lyrismo, de graça, de satyra, de naturali- dade no dialogo, de necessidade na composição. Contando desde 1460, Gil Vicente teria em 1520 sessenta annos per- feitos; poderia representar no Natal desse anno de 1520 o Auto da Festa a um particular, porque desse Natal não ha noticia de representação de qualquer auto vicentino e porque a ausência da corte em Évora até fim de dezembro e a pre- sença do escriptor em Lisboa não contrariam a hypothese. A morte de D. Manuel em Dezembro do anno immediato não permitte que alem dessa data se passe.

O auto não foi incluído na edição das suas obras com-

70 Historia da Litteratura Clássica

pletas, em 1562, mas delle extrahiu o poeta trechos impor- tantes para o Templo de Apollo, de 1526. Não indicarão estes factos que o escriptor enjeitara a obra, depois de lhe apro- veitar d trecho e os pensamentos que mais prezava? E uma pratica frequente em escriptores d'arte, revelada pela indis- creta publicação dessas obras enjeitadas e pela critica de fontes.

O Atito da Festa é das obras mais obscuras e descuida- das de Gil Vicente e o Templo de Apollo está também longe das mais características ou mais formosas, mas de modo geral, o trecho do primeiro, que passou ao segundo, melhorou cem a revisão, umas vezes na clareza, outras na metrificação. E a confirmar a posterioridade do Templo de Apollo está aquelle verso

carpir ninguém no mosteyro

em que por influencia do texto primitivo o templo de Apollo é chamado christã e impropriamente de mosteiro.

Todo o conteúdo do Auto da Festa o encontramos disse- minado por outras obras, com maior fortuna, ainda a sua philosophia triste de scepticismo e as suas mais typicas personagens.

3.a PH ASE

(1516. 1536)

Nesta altura da sua evolução dramática, depois de feita uma larga aprendizagem da scena e de um a um haver achado por sua experiência os elementos da innovação pro- gressiva, acura-se Gil Vicente em obter a maior expressão, mais perfeito relevo e aproveitamento artístico dos seus achados. Então, com maior fecundidade produz as suas obras-primas no theatro litúrgico e no theatro de critica social; então se verifica a differenciacão em algumas das

Historia rfa Litteratura Classiea 71

suas poças, que são por isso as suas obras-primas : a um lado a veia cómica e o látego da satyra; a outro o pensador cbristão, preoccupado do bom emprego da vida.

É a famosa trilogia das Barcas, que inaugura este período. Compõem-na três peças, intituladas respectiva- mente Auto da Barca do Inferno, representada em 1516 na camará da rainba D. Maria, Auto da Barca do Purgatório, representada em 1518 no hospital de Todos os Santos perante a rainha D. Leonor, e Auto da Barca da Gloria, em 15 19. em Almeirim, perante o rei D. Manuel 1. O agudo espirito critico de Gil Vicente, a sua veia satyrica servindo aquelle, a sua severa consciência de cbristão, a sua indepen- dência e o seu génio creador deram se as mãos, e Gil Vicente pôde reunir os seus dotes artísticos e os seus pro- pósitos sociaes com o máximo relevo da expressão numa obra, cuja composição elle mesmo creou. Como no Auto da Alma, o poeta quinhentista usou na sua máxima extensão da liberdade permiítida no theatro litúrgico, cujas bases estão previamente fixadas pela orthodoxia religiosa ; fez mysterio religioso, porque reconstituiu factos e verdades estabelecidas pela religião christã, que delias mesmas se não pôde affastar porque são pedras angulares do seu edifí- cio, dogmas: a immortalidade da alma; o principio do bem e do mal e suas tentações; a liberdade de escolha entre as tentações dum e doutro; a responsabilidade que d'ahi se deriva; o julgamento em-pós a morte e a distribuição das almas pelo inferno e pelo paraizo. Um dramaturgo medíocre, em quem escasseasse o génio inventivo, contaria tudo isto, animaria apenas por meio do dialogo e das personagens o texto litúrgico, conseguindo, quando muito, maior vigor de expressão, mais intensa suggestão, e os sentimentos que provocaria não seriam decerto sentimentos estheticos de belleza, mas comparáveis ao soffrimento physico; a vista do inferno e a presença dos horrores do inferno infundiriam terror: a descripção da vida do paraizo ajudaria pelo inte"

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rcsse do gozo a doutrinação a conseguir o seu fiai. Eram assim os mysterios medievos. Mas não os pratica desse modo Gil Vicente.

Abicadas á praia estão duas barcas: a que conduz ao Céo e a que conduz ao Purgatório e Inferno. A primeira é tripulada por anjos, a segunda pelo diabo e seus compa- nheiros. A margem vêm chegando as almas dos recem- mortos, que, segundo o seu próprio juizo, julgam haver merecido por suas acções embarcar na barca que conduz á mansão celeste. Ahi decorre o seu julgamento, em que são accusadores o anjo arraes e o diabo-arraes e elles seus úni- cos defensores. Verdadeiramente quem os julga é a satyra vicentina ao serviço das concepções moraes, sociaes e reli- giosas do poeta, e nesses juizos consiste a originalidade e belleza da obra; belleza de fluência no dialogo, de graça effusiva, de incisiva e pungente mordacidade, de idéas sãs e claras; originalidade de trazer progresso a um género em via de se extinguir, o mysterio, e de erguer a critica social no theatro a urna altura de independência e a uma extensão de alcance, naquelle tempo inteiramente desconhecidas. No primeiro auto, comparecem e embarcam na barca do inferno um fidalgo que desprezou os pequenos; um onzeneiro, a quem o próprio orneio condemnava; um parvo salvo pela própria pobreza de espirito; um sapateiro que durante bem trinta annos roubou o povo com seu officio; um padre brigão que cohabitou maritalmente; uma mulher, Brígida Vaz, que exerceu o officio de proxeneta; um corregedor que prevari- cou: um judeu porque escarnecia dos mysterios da Igreja; e um enforcado condemnado pelos juizes da terra. Apenas se salvam quatro cavalleiros de Christo, que haviam morrido em Africa, batalhando pela cruz e que á praia acodem, can- tando:

Historia da Lilteratura Chssim 73

« Á barca, á barca segura, Guardar da barca perdida ; Á barca, á barca da vida. Senhores, que trabalhais Pola vida transitória, Memoria, por Deus, memoria Deste temeroso cais. Á barca, á barca, mortaes ; Porém na vida perdida Se perde a barca da vida.»

Promptamente os acolhe o anjo-arraes no seu batel:

Ó cavalleiros de Deos, A vós estou esperando ; Que m&rrestes pelejando Por Christo, Stnhor dos Ceos. Sois livres de todo o mal, Sanctos por certo sem falha; Que quem morre em tal batalha Merece paz eternal».

Neste fecho se cifra a moralidade da peça; a canção dos cavalleiros é um aviso ao auditório; a fala do anjo, em elogio dos cavalleiros. é o contraste moralizador que se oppõe aos modos de viver, anteriormente alludidos e con- demnados, é a apologia da despreoccupação dos bens terre- nos e da vida dada em sacrifício pela Fé. Esta concepção moral, da forma da vida, tida como suprema, pôde parecer um pouco em contradicção com a liberdade critica demons trada por Gil Vicente e peccar por muito unilateralmente exclusiva. Devemo-nos, porem, lembrar que o poeta ensce- nava as suas peças na corte de D. Manuel I, em pleno apogeu das empresas ultramarinas, ao qual decerto muito agradaria ver apontar com tão grande o bella expressão artistica um modo de vida, inteiramente de accordo com a sua politica militar e religiosa. Gil Vicente era uma conscien-

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cia altamente religiosa e aquelle processo de apreciar os actos moraes pela sua máxima extensão, Kant o ensinou muito mais tarde... sem ter sido ouvido.

No segundo auto, continua o julgamento e a distribui- ção das almas pelas barcas. São ainda typos de variadas classes sociaes : o lavrador, que tendo-se-lhe em conta as suas fadigas e suores vae para o purgatório a purificar-se; Martha Gil, lavradora e colareja, que pequenos delictos pra- ticou, pelo que fica na zona intermédia do Purgatório; o pas- tor que tem a mesma sentença; um taful que é condemnado; e uma creança pura de peccados que é levada para o pa- raíso.

No terceiro auto, todo escripto em iingua castelhana, as personagens não são extrahida^ das baixas ou medias classes, como ncs dois anteriores, nem os delictos para cas- tigar são tão attenuados como no segundo. Perante a rea- leza, o mais alto clero e a mais alta nobreza, o dramaturgo, sob o disfarce litterario, permitte-se censurar alguns repre- sentantes da realeza, do alto clero e da alta nobreza. O uso tão amplo da sua natural independência critica se explica por segura situação na corte, como seria a de funccionario, ourives da rainha viuva e mestre da balança na Casa da Moeda, qualidades em que poderia agradar aos reis e ga- nhar-lhes ascendente e jus á protecção. A justificação de que perante a Morte e os juizos de Deus todos são iguaes única litterariamente allegavel não colheria no animo daquelles que se vissem aggredidos na sua prosápia com baldas certas. E effecti vãmente como uma justificação da liberdade irreverente da peça que se vae representar, que nós interpretamos o dialogo preliminar entre a personifica- ção da Morte e o Diabo, espécie de prologo em que o auctor se desculpa e visa a produzir a consciência do fim próximo, sentimento muito christão:

Historia da JÂtleratura Clássica 76

Diabo ao seu companheiro : <Patudo, muy saltando, Llamame la Muerte acá ; Dile que ando navegando,

Y que la estoy esperando, Que luego vuelverá.

(Vem a Morte)

Morte Quê me quieres ?

Diabo ~ Que me digas porque eres Tanto de los probreeitos? Bajos hombres y mugeres, Destos matas cuantos quieres,

Y tardan grandes y ricos. En el viage primero

Me enviaste oficiales :

No fue más que un caballero,

Y lo ai, pueblo grosero. Pejaste los principales

Y villanage

En el segundo viage, Siendo mi barco ensecado. A pesar de mi linage, Los grandes de alto estado Como tárdan en mi pasage !

Morte Tienen más guaridas esos, Que lagartos de arenal.

Diabo De carne son y de huesos,

Vengan, vengan, que son nuesos, Nuestro derecho real.

Morte Ya lo hiciera,

Su deuda paga me fuera ; Mas el tiempo le Dios, E preces le dan espera, Pêro deuda es verdadera,

Y los porné ante vós. Voyme allá de soticapa A mi estrada seguida, Verás como no me escapa Desde el Conde hasta el Papa ».

76 Historia da Litteratura Clássica

E realmente, desde um Conde até ao Papa, grandes personagens acodem á praia, a embarcar-se para a viagem ultima ; Gil Vicente mostra excepcional benevolência ao pôr na-bocca do anjo-arraes da Barca do Paraizo uma prece á Virgem por todas essas grandes personagens que vão apparecer no severo tribunal... da consciência do mesmo Gil Vicente:

« Ó Virgen nuestra Seriora, Sed vós su socorredora En la hora de la muerte ».

Vem um conde, confiado no seu dinheiro, que viveu vida vici osa, dado a amores levianos, desdenhoso para os pobres e despreoceupado dos seus deveres religiosos; vem um duque, a quem se não attribue mais culpa que a própria grandeza, o seu castello amarello que elle suppunha de oiro; vem um rei que ouviu lisonjas, que se deixou adorar como se não fosse da terra, que se encolerizou com os grandes, desprezou os pequenos e fulminou injusta guerra; um impe- rador desvairado e cruel; um bispo desde a juventude des- posado e com filhes; um arcebispo que se desfruetou de dinheiros dos pobres confiados á sua guarda; um cardeal despeitado porque não conseguira a tiara pontifícia; um papa tyranno, mundano, luxurioso, soberbo e que praticara a simonia. Em vão todos se responsam ansiosamente; taes responsos tardios são, qualifica-os o poeta, como cevada lan- çada a asno morto. A todos o diabo-arraes embarca no seu batel. Para o papa, é Gil Vicente acintosamente severo :

Papa ao Diabo « Sabes tu que soy sagrado Vicário en el santo templo ? Diabo Cuanto mas de alto estado, Tanto mas es obligado Dar á todos buen ejemplo, Y ser Ilano, Á todos manso y humano.

Historia da Ldtteratura Clas*> 77

Cuanto más ser de corona, Antes muerto que tirano, Antes pobre que mundano ; Como fue vuestra persona. Lujuria os desconsagró, Soberbia os hizo dano ;

Y lo más que os condanó, Simonia con engano. Venid embarcar.

Veis aquellos azotar

Con vergas de hierro ardiendo,

Y despues atanazar ? Pués alli hábeis de andar Para sempre padeciendo».

E conde, duque, rei e imperador, e bispo, arcebispo, cardeal e papa, em grande desolação, todos vêem partir a barca do Paraizo, cujos arraes novo signal da referida benevolência de excepção , ainda os lastima:

« Pésanos tales senores Iren á aquellos ardores Animas tan escogidas. »

E é ainda por excepcional benevolência, que grande- mente contradiz todo o entrecho do auto, que Gil Vicente os salva; quando a barca do Paraizo desfere as velas, os pobres condemnados erguem aos céus, em grita, afflictivas preces, e essas preces, sem duvida por serem de «almas tão escolhidas» são ouvidas. Assim remata o poeta: «e veio Christo da resurreição, e repartio por elles os remos das chagas e os levou comsigo.»

Este termo da inesperada e injustificada apparição de

78 Historia du Látteratura Clássica

Ckristo é um deus ex machina, artificio pouco feliz com que Gil Vicente quiz attenuar o desconsolador effeito moral do seu auto ou reduzir a sua liberdade critica ou satisfazer sentimentos aristocráticos de jerarchia a que não podia ser estranho, como homem do século XVI, catholico e cortesão dum soberano que engrandeceu o poder real.

Gil Vicente escreveu o seu theatro para ser immediata- rnente representado, elle mesmo o ensaiava e enscenava, adaptando-o provavelmente aos lugares e tendo em conside- ração os actores, com que contava e o publico para que o destinava. Nós temos de fazer o nosso juizo exclusivamente sobre a leitura, leitura dum texto defeituoso e guiando nos por uma chronologia ou manifestamente errada ou discutivel. Esta circunstancia adversa limita-nos a justeza da apreciação do seu theatro. A magnificente belleza de alguns effeitos scenicos escapa-nos, como nos escapa o papel sem duvida muito influente das suas canções e coros, da maioria dos qiu-.es não possuímos mais que o titulo, nem a letra, nem a musica. Vem isto a propósito porque, mais duma vez, nos acodem duvidas sobre o arranjo scenico das personagens. Quando Gil Vicente auetor, levado pelo no da peça, por algum principal dialogo, se esquecia das personagens que tinha em scena, certo seria que Gil Vicente ensaiador, habilidosamente remediaria a difficuldade com arranjos de occasião, entradas e sabidas, pequenos grupos, falsos diálo- gos e outros artifícios. Esta duvida nos occorre acerca da Barca do Parai zo ; nos autos anteriores as differentes perso- nagens vão conversando com os que vêm chegando e vão embarcando. Mas no terceiro auto, que fazem, na praia, grupados até final, os altos magnates e soberanos? Neste, como noutros pontos do theatro vicentino, não ha possibili- dade de fazer estudo completo, emquanto se não conseguir representar esse theatro, pelo menos as principaes peças, as que são como que marcos miliarios de evolução. Referi- mo-nos a uma representação critica, com os textos authenti-

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cos, sem serem adulterados para facilitar uma mal entendida vulgarização. (')

A rubrica da edição de 1562, que precede o Auto da Alma, fixa a sua representação em 1508, mas o sr. Braam- camp Freire remette-a para 15 18, com o fundamento de que nas Endoenças de 1508 estava D. Manuel ausente na Cha- musca, e não podia portanto assistir nos Paços da Ribeira á representação.

Artisticamente, o Auto da Alma presuppõe maturidade e senhorio das faculdades mestras de technica e inspiração,

(!) Nos annos de 1910 u 1914 operou-se em Portugal utn synipa- thico movimento de propaganda do theaíro vicentino, em que coopera- ram principalmente o sr. A. Lopes Vieira, a Escola da Arte de Repre- sentar, alguns dos nossos melhores actores e abastados particulares de gosto elevado. Apesar dos sentimentos de sympathia, que essa propa- ganda nos suscita, não deixaremos de apontar dois erros, que a domina- ram e que não são, segundo cremos, para desattender. O primeiro foi um erro de facto, o de alterar o texto dos autos, com o propósito de o modernizar e tornar mais facilmente representavel. Esta pratica é deli- ctuosa, porque a propriedade litíeraria intrínseca é eterna, e ninguém deve bolir nesse bem alheio senão para restituir o que falte á sua inte- gridade. O texto das obras de Gil Vicente está realmente muito adulte- rado, já porque das. varias edições e da revisão da censura do Santo Officio sahiu sempre modificado, em virtude de nelle haver passado aquelle fatal irracional, cuja existência até nas melhores obras de génio G. Fraccaroli exuberantemente proveu ; devo por isso ser restituído, mas não modernizado como tem sido, ao ponto do próprio sr. Lopes Vieira confessar :

. . .0 Auto Que ora aqui para vós se representa Não é de Gil Vicente mas é quasi;

O outro erro 0 de doutrina e consiste em apreciar com exaggerado enthusiasmo o theatro vicentino. O lado meritório deste movimento de propaganda de textos que são quasi os de Gil Vicente e os dois alludidos erros patenteiam-se com clareza no volume A Companha Vicentino, Lisboa, 1914. do sr. Lopes Vieira.

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que não observamos ainda nos esciiptos vizinhos de 1508, quando o poeta se iniciava no theatro cómico, Quem tem farelos e Atito da índia, e quando era ainda incaracteristica e pouco progressiva em relação aos auctores castelhanos a sua dramática pastoril e religiosa. K mais consentânea a coexis- tência desse bello auto junto das Barcas, mas não deixa de fazer pensar a circunstancia de o poeta quebrar a execução da sua Trilogia, que o absorveu durante mais de três annos com a redacção doutra obra. As conjecturas com que se supprern as erradas ou vagas informações consignadas por seus filhos raramente conseguem dissipar todas as duvidas. O Auto da Alma é, na sua própria phrase, a perfigura- çio da seguinte idéa : «Assi como foi cousa muito necessá- ria haver nos caminhos estalagens, pêra repouso e refeição dos cansados caminhantes, assi foi cousa conveniente que nesta caminhante vida houvesse húa estalajadeira, pêra re- feição e descanso das almas que vão caminhantes pêra a eternal morada de Deos. Esta estalajadeira das almas he a Madre Sancta Igreja; a mesa he o altar, os manjares as- insignias da paixão. E desta perfiguração tracta a obra se- guinte ». Este Auto da Alma é uma das mais bellas allego- rias do theatro vicentino. Peia carreira da vida, vae seguindo a alma, hesitando entre as seducções que lhe pinta um demó- nio e os rigores presentes introductórios dum mór bem futuro, que lhe descreve um anjo. Qual delles mais solicito se esforça junto da alma fatigada e perplexa, que afinal consegue arrastar se até á estalagem, a Santa Madre Igreja, onde lhe é servida refeição restauradora. Essa refeição é servida sobre a verónica, como toalha, e consta de varias iguarias taes como açoutes, a coroa de espinhos, os cravos c o crucifixo ; a fructa vão colhê-la ao pomar, onde adoram o santo sepulchro. Á parte a aliegoria final da refeição, muito grosseiramente materializada, este auto é uma verda- deira obra de arte, onde sobra a iuspiração lyrica e onde nobremente se affirma o poder inventivo de Gil Vicente,

Historia da Litteratura Clássica 81

como dramaturgo litúrgico. Effecti vãmente, basta que se considere um momento na qualidade dos recursos de arte da Biblia, compendio dos principaes themas litterarios de inspiração christã, para se reconhecer que da Biblia se pq- diam tomar themas de amplo lyrismo, intensa eloquência, profunda moralidade, subtil edificação espiritualista, mas muito difficilmente se poderia extrahir theatro. O mysterio e mysterios produziu o theatro bíblico era thea- tro por ser representado ao vivo, dito, dialogado, portanto visto e ouvido ; na essência permaneceu sempre narrativa, exegese, eloquência apologética, quanto se quizér, mas muito escassamente theatro. E isto por algumas razões : o thema religioso, que o mysterio desenvolve, é essencial- mente contemplativo, e o verdadeiro theatro deve ser acti- vo; a Sagrada Escriptura fixa ao mysterio todo o plano nos mais pequenos pormenores, o que limita a liberdade do auetor dramático á dependência de narrador dum thema inalterável ; a realidade do mundo objectivo, que ao drama- turgo deve ser tão querida, é desdenhada pelo mysterio, pois acima dessa materialidade quotidiana quer elle erguer as almas; a única vida, que condescende em abeirar, é a vida christã, a vida que se deveria viver, ou a vida eterna, que se pretenderá viver alem da morte terrena ; vida ter- rena commum, para a execrar, ou então para lhe contra- por a vida angélica que viveram os martyres e os santos. Estes distinctivos fataes do mysterio reduziam muito a sua variedade artística e a autonomia creadora do dramaturgo. E, pois, necessário muito génio inventivo e grande inspira- ção lyrica para de tão limitado campo de acção extrahir obra pessoal. Isso conseguiu Gil Vicente com a allegoria do Auto da Alma, representando, na sua concepção christã, de delicado espiritualismo, de discreto pessimismo e desapego das coisas mundanaes, a pobre humanidade seguindo pela vida fora, sempre perplexa entre as tentações do bem pre- sente e fácil e os espinhos do bem longínquo e difficil. H. r>A L. Clássica, vol. l.° 8

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É neste auto religioso que Gil Vicente pela primeira vez põe á prova o seu lyrismo de vasta inspiração, um lyrismo de intensa emoção, que não exclue eloquência, pois é até sob a forma exclamativa e vocativa, que as mais das vezes se expande. Aquelles, dentre os poetas modernos que á força dos sonoros alexandrinos, estirados e pejados de adje- ctivos, conseguem dar largas á vehemencia das suas emo- ções, muito tem que aprender em matéria de expressão litteraria com o velho Gil Vicente, que usou metros cur- tos, hoje obsoletos para esses poetas.

Na Comedia de Rubena encontramos duas innovações: a divisão da obra em três scenas, em três actos como hoje se diz, e a presença dum licenceado, que ao publico se dirige a explicar o entrecho. Este licenceado, que fala no prologo, ou melhor a existência dum prologo, em que fala uma per- sonagem estranha ao decurso da acção, é um signal da influencia clássica, visto que a comedia clássica o usou, e rnais a latina que a grega. O prologo era um aviso ao publico, que antecipadamente conhecia o propósito ou o thema da peça, a que ia assistir, e que ao mesmo tempo era sollicitado na sua attenção e benevolência.

Juan dei Encina, mais sujeito a influencias clássicas que o nosso comediographo, não usou prologo: apenas á sua écloga Pálcida y Victoriano antepôs um argumento extenso. A divisão da peça em três actos tem seu fundamento; os dois intervallos, que separam esses três actos, dividem três phases da acção, a vida de Cismena, rilha de Rubena, que realmente distavam de muitos annos: seu nascimento, sua vida na serra a pastorear até se transferir para Creta; seu casa- mento com um príncipe da Syria. A Comedia de Rubena é uma narrativa de extensa acção, é um romance de aventuras dialogado, representado em episódios, em que tudo é movi- mento, e que participa do caracter do romance pastorií, pelos disfarces pastoris de Cismena e do meio pastoril do segundo acto, e pelas aventuras romanescas, que corre o

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príncipe da Syria, que vem a possuir a mão de Cismena. De theatro muito pouco ha nesta peça, contaminada pelos dois maiores inimigos dos géneros dramáticos: o lyrismo e o maravilhoso romanesco. O primeiro ainda produziu a pri- meira parte do i.° acto, lamentações de Rubena e seu dialogo com a creada, a parte mais sentida da peça; o segundo determinou a sobreposição dos lugares e a precipi- tação dos acontecimentos, ainda os afastados de muitos annos. Desta sobreposição de lugares na mesma scena, lugares que a realidade separa por larga jornada e desta precipitação dos acontecimentos a succederem-se no mesmo instante, acontecimentos que a realidade separa por longos prazos, virá a usar d'ora avante em seu theatro o nosso comediographo quinhentista. De si para si, o escriptor pen- sará ter realizado um progresso, porque alargou o alcance chronologico e espacial do seu theatro, podendo agora abar- car um mais vasto e variado quadro, excitando mais viva- mente a attenção do seu publico, muito habituado a pequenos quadrinhos. E todavia o theatro clássico e o moderno, que o imitava, realizaram a sua evolução em sen- tido opposto, caminhando cada vez mais appressadamente para a reducção dos lugares, para a limitação do tempo e para a concentração da acção, chegando á severidade da regra das três unidades: uma acção decorrida em vinte e quatro horas e sobre o mesmo lugar. Nunca se exaggerará o benéfico papel desta theoria no desenvolvimento do theatro clássico francês, como também nunca será de boa prudência esquecer o seu papel coercivo sobre a liberdade dos escripto- res. Mas o que é indubitável é que as coacções dessa theoria foram o agente principal que conduziu o theatro de enredo, em que as personagens eram simples instrumentos do entre- cho, ao theatro moral, em que as personagens moralmente definidas é que conduziam esse enredo. Bem merecem da posteridade o Conde de Cramail, o cardeal de La Valette, Mairet, Chapei aio, o P.e d'Aubignac e Richelieu pelo papel

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que tiveram na adopção da theoria das unidades no theatro francês. O génio inventivo de Gil Vicente e o conhecimento da sua própria arte levá-lo-hão á unidade de acção, mas desconhecerá sempre a de lugar e-ade tempo, como verifi- caremos já na sua obra prima, Ignez Pereira, de 1523.

A esta peça chegou Gil Vicente logo depois de duas obras, sem originalidade: as Cortes de Júpiter, lisonjaria cor- tesanesca em favor da Infanta D. Beatriz de Saboya, onde uma vez mais se misturam o maravilhoso christão e o pagão, mas este subordinado áquelle, como era próprio de bom christão, e com personificações de entidades abstractas; e a Farsa das Ciganas, um quadro descriptivo de costumes dos ciganos. Porem, sob o estimulo da emulação, o drama- turgo compõe a Ignez Pereira. Na rubrica da própria peça, brevemente, elle próprio nos conta a origem delia; O seu argumento he que, porquanto duvidavão certos homens de òotn saber, se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe derão este thema sobre que fizesse: s. hum exemplo commum que dizem: Mais quero asno que me leve, que cavallo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farça». Com genial habilidade se sahiu o poeta que nesta peça ostentou todos os seus melhores dotes: o seu cómico ordinariamente grosseiro e licencioso attenuou-se em justa proporção, passando a ser mais o necessário effeito das situações que um deliberado intento, á custa do abuso de liberdade de linguagem e da aravia praguenta e extrava- gante do populacho; eliminou dentre os figurantes as perso- nificações e os svmboios, tomando reaes personagens ; excluiu da acção quanto não fosse em convergência do effeito visado. E o êxito foi completo.

Ignez Pereira, filha duma mulher do povo e pobre, ansiava por um casamento que a libertasse da sua condição, vivia no devaneio ocioso e na espectativa dum marido fidalgo, elegante e prendado, que a divertisse e a dispensasse da dura necessidade das occupações grosseiras. Por isso

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repudia um pretendente da sua classe, um lavrador abastado, mas atoleimado, risível. Fazendo a experiência desse casa- mento, vive vida cruel de prisioneira e em privações até ao momento em que a liberta a morte do fidalgo, seu marido, em cobarde situação. Essa lição da experiência, como o cavallo que derruba, fez-lhe ver quanto fora mais sensato haver preferido o marido fraco e rico, o asno que leva, tão asno que ella pôde á vista delle concertar uma entrevista com um seu antigo pretendente, tão asno que é elle mesmo que a essa entrevista a conduz, ao collo. No tempo de Gil Vicente ninguém poderia ter feito melhor. Certo é que se sente que os caracteres precisavam de maior relevo, a pol- tranice do escudeiro primeiro marido e a sua prepotência precisavam mais estadeadas, como também mais documen- tada a boçalidade larvada de Pêro Marques, segundo ma- rido. E Gil Vicente poderia te-lo feito, a avaliar pela docu- mentação que nos deu de Leonor Vaz, figurante da mesma peça, a que vindo falar a Ignez Pereira e sua mãe do casa- mento, antes conta toda offegante, mais lisonjeada que offendida, o assalto dum clérigo libidinoso, no caminho. O dialogo é seguido e naturalmente fluente, sem certa tibieza, que noutras peças notamos, e que determinam sus- pensões de expressão, e a acção é una; o casamento de Ignez Pereira, sem episódios que perturbem essa unidade, visto que o episodio do clérigo existe na narrativa de Leonor Vaz e serve para pintar o seu caracter. A juxtapo- sição de lugares muito afastados e a successão rápida de acontecimentos muito distantes no tempo são aqui muito praticados, claramente mostrando que era um processo novo, de que Gil Vicente usava como dum novo recurso, que lhe permittia abarcar muito dilatados limites. O processo, poste- riormente muito usado, com o maior êxito ou com a máxima infelicidade, de supprir essa necessidade de muitos lugares e grande espaço de tempo pela narrativa dentro da conversa entre personagens e até um pouco não muito legitima-

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mente peia aclaração do prologo, não o conheceu Gil Vicente em toda a sua amplitude, se bem que delle usasse alguma vez. O theatro vicentino é uma successão de pre- sentes, è o desfilar de quadros chronológicamente grupados. Na Ignez Pereira, temos os vários quadros em successão: I: A vida de Ignez Pereira, em solteira, com sua mãe. II: Conselhos de Leonor Vaz para que case. III: Apre- senta-se Pêro Marques. —IV: Apresenta se o escudeiro.— V: Vida de Ignez Pereira casada com o escudeiro. VI: Vida de Ignez Pereira, viuva. VII: Vida de Ignez Pereira casada com Pêro Marques. Daqui resulta a obrigada brevidade dos quadros, as bruscas metamorphoses da acção, a variedade dos lugares e a inverosimilhança. Lembremo-nos de que Gil Vicente, exceptuando as Barcas e a Comedia de Rubena, não usou a divisão em actos, o que aggravava este defeito. Assim, num acto único da Ignez Pereira, temos á vista, sobre a mesma scena, a casa de Ignez, a rua e um rio; em rápidos momentos se casa Ignez, parte o escudeiro para a Africa e é morto próximo de Arzilia, enviuva Ignez e de novo casa. Mas, como dissemos, Gil Vicente também usou o pro- cesso indirecto : é pela narrativa de Leonor Vaz, que sabe- mos da sua aventura com o clérigo e é por uma carta que sabemos da morte do escudeiro. Não nos fez assistir a estes dois episódios por virtude do seu fito de não se distrahir da acção. Doutro modo procederia um auctor moderno, que aproveitasse a lição da longa historia do theatro : de toda a acção, faria presente apenas uma phase, a ultima; todas as antecedentes as conheceríamos de modo indirecto.

O Auto Pastoril Português, também de 1523, é a repeti- ção do seu primeiro theatro religioso; tem a mais o prologo, um pequeno thema profano dum casal de pastores que se julga mal casado, e termina pela adoração da Virgem. A Fragoa de Amor, de 1524, mistura o intuito de lisonjear a futura rainha D. Catharina, com uma descripção represen- tada do magico poder transformador do Amor. O intuito de

Historia da Litteratura Ciai 87

um castello, cujas torres, fortalezas e defesas são as virtudes moraes e ao qual conquista o rei D. João III. A meio da peça opera-se uma metamorphose, que começo ao segundo intuito. Gil Vicente no-la descreve na seguinte rubrica: « Em este p:\sso foi posto hum muito formoso castello, e abrio se a porta delle, e sahirão de dentro quatro galantes em trajo de caldeireiros, com, cada hum, sua Serrana muito louçan pela mão, e elles mui ricamente ataviados, cubertos d'estrellas, porque figurão quatro Planetas, e ellas os gozos d'amor; e cada hum delles traz seu martello muito faça- nhoso, e todos dourados e prateados, e huma muito grande e formosa fragoa, e o Deos Cupido por Capitão d'elles: e estas Serranas trazem cada hua sua tenaz do teor dos mar- teilcs, para servirem quando lavrar a fragoa d'amor. E assi sahirão do dito Castello com sua musica, e acabando fazem o razoamento seguinte, para declaração do significado das ditas figuras, e cada Planeta falia com sua Serrana». As ser- ranas enumeram a seguir os prazeres do amor, honesta e christãmente considerados, e trabalhando depois na forja do amor demonstram o seu condão transformador fazendo trans- mudar em gentil homem branco um negro da Guiné e endi- reitar e aformosear uma velha torta que representava a jus- tiça. A metamorphose da justiça faz-se por meio duma depuração moral, symbolizada no apparecimento dos obje- ctos dados em suborno, que a forja expelle. Esta peça é, pois, mantendo ainda a ordinária philosophia pessimista e moralista de Gil Vicente, uma verdadeira magica. E magi- cas são as restantes tragi-comedias, com suas bruscas meta- morphoses de personagens, seus inesperados apparecimentos e desapparecimentos de edifícios e objectos, sua mistura hybrida de personagens sobre-naturaes, symbolicas e simples typos pessoaes, e ainda com a curiosa forma de compor, que consiste em fazer desfilar uma galeria de personagens ephemeras perante algumas poucas, que permanecem. Geral-

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mente as que passam, param um momento e desapparecem são as de concreta e pessoal representação, e as que perma- necem são symbolos. mythos ou personificações.

Gil Vicente também sacrificou á moda dos romances de cavallarias, extrahindo do Amadis de Gania e do Palmeirim de Inglaterra, sua continuação, duas tragi-comedias, D. Duardos, de 1525, e Amadis de Gaula, de 1533. Estas datas são as das representações, taes como as rubricas consignam, mas de crer é que a segunda não distasse tanto da primeira.

D. Duardos foi extraindo do segundo livro do Palmeirim, publicado em i5ió e 1524; o Amadis do romance do mesmo nome de que corria a edição de 1508, de Montalvo. Ambas as tragi-comedias são em castelhano completamente. Seria curioso ver a economia delias, na passagem dos intrincados romances de aventuras para a sua dramatização. Neste par- ticular, Amadis de Gaula accusa progresso importante sobre D. Duardos, onde nem sempre se fez a eliminação do que nao era essencial e que é por isso a obra mais longa e de mais moroso andamento de Gil Vicente. Mas como que a resgatar esse vicio contra a arte dramática possuem a vir- tude poética, attestada nas formosas peças lyricas que con- tém, canções pujantes de sentimento c imagens.

O Juiz da Beira é uma caricatura dum juiz de paz, das aldeias, encabeçada era Pêro Marques, o tolerante marido de Ignez Pereira, nosso conhecido. Assistimos a uma au- diência, ao ar livre, ern que Pêro Marques julga vários casos picarescos, pelo género da querella, pelo modo de sentenciar. O escudeiro pobre e fanfarrão, em desavença com o creado a quem não paga e mal alimenta, e a alcoveta tornam a appare.cer, como typos dilectos para a satyra de Gil Vicente. Não é esta peça uma continuação da Ignez Pe- reira, como se tem affirmado, porque, com ella apenas tem de commum ser seu protagonista Pêro Marques, marido de Ignez, por nós tido como um rústico, que sendo cómico marido, a caracter o achariamos a sentenciar comicamente

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em casos cómicos. O mesmo intuito de descripção cómica domina a farsa do Clérigo da Beira, região a que se attribuia toda a vis cómica do paiz. Mas no Clérigo da Beira, como no Auto das Fadas anteriormente alludido, esse intuito de descripção cómica é accrescido de referencias pessoaes que temperavam a peça duma, para o tempo, deliciosa curiosi- dade: ao dialogo entre um clérigo da Beira e seu filho, ás rezas das matinas venatóriamente commentadas, succede-se o caso dum roubo de peças de caça descoberto por Cecilia, uma possessa «em que dizião que fallava hum Pedreanes>, segundo a crença popular. Esta Cecilia, que descobre o furto, satisfaz também outras curiosidades respeitantes a certos espectadores :

Porque por astrolomia Conheço os seus nascimentos. E pola filosomia Sei todolos pensamentos Que trazem na fantesia.

E faz em seguida revelações galantes sobre o Conde de Penella, «o mór namorado de Portugal e Castella », do em- baixador do imperador Carlos v, do vedor, do Conde de Marialva, Vasco de Foes, Affonso de Albuquerque, Jorge de Mello, Gaspar Gonçalves e Pedreanes. Nesta farsa os três episódios são muito extensos até á prolixidade e tor- nam a acção muito arrastada ; qualquer dos episódios podia, de per si, fornecer assumpto para uma peça independente, mas subsistindo os três era necessário abreviá-los e estreitar o nexo que os unia. Nesta farsa do Clérigo da Beira ha uma passagem, que uma vez mais evidencia aquelle defeito referido da precipitação dos acontecimentos : o filho do clé- rigo anda uma légua até á casa, onde estava guardada uma furôa, e regressa percorrendo a mesma légua emquanto o pae monologa os versos, comprehendidos nas seguintes ru- bricas :

90 Historia da Lille? atura Clássica

< (Vai o moço pela f uiva e fica o Clérigo entre si dizendo:)

Cl cr. Medraria este rapaz

Na corte mais que ninguém, Porque não fazem bem Senão a quem menos faz. Outras manhas tem assaz, Cada húa muito bôa :

Nunca diz bem de pessoa, Nem verdade nunca a traz. Mexerica que por nada Revolverá San Francisco ; Que pêra a Corte é hum visco, Que caça toda a manada. [ J rem o filho cor.i a furôa e diz :)

Do mesmo armo do Juis da Beira, 1525, deve ser o Jubileu de Amores, auto bilingue perdido, mas que se sabe haver sido representado em Portugal entre os annos de 1525 e 153 1 e repetido neste ultimo anno, em Dezembro, em Bruxellas, em casa do Embaixador de Portugal, D. Pe- dro de Mascarenhas, nas festas com que este solemnizou o nascimento do príncipe D. Manuel. Apenas se conservaram testemunhos da irreverência do poeta contra o clero e dos applausos hilariantes que suscitara. (*)

O Templo do Apollo é uma adulação gentil á Infanta D. Izabel, irmã de João 111, que partia para se casar com o Imperador Carlos V, com personificações e allegorias a par de personagens communs que praticam o mais chão rea- lismo, como o desse romeiro que antes de entrar no Templo- do Apollo, cospe para o lado e diz o por que o faz. É a

(1) Este episodio da vida litteraria de Gil Vicente foi illustrado com muitas noticias novas pela sr.a D. Carolina Michaêlis de Vasconcel- los nas suas Notas Vicentinas, í Gil Vicente em Bruxellas ou o Jubi- leu de Amor, publ. na Revista da Universidade de Coimbra, vol. i.-o, n.° 2, Coimbra, 1912.

Historia da Litteratura Clássica 91

Apollo que os romeiros de Carlos v e sua mulher pedem auxilio para vencerem os pagãos. A tragi-comedia tem um prologo pelo auctor que apresenta o argumento, particulari- dade que daqui em deante mais se repetirá.

Os annos de 1527 e 1528 parece terem sido os mais fe- cundos do poeta, porque fossem mais repetidas as sollicita- ções da corte, porque Gil Vicente se sentisse no seu mo« mento de mais prompta e fácil productividade. São desses annos : a Serra da Estrella, pittoresca peça, em que elogia calo- rosamente a serra, onde decorre, em meio pastoril, o seu pequeno e simples entrecho ; a Nau de Amores, cuja com- posição é semelhante á das Barcas e igualmente de grande effeito ; o Auto da Feira, mixto de moralidade e de peça de costumes, onde se contêm algumas invectivas severas con- tra a cúria romana (*); o Brazão da cidade de Coimbra, inter- pretação e correcção do brazão da cidade, provavelmente segundo tradições locaes; e finalmente os dois mysterios sobre a Historia de Deus e a Resurreição, dos quaes o pri- meiro tem verdadeira inspiração lyrica, principalmente nos lamentos de Job. A primeira parte é uma descripção, fiel á narrativa bíblica, apenas vivificada peio dialogo e pelo lyrismo pessimista que lhe communicou Gil Vicente : a segunda, talvez incompleta, reduz-se á conversa de al- guns judeus incrédulos. Possível é até que isso o poeta tivesse querido fazer, pois ao menos o titulo executou-o completamente : Dialogo sobre a resurreição entre os judeus.

(1) Alguns auetores, especialmente o sr. Th. Braga e a sr.a D. Ca- rolina Michaélis de Vasconcellos, têm attribuido a Gil Vicente intuitos de heterodoxia religiosa, fazendo-o precursor de Erasmo e Luthero. Con- tra essa attribuição protestou o sr. Fortunato de Almeida na sua Histo- ria da Igreja em Portugal tomo 8.", parte 2.a, Coimbra, '1915-19 [7, pag. 119-126. Affigura-se-nos mais razoável a interpretação que eate auctor ás irreverências do poeta cómico.

02 Historia da Litteraiura Clássica

As peças que se seguem não trazem progresso apreciá- vel á evolução artistica do escriptor.

Durante trinta e quatro annos, com fecundidade varia, mas sempre com seguro êxito, Gil Vicente divertiu a corte portuguesa, em Lisboa, em Coimbra, Évora, Santarém, Al- meirim, por toda a parte aonde os cuidados da administra- ção, o desejo de distracção e as fugidas ás epidemias levaram os reis a estancear. Comsigo levava Gil Vicente, com seu génio, não a alegria descuidada, mas também verdadeiro poder de cultura artistica, de que se tornava centro e pre- texto, pois para a enscenação dos seus autos era necessário congregar actores, músicos, caracterização, scenographia, posto que rudimentar, e ma.is ainda porque elles faziam meditar os seus espectadores no sentido transcendente das suas obras. Gil Vicente era um poeta essencialmente christão e as suas obras representam a visão da vida e da sociedade do seu tempo, através de olhos de artista christão e mora- lista, que tem sempre presente a rápida caducidade das obras humanas, quanto é finita a vida terrena, quanto é frágil a argilla humana, porque muito vivamente sente tam- bém a bemaventurança da vida eterna, que aos justos aguarda, e a cada passo sobre si postos e sobre esses que descuidosos se abandonam á vida peccadora os olhos omnividentes de Deus, que tudo devassam e inquirem. Em muitas das suas obras, numas pelo sentido, noutras pelas personagens, noutras pelas estancias lyricas do poeta e nou- tras ainda pela própria disposição do tablado são estas as mais grosseiras simultaneamente se entrevem dois mundos, o finito e o infinito, simultaneidade que evidencia a certeza permanente da continuidade da vida para alem da morte. Nós hoje, homens do século xx, impregnados de materia- lismo e naturalismo, temos grande difnculdade em compre- hender esta convicção da longevidade do Bem, da vida transcendente aiêm do seu terreno limite e todo o thesouro immenso de sentimentos que delia brotavam. Não fazemos

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coisas grandes, porque para as fazer é .necessário muito tempo e a vida não chega para as vermos concluídas, temos sempre ante nós a consciência do fim próximo, e se essa certeza deixa de ser serena e calma, é para ainda se per- turbar com a perspectiva dum fim antecipado. Não vale a pena principiar, porque não chegaremos ao fim ; por isso nada de grande se principia. O maior problema da philoso- phia moral, o illudir esta certeza do fim, temo-lo nós pen- dente, porque pusemos de lado todas as soluções que a religião e o espiritualismo nos propuseram, avaliando essas soluções não pela sua efficacidade determinante, mas por um mesquinho cotejo com a fria razão. Por isso se abriu esse vácuo, por isso a vida é sempre mais curta e cada vez mais estéril. Não era assim no tempo de Gil Vicente, e essa certeza da compensação da brevidade da vida terrena pela continuidade do alem é eloquentemente expressada no seu theatro, todo palpitante dum sopro metaphysico. A outra vida é-lhe tão familiar, tão certa e segura, que por ella entram elle e as suas personagens, que delia vêm ao tablado os que desfructam a eterna paz dos eleitos. E como o descanso em Deus era a recompensa da fadiga do mundo, como esta fadiga era o preço necessário daquelle descanso, as suas personagens afadigam-se buliçosamente, batalhando pela religião e pelo rei, pela gloria e pela fama, pelo amor e pela formusura. Isto fazem as suas personagens symbolicas, os cavalleiros da cruz, de seu especial respeito, todos os justos e esforçados que collaboram nas grandes empresas do grande século da historia portuguesa. Ao lado delles, em grande numero e em pungente contraste, pululam os pastores grosseiros e sensuais ou ingénuos crentes, os fidal- gotes ostentadores, as raparigas pobres e pretensiosas, as alcouvetas, os poderosos do mundo, orgulhosos e tyrannos, os maus clérigos, os parvos. É por ser a sua visão do mundo tão amplamente comprehensiva, com seus districtos a penetrarem-se reciprocamente, que o theatro vicentino é tão

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inextricavelmen te mixto, emmaranhadamente confuso dos mais dispares e inconciliáveis géneros dramáticos: ao lado do mais alado idealismo religioso ou lyrico o mais chão rea- lismo, -a par de figuras transcendentes de pureza os grossei- ros villãos, dialogando com figuras que são materializações de virtudes, de idéas abstractas ou sentimentos, Satanaz e Mercúrio e um parvo... Ao tom alto da grandiloquencia, á máxima gravidade própria do theatro dum povo ufano de tão grandes cinprehendimentos levados a cabo, casa-se sem- pre o baixo tom cómico, o mais baixo tom cómico, o bur- lesco ; os dois poios do sublime e do ridículo a par.

O cómico vicentino é como todos os effeitos cómicos um contraste, mas um contraste extremamente pictórico, não é o das boas respostas, boas sahidas de difficeis situa- ções— contraste entre o enigma que se preparava e o modo prompto por que é desfeito é o contraste entre a mediania corrente e natural e a expansão proposital da ínfima mediocridade. Queremos dizer: as personagens cómicas de Gil Vicente cornprazem-se, gozam do próprio cómico, de se mostrarem infimamente grosseiras e boçaes, voluntariamente se confinando no seu eu miserável : os parvos muito parvos, as bruxas muito disparatadas na sua aravía, Pêro Vaz, como noivo e juiz estúpido, procurando requintar a sua própria estupidez, orgulhosos da pobreza de espirito, dos trapos andrajosos e da situação social que todos desdenham. A. este cómico chamamos nós burlesco, um pouco como o cómico carnavalesco dos que, de alma grosseira e medíocre intelli- gencia, comprehendem o Carnaval como um rápido período de liberdade e irresponsabilidade em que possam ser abso- lutamente elles, subjectivamente se revelarem como são. Este cómico é todo de effeito externo, não vem do contraste entre os factos e a significação excessiva, que se lhes attri- bue como o de D. Quixote, este cómico participa da bobice medieval e tem de lançar meio de toda a apparencia externa que o auxilie, a qualidade de parvo, a situação de quem tem

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medo, os trocadilhos da phrase, a grossaria obscura de per- sonagens taes corno regateiras, peixeiras, negros, ferreiros, mendigos, ciganos, creadas, um padeiro, um sapateiro e os parvos. O Pranto de Maria Parda, a fala de Mercúrio á frente do Auto da Feira, o medo do escudeiro na Farsa de quem tem farelos, o medo do pastor que ouve a mulher no Auto da Feira, todas as aravías e exorcismos das bruxas e dos tolos, a gala que o diabo faz da própria maldade garota, Pêro Vaz na Ig?iez Pereira e no Juiz da Beira, são exemplos do burlesco vicentino. Ha felizmente outros cómicos, de contrastes mais suaves : a paixão serôdia do Velho da Horta, a cólera e o desdém irrespeitoso, no dialogo entre pae e filho no Clérigo da Beira, a mentira na narrativa do encontro com o clérigo curioso, que faz Leonor Vaz na Ignez Pereira, a grossaria desilludida do creado e a fanfarronada do escudeiro pobre na mesma Ignez Pereira, e também cómico triste, de mais profundo sentido, como no episodio da Mofina Mendes e no dialogo entre Todo o mundo e Ninguém.

Gil Vicente teve continuadores que tomaram a sua forma dramática do auto, assim mixta e confusa, e a immo- bilizaram ('). Em Lisboa, na província e nas colónias, no século XVI e depois, se representaram os autos de Affonso Alvares, Ribeiro Chiado, António Prestes, o neto do creador. Gil Vicente de Almeida, Balthazar Dias, Luiz de Camões e outros auetores. Nenhum gozou o favor, que na corte des- fruetou o auetor da Igncz Pereira, como nenhum teve o génio dramático deste, a sua inspiração lyrica, a sua origi- nalidade de vistas e a sua capacidade critica social. Outro foi, pois, o publico destes seus continuadores, foi o povo rude e grosseiro, sem educação esthetica, o qual quando

(') Occupamo-ncs deste aspecto do theatro na Historia da Litte ratara Clássica [2* Epocha: ijXo-ijjó).

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acudia aos coitos ou pateos de comedias procurava a satisfação da sua sede de cómico desopilante ou a enscena- ção barbara dos mysterios religiosos. Alguns fidalgos mais cultos, .que ahi occorressem dissimuladamente, nenhum in- fluxo poderiam exercer. Tudo isto fez que o auto estagnasse na servil imitação da obra de Gil Vicente, ao qual se ia pedir suggestão de themas burlescos, o hilariante cómico do gosto popular, e os exemplos dos mysterios postos em scena essa forma de theatro, revelha, caduca perante novas formas tomadas das letras clássicas. O que salva o theatro vicentino é a alta individualidade do poeta, porque as suas formas dramáticas eram, pela sua própria grossaria e indiffe- renciação, mixto cahotico dos mais heterogéneos elementos, condemnadas a uma morte immediata, se outros espiritos creadores lhes não imprimissem movimento e não continuas- sem a evolução differenciadora indispensável ao progresso dos géneros litterarios e que no theatro vicentino observá- mos. Pastoral dramática, mysterio religioso, theatro de caval- larias e algum theatro de costumes, tudo envolto na maravi- lha e acanhado na sua rudimentar composição não são formas de theatro para perdurar, contêm em si o próprio factor da morte; são pontos de partida para uma seguida evolução, mas se se immobilizarem em formas crys- tallizadas morrem. Ora o theatro vicentino não morreu, mas seguiu destino que para a nossa interpretação é equiva- lente: exaggerou os seus próprios defeitos e assim mais grosseiro sumiu-se para a litteratura popular, onde tem vivido da própria grossaria e insignificância esthetica (%

(l) Este phenomeno, que é tão plenamente explicável e cuja in- terpretação justa não pôde deixar de ser a que tem caracter condemna- tório, foi descripto e julgado do modo seguinte pelo sr. Th. Braga. «Os elementos tradicionaes e populares do theatro português a que Gil Vicente deu forma litteraria foram a primeira condição para a estabili- dade da sua obra; porém, como um génio synthetico, comprehendendo

Historia da IAtter atura Clássica 97

No final desta obra, na conclusão apresentaremos das causas deste phenomeno a parte social, mais concreta e provável. Como exemplificação da doutrina, que acabamos de expor, bastará a leitura de algumas peças dos dois princi- paes continuadores de Gil Vicente ; António Prestes Q) e António rlibeiro Chiado (2). Dos autos de Camões fallaremos no capitulo a elle consagrado. A analyse da estructura interna das obras dos continuadores mostrar- nos-ha matéria vicentina sem as boas qualidades do auctor da trilogia das Barcas. O progresso da forma dramática do auto havia de fazer-se fora da lingua portuguesa, em Hespanha, no século immediato.

a transição da Edade média para a Renascença, amando e servindo o futuro sem renegar o passado, essa obra tornou-se a expressão das ne- cessidades moraes da sociedade portuguesa, encantou os espíritos pela sua belleza artística, exerceu uma influencia profunda no successivo desenvolvimento da Litteratura dramática ». (V. Escola de Gil Vicente e o desenvolvimento do thcatro nacional, pag. 5).

(') V. O Auto da Ave Maria, Lisboa, 1889, edição da Bibliotheca Universal Antiga e Moderna, 131 pags. ; comprehende também o Auto dos Cantar inhos.

(*) V. Obras do Poeta Chiado, colligidas, annotadas e prefaciadas por Alberto Pimentel, Lisboa, 1889, 248 pags.

H. da L. Clássica, vol. I.« 7

CAPITULO II

SA DE MIRANDA A VIDA

Francisco de de Miranda nasceu em 1485 (l) na cidade de Coimbra, a «antiga e nobre cidade > no seu dizer, fiiho do cónego Gonçalo Mendes de Sá, que mais tarde cbteve a sua legitimarão. A família dos Sás pertencia á antiga nebreza do reino e assignalára-se por alguns mem- bros illustres e também por outros de ingrata recordação. A larga e emmaranhada copa da sua arvore genealógica attribuia-lhe parentes também em Hespanha e em Itália. Dos seus parentes castelhanos seria o poeta Garcilaso de la Vega o que mais desvaneceria o nosso reformador, como parece confirmar-se por suas próprias palavras, na peça de dedicatória da écloga Nemoroso. commemorativa da morte daquelle poeta castelhano. E dos seus parentes italianos seria a escriptora Vittoria Colonna, igualmente, quem mais o lisonjearia com sua consaguinidade e amistosa disposição que o próprio poeta frequentou e cultivou, quando fez a sua famosa e fecunda viagem á Itália.

(') V. D. Carolina Michaêlis de Vasconcellos, magistral estudo biograpH:o de de Miranda, que acompanha a edição critica das Poesias, e Sousa Viterbo, Estudos sobre de Miranda, vols. 42.0 e 43.0 do Instituto, Coimbra, 1895 e 1896.

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100 Historia da Idtter atura Clássica

Ignora-se todo o período da sua vida que decorre até á adolescência, qual fosse a sua educação, a sua convivência e se alguns acontecimentos notórios haveriam imprimido em seu espirito dessas impressões indeléveis, de tão determi- nante influencia na formação da consciência dum artista. Julga-se que em Buarcos passara a sua primeira infância, junto do seu avô paterno João Gonçalves de Miranda. Se o exemplar das epopêas homéricas annotado por de Mi- randa, que o anonymo auctor da Vida, que precede a i.a edi- ção de suas obras, disse existir ainda em 15 84 em poder dum fidalgo da Beira Alta, Gonçalo da Fonseca de Castro se tal exemplar pudesse ser referido á adolescência do poe.a, affbitariamos a conjectura de que o poeta se familiari- zara com as letras clássicas, muito antes da sua viagem. Demais, esse elemento de informação apenas viria confirmar o que é uma muito verosímil hypothese. A esse tempo eram bem conhecidos os nomes primaciaes das boas letras da antiguidade; encontramo-los citados pelos auctores e descri- ptos nos inventários das bibliothecas. E de facto, por esse prévio conhecimento e pela noticia da effervescencia litteraria, que em Itália occorria, se comprehenderia que o poeta se aventurasse a essa viagem.

Em Lisboa frequentou a Universidade, concluindo a sua formatura de leis e ingressando naquella escola como pro- fessor. Isto deve ter occorrido depois de 15 16, data em que apparece nomeado com o titulo de doutor. Não quiz, porém, seguir a carreira das leis, abandonou o ensino e recusou lugares ofRciaes para se retirar e devotar ao «estudo da Philosophia Moral e Estoyca a que sua natureza o incli- nava» — diz o seu anonymo e sempre útil biographo.

A Universidade, então com sede em Lisboa desde que em 1384 para aqui fora transferida por D. João 1, recebera de D. Manuel I importantes elementos de progresso : casas novas, augmento dos vencimentos do seu pessoal e um novo estatuto, outorgado em 1504, cujo plano de estudos era

Historia da Litteratura Clássica 101

mais vasto que o anterior. Nelle se consignava o ensino de theologia, de cânones, de philosophia natural, de philoso- phia moral, de leis, de medicina, de lógica e de grammatica, distribuído por cadeiras de prima, de terça e de véspera designações estas tomadas das horas canónicas, em que as aulas se realizavam. Estes estudos, tão summariamente co- nhecidos hoje, seguiu-os de Miranda, mas não nos é possível saber o que de litterario e clássico se contivesse nesse quadro, para presumir a parte que na sua deliberação de ir a Itália pudesse ter tido a aprendizagem escolar.

Por esse tempo frequentou o poeta a corte de D. Ma- nuel I. onde se realizavam serões, que pela sua opulência e elegância se tornaram famosos. A elles assistiam os poe- tas do tempo, nelles exhibia Gil Vicente os seus autos. No Cancioneiro Geral, colleccionado por Garcia de Rezende e publicado em 151 6, figura o nome de de Miranda entre os muitos que preenchem aquella obra. Alguns destes aucto- res teriam ainda sido do conhecimento do poeta, que che- gava á corte quando alguns delles se retiravam pela velhice ou arrebatados pela morte. De taes serões no paço da Ri- beira e em outros muitos lugares, por onde a corte transi- tou e estanceou, conservou de Miranda uma grata recor- dação, que confessou quando a mais larga e mais intelligente comprehensão da belleza e do ideal clássico o faziam lasti- mar o desapparecimento dessa atmosphera de elegância, de luxo e bom gosto tão idónea para fazer desenvolver e fru- ctificar os ambiciosos sonhos litterarios, que lhe enchiam o espirito :

Os momos, os serãos de Portugal,

Tam falados no mundo, onde são idos?

E as graças temperadas do seu sal?

Dos motes o primor, e altos sentidos?

Uns ditos delicados cortesãos.

Que é delles? Quem lhes somente ouvidos?

102 Historia da Litter atura Clássica

Não era a taciturna corte de D. João iii o meio mais propicio para fecundar planos litterarios, dessa mundana arte litteraria do renascimento que elevou o amor a primeiro thema e á mulher dignificou como suprema inspiradora. O mercantilismo, que para as empresas ultramarinas impel- lia a nobreza, e os sustos e cautelas, que o estabelecimento do tribunal do Santo Ofíicio originava, faziam crear sauda- des da corte de D. Manuel I, de quando a índia era ainda um ideal heróico e christão.

Desse lapso de tempo, que alcança até á sua partida para o estrangeiro, restam as composições de gosto medie- va1, cantigas e vilancetes, de que adiante se falará.

Em 152 1 sahiu de Portugal, levado pela curiosidade de observar de perto a actividade litteraria da Itália e talvez, como c verosímil, pelo desejo de melhor conhecer o mundo e os homens, para mais sabiamente se erguer acima da sua ordinária estimação de valores com aquelle philosophico scepticismo, a que seu espirito parece haver sido de natural tão propenso. Diz o seu primeiro biographo que elle per- correu os mais celebres lugares de Hespanha, e com vagar e curiosidade Roma, Areneza, Nápoles, Milão, Florença e o melhor da Sicília. Este depoimento é, mais ou menos, confir- mado pela confissão do próprio poeta:

Vi Roma, vi Veneza, vi Milão

Em tempo de Espanhoes e de Franceses,

Os jardins de Valença de Aragão

Em que o amor vive e reina, onde ílorece,

Por onde tantas rebuçadas vão.

Este « tempo de hespanhoes e franceses » é o da guerra entre Carlos v e Francisco 1, que se feria na Itália, onde também teve termo pela decisiva batalha de Pavia.

Qual era a direcção do intenso movimento litterario, de que então palpitava o génio italiano, qual o espirito que o dominava, o dissemos quando na Introducção do presente

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livro desenhámos a physionomia do renascimento em Itália. Foi essa febre de belleza, que de Miranda em flagrante surprcíiendeu, e na sua intimidade pôde penetrar graças ás facilidades que certo lhe proporcionaria o seu parentesco com um dos corypheus desse movimento, Vittoria Colonna. Se se relembrarem as predominantes feições do movimento litterario da Itália de então e se se lhes accrescentarem as do quadro social e as do magnifico esplendor das artes plás- ticas, em que culminavam Leonardo de Vinci, Raphael, Miguel Angelo, Cellini, teremos reconstituido as impressões colhidas por de Miranda em cujo espirito ellas se or- ganizaram -em toda uma esthetica : nova concepção da vida, novas aspirações de belleza e novas formas de arte para lhes dar expressão, aquelle ideal que delineámos na hitroducção.

Portador dum ambicioso programma, regressou a Portu- gal em 1526, indo acolher-se a uma sua quinta dos arredores de Coimbra, donde sahiu para saudar os reis que áquella cidade se abrigavam, fugindo duma peste, que em Lisboa grassava. Esse encontro com D. João 111 em Coimbra foi o inicio das suas novas relações com a corte, de que ia ser um severo censor, que desassombradamente adverte o rei dos perigos que antevê. Relacionado com os mais cultos fidalgos e os mais talentosos espiritos desse tempo, começa então a serena execução do seu programma triplice: acclimar o novo gosto litterario, orientar os ensaios dos outros poetas que queriam seguir os seus ensinamentos e fazer o que hoje chamaríamos critica social. Este triplice programma não excluía benévola syrnpathia pelas formas poéticas tradicio- naes que cultivara e que continuaria a exercitar.

Foi durante a curta estada de D. João 111 em Coimbra, em 1527, que de Miranda compôs a sua primeira tenta- tiva de theatro clássico, a comedia Os Estrangeiros.

Entre 1533 e 1534, ou fcsse pelo pendor do seu espirito para a tranquilla solidão e porque lhe desagradasse o theor de vida que na corte se vivia, tão opposto ao seu modo de

10 A Historia da Lditi atura Cias m ca

sentir e ás suas opiniões, ou fosse porque a reacção provo- cada no animo dos cortesãos pelas suas censuras se aziumasse com as allusões da écloga Aleixo, o poeta retira-se para a Commenda das Duas Igrejas, que acabava de receber de D. João iii. Essas terras, em que se ia isolar, convizinham com o Pico dos Regalados, sobre a margem esquerda do rio Neiva, na província do Minho. A belleza da paizagem, luxuriante e variada de aspectos, ajustava-se com o estado de espirito meditativo do poeta, em cujos sentimentos litte- rarios figurava o amor da natureza e em cujo programma se incluía o cultivo do bucolismo. Com António Pereira Marra- maque, senhor de Basto, nas cercanias das Duas Igrejas, lavrador e poeta também curioso do novo movimento de idéas, estreitou o poeta relações e permutou trabalhos poéticos. E este senhor de Basto um dos destinatários das suas famo- sas Cartas. Na leitura, no exercício da musica, na caça e na conversa, na qual segundo o seu anonymo biographo foi de raro e suggestivo encanto, passou de Miranda esse tempo, até que a partida de António Basto para a corte ou para Coimbra, com toda sua família, pôs rim a esse fraternal convívio. Depois da partida de Basto, o poeta transferiu-se para a Quinta da Tapada, que alli possuía talvez ante- riormente á Commenda das Duas Igrejas e que talvez hou- vesse sido a causa de haver sollicitado do rei D. João iii a doação dessa Commenda, tão distante da sua terra natal. Pouco depois, em 1536, casou com D. Briolanj a de Aze- vedo, senhora da nobreza local, com que o poeta iniciara convivência. Era D. Briolanja irmã de Manuel Machado, senhor das terras de Entre-Homem e Cavado e opulento de haveres. Desde então, sem descontinuar os seus fervorosos estudos litterarios, de Miranda attrahe a sua casa amigos e admiradores que generosamente acolhe, formando no seu retiro pela afBuencia dos visitantes, pela correspondên- cia que mantinha, uma pequena corte litteraria. Vêm depois os filhos e os cuidados da sua educação, em que

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desveladamente se esmera. De 1538, segundo se julga, é o seu segundo ensaio dramático, Vilhalpandcs , que o Cardeal Infante D. Henrique honrou com a sua estima. Em 155 1, o principe D. João, mallogrado herdeiro do throno, pae de D. Sebastião, mandou-lhe pedir os seus versos o que era en- tão um supremo signalde apreço. Em 1553» soffreu o desgosto de perder em Ceuta seu filho mais velho, Gonçalo Mendes; dois annos depois morreu D. Briolanja. Estas dores causa- ram-lhe profundo abalo. Desde então, refere o seu utilissimo e benemérito biographo, «nunca mais sahio' de sua casa, senão pêra ovir os officios Divinos, nem apparou a barba, nem cortou as unhas, nem respondeu a carta que lhe alguém escrevesse até que acabou de todo». E de todo acabou em 155S, tendo ainda assistido ás mortes consecutivas do infante D. Luiz, do Principe D. João e do rei D. João III. Tinha então setenta e três annos de edade, bem providos de saber e de experiência, e bem tranquillos de rectamente haverem sido vividos. Foi sepultado em S. Martinho de Carrezedo, ao lado do tumulo de sua mulher.

O HOMEM

O biographo anonymo, que coiligiu as suas informações «de pessoas fidedignas que o conhecerão e tratarão», des- creve do modo seguinte o retrato physico do poeta, ao mesmo tempo que presta alguns dados sobre o seu caracter. «Foy homem grosso de corpo, de meãa estatura, muito aluo de mãos, e rostro, com pouca cor nelle, o cabello preto e corredio, a barba muito povoada, c de seu natural crecida, os olhos verdes bem assombrados, mas com alguma demasia grandes, o naris comprido, e com cavallo, graue na pessoa, melancólico na apparencia, mais fácil e humano na conver- sação, engraçado nella com bom tom de falia, e menos parco em fallar que em rir...»- Estas breves informações, os sen- timentos que dominam as suas obras e o alto conceito que

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delle fizeram os seus discípulos e continuadores, não menos solicitos em lhe louvar a austeridade que as obras, fazem- nos crer que foi de Miranda um destes caracteres auste- ros, graves, de firme vontade e sombrio aspecto, mas que occultam sob essa severa apparencia uma sensibilidade ex- trema e uma affabilidade acolhedora. Essa sensibilidade te- ria dois principaes aspectos : a bonhornia amável e hospita- leira, communicativa e jovial, quando o rodeavam amigos na intimidade, e uma viva sympathia social, que o levava a commover-se a lagrimas perante os prenúncios dos graves infortúnios que Portugal haveria de correr : « se suspendia alguas vezes, e muy de ordinário derramava lagrimas sem o sentir.» A jovialidade ruidosa da conversação era nelle um meio de distrahir essa viva preoccupação dos destinos do seu paiz, era uma maneira de se livrar de si, das consequên- cias pungentes dessa viva solidariedade de sentimentos com a sociedade em que vivia. A dedicada ansiedade e a fran- queza leal com que a D. João III e aos seus amigos confes- sava os seus juizos e opiniões, fazem crer que foi de Mi- randa uma destas excepcionaes organizações moraes que tratam do interesse social como dum interesse seu próprio e que no que é pessoalmente seu buscam um valor e um al- cance social. Essa solicitude faria delle, nos tempos moder- nos, um bom cidadão, sempre prompto a intervir com o seu voto e a sua opinião em todos os momentosos assumptos. Em vez de cartas poéticas ao soberano e a um pequeno cir- culo de amigos, teria então escripto manifestos e pamphletos dirigidos á nação. Não faz esta consciência social, esta cora- gem lembrar o papel de Alexandre Herculano, sahindo dos seus estudos históricos e do seu retiro para se pronunciar sobre algumas importantes questões publicas do seu tempo? Não é este o único ponto de semelhança entre os caracteres dos dois escriptores: Embora seja melindroso estabelecer approximações entre naturezas moraes tão distantes no tempo e que se alimentaram de emoções e pensamentos tão

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diversos e de certo modo tão oppostos, não temos outro pro- cesso de esclarecer e completar a synthese que cremos fazer da constituição moral do introductor do gosto clássico em Portugal. Como Herculano, soffreu uma influencia profunda no seu systema de idéas, no estrangeiro; como elle foi tam- bém um reformador; viveu retirado e mais se retirou em certa altura da sua vida ; tarde casou, mais preoccupado de bem-estar e bôa-ordem caseira que impellido por um vivo sentimento de amor. A razão serena e sensata predominava sobre a exalçada imaginação poética; escasso era o seu sen- timento da natureza, que cedia todo o lugar á melancholia pessimista e desilludida. Desdenhoso das grandezas do mun- do, da riqueza e do poder, parecia comprazer-se em exerci- tar pelo isolamento, pela meditação e pelo estudo a sua vida interior. Para nesse seu gosto se concentrar abondonou o magistério, recusou cargos públicos e affastou se da corte. A sinceridade terá sido sempre sua inspiradora, sinceridade exigente que á sua própria consciência fiscalizava. Por ter sido uma consciência recta, que se não deslumbrou com a miragem do Oriente e com as retumbantes glorias e prodi- giosos esplendores do seu tempo, e porque sempre fallou a verdade dos seus sentimentos, foi venerado não menos como reformador litterario que como philosopho quando philo- sopho tinha um significado principalmente moral, mixto de integridade, de rude simpleza, de sinceridade e de sobrance- ria para com as enganosas apparencias do mundo.

O POETA

A acção de de Miranda na nossa historia litteraria é a dum reformador ; foi elle que primeiro ensaiou alguns no- vos géneros poéticos: o soneto e a canção de Petrarcha, os tercetos de Dante, a oitava rima de Policiano, Boccacio e Ariosto, as éclogas de Sannazaro e seus versos encadeados, e o hendecassylabo jainbico. Como a lingua ainda não adqui-

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rira por um longo exercício de culta arte malleabilidade e expressão flexível para os novos ideaes do renascimento e como de Miranda, espirito viril e austero, não era uma alta organização poética, grandemente carecem de inspira- ção as suas obras, pela maior parte. Menos analysar o fundo individual, que ás novas formas incutiu, do que verificar em que termos fez as suas exemplificações, terá de ser o nosso processo.

Posta completamente de parte a hrypotese de haver sido o soneto cultivado antes de de Miranda, (*) a este cabe a gloria de ter feito o seu primeiro ensaio com as vinte e nove peças desse género, que andam nas suas obras. Não foi da antiguidade, que de Miranda tomou esta sua inno- vação, porque a antiguidade o desconheceu; o soneto é um género poético moderno.

O seu nome proveio da lyrica provençal, mas nella com o significado genérico de qualquer peça poética acompa- nhada de musica. Com a estructura, com que hoje o conhe- cemos, tornada inalterável pela consagração dos séculos, foi a Sicília, no século xill, que o produziu e foi Petrarcha que o pôs triumphalmente em moda. Dois quartetos e dois ter- cetos de dez syllabas com as rimas encadeadas segundo as formulas ABBA ABBA CCD EDE ouABBA

ABBA CDE— CDE ou ainda ABAB BABA

CDC DCD tal é a organização do soneto que se

(1) V. Poesias de de Mirando, ed. de D. Carolina Michaêlis de Vasconcellos. As obras poéticas de de Miranda correm impressas nos seguintes volumes: Poesias, edição critica da sr.a D. Carolina Michaêlis de Vasconcellos, Halle, 1886 : Arcvos estudos sobre de Miranda, da mesma senhora, publicados no vol. V do Boletim da Segunda Classe da Academia das Sciencias de Lisbca, Lisboa, 1912, pag. 9-230, os quaes comprehendem uma écloga Aleixo, duas trovas, oito vilancetes, cinco cantigas e um fragmento minúsculo da tragedia perdida Cleópatra; o poema de Santa Maria Egypciaca, editado pelo sr. Th. Braga, Porto, 1913-

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fixou, na qual raramente com êxito mão profana ousou intro- duzir modificações de sua lavra. (l) Com o largo cultivo que deste género poético fez, Petrarcha não lhe fixou tal estructura, mas nelle embutiu um ideal litterario novo. Pelo soneto petrarcheano entrou na litteratura o amor, não como accessorio ou baixamente interpretado, mas expressão suprema de todas as delicadezas da alma humana, como vida interior, como sacrifício de todos os sentimentos e de toda a meditação a um modelo de belleza perfeito até ao ideal e, como ideal, inattingivel. Exhumando-o da multidão confusa de mythos, allegorias, concepções metaphysicas e materiaes perfigurações que sobre elle tinham accumulado Dante e a escholastica medieva, Petrarcha purificou o amor e revelou-o. Esse amor, assim largamente comprehendido, é todo um vasto mundo de emoções novas, toda uma fecunda seara de novos themas para a imaginação artística e para a meditação subjectiva; esse amor é mesmo uma completa concepção moral, uma interpretação da vida, á qual dava causa e obje- ctivo ; segundo elle, se vivia porque se amava e se vivia para amar, pois era o amor, com seu conteúdo inexhaurivel, que revelava ás almas a sua vida interna e as fazia vibrar. Este alto ideal não era o realizado pela Beatriz do Dante, symbolo da Belleza e da Perfeição, voz e consciência do Universo, caminho do céu, representação esthetica da construcção lógica da escholatisca, essa Beatriz feita de transcendencias subtis menos representada nas expressões do poeta que na imaginação ansiosa de a com- pletar, essa luce intelleíual e incoercível. Agora a Laura do Petrarcha é um ideal mais humano, é a mulher formosa, que

(1) Ao soneto de typo italiano oppõe-se o soneto de typo de inglês. Ha muitas noticias sobre o soneto inglês e suas características no estudo do académico J. Fernandes Costa, Camões, exemplar e modelo dos moder- nos sonetistas ingleses Elisabeth Browning e Catharina de At/iaydc, pub. no vol. ii.° do Boletim da 2." Classe da Academia.

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ardentemente se ama, é um corpo esculpturalmente bello, que irradia belleza que á natureza se communica a adoçá-la por sympathia e desejo de concordância entre as formas bellas. Tem mesmo um modelo, alvo como a neve, olhos serenos e castamente modestos, cabellos de ouro, fallar discreto em voz duma harmonia musical, movimentos lentos de graciosa suavidade. Amar esse modelo, ansiosamente lhe implorar a graça dum sorriso, o favor sem par dalguma benévola palavra, reproduzir na harmonia do verso e na expressão da linguagem poética esse modelo, desesperar de o fazer e sempre recomeçar, num continuo esforço de arte, logo seguido de desfallecimento, será o objecto deliberada- mente preferido dos poetas do quinhentismo. Nem sombra de desejo carnal transparece nos seus ardores de amor; a tal matéria fecharam-se as portas da poesia e da imaginação dos poetas quinhentistas, impregnados do puro idealismo platónico, que no amor via também uma idéa pura daquellas de que o philosopho atheniense tecia e povoava o mundo, delias fazendo a própria essência deste. O amor de Petrarcha e dos que no exercicio do soneto o seguiram é também uma idéa pura, que por si mesma actua sobre a matéria, o corpo e a natureza, e por si conduz ao soberano bem. Largos hori- zontes se estendiam á imaginação poética : reproduzir a mulher amada, esse modelo sempre imitado em esboços parciaes do grande quadro ideal que cada alma trazia em si ; inquirir dos movimentos do coração, devassar todos os escaninhos da própria alma e trazer ao relevo da arte, da expressão poética todas as descobertas dessa intuspecção assídua e attenta ; gozar o soffrimento de amar e exprimir as contradicções desse sentimento ; em meio de tentativas sem fim de desenhar o seu ideal modelo, explicar em que con- siste a sua almejada belieza e localizá-la na mais adequada paizagem, ridente e meiga, eram themas de infinitas variantes. Pelo soneto petrarcheano entra na nossa litteratura o amor, como primeiro grau na hierarchia dos themas litterarios, e

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revela-se essa disposição de espirito, extremamente artística e mais que nenhuma outra fecunda para o bem e para a belleza, que é muitas vezes a disposição de quem ama, mas' que é sempre a disposição de quem soffre. Pelo soffrimento se sente a vida, pcis é elle o mais solido ponto de referencia e de relação, por elle se adquire esse poder de sympathia, de perspicácia psychologica, de desillusão, de sensibilidade e de bondade, por elle se aprendem os verdadeiros valores do mundo. Abundante inspiração poética communicou á nossa litteratura o soneto petrarcheano, o qual com as trans- formações das idéas estheticas foi também transformando o seu fundo. A aprendizagem do soneto, que os nossos poetas quinhentistas vão fazer, será longa, laboriosa e mais duma vez frustrada peles defeitos inherentes á estruetura severa desse género poético : comprimir num exiguo quadro a inspiração iyrica, quebrando o impulso do sentimento ou a sequencia da idéa, mutilando portanto a expressão dum ou doutro ; recahir em virtude do cunho conceituoso, que a mesma brevidade do soneto lhe imprime, na insignificância ou na complicação especiosa. Este ultimo defeito tornará mais tarde o soneto pábulo predilecto do gongorismo.

Não foi o soneto amoroso, tal como Petrarcha o interpre- tara, e como o gosto da philosophia platónica o confirmara, que de Miranda cultivou; essa maneira coube a António Ferreira adoptá-la. O soneto de Miranda tem como thema pre- dominante o desengano da vida terrena, com seu scepticismo que tudo mostra ser vão, «he tudo híí vento », com o descon- solo de que após uma desillusão outra illusão vem ludibriar o sapiente bom- senso, com a ânsia de encontrar para tão fundo tédio alguma consolação. Este mal da inadaptação ao seu tempo não o curaria o amor, que tão pequeno papel parece ter desempenhado na vida do poeta, esse «desarrezoado amor» de que o próprio poeta se teme, pois bem conhece as suas fataes contradicções e cruéis cegueiras. O thema da summa desesperança inspirou-lhe o seu mais bello soneto :

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O sol he grande, caem co a calma as aves Do tempo em tal sazão que soe ser fria : Esta agoa que dJalto cae accordar-me-hia, Do sono não, mas de cuidados graves.

O coisas todas vãs, todas mudaves, Qual he o coração que em vós confia? Passando hum dia vae, passa outro dia Incertos todos mais que ao vento as naves.

Eu vi por aqui sombras e flores, Vi agoas e fontes, vi verdura, As aves vi cantar todas dJamores.

Mudo e seco he tudo, e de mistura, Também fazendo-me eu fuy dJoutras cores, E tudo o mais renova, isto he sem cura.

Envolvendo o sentimento da desesperança, tão commum na sua poesia, no conceito da caducidade da vida humana, que cumpre seu cyclo previsto e desapparece, em contraste com a natureza que indefinidamente envelhece e se renova, de Miranda conseguiu dar-lhe expressão, salientando esse contraste. Raramente, como neste soneto, conseguiu o poeta obter expressão, pois na maior parte dos seus sonetos a execução é tão defeituosa ou tão inesthetica que dessa laboriosa e inacabada execução não passou. Os conceitos são grandemente vulgares; chegou mesmo a dar ao soneto assumptos que lhe repugnavam e que nas cartas teriam cabida: como agradecer e elogiar versos, como desculpar-se das suas perplexidades artísticas. Então o soneto ainda não tinha a franca liberdade, que hoje lhe attribuem os innovadores audaciosos; era sempre uma nobre peça poética, que para themas de amor nascera ou, pelo menos, para expandir uma intensa vida interior e que sempre conservara um caracter conceituoso. Era esse conceito que, segundo mais tarde diria Boileau, deveria fechar o soneto com chave d'ouro. Assim praticou Miranda nos seus mais felizes

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sonetos, o que reproduzimos, e o da morte de Lean- dro. No gosto petrarcheano e quando nos occuparmos de António Ferreira, delinearemos em que consistia esse gosto de Miranda apenas compôs um soneto, o que começa Este retrato vosso... que exprime o desespero de pintar um modelo de suprema formosura, para o qual são escassos os recursos da sua poesia. E escassos eram de facto.

As éclogas, inspiradas na imitação de Boscan e Garcilaso e em grande parte escriptas em lingua castelhana, são mediocres exercidos de versificação em que pastores lon- gamente discorrem banalidades fúteis. merece excepcional menção a écloga Basto, em que de Miranda especialmente se desvelou porque muito a reviu e a emendou, como provam as numerosas variantes delia, conhecidas. Essa écloga tem espontaneidade de estylo, mais correcção métrica, mais variado conteúdo; é menos frouxo o seu dialogo, sobretudo na parte em que calorosamente faz o elogio da vida campesina, menos perra e tortuosa a narrativa, principal- mente nas duas fabulas nella engastadas, Gil Ratinho e Bácoro Ove lhe iro.

As Cartas, que tão repetidamente têm sido invocadas pelos panegyristas (') de de Miranda como obras primas, são o seu principal titulo de gloria. Ora essas Carias, sendo muito curiosas, estão longe de ser a obra de arte superior que se pretende, porque lhes falta um conteúdo original e profundo e uma forma perfeita que expressão a esse conteúdo de idcas, formando com elle o conjuncto harmó- nico de que nasce a belleza. Taes críticos confundem a belleza e a valia artística corn o sentimento de jubilo, que se experimenta quando após longa travessia por uma floresta

0\ Parece-nos que Pinheiro Chagas, a sr.a D. Carolina Michaelis, o sr. Thcophilo Braga e o sr. Décio Carneiro mais duma vez se excede- ram nas expressões encomiásticas que empregaram ao fazerem a apre- ciação das obras de de Miranda.

H. da L. Clássica, vol. l.° *

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de versos abstrusos e aborridos se nos deparam clareiras, em que o sentido é facilmente intelligivel pelo exprimir uma forma correntia. Então, em vez de exprimirem esse sentimento com exclamações de triumpho, saúdam esse achado com expressões da mais intensa e apaixonada admi- ração. Assim succede com de Miranda; porque as suas cartas são mais inteliigiveis e pelos sentimentos e opiniões, que declaram, mais dignas de interesse, logo se proclama a sua quintilha «admirável de vivacidade, sublime de causti- cidade sentenciosa» ('). Grande seria, por certo, o embaraço destes auctores se se lhes pedisse que nos demonstrassem essa vivacidade e essa sublimidade. A sr.a D. Carolina Michaêlis, ao apreciar a carta a D. João III, fundamenta a sua admiração em merecimentos taes como a nobreza da linguagem e a ironia aguda do moralista, méritos muito discutíveis ou pelo menos ampliados, o patriotismo e e fidalguia de caracter que tal carta revela os quaes não são méritos por que se aquilatem valores litterarios.

Essas cartas demonstram effectivamente desassombro de caracter, independência de opinião, revelam os juízos do poeta sobre a sociedade do seu tempo, opulenta de riquezas e cubiçosa de glorias, denotam uma perspicácia prophetica, uma alta sympathia social, consciência cívica como agora se usa dizer, inteiramente vasadas nas doutrinas do tempo, do absolutismo real, de que Ferreira na sua Castro também se tornaria echo. O desdém pelas dissimulações e ociosida- des cortesanescas, o elogio da rectidão de caracter, o amor da vida modesta mas tranquilla, perfigurado na fabula dos dois ratos, a confissão das suas leituras dos modernos poetas italianos e hespanhoes e dos seus gostos litterarios, a recordação da sua viagem são títulos que reclamam curiosi-

(') de Miranda e a sua obra, Décio Carneiro, Lisbca, 1895, pag. 58.

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dade e sympathia para as Cartas, mas nunca a admiração commovida que ás obras de génio ou de superior talento se deve. A carta a D. João m, dir-se-ha, foi uma advertência corajosa e sincera que utilíssima seria, se o rei a ouvisse; accrescentaremos que muito útil poderia ter sido se houvesse sido escripta em livre prosa, que permitisse a máxima explanação no adduzir das razões. A forma poética prejudicou a obra moral, que é essa carta, compromettendo o seu effeito.

Mais correntia é a forma e mais gracioso o jogo de sentimento das peças de gosto medieval, vilancicos, voltas e esparsas, porque a simplicidade de conceitos mais se coadu- nava com a imaginação pouco rica do poeta, e porque a forma, menos exigente, era ha muito longamente praticada, até mesmo pelo poeta.

A sua peça poética mais inspirada é a Ca?ição a Nossa Senhora, na qual expressa a aspiração vehemente duma alma afflicta que em seu soffrer appeila para a infinita bondade e generosa intercessão da Virgem. Em nenhuma outra sua poesia o lyrismo lhe brota tão espontâneo e tão vivo. porque essa situação afflictiva é para uma imaginação sen- sivel intensamente inspiradora, porque o modelo da canção viu de Petrarcha era um guia seguro, de Miranda soube tirar da sua lyra tarda e hesitante os accentos vibran- tes e ansiosos de quem no naufrágio angustioso duma situa- ção afflictiva á na misericórdia da Virgem abandonada- mente se confia. Na canção, que a de de Miranda imita, Petrarcha pede á Virgem que o liberte do amor de Laura, de que tão pungitivamente soffria; na sua, de Miranda confessa-se culpado e pede a mediação da Mãe de Deus para que o liberte dum captiveiro. Qual fosse esse captiveiro não apuraram os seus biographos modernos e não o refere o seu primeiro panegyrista, mas nós cremos que essa idéa do captiveiro lhe veio também imitada da canção de Petrar- cha e que no nosso poeta reformador significará um estado

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indefinido de descontentamento, a prisão no tempo presente, o desagrado de viver num ambiente a que seu animo se não adaptara.

A 'situação de Petrarcha é muito mais poética, por isso mais eloquentemente arrebatado o seu ardente implorar. Na estructura métrica a semelhança é completa.

O poema Santa Maria Egypciaca, que recentemente foi publicado, (*) como o seu próprio titulo indica, narra a vida e conversão religiosa da cortesã dissoluta de Alexan- dria que, por seu arrependimento e seu penar no deserto durante cerca de cincoenta annos, veio a ser Santa Maria Egypciaca venerada pela Igreja. existia uma narrativa agiographica com tal objecto, de auctor anonymo do sé- culo XIV, (2) mas de Miranda amplificou consideravel- mente a matéria, reconstituindo chronologicamente toda a vida da protagonista, principalmente nos seus primórdios, em casa de seus pães, entresachando a narração de muitas reflexões e conselhos moraes, e desenvolvendo os seus diá- logos com o frade Zozimas e os monólogos da santa. São em extremo surprehendentes a fluência correntia das redon- dilhas de que exclusivamente se compõe o poema e a delicada discreção com que o poeta trata pormenores me- lindrosos.

Dominando a execução métrica, pôde cuidar da expres- são, que mais duma vez conseguiu tornar vibrante de inspi- ração christã. Bem sabemos que, no conjuncto das suas obras, sempre de Miranda se mostrou mais propenso ao cultivo do metro popular que ao dos metros italianos; é, porem, tão g.ande a flexibilidade do verso deste poema, é tão sequente e lógica a sua ordenação estructural que este

(') V. A Egypciaca Santa Maria, poema de Francisco de e Miranda, pela primeira vez publicado por Theophilo Braga, Porto, 1913.

(*j Publicada pela primeira vez pelo sr. Júlio Cornu na Romania e reproduzida pelo sr. Th. Braga na sua recente edição.

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poema forma um flagrante contraste com todas as outras obras do escriptor. Certo é que, como pretende o seu editor, este poema poderia ser obra do fim da sua carreira litteraria e por isso aproveitar não da sua sabia aprendizagem poética, mas também da sua esclarecida experiência do mundo.

Mas se de Miranda para produzir a sua mais inspi- rada poesia lyrica imitou juxtalinearmente a Petrarcha, se sempre a sua musa tarda e hesitante revelou dispor de curto fôlego, não é para surprehender que tão inesperado êxito conseguisse no poema de Sa?ita Maria Egypciacaf Se a liber- dade, que a redondilha lhe proporcionava, era grande, maior era a que lhe offertava a prosa, e nella escreveu as suas comedias pouco felizes. Pouco independente no lyrismo e no theatro, veio a ser original na composição dum poema agiographico, de assumpto prefixado, que não permittia grandes liberdades artísticas. As reflexões moraes das suas muito louvadas Cartas são completamente offuscadas pelas que se acham engastadas neste poema, com a restricção de principalmente se referirem á educação dos filhos e ás nor- mas moraes das mulheres, considerações que de Miranda não fez nas comedias, onde poderiam ter opportuna cabida. Ha sobre todos um pormenor muito humano e esthetica- mente muito bello que denuncia uma constituição poética muito diversa da que pelas outras obras se trahe : a conver- são de Maria Egypciaca faz-se quando a sua alma se achava idoneamente preparada pelo desconsolo e pelas apprehen- sões de ver a sua belleza fenecer. Os primeiros indícios de fadiga ou velhice nas cortesãs deram aos romancistas do romantismo e do realismo algumas das suas mais emocio- nantes paginas, quando a ampla liberdade, quasi licença, da arte moderna fez entrar a vida das meretrizes no quadro dos themas litterarios. Pois o auctor deste velho poema, condu- zido pelo pensamento religioso e pelo seu conhecimento das realidades achou esse thema:

118 Historia da Litteratura Clássica

Mas se nos primeiros annos mundanos a perseguiam, depois que os annos corriam ella seguia aos mundanos, por que elles a não seguiam.

Como o viver de estragado estraga o corpo mortal, este fermoso animal não era tão presado por se presar de sensual .

Passa o tempo brevemente com muita velocidade e quando está mais contente que te parece que mente em ti se encherga a verdade.

Por esta o tempo passou,

mas vingou- se o tempo d'ella, que como quem acordou, olhou para si e achou que não era tão bella.

Concertando um dia o rosto e vendo que a côr perdia, triste o concerta outro dia e que quanto tem posto que no rosto lhe morria.

Sente notável tormento

na côr que perdida traz, porém cega-a Satanaz, que não tenha sentimento de quantos peccados faz.

Affligem-na mil receos,

dJesta negra côr perdida, e perdida e esquecida de seos peccados tão feos não vive nada affligida.

Histoiia da Litteratura Clássica 119

Pêra a falsa formosura

com que Deus hade offender, faz uma e outra postura, mas para se converter nenhum remédio procura ! '})

E verdadeiramente para surprehender que a imaginação hirta e secca das outras obras neste poema se tornasse tão fecunda e fiexuosa e que a forma hesitante, na expressão, nas próprias formas linguisticas, se convertesse em estylo fluente, espontâneo, perfeitamente accommodado ás necessi- dades da matéria. E' também para surprehender que o ano- nymo biographo de de Miranda, que prefaciou as suas Obras, não fizesse referencia a obra de tanta monta, pelo mé- rito e até pela extensão como a Santa Maria Egypáaca, (!) e ainda que de todas as obras fosse justamente a principal que durante séculos houvesse permanecido inédita. Estas considerações servem para indicar que será conveniente rever os títulos com que se attribue este poema a de Miranda.

O COMEDIOGRAPHO

O anno de 1527 foi talvez o anno de maior fecundidade de toda a carreira litteraria de Gil Vicente. Nesse anno, quando a corte se encontrava em Coimbra, representou elle nessa cidade a Divisa da cidade de Coimbra e a Serra da Esirella. Como nesse mesmo anno e na mesma cidade de Coimbra se diz ter sido representada a comedia Estrangeiros, de de

0) V. as quintilhas de pag. 34 a 41 da ed. cit.

(s) Leonel da Costa, (1570-1640), o erudito traductor de Vergilio e exegeta de Terêncio, publicou em Lisboa, 1627, um poema sobre o mesmo assumpto, do seguinte titulo : A conversão miraculosa da felice egypcia penitente Santa Maria, sua vida c morte, composta em redondi- lhas. Foi reeditado em 1674 e 1771. O sr. Th. Braga na sua citada edição reproduz algumas quintilhas da obra de Leonel da Costa.

120 Ri aio ria da Liiteratura Clássica

Miranda, os biographos deste escriptor attribuiram tal repre- sentação a um acintoso propósito de oppôr ao gosto do thea- tro vicentino, em voga, os modelos clássicos exemplificados no primeiro ensaio de comedia clássica entre nós tentado. Ignoramos os fundamentos cem que se assevera que tal comedia tivesse sido representada em Coimbra, em 1527, e não reconhecemos também as razões por que ella haja de ser considerada como um repto endereçado a Gil Vicente. Para nós ella será somente a primeira comedia clássica.

A comedia clássica, a que se fundava na imitação dos comediographos da antiga Grécia e da antiga Roma, surgia de súbito tão bem apetrechada, tão perfeita na sua com- posição, tão senhora dos seus meios de arte que estabelecia efectivamente um vigoroso contraste com o auto vicentino. A' indifferenciação daquelle oppunha uma discriminação de partes, tons e géneros; á sua massiça unidade oppunha uma muito nitida e lógica divisão em actos e scenas, que muito e muito reduzia os graves defeitos do auto vicentino a pre- cipitação dos acontecimentos e a forçada adjacência de lu- gares remotos, que conduziam á inverosimilhança e ac des- agrado. Emquanto a comedia neo-classica, quanto mais os escriptores fossem apprehendendo o espirito das littera- turas modelos, ia tendendo para a concentração de meios e de effeitos, formulada pela theoria das três unidades, o thea- tro vicentino iria, inversamente, aproveitar a dispersão no tempo e nos lugares, como uma nova e produetiva acquisi- ção. Gil Vicente apenas cultivara e fizera crescer e desen- volver-se a semente lançada por Juan dei Encina, mas estra- nho a influencias e a suggestões pelo exemplo de quem ante- riormente houvesse pisado o mesmo caminho, vae descobrindo coisas descobertas e postas de lado. Nessa forma disper- siva foi o seu iheatro tomado pelos seus continuadores e nessa forma para sempre se deteve, por causas em lugar próprio por nós apontadas. Ha ainda que a comedia clás- sica não vae buscar assumpto na sociedade que rodeia o seu

Historia da Litteratura Clássica 121

auctor, nem vae perscrutar desvãos sociaes ainda não devas- sados, mas com os olhos postos fora do seu tempo e dos seus lugares, como os auctores de attenções fixas na idade clássica, apenas abeira longínquas matérias, que pelo affasta- mento e por haverem fornecido assumpto aos seus mode- los, tinham ganho dignidade e idoneidade litterarias, que não desdouravam a austeridade do género. Se de creados trata, não o faz com a fiel observação, sem prejuízos, como Gil Vicente, que lhes reproduz as palavras e as opiniões e o em que se occupam ; a comedia clássica preferirá os escravos das antigas sociedades, perfeitos e argutos conversadores, amos de filhos-familias, e a gaiatice que lhes reproduzirá será a de se bandearem ás vezes com os seus pupillos contra seus pães. O cómico burlesco, que encontramos em Gil Vicente, e a comedia inaugurada por de Miranda serão inconci- liáveis; só a comedia tabernaria acceitaria o burlesco. Os nossos comediographos pretenderão rir de modo muito com- posto das mesmas situações que fizeram rir os seus muito admirados gregos e romanos. O monologo, espécie de medi- tação em voz alta, que Gil Vicente não usa, será largamente usado pelos comediographos quinhentistas, o aparte sabia- mente aproveitado, o reconhecimento inesperado das perso- nagens, a agniçãOy como diziam os críticos, será episódio obrigado.

A comedia apparecerá, portanto, executada com maior ou menor mestria, mas dispondo logo de todos os progres- sos e de excellentes modelos. Fazer desses progressos uma sensata adaptação aos tempos modernos e desses mo- delos receber apenas prudentes e fecundas inspirações, era o que cumpria aos nossos comediographos quinhentistas, mas tal empresa demandava o génio dum Molière ou a per- sistência de diligentes esforços duma longa tradição do gé- nero. Continuar o desenvolvimento do theatro vicentino, extrahir da sua própria irregularidade mixta os elementos utilizáveis e integrar-lhe novos elementos, poderia ter sido

122 Historia da Litteratura Clássica

também tarefa dos nossos quinhentistas, se não se tivessem absorvido tão exclusivamente na admiração dos clássicos e se houvessem possuído o génio de Lope de Vega e Cal- deron.-

A comedia de de Miranda, Estrangeiros, em prosa, é precedida dum prologo, parte obrigada da composição, dito por uma personificação da própria comedia, «hua pobre ve- lha estrangeira » , que nasceu na Grécia, donde passou a Roma, chegando numa e noutra parte a gozar de tanto fa- vor que pouco lhe faltou para ser Deusa. Depois, com o império romano, todas as artes com ellas a comedia se arruinaram e jazeram em esquecimento longo tempo até que o renascimento dos estudos as accordou. Em Itália princi- piava com o melhor êxito esse renascimento quando a guerra entre Francisco I e Carlos A' de momento perturbou esse despertar. A Portugal, «neste cabo de mundo», se veio acolher a comedia, em busca de sossego. É, como se vê, este prologo, uma declaração do seu papel de introductor dum género novo, que não é o auto vicentino, nem com elle se quer confundir: «Ia sois no cabo, & dizeis ora não mais, isto he auto, & desfazeis as carrancas, mas eu o que não fiz atégora, não queria fazer no cabo de meus dias, que he mu- dar o nome. »

A acção dos Estrangeiros é também estrangeira, pois em Palermo decorre totalmente. A esta cidade tinham chegado alguns foragidos á guerra entre papistas e hespanhoes dum lado e franceses do outro. Lucrécia, filha de Reynaldo, de quem não havia noticias depois da destruição de Pisa, estava na cidade confiada a Betrando e a sua mulher. Nem seus tios Guido e Petronio, nem seu próprio pae Reynaldo haviam conseguido novas delia. Apenas se sabia que quando a peste se declarara em Roma, um abbade, irmão do mercador flo- rentino, em casa de quem se achava, a trouxera a Palermo. Sem ser reconhecida, Lucrécia está. na cidade, pouco visível, pois nem appareceu em scena, e desperta vehementes amo-

Historia da Liticratura Clássica 123

res em Amente, filho de Galbano, natural de Valença de Aragão, que em Palermo dissipa os seus bens, sob a branda vigilância de seu aio Cassiano; em Briobris, soldado bebe- dor e fanfarrão, que se orgulha das suas inventadas proezas de amor e de guerra; e no velho doutor Petronio, que não sabe que é tio da sua pretendida. A chegada de Galbano, pae de Amente, de Guido, irmão de Petronio, e de Rey- naldo, pae de Lucrécia, também irmão de Petronio e Guido, provoca uma serie de reconhecimentos, que desfazem a trama de intrigas e combinações, com que cada um dos pretenden- tes procura levar a cabo o seu capricho amoroso. E a Amente que Lucrécia prefere, e é Petronio o único rival que Amente teme, porque os depositários de Lucrécia favorecem esse pretendido enlace. Quando, portanto, se sabe que a Lucrécia, que vive em Palermo, é a perdida sobrinha e afi- lhada de Petronio, fica este casamento prejudicado e em be- neficio de Amente. Cassiano, num monologo, resume as consequências da chegada inesperada de Galbano, Guido e Reynaldo e dos reconhecimentos, que determina: «Venho pasmado dos acontecimentos; andando em busca de nosso amo fuy dar com Reynaldo nosso natural, que também che- gou. A hum trouxe hum filho perdido, ao outro húa filha que perdera muito ha. Ó filhos desejados, & estes são os vossos descansos? D'outra parte tendo o Doctor concertado seu casamento, chega Reynaldo, e acha neste próprio dia, nesta hora, neste ponto, que Lucrécia, aquella que a todos nos tem dado tanto trabalho, he a sua própria filha, que an- dava buscando por mar, & por terra, e sobre tudo que he a filhada do mesmo Doctor, assi lhe poderá ser inda mais. E não se saber a tempo. O coitado que não via o dia, nem a hora, & que estava co'a boca aberta pêra papar a moça, ficará assi co'ella ás moscas. E pollo contrario meu criado Amente que lhe era posto o cutello na garganta, esperando pollo pregão, vem a fortuna melhor casamen- teira muito que Dorio, & negocealho tudo a pedir de

124 Hútoria da Litter atura Clássica

boca. » (') Facilmente perdoou Galbano ao pródigo filho e com igual facilidade se consolaram em outros amores o sol- dado Briobris e o Doutor Petronio, informa no fim o repre- sentador, figura estranha ao elenco das personagens e que significa uma adaptação por de Miranda do corypheu, que nas comedias antigas despedia o publico com desejos de boa- saúde e pedindo applausos : Vos, valete et piaudite.

Como promptamente se reconhece este primeiro ensaio de de Miranda é uma imitação demasiado fiel do theatro de Terêncio, principalmente da comedia Phormio ; demasiado fiel em se apropriar dalguns caracteres da comedia teren- riana, mas sem lhe reproduzir os méritos. A acção passa-se principalmente num meio servil, não entre escravos, pois aos escravos do século XVI inverosímil seria attribuir os papeis de intimidade e influencia que os escravos roma- nos desempenhavam muitas vezes mas entre creadagem : Alda, «moça de servir»; Dorio, casamenteiro; Devorante, «truhão»; Vidal, «servidor»; Cassiano, «ayo»; Ambrósia velha ; Briobris, soldado ; Callidio « mancebo de serviço » ; Sarjanta, « molher de serviço». Escusado será accentuar que nenhum destes servidores tem a argúcia enredadora e desenvincilhadora de difficuldades do celebre Geta, de Te- rêncio, antecessor de Scapin e Figaro. Como em Terêncio é a chegada inopinada de personagens, que se crêem longe, que modifica todo o desenvolvimento da acção. Briobris, soldado gabarola de aventuras amorosas e bellicas, é uma reproducção do Miles Gloriosus, de Plauto. E de Terêncio o abuso do processo de fazer falar algumas personagens, com- prometedoramente, deante de outras próximas de que não vêem logo a presença.

Mas é de de Miranda a lentidão de desenvolvimento, a falta de vigor das personagens, exceptuando apenas Brio-

(') V. Obras, 7.a ed., Lisboa, 1784, 2.0 vol. pag. 149.

Historia da Litter 'atura Clássica 125

bris, desenhado com mais algum relevo ; a falta de evidencia da própria intriga ; a indifferente divisão da mesma pelos obrigados cinco actos, tão injustificada do modo que decorre o entrecho, que fácil era condensá-la num acto. Como os tratados theoricos exigiam e era do próprio temperamento de de Miranda, Estrangeiros têm sua moralidade. A con- clusão geral da peça dá-no-la o próprio Cassiano, no seu citado monologo : «Que diremos ás cousas deste mundo ? híias parece que se alcanção a poder de negociação, e viva diligencia, outras por dita, & bom acerto>. O cunho pes- soal do caracter moralista de de Miranda, pessimista do presente, laudator temporis adi, expressa-se principalmente noutro monologo, que começa : «Hi tomar cuidado de filhos alheos. Onde isto de ir ter? Que se fez do acata- mento que estes moços sohião de ter a seus avós ? que não somente lhe ousavão de levantar os olhos. Agora vedes em que mundo somos » . . . (l)

A segunda comedia, dos Vilhalpandos, escripta prova- velmente em 1538, decorre em Roma e tem por principal intriga as diligencias e manejos que os pães dum filho dissi- pador fazem para o libertar da infeliz naixão que o prende a uma cortesã. Quer na mecânica interna, quer na acção e nas personagens, é ainda uma imitação nada livre do thea- tro de Plauto e Terêncio : filhos pródigos e pães avaros, cortesãs, servos e parasitas. Os melhores effeitos cómicos, as situações para elles mais adequadas são abandonadas, esquecidas porque, de olhos postos nos modelos antigos, estes comediographos do quinhentismo nada viam em volta, pois reproduzir queriam e não crear. Em compensação são repetidas abusadamente as situações mais características da comedia antiga, como por exemplo, o encontro fortuito mas muito a propósito para o effeito que o auetor tem em vista,

(x) V. Idem, pag. 77-79.

12G Historia da Litteratura Clássica

o monologo em voz alta que os interessados sempre ouvem indiscretamente. Mas estes ensaios não mantêm o interesse, nem conseguem mesmo salientar, como querem, os seus effeitos cómicos, porque são descoloridas imitações sem talento do que era uma real imitação da vida de extinctas sociedades. A natureza deste cómico, de si um pouco delicada, é ainda mais adoçada e attenuada através da imi- tação e torna-se um frio architectar de situações acreditadas como cómicas mas não soffridas como taes, architectar lento e laborioso que muito escassos resultados obtinha.

de Miranda também fez sua tentativa de theatro trágico, revelação conhecida recentemente, após a publi- cação dum manuscripto de poesias suas. (J) Sabemos hoje haver composto uma tragedia, Cleópatra, perdida, da qual restam os doze versos seguintes, no manuscripto precedidos da rubrica que também reproduzimos:

Estanca

tirada dJú"a sua Tragedia, intitulada Cleópatra que anda assi por fora.

Amor e Fortuna são

doces deoses que os antigos ambos os pintaram çégos. Ambos nam seguem rezão, ambos hos mores amjgos põem em mais desassessegos.

(') V. Novos Estudos sobre de Miranda, sr.a D. Carolina Michaêlis de Vasconcellos, publ. no Boletim da Segunda Classe da Aca- demia das Sciencias de Lisboa, vol. v, Lisboa, 1912, pag. 9-230. Sobre o vestigio da tragedia Cleópatra, vejam-se pag. 47, 73, 81, 90 e 185. O

Historia da Litteratura Clássica 127

Ambos sam sem piedade ambos se passam, sem tino, do querer ôo nam-querer. Ambos nam tratam verdade: Amor he cego e mjnjno Fortuna, cega e molher.

Perante tão pequeno vestígio, inteiramente desacompa- nhado de quaesquer informações externas, nada ha que comrnentar; regista-se a noticia e depiora-se a perda.

nome insigne da sr.a D. Carolina Michaèlis de Vasconcellos é insepará- vel da gloria de de Miranda, porque se lhe devem uma primorosa edição critica das poesias, a revelação de novos textos e o apuramento de novos factos biographicos. Também á sua influencia se devem as novas investigações de Sousa Viterbo sobre a vida e de Xavier da Cunha sobre o retrato do nosso reformador quinhentista.

CAPITULO líí

O fHEATRO CLÁSSICO A - TRAGEDIA

Na renovação litteraria que se deu nos séculos XV e xvi, o estudo e a imitação do nobre género da tragedia mereceram attenções proporcionaes ao vasto lugar que esse género occupava nas velhas litteraturas. Eschylo, Sophocles, Eu-ipides, dentre os gregos, e Séneca, dentre os romanos, foram modelos muito assiduamente estudados. O primeiro trabalho consistiu em pôr ao serviço das novas predilecções litterarias o novo meio de vulgarização, recen- temente descoberto, a imprensa. Effectivamente, das edições «príncipes» dos trágicos da antiguidade algumas se contam entre os mais preciosos incunabulos. Em 1496 foram im- pressas em Veneza quatro tragedias de Euripides, e a edição das suas peças proseguiu em 1503 e concluiu-se em 1545. O theatro de Sophocles appareceu em 1502, ainda em Veneza, e o de Eschylo em 15 18 e 1557, respectiva- mente em Veneza e Paris. As obras de .Séneca foram impressas em Ferrara, no anno de 1484, e em Paris, em 15 14. Também muito cedo começou o trabalho de os imitar e traduzir.

Foi a litteratura italiana que se antecipou a todas as litteraturas neo-iatinas, suas irmãs, com apresentar os pri- meiros exemplares de tragedias originaes; deixamos de lado

H. DA L. CLABBICA, vol. 1.» «

130 Historia, da Litteratura Clássica

as traducções declaradas. Albertino Mussato, de Pádua (1261-1329), um dos precursores do humanismo italiano, deveu boa parte do seu renome á circunstancia de haver composto um ensaio dramático intitulado Eccerinh, tentativa de tragedia ao gosto de Séneca, que apresenta ainda a particularidade muito para registar de tratar dum assumpto nacional, a sinistra figura do tyranno Ezzelino 111 ; Leon Battista Alberti, morto em 1472, escreve o seu Philodoxeus, e Leonardo Bruni Aretino (1369- 1444) a sua PoIisse?ia; Gian Giorgio Trissino ^1478-1550) conclue a sua Sofonisba em 1515, logo muito imitada, principalmente por Rucellai (1475-1525?) auctor da Rosmunda, por Sperone Speroni (1500- 1588), auctor de Canace, e por Torquato Tasso (1544-1595^ que se não desdourou de ser auctor de Torrismondo i1).

Em Hespanha, Fernando Perez de Oliva (1492-1530) deu em 1528 uma traducção da Hecuba de Euripides e da Electra de Sophocles e Juan de Malara (1525-157 1) publicou em 1548 o seu Absaloyi e a sua Loatsia. mais tarde com Bermudez (1533 r-1589), imitador do nosso António Ferreira, com Christobal de Virués (1550-16 10) que considerou o terror trágico como exhibição de carnagens em scena, com Juan de La Cueva (i55o?-i6o9?), propugnador da tragedia de assumptos nacionaes, com Lupercio Leonardo Argensola, (1562-163 1), em mais de meado do século xyi a tra- gedia entra em favor no vizinho paiz {- .

Em França o movimento de introducção do género trá- gico (s), por meio de ensaios originais, começou com Jodelle,

(1) Acerca das origens da tragedia italiana pódem-se consultar com vantagem as seguintes obras: La Tragedia, E. Bertana, Milão, 1904 e La Tragedia italiana dei Cinqucceiíto, F. Neri, Florença, 1904.

(2) V. Teatro espafiol dei Sig/o XVI, Manuel Cariete, Madrid, 1885 e Littératitre Espagnole, J. Fitzmaurice-Kelly, trad. fr., Paris; 1904.

(9) Sobre as origens da tragedia francesa, hoje muito estudada, consultem-se as seguintes obras: La Tragedie frauçaise au XVIe siccle,

Historia da Litteratura Clássica 131

(1532-1573). que Ronsard reconhecia ter sido o primeiro que «françoisement sonna la grecque tragedie». Abriu a histo- ria do género a representação da sua Clêopâtre Captive dada em 1552. Continuaram os esforços de Jodelle outros aucto- res, principalmente Jacques Grévin (1538-1570) que fez representar a sua Mort de César, em 1560; Robert Garnier (1 545-1 601), auctor de Por cie, de 1568, de Comélie, de 1574, de Marc Antoine, de 1578. Logo em 1572 teve a França, o paiz da critica litteraria, o seu tratado da tragedia, o de Jean de la Taille, Art de la Tragedie.

Em Portugal, dos trágicos foi mais conhecido Séneca, se bem que muito menos que o seu homonymo philo- sopho, pois emquanto este apparece repetidamente citado nos catálogos das livrarias manuscriptas de D. Duarte, D. Affonso V, do condestavel de Portugal, D. Manuel I, D. João III e da rainha D. Catharina, o trágico é nomeado por Gomes Eannes de Azurara, nas seguintes passagens da sua Chromca da Conquista da Guiné: «Deste labarinto falia Séneca na tragedia, onde põem a- causa de Ypollito com Fedra» (*). E algumas paginas adfante: «Oo quam poucos som, segundo diz Senneca na primeira tragedya, os que husem bem do tempo de sua vida, nem que pensem a sua brevidade» (2). Parece, pois, provável que algumas trage- dias de Séneca existissem na livraria de D. Affonso v, de que Gomes Eannes de Azurara foi bibliothecario. Deste rápido enumerar de factos antecedentes e coetâneos do alvorecer da era clássica da nossa litteratura se poderá concluir que de Miranda e os seus sequazes tinham

E. Faguet, Paris, 1883; Étude sur Robert Garnier, Bernage, Paris, 1880. Estes livros indicam muitos outros trabalhos dos primeiros críticos de França sobre esta matéria.

(') V. Edição de I. Roquete e Visconde de Santarém, Paris, pag. 12, nota.

(*) Idem, pag. 43.

132 Historia da LitUr atura Clássica

presenceado exemplos suficientemente suggestivos de imita- ções das velhas tragedias.

O auctor dos Estrangeiros e dos Vilhalpandos quiz tam- bém introduzir o género trágico e fez aquella tentativa de Cleópatra, cujo único fragmento restante reproduzimos em seu próprio lugar.

A segunda tragedia portuguesa, de que ha noticia se- gura, é a Vingança de Agamenon, por Henrique Ayres Victo- ria. Sabe-se por confissão do próprio auctor que foi con- cluida no anno de 1536; elle o diz no fim da obra, numa Exortaram do autor aos leetores :

A presente obra foi acabada

de em nossa lingoagem se traduzir

a quinze de março sem nada mentir,

na era do parto da virgem sagrada,

de mil e quinhentos sem errar nada

e trinta e seis falando verdade

no Porto, que he muy nobre cidade

e por Anrrique Ayres foy trasladada.

A primeira edição perdeu-se totalmente, e da segunda, feita em Lisboa, no anno de 1555, ha noticia de dois exem- plares, um perdido no fim do século xvin, outro em 1858, de maneira que depois desta data apenas se conheceu da obra a descripção extrínseca feita pelos bibliographos com as oito primeiras estancias de cinco versos, transcriptas por Innocencio.

Desse pequeno fragmento pouco se podia concluir com segurança acerca da tragedia de Ayres Victoria. Como não foi estudada criticamente emquanto foi conhecida, antes de aventurar qualquer hypothese critica haveria que resolver o problema bibliographico, descobrir o paradeiro dos últimos exemplares da segunda edição. Todavia alguns auctores ti- nham chegado a affoitar hypotheses criticas: o sr. Men-

Historia da Litteratura Clássica 13>3

des dos Remédios (') considerava a perdida obra de Ayres de Victoria, como traducção de alguma peça de Eschylo, e o sr. Esteves Pereira (2) como imitação da imitação caste- lhana, La Venganza de Agamcnon, de Perez de Oliva, publi- cada em 1528.

Foi o segundo auctor quem teve a boa fortuna de ver documentadamente confirmado o 'seu juízo. Havendo noticia da existência dum exemplar da edição de 1555, em poder do Conde de Samodães, o sr. Esteves Pereira obteve per- missão para o reimprimir, o que effectivamente realizou na collecção Monumentos da Litteratura Dramática Portuguesa, que por sua iniciativa a Academia das Sciencias vem publi- cando (*)<

Examinando e comparando o texto de Victoria com o de La Venganza de Agamenon, de Fernando Perez Oliva, tra- ducção livre, em prosa, da Electra de Sophocles, o sr. Este- ves Pereira conjectura com plena verosimilhança que a obra portugueza era traducção também livre, mas em verso, da traducção castelhana do texto grego. O metro adoptado é popular, a redondilha maior em quintilhas, mas o estylo mantem-se grave e austero como convinha á acção e ás per- sonagens.

Traducção directa ou traducção de traducção, como se afigura mais crivei, a tragedia de Victoria é um dos passos primordiaes do hellenismo litterario em Portugal.

(*) V. A Castro de António Ferreira conforme a edição de ijç8, Coimbra, 1915.

(2) V. A Vingança de Agamcnon, Tragedia de Anrrique Ayres Vi- ctoria, nota de historia lideraria, publicada no vol. x do Boletim da Se- gunda Classe da Academia das Sciencias de Lisboa, Lisboa, 1916, pag. 226-237.

í3) V. A Vingança de Agamenon Tragedia de Anrrique Ayres Victoria, conforme a impressão de ijjj, publicada por ordem da Acade- mia das Sciencias de Lisboa por F rancisco Maria Esteves Pereira, Lisboa, 1918, 118 pags.

1'34 Historia da Litter -atura Clássica

António Ferreira (') nos haveria de legar a nossa única tragedia do século xvi, notável por essa circunstancia, pela sua belleza artística e pela particularidade de tratar já, em pleno inicio do classicismo, um assumpto de historia pátria. É em haver tomado um assumpto de historia pátria para a sua tragedia que os historiadores da nossa litteratura cifram a originalidade de António Ferreira; nós permitimo-nos alargar um pouco mais esse mérito da originalidade e redu- zir apreciavelmente outro, que com maior insistência se lhe attribue, o da belleza perfeita da execução.

Quando os poetas quinhentistas, por toda a parte, onde o conhecimento e gosto dos trágicos gregos e de Séneca accordavam, começaram as suas imitações, não se aperce- beram de que para esse género, nobre entre os mais nobres, não bastaria uma imitação fiel e inspirada dos bons modelos, segundo os caracteres geraes que haviam delles extrahido Aristóteles na sua Poética e Horácio na sua Epistola aos Pisões. Não. A tragedia era um género official; á medida que fora perdendo o seu cunho litúrgico e se fora depurando de todos os elementos anti- trágicos diremos quaes fora se tornando o género mais nobre da litteratura grega, pela grandeza da matéria e pela sua funeção civica. Os trá- gicos gregos não escreveram para ser lidos. De olhos postos nas lendas homéricas, fonte e alimento da matéria trágica por excellencia, animados pela emulação de vencer compe- tidores, escreveram para que as suas peças fossem represen- tadas perante uma multidão de dezenas de milhares de espectadores, em amplos theatros ao ar livre, cujos senti-

(') António Ferreira nasceu em Lisboa, em 1528, e doutorou-se na Universidade de Coimbra em direito civil, e alli foi também professor. Morreu de peste em 1569, deixando inéditas todas as suas obras, em 1598 editadas por seu filho Miguel Leite Ferreira, sob o titulo de Poemas Lusitanos, mas ainda sem comprender as comedias, que corriam juntas com as de de Miranda.

Hii LitteratUra Clássica 135

mentos ora preciso não oífer.der, antes lisonjear c manter. Nunca houve tal alliança, tão estreita e tão fecunda, entre o individual, livremente creador, e a arte official, com suas coacções moraes e legaes! Para que as figuras dos actores se não apoucassem perante tão vasta multidão, era necessário alteá-las de modo artificial, calçando-lhes altos cothurnos; para que a expressão physionomica não deixasse de ser percebida ao longe, adoptava-se o uso das mascaras, que accentuavam, exaggeravam mesmo essa expressão da physionomia. E para que a voz se não perdesse no espaço e chegasse aos mais longínquos espectadores, as mascaras tinham a bocca desmesuradamente aberta e com uma dispo- sição especial para fazer reboar a voz. Feita em taes condi- ções a representação material das tragedias, comprehende-se que cunhos profundos imprimiria a esse género. E eram elles principalmente: ser assumpto obrigado a matéria dos poemas homéricos, sem variantes nem innovações, sempre os mesmos deuses, os mesmos heroes e os mesmos episó- dios fataes ; portanto a prompta exhaustão dessa matéria trágica, única officialmente reconhecida, desde que a esgo- taram os génios de Eschylo, F.ophocles e Euripides, que ainda se repetiram ; a psychologia de generalidades, cara- cteres extremos, expressões physionomicas extremas, aquelles estados de alma e modos de ser, que todos ao longe comprehendiam e sentiam, as expressões que as mascaras, por todos vistas, podiam traduzir. A arte mo- derna, impregnada de espirito scientifico, engeitará a in- verosimilhança e quanto respire um ar sobre-humano; a tragedia antiga deliberadamente organizava um mundo su- periormente inverosímil, acima das contingências humanas. Ora os poetas do humanismo, trabalhando no recolhi- mento dos seus gabinetes, não iam compor tragedias por solicitação publica e com o destino complexo e previsto que aguardava uma tetraiogia de Sopholes; iam fazer uma ten- tativa cheia de incertezas para restaurar um género morto,

136 Historia da Ldtteratura Clássica

cuja recordação fora alimentada por Séneca, cuja obra era uma extrema decadência da tragedia grega. E por melhor que fosse o êxito que esses ensaios dos imitadores da renascença alcançassem, nunca seria outro além da lei- tura por alguns amigos das boas letras, quando muito a representação por esses mesmos eruditos em sua casa. A vida larga do grande publico ao ar livre, o auctor e o pu- blico vibrando em unisono, o cothurno, a mascara, a inve- rosimilhança ideal e todas as suas consequências haviam desapparecido, e os novos trágicos, ao abalançarem-se ao seu emprehendimento de restaurar a tragedia, haviam de introduzir na sua estructura e no seu espirito modificações taes que por ellas se abria uma nova phase da historia desse género. A outra parte, fora do mundo homérico, havia que ir buscar a matéria trágica; desmascarando e descalçando os actores, cobrindo a representação com o tecto constran- gedor duma breve sala, frequentada dalguns selectos espe- ctadores, havia que humanizar as personagens e a acção, e podia-se dar expressão a estados intermédios da alma, quantos podiam perceber esses selectos espectadores, quan- tos podiam traduzir no rosto sem mascara os actores. O coro, simultaneamente vestígio da origem religiosa e ele- mento de lyrismo, tenderia a desapparecer para que a acção decorresse lógica e natural, espontaneamente tendendo para o seu desfecho trágico, sem a intrusa interferência dos com- mentarios e aclarações dos coristas. Mesmo para que a tragedia fosse cada vez mais trágica era preciso que fosse cada vez menos lyrica, sem deixar de ser essencialmente dramática. Por lyrismo nós entendemos expansão subjectiva; por drama nós entendemos acção objectiva, susceptível de representação scenica. O trágico é uma categoria superior do dramático, mais pura e mais nobre.

A differenciação, que havia a fazer no espirito e na estru- ctura da tragedia moderna, mal a comprehenderam os aueto- res que nesse género se ensaiaram nos séculos XV e xvi.

Historia da Litteratura Clássica 187

Por intelligentemente a haver comprehendido e sabiamente a haver praticado, deve a litteratura francesa o possuir em si a segunda grande epocha da tragedia. E porque no século XVI, o nosso António Ferreira alguma coisa comprehendeu e praticou dessa differenciação é que nós dissemos que devíamos alargar o mérito de originalidade á Castro attri- buido ; como também por não haver purificado a tragedia de alguns elementos anti-tragicos, nós limitamos o mérito da belleza esthetica.

António Ferreira, tomando para assumpto da sua trage- dia a paixão de Ignez e D. Pedro l, ia buscar a matéria trágica a um domínio paixão amorosa que viria a fazer toda a originalidade e belleza da moderna tragedia francesa. E que Ferreira muito bem presentira qual o ponto de vista por que devia considerar essa paixão, rnostra-o o haver tomado da longa duração desse amor, apenas o desfecho desgraçado, a brusca reviravolta da fortuna, como recom- mendavam os theoricos. Nada havia de trágico no decurso feliz desses molles amores, quando felizes. Seria effectiva- mente a paixão amorosa que forneceria a matéria trágica a quantos não quizessem ir de novo buscá-la ao mundo homé- rico— o qual dera quanto podia dar á tragedia grega. Mas havia que saber tomar essa paixão amorosa, escolher o que ella contem de trágico, sem o confundir com o muito de romanesco e heróico, que pôde comportar. Brunetière, num estudo breve, mas notável pela argúcia ('), apontou o meio por que os auctores trágicos tornaram a paixão amo- rosa em matéria trágica: reparando na universalidade da paixão amorosa, que a todos attinge e que por isso poderia dirigir-se a um largo publico, como o das festas Dyonisia- cas ; na sua particularidade ou seja no modo particular por

(!) V. L' Evolution d'im genro - La Tragedie. 1901. Incluído na 7.» serie dos Études Critiques.

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que cada um a experimenta; na sua fatalidade caprichosa; na sua condição contradictória de existência doce e sempre inquieta. Trazer a um relevo de primeiro plano, eloquente e emocional, estas características da paixão amorosa e, em episódios históricos e lendários, delia fazer depender grandes interesses e grandes causas, e eis achada nova matéria trá- gica, onde não faltariam o horror e a piedade, a violência dos sentimentos, a magestade digna e nobre das pessoas, a fatalidade, a lucta e a lição histórica de certo género de historia, que os antigos chamavam «a mestra da vida>.

Como se vê, disto alguma coisa fez o nosso António Ferreira. Poderemos, pois, tirar a conclusão de que Ferreira teve mérito de originalidade, não por ter extrahido da sua historia pátria o thema da sua tragedia o que Mussato fizera mas sim por ter tomado para ella a paixão vibrante e desgraçada de Ignez de Castro. Se o nome pouco conhe-. eido de Mussato se não pôde apagar da historia geral da tragedia, muito menos é legitimo esquecer o de Ferreira, que entre tantas e tão infelizes tentativas de restauração da tragedia francesa soube apontar o domínio de que se ali- mentaria a futura tragedia francesa a qual chegou a essa conclusão após uma longa e lenta historia, desde Jodelle e Hardy. Este mérito não é pequeno.

Expliquemos agora por que julgamos, em contrario, que deve ser restringido o conceito de summa belleza que da Castro commummente se faz. Os nossos historiadores littera- rios chamam-lhe mesmo obra prima.

O coro tem um grande papel na Castro : intervém no primeiro acto estimulando o secretario do infante D. Pedro a proseguir nos seus conselhos; ainda no mesmo acto inter- vém a commentar a cegueira amorosa do infante ; e no fim do mesmo desempenha a sua fuucção de commentario e explicação da fatalidade do amor; no fim do segundo acto do mesmo modo ; no terceiro trava dialogo com Ignez e a ama, a quem presagia cruéis novas, mistura- se, portanto,

Historia da Litter -atura Clássica 139

á acção ; no fim deste desempenha o seu legitimo papel : no quarto acto dialoga com Ignez e depois com D. Affonso iv ; no fim outra vez desempenha o seu legitimo papel ; no quinto acto desapparece. A regra clássica era que os cinco actos da tragedia deviam ser separados por quatro cantos do coro, dos quacs o primeiro era quasi sempre uma canção lyrica genérica e estranha ao entrecho ; nos seguintes é que tinham cabimento os commentarios á acção. A parsistencia do coro era um obstáculo ao progresso da tragedia, porque representava um elemento de subjectivismo, o lyrismo do auctor, e maior obstáculo seria intervindo na acção, appa- recendo como causa externa que influe no movimento lógico da intriga; por um lado imprime-lhe lyrismo, por outro retira á tragedia aquelle caracter de necessidade, de exacta- mente bem determinada que lhe é próprio e que conduziria á famosa theoria das três unidades.

A lucta, principio indispensável no sentimento trágico, soube muito bem aproveitá-la António Ferreira ; ella consiste no antagonismo entre a paixão de Ignez e D. Pedro e os altos interesses do estado ; ella trava-se principalmente no animo de Affonso iv. E se se attender bem neste facto quaes os elementos da lucta e em que espirito é que a lucta se trava teremos muito bem explicada a falta que se assaca tão frequentemente a António Ferreira: de não haver feito encontrarem-se em scena Ignez e D. Pedro. Nós expli- caremos que esse encontro não traria belleza, nem emoção trágica á peça, apenas lhe acrescentaria um episodio dispen- sável. Os dois amantes não estavam em opposição de sen- timentos, nenhuma lucta trágica os poria em conflicto ; vê- los-hiamos cahir nos braços um do outro. Mais tarde Cor- neille faria encontrar-se Cid com Chiména porque era entre elles a lucta ; Cid era o namorado de Chiména, mas era tam- bém o assassino de seu pai, e Chiména, ao mesmo tempo que loucamente o amava, pertinazmente pedia vingança desse assassínio. Na Castro os dois amantes estão de accordo,

140 Historia da Litter atura Clássica

perdidamente amorosos como são sabemo-lo bem : era necessário que ambos apparecessem em scena, Ignez para revelar a sua alma apaixonada e os seus angustiosos receios e previsões, D. Pedro para nos mostrar a sua obstinação em pospor os interesses do estado ao do seu coração. Isso faz Ferreira. Mas havia que os separar e dar o infante por ausente, porque na ausência estaria Ignez indefesa e po- deria consumar-se o assassínio. É no animo do rei que a lucta se trava ; é por isso que com elle se encontra Ignez a exacerbar essa lucta. Não se pôde dizer que António Fer- reira não houvesse sabido tomar o lado trágico do thema.

Discretamente, Ferreira não nos faz assistir ao assassí- nio de Ignez; sabemos no fim do quarto acto que se vae perpetrar, e sabêmo-lo perpetrado no 5.0 acto, quando o mensageiro leva essa noticia ao infante. Esta delicadeza do gosto de Ferreira não é para deixar de mencionar, visto que então em Itália os continuadores de Trissino, principal- mente Rucellai, Speroni e Giraldi, haviam posto em moda a tragedia de carnificinas, mostradas em scena. Depois, com o tempo, dividir- se-hiam as opiniões: os partidários do der- ramamento do sangue em scena e os partidários do modo de proceder, entre nós inaugurado por Ferreira (').

Na lucta, apresentada na Castro, dissemos nós que era novo o elemento paixão amorosa; accrescentaremos agora que novo é também e muito do tempo de Ferreira, o outro, razão de estado. Nas allegações dos conselheiros do rei e na

C1) Este problema do derramamento do sangue em scena foi pos- teriormente discutido em Portugal por Francisco José Freire na sua Arte Poética, Lisboa, 1748, e por Corrêa Garção, que em sessão da Arcá- dia Lusitana leu uma dissertação a tal respeito. O primeiro, como eru- dito, acatava as duas praticas fazer presencear mortes e as narrar de ambas as quaes conhecia exemplos; o segundo, menos erudito, mas de mais delicado gosto, opinava pela narração. V. a este respeito a nossa Historia da Critica Litter ária em Portugal, Lisboa, 1916, 2.a ed., pags. 76, 88 e 91.

Historia da Litteratura Clássica 141

final deliberação deste ha sempre presente o espirito da politica machiavelica, a tyrannia esclarecida que de todos os meios usa, quando a superior razão os justifica, a omnipo- tência e sciencia certa dos reis, repetidamente expressas :

CONSELHEIROS

O bem commum, Senhor, tem taes larguezas Com que justifica obras duvidosas.

Deos o faça, Cuja vontade he ley, e a minha não

Essa licença têm também os Reys, Que em seu lugar estão.

CONSELHEIROS

Inda que houvesse excessos, todavia Mais males atalharam do que deram.

REY

Mal parece Matar húa innocente.

PACHECO

Não he mal : Que a causa o justifica.

Os sentimentos pessoaes de António Ferreira trahiram- se na disposição moral que attribue a D. Affonso iv, can- sado da sua realeza, desilludido e sedento da tranquilla e

142 Historia da Litteralura Clássica

descuidada humildade dos que não têm a seu cargo reger os destinos dos homens. E' o gosto da áurea mediocritas, nas suas hi iças confessado por António Ferreira, poeta horacia- no e. discípulo do estóico solitário da Quinta da Tapada, de de Miranda.

Na Castro apparece um artificio litterario, ao depois muito usado no theatro trágico, o sonho, e não no theatro trágico. Devemos esclarecer que o sonho terrífico, que Ignez de Castro narra á ama, como sempre que os trágicos usaram desse artificio, tinha por fim augmentar o effeito de terror, annunciar através duma consciência desassossegada a fatali- dade próxima a desencadear-se. Veremos, depois, no realis- mo, o sonho completamente livre da acção ser apenas ele- mento psychologico a documentar uma consciência a si mes- ma entregue, durante o somno, sem as coacções que sobre ella desperta ordinariamente se exercem (l).

(!) Como a Castro foi publicada em 1587 e como anteriormente, em 1577, appareceu a Alse lastimosa do dominicano gallego Jeronymo Bermudez, traducção livre da peça portuguesa, formou-se a opinião de ser a obra hespanhola a original. Sobre este assumpto pleitearam vários auetores portugueses e hespanhoes, sendo hoje unanimemente acceita a certeza da auetoria portuguesa. V. principalmente Martinez de la Rosa, Arte Poética, 1827 ; as muitas obras que tratam das origens do theatro hespanhol, indicadas na Bibliographie de VHistoire de la Litlér ature Es- pagnole, do sr. Fitzmaurice-Kelly, Paris, ed. Colin ; Costa e Silva, En- saio bio gr aphico- critico ; Visconde de Castilho, Livraria Clássica; Th. Braga, Historia do Theatro; e o prologo do sr. Mendes dos Remédios á sua edição da Castro. É um episodio curioso deste pleito o estranho modo por que a tal respeito se pronunciou o critico hespanhol, Menéndez y Pelayo : «Resueltamente no puede afirmarse nada. Por lo demás, no tengo inconveniente en dejar a nuestros vecinos, tan pobres de teatro, la pieza objeto de esta rencilla provincial. Una tragedia clásica más o menos, sin acción ni movimiento apenas, bien escrita, aunque falta de color, y adornada de lindos coros, en nada acrece ni amengua el tesoro de la literatura dramática castellana, con cuyos despojos hubo siempre bastante para enriquecer a extrahas gentes. No vale a pena reriir por

Historia da Litteratura Clássica 143

E nada mais nos apresenta no género trágico a nossa litteratura quinhentista. A razão ó obvia. Portugal não offe- recia a idónea atmosphera de sentimento trágico para a crea- ção de obras desse género. Houvera matéria trágica no rei- nado de D. João II, quando este monarcha e a nobreza andaram empenhados numa iucta de extermínio, mas depois com D. Manuel I e D. João III a vida da metrópole, o meio da corte estavelmente se amodorrou numa serena quietação de luxo e conforto. Vasta matéria offerecia decerto á ideali- zação litteraria a dissolução das famílias, os soffrimentos indizíveis de que a Inquisição, estabelecida em 1547, foi portadora : os receios angustiosos, as devassas, as prisões, os soffrimentos pb/ysicos e moraes dos interrogatórios, a dispersão das familias, a morte, a miséria e a forçada per- versão dos caracteres. Mas este theor de vida, eminente- mente trágico, ninguém ousou expressá-lo em arte, nem se- ria possível tê-lo feito de modo fructifero, tantas e tão severas eram as defezas e cautellas do tribunal inquisitorial, obediente instrumento da igreja e do rei. A vida guerreira dos domínios ultramarinos e as tradições das viagens de descoberta anteriormente realizadas creavam um intenso espirito heróico, mais tarde soberanamente expresso nos Lusíadas. Os naufrágios e soffrimentos atrozes das armadas determinaram o apparecimento dum género próprio, as nar- rativas dos naufrágios, onde o sentimento trágico se expressa

tan poço. De todas suertes, la Castro es espariola, y no és cuestión de vida ó muerte el que fuese un galego ó un português su primitivo autor». V. Horácio en Espana, Madrid, 1885, 2.0 vol., pag. 303-4. O eminente critico esqueceu-se de emendar esta passagem tão contraria ao seu me- thodo ordinário.

Ainda a propósito da Castro se discute o conhecimento directo que dos trágicos gregos teria tido Ferreira. É partidário da opinião da imita- ção directa, e não de Séneca, o sr. Prof. Adolpho Coelho que a expôs no artigo A Castro, de Ferreira, na revista Theatralia, n.cs 1 e 2, Lis- boa, 1913. Infelizmente não se concluiu a publicação desse artigo.

144 Historia da Liitcr atura Clássica

por vezes com a intensidade possível com tão ingénuos meios de arte.

B - COMEDIA

António Ferreira, o auctor innovador da nossa primeira tragedia regular, Castro, deixou-nos também duas comedias, que se contam entre os primeiros ensaios de theatro cómico no gosto clássico. São essas comedias Bruto e Cioso, compos- tas em Coimbra, quando Ferreira frequentava os estudos universitários. Das duas comedias, a primeira tem pro- logo, mas como peça estranha á obra, uma espécie de pre- facio do auctor. Nesse prefacio, allude Ferreira a alguns seus predecessores nacionaes no cultivo desse género, refe- rindo-se sem duvida a de Miranda, também auctor dos Estrangeiros e dos Vilhalpandos, e particularidade curiosa num espirito tão erudito cita o nome de Livio Andronico, esquecendo Terêncio e Plauto, para falar dos latinos : «E pola qual (a grande fama da comedia antiga) aquelle Livio Andronico Romam antiquíssimo, alcançou famoso nome pêra sempre; não falo nos que o seguiram desde en- tão até agora em Itália, pois em nossos dias vemos neste Reyno a honra, e o louvor de quem novamente a trouxe a elle, com tanta differença de todos os Antigos, quanta he a dos mesmos tempos. Porque quem negará, que na pureza de sua lingoagem, na arte da composição, naquelle estilo tão cómico, no decoro das pessoas, na invenção, na gravi- dade, na graça, no artificio, não possa triumphar de to- dos?» (') Tem esta comedia por assumpto um thema tão repetido nos comedicgraphos clássicos e nos seus imitadores da Renascença que bem se pode considerar um thema cyclico, de escola : as assiduidades de vários pretendentes

[!) V. BristOj pag. 2, ed. de 1771, 2.0 vol.

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em voka da mesma donzella, cada um dos quaes envida os seus melhores esforços e utiliza o melhor que pôde a media- ção de terceiros. O mediador geralmente aproveitado nesta comedia é Bristo, alcoviteiro sem escrúpulos, que vive de embair os namorados e os libidinosos, eniretendo-os com fal- sas promessas e generosamente se fazendo pagar. Na scena 2.a do 2.° acto, num monologo, Bristo faz como que o seu perfil e expõe os meios de acção da sua arte, como opera e como lucra. Todavia Bristo não é uma personagem tão sem escrúpulos que se negue a auxiliar os honestos amores de Camillia, a donzella por todos pretendida, e Leonardo, o pre- ferido dentre esses pretendentes. A fanfarronada prepotente, domjoanesca e bellica do Miles Ghriosus acha-se em Bristo distribuída por duas personagens, Annibal, cavalleiro de Rhodes, e Montalvão, o primeiro dos quaes inteiramente se entrega ás machinações de Bristo. A comedia, muito á ma- neira de Terêncio, termina pela chegada inesperada de Pin- daro e Arnclío, respectivamente pae e irmão de Camillia, que havia dois anhos eram julgados como perdidos por «essa índia, que he peor que as covas de Salamanca, por . n ;~cão sete» (J).

Pindaro e Arnolfo chegam ricos e prósperos, e patroci- nam o casamento de Camillia com Arnaldo. Ainda outros casamentos se realizam e põem feliz remate á serie muito confusa de machinações e habilidades de Bristo. Também á maneira clássica, ha na peça um filho dissipador e enamo- rado, que o pae colérico persegue. Em Ferreira o dialogo é mais natural, mais humanas as reflexões, mais logicamente encadeadas e mais coherentes com os papeis das. persona- gens. Dizemos assim papeis das personagens e não ca- racteres, porque essas comedias não agitam nem põem em lueta caracteres; todos os figurantes se animam exclusiva- mente da vaga psychologia de Terêncio, recortadas como

(>) Pag. 21, ed. cií. V L. Clássica, vol. ).•

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são do seu theatro. Um processo muito usado por Terêncio é abusivamente praticado por Ferreira, e também por de Miranda: todas as personagens, a quem outra quer fallar, logo apparecem inesperadamente e vem fallando em voz alta, sem notarem que são ouvidas, a dizer precisamente o que as outras querem saber. A acção decorre assim como uma serie de episódios ligados por outra serie de coincidências e acasos, os quac-s acasos encontros, chegadas imprevistas e monólogos que ouvidos interessados e indiscretos escutam tcdos se realizam no praça publica. Para esta praça abrem as portas das casas dos figurantes.

A comedia do Cioso narra o caso dum marido extrema- mente ciumento, que do mesmo passo que encerra a esposa em casa, sob a mais severa vigilância, para si reserva plena liberdade para correr em busca de novos prazeres d'amôr, em casa duma cortesã. Essa severidade determina da parte da esposa uma represália. Disso informado parcialmente, o marido ciumento, receoso das ultimas consequências do seu proceder, põe de lado taes clausuras e passa a ser um mando razoável. Tem o desenvolvimento desta acção, prin- cipio, meio e fim, tem lógica, pois se visa a um effeito, des- crevem-se as causas que influem até á realização desse fimJ( mas não tem brilho de execução e o desenvolvimento da acção passa-se no abstracto espaço, reduzido a uma serie de acontecimentos, nunca elaborados em phencmenos mcraes, em acções e reacções de caracteres.

Jorge Ferreira de Vasconcellos (*) legou-nos três come- dias: Euphrosina, que se julga composta por 1537, mas que foi publicada em 1561; Ulyssipo, de 1547; e Aulegraphia,

(1) Ignora-se quasi por completo a biographia de Jorge Ferreira de Vasconcellos. O pouco que delia se conhece está compendiado no

Historia da Litter atura Clássica 147

que parece ter sido escripta em 1554, mas que"só foi im- pressa em 1619, por diligencias de D. António de Noronha, genro do escriptor.

Nas comedias de Jorge Ferreira, bem como nas de de Miranda e António Ferreira e ainda nos autos de Gil Vi- cente, é muito frequente a presença duma proxeneta de illi- citos amores, como personagem quasi obrigada. Em Gil Vi- cente queremos crer que uma causa desse pormenor de com- posição seja a observação dos costumes do seu tempo, mas outra causa haverá também influído quer em Gil Vicente, quer nos outros comediographos de gosto clássico, nestes com mais directa suggestão : a imitação da Celestina, de Fer- nando de Rojas, publicada em 1499. A Euphrosina de Jorge Ferreira é disso um documento e dos mais antigos, de Miranda e Gil Vicente dérám representações de suas peças em Coimbra, onde também Jorge Ferreira redigiu a sua Eu- phrosina, em Coimbra, no dizer do próprio escriptor, «coroa destes Reynos, á sombra dos verdes sinceiraes do Mon- dego. ■»

As comedias de Jorge Ferreira foram" publicadas sem nome de auctor, mas a attribuição delias a este escriptor é

tomo 3.0 de Origenes de la Novela, de Menéndez y Pelayo, Madrid, 1910, pags. ccxxvm-ccxLiii e na Introducção da edição académica da Comedia Euphrosina, do sr. Aubrey Bell, Lisboa, 1913 O critico hespanhol apro- veitou informes, que lhe ministrou a sr.a D. Carolina Michaelis, como declara.

Attribuem-se a Jorge Ferreira três naturalidades : Lisboa, segundo uma nota manuscripta lançada por mão anonyma sobre um exemplar da Euphrosina, na edição de 1561, e revelada por J. J. da Costa e Sá; Coimbra, que mostrou bem conhecer, ou Montemór-o- Velho, ambas apontadas por Barbosa Machado. Fez parte da casa do infante D. Duarte e, por morte deste, da do rei D. João 111. Foi escrivão do thesouro, como consta dum documento sobre a sua substituição por Luiz Vicente, em 1563. Barbosa Machado regista que (Ora escrivão da casa da índia. Morreu em 1585.

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de plena segurança, segundo testemunhos de escriptores coe- vos e posteriores. A Euphrosina foi reproduzida por Rodri- drigues Lobo, em 1616, mas com o texto emendado e inter- pretado arbitrariamente; em 1787, por diligencias de Bento José de Sousa Farinha, mas sem progresso sensível quanto á melhoria do texto; e em 19 19 pelo sr. Aubrey Bell, con- forme a edição de 1561, sem deixar de em passos numero- sos estabelecer a sua lição própria. O sr. Aubrey Bell acre- dita na existência duma edição mais antiga, de 1554, por inferências.

Os primeiros trabalhos que ha a fazer, como bases essen- ciaes do estudo da comedia de Ferreira, são tornar os textos accessiveis por meio de edições de confiança e depois, sobre ellas, diligenciar restituir o texto e interpretá-lo. A Euphro* sina é uma das obras mais obscuras da nossa litteratura, tanto por deliberado propósito do auctor como por desfigura- ção do texto. A edição do sr. Aubrey Bell é um passo impor- tante nesse caminho, embora não possam ser sanccionadas todas as suas interpretações. Sobre ella fez um estudo tex- tual o sr. Dr. José Maria Rodrigues, o fundador entre nós da critica de fontes. Quando os seus commentarios e emen- das se imprimam, tornarse-ha mais intelligivei esta come- dia. Comedia lhe chama o seu auctor e assim foi designada pelos seus fervorosos leitores, mas ella é na verdade uma novella dialogada, para ser lida, pacientemente, saborean- do-se na analyse e na meditação as suas longas divagações moraes, os seus arrazoados, ainda que essa leitura fosse para um publico, como pode inferir-se do prologo de João de Es- pera em Deus. Mas uma leitura publica é coisa muito di- versa duma representação scenica. Para ser lida também parece haver sido ; composta a Celestina, directo modelo de Jorge Ferreira, « o novo^autor em nova invençam ».

A Euphrosina narra os amores de dois mancebos presos dos encantos duma jovcn nobre, de cujo nome se intitulou a comedia. Zelotipo e Cariofilo oppõem se em contraste

Historia da Litteralura Clássica 149

vivíssimo pela sua concepção do amor, absorvente, submisso e cavalheiresco no primeiro; leviano, voluptuoso e gabarola até á libertinagem no segundo. Quando este exprime as suas opiniões e processos de amor, com o mais cru cynismo, Me- néndez y Pelayo nelle um verdadeiro antecessor de D. Juan. A medianeira dos amores deshonestos é Filtria, correspon- dente á Celestina, e a dos amores castos é Silvia de Sousa, correspondente á Poncia, da Segunda Celestina.

Kscripta em prosa, dividida em cinco actos e em scenas, de grande numero de personages, mas de que raro se jun- tam mais de três em cada scena, imitada da Celestina, com matéria local e popular, como são os episódios da vida coimbrã e a farta ostentação de provérbios e annexins ('), com- pletos uns, apenas enunciados outros, a Euphrosina não é bem para ser considerada uma comedia do typo clássico, como das de de Miranda e Ferreira, mas antes como uma novella dialogada do typo castelhano (2).

Á Euphrosina, «invenção nova nesta terra >, seguiu-se Ulyssipo onde se encontram as peripécias cccorridas num lar, cujo chefe, Ulyssipo, apesar de ser um libidinoso dissi- pador, exerce sobre suas duas filhas, Tenoluia e Gliceria, e sobre seu filho Hippolyto uma severa tyrannia. Todavia esses rigores não impedem que o filho se a excessos e aventuras e que as filhas casem de modo muito contrario á vontade desse severo mas pouco auctorizado pae.

Tem a peça um prologo, em que Mercúrio lembra a estimação que os antigos davam á comedia, sua origem, o argumento da peça que introduz e o seu objectivo: «com

(') V. o appendice III, Lista dos adágios, na edição do sr. Aubrey Bell e Sr. Cândido de Figueiredo, A « Euphrosina » c a sabedoria das nações, na Revista de Língua Portuguesa, n.° 3, Rio de Janeiro, 1920.

(8j Fernando de Ballesteros y Saabedra fez uma traducçâo caste- lhana, que se publicou em Madrid, 1631. Foi reproduzida no tomo 3.0 de Origenes de Ia novela, de Menéndez y Pelayo, Madrid, 1910, pags. 61-156.

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seu exemplo anisar ao pouo de seus vicies, e incitar ás virtudes.» Os cinco actos são muito prolixamente preenchi- dos pelo decurso dos episódios lentos 6 complicados, mas necessários para demonstrarem a these moral da obra, que Deus escreve direito por linhas tortas, pois com as estou- vanices de Hippolyto e com os casamentos das filhas, puniu a Ulyssipo. Das personagens, é a alcoviteira Macarena a melhor desenhada, sem duvida porque a sua moral e o seu caracter constituíam o que nós chamamos lugarescom- muns de escola. Estes comediographos do século xvi usavam muito fazer que essas mesmas personagens confessassem o seu cynismo. Macarena não foge a essa pratica. um indi- cio do theor dessa confissão de processos a seguinte norma a respeito de promessas: «Não sei disso nada, mas dir- vos-ey a minha regra nessa parte. As promessas não devem cumprirse quando são danosas áquelle a que forão pro- mettidas; nem também quando danão mais a quem as pro- mette do que aproveitarão a quem se prometterão. E por tanto cumpro sempre o que digo se me convém ; e se não a ninguém sou mais obrigada que a mim.» Tem esta comedia a particularidade de conter cantigas intercaladas no texto e de usar, como a Euphrosina, do expediente da leitura de cartas.

Apesar de Jorge Ferreira ter os olhos tão absorvida- mente fitos na antiguidade que a exemplos antigos recorre para demonstrar conceitos muito communs, é grande o valor documental das suas comedias, sob esse ponto de vista utilizadas por um auetor. (') Para mostrar que «nunca outra cousa vemos cada dia senão baratarem filhos os fundamentos dos pays por leve gosto próprio», vae buscar a opinião de

(l) V. Memorias históricas do Ministério do Púlpito por um reli- gioso da Ordem terceira de S. Francisco, Fr. Manuel do Cenáculo, Lisboa, 1776. Cenáculo no appendice á 3 a parte das suas Memorias recorreu ás comedias de Jorge Ferreira repetidamente.

Historia da LU Ur atura Clássica 151

Ménandro, o caso de Acrisio e Medêa, de Niso e sua filha, e de Astiages e sua filha. É cora Argos dos cem olhos que Ulyssipo argumenta a sua mulher para a advertir de que de nada servem cautellas. Sobre a educação das mulheres, o mesmo Ulyssipo opina com os casos de Tanquenil, mulher de Tarquinio, Andromaca, mulher de Heitor e outros lon- gínquos exemplos.

A Aulegraphia, como as precedentes, é em prosa e divi- de-se em cinco actos. Faz o prologo o deus Momo, que ao publico publico de leitores, não de espectadores expõe o assumpto da comedia, a costumada intriga amorosa, pela qual «pretende mostrar-nos no olho o rascunho da vida cor- tesão, em que vereis hua pentura que fala Sc vos fará vente Sc palpável a vaydade de certa relê.» É ainda o deus Momo que nos elucida acerca da prudente discrição e delicadeza, com que na comedia se pratica a imitação da realidade ambiente :

«Nesta selada Portuguesa vereys varias difierenças, & certeza que passão em uso, & costume por estes bairros. Donde deve notar-se, & advertir-se que as calidades, Sc epí- tetos atribuídos em singular a toda a especia de pessoa aqui introduzida, compete geralmente ao género de taes especias, convém saber declarandome : Quando se pinta hua especia de cortesão, ou cortesãa que dizemos especiaes, ao natural de suas artes & modos principal Sc singularmente: entende- se em geral por o género das taes pessoas. Ca de particular nada se trata, por quanto seria odioso, cS: alheyo do estilo cómico moderno.»

O assumpto da comedia é constituído pelos leves amores de Grasidel de Abreu e Philomela, cuja leveza com leveza se cura. Os mesmos creados das outras comedias, de imita- ção de Terêncio, sempre descontentes de sua condição e ainda mais de seus amos, a quem não obstante grandes ser- viços prestam, como correios de recados amorosos e como conselheiros. Os mesmos encontros a propósito, as mesmas

152 Historia da Li

divagações longas e difficeis a entorpecerem o dialogo o a complicarem inutilmente a acção, os mesmos característicos das outras obras alludidas.

O gosto dos jogos de palavras, que vimos, sob forma de annexins se ostenta na Aulegraphia, mas com mais recato e por meio da confusão de homophonas ou quasihomophonas, como no pequeno exemplo que recortamos: «Rocha: Suas mãos beijo. Cardoso: O senhor, grão saber vir. Rocha: Donde buens? Cardoso: Estava naquella travessa sobre ver hua rapariga que me atravessa. Rocha: E ella he tra- vessa ? Cardoso: Mas travessa d'alma. Rocha : Dessa ma- neira fazeis d 'amor kila cancella? Rocha: Essa alcàcella de mim a seu salvo. Rocha: E a esse alvo pretendeis vós fazer tiro? Cardoso : Mas tiro pouco mays de nada em pen- samentos altivos.»

As três comedias de Jorge Ferreira têm um valor exclu- sivamente documental sobre os costumes sociaes, sobre a língua e sobre o gosto da sua época, portanto valor histo rico e muito limitadamente esíhetico.

CAPÍTULO Vi

O LVR1SMO

Agrupámos neste capitulo os dois iniciadores do buco- lismo e os continuadores directos de de Miranda, porque sendo nosso propósito estudar nesta parte do nosso livro as principaes manifestações da poesia subjectiva do século xví, pouco era para considerar a conjectura de que o bucolismo em redondilhas seja anterior a de Miranda e delle inde- pendente. Certo é que se suppõe ordinariamente que a vaga viagem de Bernardim Ribeiro á Itália se realizou entre os annos de 1520 e 1524, datas estas um pouco anteriores ás que limitam a famosa viagem de de Miranda ; mais certo é ainda que Bernardim Ribeiro nasceu alguns annos antes de Miranda. Mas estes elementos não são sufficientes para estabelecer que Bernardim Ribeiro é um precursor de de Miranda, (l) portanto formado em plena independência da acção deste reformador, porque falta a base essencial duma chronologia authentica e incontroversa de suas obras. Têm se,

(') Recentemente, repetiu esta opinião o sr. Achille Pellizzari no seu livro Portogallo e Itália nel seco/o xri, Nápoles, 1914, onde a pag. 27 escreve : «Onde non esito a ritenerlo precursore, sebbene a piccola distanza d'anni, di de Miranda e a riconoscere in Iui e nella sua poesia 1'anello dj congiunzione, o, meglio, Tatto di passaggio dalla vecchia lírica cortigiana di Portogallo alia scuoja italiana di e di Camoens.»

154 Historia eh IAtieratura Clássica

é facto, datado suas obras, mas taes hypotheses deixam quasi sempre grande campo á duvida. Tanto Bernardim Ribeiro como 9 seu immediato imitador íormaram-se na atmosphera de idéas estheticas e gosto litterario, a que a Itália dava expressão, e que de Miranda com mais affoiteza pro- pugnou. Tanto basta para que os reunamos neste capitulo, e para que a Miranda déssemos o lugar de relevo, que lhe arbitrámos.

BERNARDIM RIBEIRO

Como na arte litteraria do nosso quínkentismo se deu forma á concepção da vida trágica, da vida heróica e da vida lyrica, assim também a vida privada, medíocre de aspi- rações e na sua mediocridade satisfeita, encontrou a sua expressão litteraria na écloga.

A concepção trágica exprimem-na os ensaios trágicos e, parcialmente, as narrativas dos naufrágios; a concepção heróica os romances de cavallaria, os roteiros das peregri- nações terrestres, a epopea camoneana e boa parte da histo- riographia ; a concepção lyrica reproduzerr.-na os sonetos platónicos.

Os amores terrenos, em que a alma não aspira a um ceu de idealidades puras, mas para a terra mui gostosamente propende e alliada ao corpo se estreita, formam o fundo da écloga pastoril e piscatória, com largueza cultivada no sé- culo xvi. Como a paisagem, os costumes pastoris e piscató- rios e a confissão do viver tranquillo se tornariam monóto- nos, porque não comportavam variantes de maior, pois para ver a paisagem de modo original seriam necessários outros olhos, menos obcecados pela visão clássica, a écloga foi bus- car para esse fundo permanente e uniforme um elemento- variável e mais emotivo, o drama amoroso. Este elemento predomina exclusivamente na nossa écloga que é muito uni-lateral, por não haver admittido os elementos cómicos

Historia da Litteratura Cias sim 155

que em Itália continha e que davam ao género um maior poder de comprehensão. A écloga portuguesa é exclusiva- mente lyrica, de tom lamentoso, e tem por obrigada compo- sição o fundo permanente da paisagem com seus adornos pastoris ou piscatórios mais daquelles que destes e dum primeiro plano em que o protagonista ou protagonistas se lamentam de seus infelizes amores. São sempre infelizes esses amores e é essa sua infelicidade que os torna matéria litteraria. Consiste a causa dessa infelicidade no abandono dum dos amantes, que parte para «longes terras > .

Bernardim Ribeiro (*) é que fixa estes caracteres á écloga, que cultiva com brilho, não comparável ao pequeno êxito dos ensaios de de Miranda nesse género. Fixa-lhe tam- bém Ribeiro uma forma métrica própria, a redondilha me- nor, depura-a de elementos mythicos, mais alguma natu- ralidade e sequencia lógica ao dialogo e introduz o gosto dos jogos de palavras homonymas e as repetições parallelis- ticas. O jogo de palavras será largamente praticado por Christovam Falcão, seu principal discipulo.

Das cinco éclogas de Bernardim Ribeiro é, sem duvida, a primeira a mais bella, porque é a única que transcende os limites do medíocre interesse ordinariamente despertado pelo assumpto duma écloga. Pérsio pastor, ama Catharina e como esta para sempre se affastasse para outros lugares

(') Bernardim Ribeiro nasceu na villa de Torrão (Alemtejo) em 1482. Como seu pae, creado do duque de Vizeu, se refugiasse em Ca?- tella após o assassínio deste nobre por D João ix, Bernardim com a mãe e uma irmã recolheram-se a Cintra, á quinta dos Lobos, duns seus parentes. Em 1505 recebeu por doação regia as terras e azenha dos Ferreiros, em Extremoz. De 1507 a 15 12 frequentou a Universidade de Lisboa, tomando o grau de bacharel em leis. Em 1524 recebeu a nomea- ção de escrivão da camará de D.João 111, cargo que exerceu até que,, enlouquecendo, se recolheu ao Hospital de Todos os Santos, onde mor- reu em 1552. Ha uma vaga noticia duma sua viagem á Itália entre m annos 1520 a 1524.

150 Historia da Liite? atura Clássica

grande é a sua tristeza e saudade. Expandir essas saudosas tristezas passou a ser toda a razão da existência de Pérsio, que dessas lamentações sahe para pedir e ardentemente desejai* a morte. Outro pastor, o seu amigo Fauno, procura consola-lo, oppondo á obstinação de Pérsio razões sensatas e seguras, respondendo ao conceito amoroso e fraco que da vida Pérsio exterioriza, com outro conceito forte, sereno, inacessível ao desanimo.

Este dialogo, em especial na parte em que falia Fauno, é a principal belleza das éclogas de Bernardim Ribeiro, por- que é o único lugar em que o poeta, por si ou por outra personagem de sua creação, mostra ser superior ao mundo infantil e ingénuo das éclogas. Effectivamente, é sempre infantil e ingénuo fazer cifrar todo o interesse da vida, toda a sua razão nos medíocres amores das éclogas. A écloga segunda exemplifica de modo muito frizante esta concepção de pueris bagatellas porque é a mais movimentada, a que maior acção tem. Jano, pastor, vem para margem do Tejo fugindo ás seccas e fomes do Alemtejo; no bucolismo as deslocações migratórias são um elemento importante na cau- salidade dos acontecimentos e são também um dos mais característicos adornos pastoris, por exprimirem vestigios do antigo viver nómada das populações pastoris. Chegado ás margens do Tejo, onde apascentava o seu gado, dum esconderijo Joanna, guardadora de patas e filha dum vizinho, colher flores para tecer uma grinalda com que, soltos os cabellos, se enfeita. Joanna, para ver o effeito dessa grinalda, vae mirar- se ás aguas do rio e, deslumbrada da própria for- mosura, lamenta a sua soledade de guardadora de patas. Acode Jano, promptamente enamorado, mas Joanna, assus- tada da surpresa, foge para casa e deixa com a pressa cahir uma das sapatas. Jano guarda essa sapata, a esquerda, e lamentoso e apaixonado sobre ella desmaia de amor. For- tuitamente passa por elle Franco de Sandovir, que acatando muito respeitosamente aquella grande dor, busca consolá-lo.

Historia da Litteratura Clássica 1.". «

Essa desgraça, retorque Jano, não é mais do que a confir- mação duma prophecia que lhe fizera Pierio. E como o cão de Franco de Sandovir lhe trouxesse a sua flauta, que sup- punha perdida, canta uma cantiga. A écloga terceira é uma permuta de razões entre Silvestre e Amador, cada um dos quaes se suppõe mais infeliz por mais apaixonado. A quarta é uma variante do episodio nodal da primeira: é o pastor que é affaslado; e a quinta narra um encontro do pastor Ribeiro, desterrado «bem contra sua vontade>, com Agrestes que lhe aconselha o regresso e a esperança nalgum bem futuro.

Recuar a este mundo pueril para encontrar a idade de ouro da vida era muito recuar, porque se creava um mundo igualmente artificioso e ainda sob a dura condição do soífri- mento e porque não se fazia, como a écloga clássica ensi- nava, a reconstituição quanto possível integral dum mundo tranquillo, grave e cómico, e bem caracteristico. Na écloga de Bernardim desapparece essa tranquillidade, a gravidade reduz-se ao excessivo acatamento dado a amores medíocres, o cómico desapparece e a parte pinturesca é muito reduzida.

CHRISTOVAM FALCÃO

E pequena a obra poética de Falcão, que como Bernar- dim Ribeiro manteve as formas métricas medievaes ada- ptando-as á expressão dos novos géneros do Renascimento. Por meio do verso de sete syllabas das suas cantigas, soltas e esparsas, formas nossas conhecidas do Cancioneiro Geral, de Garcia de Rezende, cantou Falcão (*) o amor, sempre e

(1) Christovam Falcão de Sousa nasceu provavelmente no segundo decennio do século xvi, em Portalegre. Em 1542 esteve em Roma, na embaixada portuguesa, donde escreveu a bem conhecida carta a D.João 11. Em 1545 recebeu a nomeação, por três annos, de feitor e capitão da for- taleza de Arguim. Ignora-se a data da sua morte.

Recentemente o sr. Delphim Guimarães defendeu a these de ser

158 Historia da Liiteratura Clássica

o amor ; narrando o drama da sua vida, sob disfarces pas- toris, mas ainda em redondiihas menores, compôs esse arre- medo de écloga, que é a sua principal peça. O exclusivismo do thema amoroso que assim denuncia uma intensa vida psychològica, um intimo isolamento, os escassos adornos pastoris da narrativa do seu drama amoroso e o gosto das subtilezas engenhosas, dos ditos agudos, dos jogos de pala- vras e o registar por elles as contradicções do senti- mento do amor são caracteres litterarios typicamente qui- nhentistas. A estes falta juntar o carinho esthetico da própria obra, o desenvolvimento amplo dos themas de quem se não contenta com a simples enunciação, mas quer extra- hir-lhes todo o conteúdo, para se ver o que recebeu Falcão da atmosphera de idéas estheticas e gosto litterario que em torno de si se formara desde que de Miranda iniciara a ■sua reforma. Ha porém que notar que a interpretação do sentimento do amor, expressa por Falcão, não 6 a que o pla- tonismo e o petrarchismo haviam creado e posto em voga, sentimento idealissimo de adoração, mas uma muito terrena paixão de que é objecto muito real determinada mulher que

a obra attribuida a Falcão pertença de Bernardim Ribeiro, não tendo por- tanto fundamento a existência dum poeta de nome Christovam Falcão. Em seu livro Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal), Lisboa, 1908, apre- senta os seguintes fundamentos para essa these : i.° O nome de Cris- fal é formado pelas syllabas iniciaes de crisma falso e de crismas falsos somente teria Bernardim usado nessa écloga de Crisfal que o sr. D. G. ihe attribue ; 2.0 A carta que Christovam Falcão escreveu de Roma a D. João 11 revela uma instrucção rudimentar pelo que julga o sr. D. G. cque não podia ter sido o gentil-homem Falcão, que tão incorrectamente escrevia, o delicado auctor da formosíssima écloga que lhe era attribuida» (Pag. 183) ; 3.0 As coincidências de forma nas obras dos dois poetas. Esta these insubsistente foi sabiamente rebatida pelo escriptor brasi- leiro, sr. Raul Soares, na obra O Pceta Crisfal, Campinas, 1909. Ainda do Brasil surgiu outro estudo sobre este assumpto, mas em appoio do sr. D. G.; A Mascara dum Poeta (Bernardim Ribeiro), Lisboa, 1913, peio sr. Silvio de Almeida. Estes dois trabalhos brasileiros appareceram primeiro

Historia da Litleratura Clássica 150

o poeta quer possuir. Se na escala dos delicados valores litterarios, esta concepção desce, torna-se não obstante mais humana e real, pois a foi buscar não a um amalgama de pensamentos, aspirações e gostos que formava a essência das almas de escol do seu tempo, mas ao próprio fundo do seu ser. Com a sensibilidade aguçada pelo seu temperamento e com alguns dos meios litterarios em voga no seu tempo, neo clássicos, contou as dores da sua alma.

Essa narrativa, que alguns auetores têm querido consi- derar menos como obra de arte do que como enigma ardiloso offerecido ás suas conjecturas biographicas, é summariamente a seguinte:

Num lugar, de extravagante situação geographica, entre Cintra e a serra da Arrábida, dois pastores, vivamente se amaram, Maria e Chrisfal, dum amor tranquillo, a que as saudades da ausência perturbavam. Outra pastora, Joanna, delatou esses amores á família de Maria, o que junto á cir- cunstancia de ser Chrisfal pobre de bens, determinou o sequestro de Maria para muito longe. Doridos da separação, ambos choram as suas saudades. Para exemplificar a dor do pastor apaixonado, faz o poeta que elle exponha as suas

no jornal Estado de S. Paulo. Para contrapor ás razões do sr. D. G. ha os seguintes argumentos : i.° O testemunho de Gaspar Fructuoso (1522- 1591) que nas suas Saudades da Terra, claramente allude a Christovam Falcão como auetor da écloga Crisfal; 2.0— Testemunho semelhante de Diogo do Couto (1542-1616; na sua Década vm, Cap.° 34., ed. de 1673; 3.0 O de Faria e Sousa (1590-1649) no seu Commentario ás Rimas de Camões, tomo iv, pag. 266; 4.0 O de António dos Reis (1690-1738) no seu Enthusiasmas Poeticus ; 5.0 O de Diogo Barbosa Machado (1682- 1772) na sua Bibliotlieca Lusitana; 6.° O do manuscripto genealógico da Bibliotheca Nacional de Lisboa, C.-1-18 ; 7.0— A carta de Roma, depois de bem ortographada e bem pontuada, é um documento de prosa regu- lar, que de modo nenhum impossibilita o séu auetor de ser bom poeta ; 8.° A par de semelhanças e coincidências de versos, ha uma grande abundância de differenças estylisticas sufíiciente para comprovar serem as éclogas de auetores diversos.

100. Historia da Littèratura Clássica

lamentações. EíFectivamente Chrisfal, afundado em melan- cholica saudade, lastima a sua separação do ente amado e pede ao pensamento e ás illusões delle alguma consolação. Narra-nos depois ainda o pastor em seu monologo um sonho que tivera.

Um forte vento do mar o erguera muito alto, donde podia contemplar larga extensão. Paisagem e pastores que cantam de amor e pastoras suspirosas é quanto vê: António, Guiomar e outros companheiros. também Maria, que para o mesmo cume, onde Chrisfal se ficara, se vae dirigindo a cantar as suas saudades, íastimando-sc de que a houvessem feito trocar o amor de Chrisfal pela riqueza daquelle com quem a haviam casado. Encontrando- se, Chrisfal com surpresa que Maria o aceusava de ter amado a riqueza* delia, o que provoca profunda decepção, mas como a voz. do coração é sempre eloquente para fallar ao ouvido doutro coração prompto a escutá-la, desíaz-se o engano de Maria. Mas ao desfazer-se esse engano, dissipase também a illusão do pastor, que do seu sonho accorda para o tormento da realidade.

Como.se vê, o assumpto deste pequeno couto em verso é muito commummente humano, dum realismo quotidiana». em franco contraste com o alto idealismo da matéria dos sonetos e éclogas dos outros poetas contemporâneos. Esta interpretação tão commum, tão burguesa do amor que pelo casamento se satisfaz, não caberia no quadro dos themas litterarios dum Camões. É porém muito do seu tempo, como referimos, o lugar dominante na vida dado ao amor. Como enche o coração de Chrisfal, clle também enche a vasta paisagem que do alto, aonde o transporta o seu sonho, pôde contemplar:

ia da I Altera fura Clássica 161

o sol se encobria A este tempo, e, mais Ficando a terra sombria, O gado aos curraes então se recolhia. Ouvi cães longe ladrar, E os chocalhos do gado Com um tom tam concertado Que me fizeram lembrar De quanto tinha passado.

Por serem as queixas vans, Vi berrar o gado mocho Coberto das finas lans, E assuviava o moncho, E o triste cantar dJarrans. serranas ao abrigo Se iam, prados leixando, As mais d^ellas sospirando ; Uma dezia : Ay, Rodrigo ! Outra dezia : Ay, Fernando.

Uma ciúmes temia, Outra de si tem receio : Uma ouvi que dezia : « Quam asinha a noite veo ! » Outra : «Já tarda o dia ! » E por este experimento Foy amor de mim julgado Por nam menos occupado Do que é o pensamento, Que nunca está descansado.

Alli triste, soo, saudosa, Vi. antre duas ribeiras, Uma serrana queyxosa Carreando umas cordeiras, Sendo cordeira fermosa. E, como alli tem por uso, Em uma roca fiando, Mas, com o que ia cuydando Caía-se-ihe o fuso Da mão de quando em quando. IT. da L. 0!.assica vsl. 1.»

162 Historia da Litteratura Clássica

É no lyrismo que consiste o principal dom poético de Falcão, isto é, no poder de exprimir em forma fluente os momentos vários e os escaninhos Íntimos da dôr, da saudade e da paixão, da tristeza sem consolação, que os annos não attenuam :

Não mudam dias nem annos Ao triste a tristeza, Antes tenho por certeza Que o longo uso dos damnos Se converte em natureza.

É á tristeza intima e permanente, tornada em habite da alma, que Falcão sabe ver aspectos variados e dar-ibes traducção litteraria em forma fluente de simplicidade, recorrendo ao jogo da palavras, ás formas de conceitos parallelos para fazer sobresahir contrastes. E é mais nessa expressão sempre clara e de sentido prompto do que na profundeza do pensamento e do sentimento que reside a valia da obra de Falcão.

Do gosto daquelle jogo com o significado das palavras anton}-mas é um exemplo muito írizante a cantiga seguinte:

Vi o cabo no começo, Vejo o começo no cabo, De feição que não conheço Se começo nem se acabo.

Quando meu mal comecei, Com muito bem começou, Mas o fim que lhe esperei No começo se acabou ; Acabou-se no começo, Pois se começa no cabo, De modo que não conheço Se começo nem se acabo.

Historia da Liiteratura Clássica 163

No começo de meu mal Vi cabos de muito bem, Mas este bem saiu tal Que nenhum bom cabo tem ; Faço no cabo começo, Sendo no começo cabo. De feição que não conheço Se começo nem se acabo.

Dizer de formas sempre bellas de simplicidade ou de engenhosa agudeza a dor da sua paixão frustrada, a lem- brança pungente do casamento da sua amada com outro e a absorpção da sua alma inteira nessa infelicidade é o fundo de toda a obra poética de Falcão, que assim define o seu estado moral :

Os meus cuidados cresceram, As esperanças minguaram ; Prazeres adormeceram, Os pesares accordaram ; Ao bem os olhos cegaram, Ao mal os foram abrir: Nunca mais pude dormir.

Não porem suppôr-se que Falcão tira da sua dor gritos d'alma vehementes, que traduzam a violência deses- perada dos grandes soffrimentos, as horas agudas e trágicas da dor ; não. Christovam Falcão não descreve e não diz poe- ticamente as suas horas arrebatadas, dia a dia, com pontua- lidade, ainda que sem consolação, vae-nos dizendo a perma- nência do seu soffrimento que «se converte em natureza». É por isso o seu lyrismo enternecido, viva e delicadamente sensível, mas de emoção comedida, quasi resignada, duma passividade sofFredora, sem revoltas, sem imprecações, todo de lagrimas silenciosas (').

'!) Tem- se querido reconstituir inteiramente até nos seus mais particulares pormenores o drama amoroso, que Christovam Falcão conta

164 Historia da Litter 'atura Clássica

Em 157 i (*) appareceu a Silvia de Lisardo, obra anonyma attribuida a Frei Bernardo de Brito, o famoso historiador alcobacense, ainda que sem grande probabilidade. (?) Na Silvia de Lisardo se contem uma peça poética intitulada Sonho de Lisardo que é quasi como a segunda parte de Chrisfal. Nesse poemeto se figura que Lisardo conta a Silvia o sonho que tivera, durante o qual a phantasia o transporta ao valle de Lorvão, umbroso e florido, onde Maria, a amada de Chris- fal, vivera. Ahi surprehende a cantar ao próprio Chrisfal, que a Lisardo canta as suas maguas e lhe conselhos tira- dos da sua cruel experiência.

e idealiza em suas obras. Essa reconstituição tomou como protagonista, além cio poeta, a D. Maria Brandão, que seria quem desdenhou os affe- ctos de Chrisfal. V. Bernardim Ribeiro e o Bucolismo, snr. Th. Braga, Porto, 1897, pags. 324-37 l, capitulo intitulado Os amores de Chrisfal e Maria. Destruiu essa imaginosa construcção de interpretações o sr. An- selmo Braamcamp Freire com seus eruditos e severamente lógicos arti- gos Maria Brandão, a do Chrisfal, publicados no Archivo Histórico Por- tuguês, volumes 7.0 e 8.°, Lisboa, 1909 e 1910, e na Atlântida, revista de Lisboa, 1916. O sr. Braga insiste nas suas hypotheses no seu escri- pto Maria Brandão, a do Chrisfal, não foi apeada, na Atlântida, 1916.

(!) Desta edição de 1571 apenas se conhece a referencia a um exemplar feita por Innocencio. V. Diccionario Bibliographico Português, vol. 1, pag. 374-375-

(2j Foi Faria e Sousa quem primeiro fez essa attribuiçâq, perfi- lhada e desenvolvida pelo sr. Th. Braga no ser. vol. Bernardim Ribeiro e o Bucolismo, pag. 377. Numa nota inserta a pag. 155 das Obras de Christovam Falcão, Porto, 1915, o sr. Braga declara abandonar essa hy- pothese de ser Fr. Bernardo de Brito o auctor da Silvia de Lisardo. Tal hypothese fora refutada por Fr. Fortunato de S. Boaventura.

D. Francisco Manuel de Mello não repetiu essa attribuição, como affirma o sr. Th. Braga, pois apenas allude á qualidade religiosa de seu auctor presumptivo : « Lipsio.— Que sylvia, ou silva ou selva é essa, que não está no meu mappa, nem nas taboas de Cláudio Ptolomeu ? Boca- iino. São certas obrasinhas de um poeta nosso, cousa do mundo muito escusada. Auctor. Comtudo se affirma que era homem douto e reli- gioso. Bocalino. Jurava-o eu, porque nunca vi frade bom poeta. » V. Hospital das Letras, pag. 16, ed. de 1900.

Historia da Lit ter atura Clássica 165

Lisardo achava- se perante Silvia numa situação análoga á de Chrisfal perante Maria. A despeito dos conselhos de Chrisfal, quer perseverar na sua paixão, que vehementemente crê maior que a que victimou o namorado de Maria e declara que a sua Silvia vence a formosura de Maria :

Em fim, que sigo esta via De te vencer em tristura, Como Silvia em formosura Excede lua Maria E toda mais creatura.

A esta obstinação, responde Chrisfal prophetizando-lhe os soffrimentos que de tal desatino resultarão. Fenecendo a descripção do sonho, o poeta conta o modo por que se des- pediram e os protestos e prendas de amor que trocaram Silvia e Lisardo no momento de se apartarem, quando o pastor enamorado partia para uma dessas súbitas e inexpli- cadas ausências, obrigadas nas éclogas e fonte principal de .seu lyrismo, sobretudo quando combinadas com o prompto esquecimento da pastora.

Ainda que o auctor da Silvia de Lisardo se revele mais litterato, mais preoccupado dos effeitos poéticos que da es- pontânea sinceridade que em Christovam Falcão, poeta da própria dor, se surprehende, e ainda que seja uma peça de imitação, justo é considerar a fluência elegante dos versos e limpida forma.

Como adeante, ao estudarmos o soneto, nos referiremos a themas e processos poéticos muito generalizados entre todos os lyricos quinhentistas, é opportuno referirmos um exemplo dum desses processos poéticos, a enumeração de impossíveis e paradoxos para dar idéa da vehemencia duma paixão ou dos illogismos contradictórios do amor:

166 Historia da Litter atura Clássica

E vêr-se-hão mais facilmente Andar os peixes na serra, E o céo não cobrir a terra Que engeitar vivendo ausente, As leis de tão justa guerra.

O sol poderá perder A claridade que tem, O mar seccar-se também Sem que deixe de querer Quem na vida me sustem.

Fugirá o cordeirinho Da própria mãe que o cria, Trocar-se-ha a noite em dia E o falcão e passarinho Viverão em companhia.

Convém lembrar que esta passagem, acima transcripta, é posterior a uma larga exemplificação desse processo poético no soneto.

ANTÓNIO FERREIRA

Dos dois livros de sonetos, que António Ferreira nos legou, é no primeiro que mais sobe a sua inspiração. d'amor trata o poeta neste primeiro livro e disso se louva. Ora esboçando o retrato da que com seu amor ou seu desdém o inspirava, não segundo a realidade, que não era chamada a concurso, mas segundo modelo que todos criam a summa belleza, ora notando as impressões subjectivas desse amor, Ferreira impelle esta forma poética para uma vereda mais conforme ao forte cunho petrarcheano, que trazia, e versa com felicidade variável alguns motivos que hão-de circular de poeta em poeta até que Camões lhes encontre a expressão suprema, da máxima simplicidade e do máximo relevo. Ferreira forma assim aquella matéria poética cyclica que gravitará incerta até se fixar nalguns sonetos camoneanos:

Historia da Ldtteraiura Clássica 107

os retratos, a fatalidade do amor, as suas contradicções, o prazer de soffrer de amor, a aspiração á alma pura e imma- culada de todo o vestígio terreno, sentimento do mais extremo espiritualismo. São esboços de retratos, ou melhor tentativa do retrato único, a que todos visavam os sonetos ou partes dos sonetos v, XV, xvm, xix, xxin e xxv, prin- cipalmente o antepenúltimo delles, o qual a seguir repro- duzimos:

-Donde lomou Amor, e de qual vea O ouro tam fino e puro para aquellas Tranças louras? de que esphera, ou estrellas A luz, e o fogo que assi em mim se atea?

Donde as perlas? a voz de que serea ? Os brancos lyrios donde, e as rosas bellas, Aquelle vivo sprito pondo nellas, De que formou húa nova ao Mundo idéa?

Antes a neve, a alvura, a cor as rosas Do seu rosto tomaram, e a harmonia As aves da voz doce, suave e branda.

Não são ante ella as estrellas mais fermosas,

Nem mais sereno o Ceo, ou claro dia,

Nem mais formoso o Sol na sua esphera anda.

Também um pormenor desse retrato, os cabellos dou- rados, inspira outro soneto, todo de amplificações poéticas, o XXV, mas propriamente sem um conceito próprio. A natu- reza abrandada, colorida pela visão enamorada do poeta em adequado fundo para o primeiro plano do retrato, também a matéria de alguns sonetos, o XII, XIII, XIV, xxxvni e xliv, segundo os quaes o magico effeito do amor, por toda a parte se derramando, tudo espiritualizando, exprime uma espécie de pantheismo amoroso, pois tudo revela a presença do deus vendado, a sympathia da natureza com o sentimento dominante na alma do poeta. Alguns mo-

168 Historia da Ldtterakira Glasw

mentos do amor, a ausência, a desgedida e o lugar onde nasceu o amor também Ferreira os idealiza nos sonetos XV, XLIII e XLV, e a creaçâo duma natureza subjectiva, que plenamente satisfaz a alma e que se lhe revela tão completa e organizada como a natureza externa constitue o thema do soneto xlviii. E as contradições do amor, representadas por extravagantes paradoxos, também as abeira Ferreira no soneto :

Quem vio neve queimar? quem \ io tão írio Hum fogo, de que eu arco? quem chegs A morte vivo e ledo estar canta Parece quanto digo desvario.

Os sonetos do 2.0 livro não ostentam a variedade dos do i.°, nem lhes equivalem em altura de inspiração. Posto que se mantenha a mesma forma, mais perfeita, muito menos contrafeita que em de Miranda, a carência de conceitos bellos ou engenhosos grandemente os prejudica. A maior parte delles é suggerida por propósitos de amabilidade cor- tesanesca, a outros inspira-os a saudade da esposa morta, dois são um brinquedo litterarrio, os na cantiga lingua por- tuguesa», seis são de matéria religiosa. Dos que são consa- grados á memoria da esposa, um ha que merece registo porque tem como forma a invocação directa á alma que se amou e que para sempre partiu e que nós também consi- deramos como elemento daquella cyclica matéria poética, fixada por Camões. É o que começa:

O alma pura, em quanto vivias, Alma onde vives mais pura, Porque me desprezaste ? quem tam dura Te tornou ao amor, que me devias?

Dos sonetos religiosos, que iniciaram a variante em que se confinou Frei Agostinho da Cruz, um tem um caracter descriptivo e episódico, que apesar de repugnar á índole do

Historia da LiUcralu.ru Gltissica 109

soneto viria a ser muito exercitado pelos poetas do século xix. Em António Ferreira esse soneto offerece o interesse da prioridade, pois é um quadro incompleto, num soneto incompleto : nos dois quartetos delineia o quadro e brusca- mente muda de tom e passa nos dois tercetos para o mundo subjectivo, sob a forma dum commentario moral extraindo do inacabado quadro da serenidade heróica dos martyres que iam soffrer a morte.

Treze odes possuímos de António Ferreira. Era a ode um género poético, que Pindaro e Horácio haviam elevado a grande prestigio e belleza. Pindaro fizera da ode um género orficial, em que eram celebrados os grandes triumphos dos jogos nacionaes da Grécia, e um género coral, um numero das festas que acompanhavam a celebração desses jogos. Horácio déra-lhe uma interpretação mais ampla, porque ao mesmo tempo que lhe attribuia um papel semelhante ao das odes pindaricas, engastava-lhe assumptos muito variados, como cumpria a composições que por um lado haviam de satisfazer c gosto do imperador Augusto e por outro as tendências pessoaes do poeta. No renascimento a ode foi cultivada como um género bastante amplo na comprehensão dos assumptos, exigente quanto á dignidade dos mesmos e a certa gravidade de sentimentos. Foi Horácio o modelo de Ferreira, que sempre o imitou de perto. Ferreira confessou na primeira das suas odes a novidade e gravidade desse ger.ero. Em algumas odes a imitação é muito próxima, nomeadamente na i.a, 4.*, 6.a do i.° livro, na 2.a e 5.° do 2.0 livro e dentre estas na 6.* do livro i.°, dedicada a seu irmão Garcia Froes, que é quasi uma traducção da de Horácio a Virgílio, que começa Sic te diva potens Cypri. As odes de Ferreira ou têm um caracter laudatório ou contem confissões moraes onde a austeridade e o amor da simplicidade são mais declarada e convictamente exalçadas que no poeta venusino, Se, porém, essas idéas são nobres o elevadas, não é individualmente original a sua expressão litteraria, quasi

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sempre muito chã e vulgar, se não fora o artificio da métrica.

As nove elegias de Ferreira apartam-se dos outros generc-s poéticos, por elle cultivados não pelo tom do senti- mento, que as domina ou pela natureza de seus assumptos, mas somente pela metrificação e combinação das rimas. Os seus assumptos eram também idóneos para preencherem outras tantas odes. Sentimento elegíaco o possuem a primeira e a segunda elegias á morte do príncipe D. João, pae de D. Sebastião, e á morte dum companheiro litterario, Diogo de Bettencourt, e ainda assim mais na intenção trahida pelo assumpto que pela suggestão produzida nos leitores. As recordações da camaradagem litterária com um amigo que se deplora e as saudades dum príncipe bondoso são evidentemente matéria de maior cunho elegíaco que o re- gresso da Primavera, amorosa e festiva, a saudação a um amigo que regressa, a correspondência amistosa com Andrade Caminha, o elogio dos desvelos de terno amor filial de Braz de Albuquerque, auetor dos Commentarios. Destacam por terem realmente um assumpto bem caracterizado e posto em relevo aquellas em que traduziu Moscho e Anacreonte, Amot fugido e Amor perdido. A ultima, A Santa Maria Magdalena, revela bem como António Ferreira, pobre imitador, não sabia trilhar veredas novas, que elle mesmo houvesse de abrir; sem o bordão de Horácio, o seu andar era tardo, hesitante e não o levava aonde queria chegar.

As doze éclogas de Ferreira carecem de movimento e acção, que lhes dêem interesse; são predominantemente lyricas e escassamente descriptivas. Androgeo, Filis, Vincio, Aonic, Alcippo, Serrano, Silvano, Castalio, Ménaío, Falcino, toda uma povoação de pastores canta ao vento seus amores, vivo fogo em que todos gostosamente se consomem, mesmo quando as suas amadas lhes não retribuem, ou saudosamente lamenta a morte de algum pastor, Daphnis, Miranda ou Jânio. Delias destacam a quarta, em que Aonio declara a Lilia seu

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ardente amor, e a quinta em que Vincio, enamorado de Célia, e Aonio de Lilia, cantam ao desafio sobre a vehemencia de seus amores. É juiz deste pleito poético e amoroso o pastor Tevio, que profere a seguinte sentença, que trahe o pensamento constante dos poetas quinhentistas de que todos os seus esforços deveriam visar a attingir a belleza exem- plificada nos modelos clássicos, desprevenidos como estavam da moderna noção de progresso litterario :

Cesse dos Pastores de Amo a fama. Doce me he vosso canto, e doce seja, Meus Pastores, a quem mal vos desama.

Ambos iguaes no canto, inda ambos veja Muitos annos cantar, e vejais cedo A alma chea cada hum do que deseja, Sem pender dJesperança, nem de medo.

Os amores alludidos nas éclogas de Ferreira são obri- gados themas litterarios, não têm a vehemencia dos que nos narram Ribeiro e Falcão, que da sentida experiência pessoal se inspiravam ; são sentimentos que o poeta affirma serem muitos intensos e infelicitadores ou absorventes, mas a que não adapta a sua expressão litteraria, quasi sempre sem calor nem vibração. Este amor é verdadeiramente o deus Amor, da antiguidade, caprichoso, formoso e loiro, uma personagem que se faz mover duma parte a outra com sua aljava de traiçoeiras settas, nunca o mundo de sentimentos, de tendências, de curiosos cambiantes psychicos que encerra o amor humano. Os quinhentistas abriram horizontes novos, mas não os devassaram com curiosidade igual á novidade.

Os propósitos adulatórios e as pessoaes allusões também prejudicam e complicam algumas das éclogas de Ferreira.

Quanto á paisagem, ella não é a flagrante natureza, que Ferreira não queria detidamente examinar, mas um exemplo da concepção clássica, toda animista e genérica, isto é, a

172 Historia da Litter atura Clássica

•natureza povoada de divindades e semi- divindades e vista nos seus aspectos mais geraes, posta de lado por desinte- ressante ou por não conseguir fazerse ver a particularidade typica., o pormenor regional, o accidente imprevisto. Como o deus Amor, Ferreira acaçapava o seu impressionismo com uma venda. É com a presença da pessoa amada ou com a sua ausência que o campo se torna alegre ou triste, ou são a vaga primavera e o vago outomno que lhe restituem ou retiram as galas :

Torna á saudosa praya, que pisaste, Torna a este campo, que tam verde, e ledo Comtigo era, e tam triste tornaste.

Aqui a menham rosada, o vento quedo, Aqui claras, e brandas sempre as agoas, A noite trazias tarde, o dia cedo.

Pastor fermoso, agora as altas taboas Da dura rocha turvam o claro rio, Mostrando em suas quedas tristes mágoas.

Quantas vezes aqui o dourado fio Tiravam as brandas Nimphas ao Sol alto No frio Inverno, á sombra no Estio ?

Esconde-os no mar o sobresalto

Da tua morte ; deixas dJherva o monte,

E dJagoa o rio, e d^aves o ar falto.

Nem arvore sombra, nem fonte Agoa, nem dia o Sol, nem a noite Estrellas, Nem ha quem ledo cante, ou de amor conte.

Foi muito do gosto do quinhentismo applicar á agio- graphia os novos recursos de composição e métrica, fazendo assim uma espécie de conciliação entre o fundo medieval e a forma neo-classica. Como de Miranda, a quem se attri- tme o poema da Egypciaca Santa Maria, como Diogo Bernar-

Historia da Litteratura Clássica 173

des, auctor de Santa Úrsula, como Frei Paulo da Cruz, o Fradinho da rainha, no século Jorge Fernandes, auctor da Trasladação de São Vicente, como Vasco Mousinho de Que- vedo Castello Branco, auctor de Santa Isabel, (l) António Ferreira compôs o seu poemeto de Santa Comba dos Vallcs. Nelle narra como a pastora Colomba fugiu aos rogos e de- pois á ira do rei mouro e fá-lo com certa fluência narrativa. O poemeto é em oitava-rima empregada nas éclogas, a par dos tercetos e dos versos quebrados e tem proposi- ção, invocação e dedicatória, como nas poéticas se exigia.

PEDRO DE ANDRADE CAMINHA

As primeiras poesias impressas deste poeta (2) foram as insertas na Relação do solemne recebimento, que se fez em Lisboa ás Santas Reliqiuas, que se levarão á Igreja cm S. Roque, Lis- boa, 1588. Nessa collectánea se contêm alguns sonetos mys- ticos que, se lhes juntarmos os que precedem a Auslriada, e o Segztndo Cerco de Diu de Jeronymo Corte Real, o outro so- bre a Elegiada, de Luiz Pereira Brandão, o que lhe inspirou a morte de D. João e ainda os que se contem na edição

(1) Sobre as obras litterárias suggeridas pela vida da rainha santa, consultem-se os seguintes trabalhos : A Evolução do culto de D. Isabel de Aragão.. . , Doutor António de Vasconcellos, Coimbra, 1894, 2 vols. ;. Santa Isabel c a Poesia, artigo de Sousa Viterbo publicado no vol. 2.0 da. Revista da Universidade de Coimbra.

(2) Ignora-se o lugar e a data do nascimento de Pedro de Andrade Caminha; presume- se, todavia, que houvesse nascido no Porto em 1520. Somente são conhecidas as seguintes informações : que serviu o Duque de Guimarães, D. Duarte, como seu camareiro e guarda-roupa, o qual o recommendou especialmente em seu testamento; que em 1556 recebeu de D. João 111 doação dos direitos reaes sobre os vinhos exportados pela barra do Douro; que em 1570 denunciou Francisco Jorge á inquisi- ção attribuindo-lhe relações com judeus ; que em 1557 recebeu de D. Se- bastião uma importante tença annual e logo no ar.no seguinte pelo

174 Historia da Litter atura Clássica

Priebsch constituem quanto se conhece de Caminha, do seu cultivo desse género poético. Estes sonetos mysticcs e lau- datórios de Caminha são puros exercícios de metrificação, onde não sobra o estro; mais feliz será nesse tentamen do soneto mystico Frei Agostinho da Cruz. Foi pela edição de 1898 que se conheceu a maior parte das obras poéticas de Caminha. Cento e dezoito sonetos contem essa edição, das quaes um laudatório, em homenagem ao conde da Feira, vice-rei da índia. Os outros cento e dezasete versam matéria amorosa, segundo os processos poéticos em curso no seu tempo e por nós apontados. O amor ideal é em Caminha um pouco prejudicado pela falta de expressão para as abs- tracções e subtilezas dessa elevada concepção. Os themas do retrato, de effeito sympathico da formosura da amada sobre a natureza, o desenvolvimento de certos pormenores do retrato, as contradicções do amor, a permanência immu- tavel cio soffrimento do poeta ante as vicissitudes cyclicas da natureza, a absorpção da sua personalidade no objecto amado, as cruezas gostosas do amor, extrema submissão da vontade e dos sentidos são themas predominantes nos sonetos de Ca- minha e muito no gosto da epocha, que fazem parte daquella cyclica matéria poética que todos os poetas quinhentistas elaboraram á compita. A forma é geralmente correcta e har- moniosa, mas carece de alto relevo, de poder emotivo, por- que Caminha, imaginação escassa e tendo vivido uma vida palaciana de aulico. tranquilla e commoda, não pôde attingir

mesmo monarcha acerescida a doação do castello de Celorico de Basto, a cuja alcaidaria renunciou em 1581 ; e que falleceu em Villa Viçosa em 1589, achando-se então ao serviço dos duques de Bragança. As suas obras correm impressas na edição académica de 1781, Poesias de... e no volume publicado pelo sr. J. Priebsch, em 1898, Gbras Inéditas de. . Em 1916, o sr. António Baião communicou á Academia das Scien- cias a existência na Torre do Tcmbo dum cancioneiro do mesmo poeta. V. O Pceta Andrade Caminha e um seu Cancioneiro desconhecido, vol, x do Boletim da 2." Classe da Academia.

Historia da Littoratura Classiea 175

as formas poéticas superiores duma imaginação poderosa que renova com variantes de inspiração genial velhos the- -mas, nem pôde vivificar esses themas com a vibratilidade sensível duma alma provada pelo sofFrimento real. As suas emoções, as suas dores são soffrimentos litterarios e são ar- gucias e sophismas, em que a imaginação se compraz, obri- gada a agitar-se num estreito campo e a desses limites acanhados buscar os seus themas. Por isso as dores de amar, que Caminha conta e descreve, o elogio da formosura de D. Francisca de Aragão, sua musa inspiradora, têm seu cunho de artificioso, de brinquedo litterario, são como disse- mos acima sophismas. O thema das mudanças está engas- tado nos sonetos xix, XXXVII, lix, neste ultimo principal- mente. O soneto XXXIX sobre a sombra da amada, «que quem s'enganava sombra chamou», c o XLV em que mostra como a grandeza do seu amor não se apouca nem intimida perante a grandeza duma paisagem da magestosa e impo- nente natureza, merecem menção por serem dos mais origi- ■naes. o soneto lxxii é estranho ao amor, pois com- prehende uma impessoal descripção de paisagem.

Além de sonetos, Andrade Caminha escreveu numero- ras poesias de géneros diversos como cantigas, glosas, vilancetes, endechas, esparsas, trovas, epigrammas, éclogas, elogios, odes, epithalamios, sextinas, canções e epitaphios. Esta vasta productividade faz de Caminha um dos mais fecundos imitadores dos poetas clássicos e neo-clássicos e um dos mais operosos continuadores de de Miranda, que no devotado culto das musas aproveitou os largos ócios de funccionario cortesão. Não teve estro poético acima da escala commum, mas adquiriu facilidade apreciável na ver- sificação, pelo que pôde com os lugares communs da escola construir as suas obras, tanto mais semelhantes ás dos seus confrades quinhentistas quanto mais acuradas de forma. Visto que eram os mesmos os modelos e todos possuíam uma concepção de belleza absoluta, conjunto de effeitos

170 Historia da Litter 'atura Clássica

ímmutaveis que todos aspiravam a reproduzir, «renovar a antiguidade.», como dizia António Ferreira, o desenvolvi- mento litterario era de algum modo regressivo, pois condu- zia á -uniformidade. Será difficil apresentar características estheticas, cunhos diíFerenciaes de constituição moral da pessoa de seus auctores que saliente a dissimelhança entre uma écloga de Ferreira e outra de Caminha. Apartam se por differenças mínimas, como as pessoas mais incaracterís- ticas e mais communs se distinguem, mas não por algum impressivo cunho de temperamento poético original.

Pela elegância da forma e dos conceitos, tanto aquella como estes sempre de extrema leveza, Caminha conseguiu melhor êxito nas peças de gosto medieval, metros curtos. É. esse o seu principal papel entre os poetas da escola italianizante, haver vivificado e restituído á estimação géne- ros em via de se tornarem obsoletos.

DIOGO BERNARDES

Deste poeta (') existem as seguintes recopiiações poéti- cas: Varias Rhhas ao Bom Jesus, 1.594 ; Fhres do Lima, 1596 e o Lima, 1596. Contêm estas collectaneas géneros poéticos muito variados como sonetos, epigrammas, éclogas, epistolas, endechas, voltas e villancetes, portanto géneros do velho

('•) São muito reduzidas as noticias biographicas acerca de Diogo Bernardes. Nasceu em Ponte da Barca em anno que se ignora. Em 15Í6 teve a nomeação de tabellião do concelho da Nóbrega; acompanhou mais tarde, como secretario, a Pedro de Alcáçova Carneiro, quando este foi a Madrid, como embaixador de D. Sebastião; em 1578, havendo tomado parte na expedição a Marrocos, foi captivado, conseguindo o seu resgate, muitos annos mais tarde, por mediação de Filiope n, o qual lhe concedeu uma tença. Junto do regente do reino, Cardeal Alberto da Áustria, desempenhou o cargo palaciano de moço de toalha. Morreu em 1605, segundo a versa o mais acceita.

Historia da Litteràtitra Clássica 177

gosto palaciano das cortes de amor e medieva, e géneros do renascimento, dos que da Miranda importara. Enga- nar-se-hia quem o suppuzesse um poeta regionalista, que fizesse o fundo da sua obra com a paisagem minhota, episó- dios da vida minhota e modismos de linguagem minhota. Longe do poeta tal pensamento, por inconcebível numa epocha em que se não julgaria matéria litteraria de interesse e valor a diversificação regionalista. Como poderia ser esse o objectivo do poeta, quando o supremo ideal esthetico da sua epocha era o de repetir as formas de arte de gregos e romanos, diligenciando até apagar o cunho nacionalista ? Diogo Bernardes apenas deu o nome de Lima ao obrigado rio do bucolismo, referiu-se ao seu aífluente Vez, que «no Lima entrando o nome perde», e aproveitou motivos sugge- ridos pela devoção local do Bom Jesus.

Parte da obra de Diogo Bernardes, principalmente o volume das Varias Rimas ao Bom Jesus, e á Virgem gloriosa sua may, e a sanctos particulares^ é dominada pelo sentimento religioso, formando um vivo contraste com a parte profana, composta de sonetos amorosos, éclogas e cartas a amigos, além de muitas composições menores. Essa religiosidade como inspiração poética proveio-lhe dos seus soffrimentos no captiveiro de Marrocos, os quaes lhe deram essa intensidade vivida que destaca algumas peças.

A fluência da forma do poemeto Santa Úrsula mostra como nos assumptos narrativos alguns poetas quinhentistas se achavam mais á vontade que occupando-se de themas moraes. Como, porém, em todas as suas peças Bernardes cuidasse da forma, attingiu harmonia agradável em seus versos.

Aos seus sonetos applica-se a caracterização apontada a respeito de Ferreira e Caminha.

\\ h* L. Clássica, vol. )••

178 - Ihstona da LiUeratura Classtca

FREI AGOSTTNÍIO DA CRUZ

Deste poeta, (') figura curiosa de cenobita, que para a exaltação religiosa drenou a exuberância do seu sentimento lyrico, possuímos principalmente, não enumerando algumas composições menores, cento e quarenta e um sonetos, quinze éclogas, dezanove elegias, alguns epigrammas, odes, um epitaphio e três cartas.

Nos sonetos predomina aquella variante por nós sur- prehendida no final do segundo livro dos sonetos de António Ferreira: a inspiração religiosa. Tal predominio não exclue, porém, a confissão de sentimentos de amor profano nalguns raros sonetos, que as circunstancias, talvez a solicitude de algum seu admirador, conseguiu salvar da destruição inexo- rável, a que o poeta os votara:

Os versos, que cantei importunado Da mocidade cega a quem seguia, Queimei 'como vergonha me pedia) Chorando, por haver tão mal cantado.

(l) Frei Agostinho da Cruz, que no século foi Agostinho Pimenta, irmão de Diogo Bernardes, nasceu em Ponte da Barca em 1540 e foi creado com o Infante D. Duarte, neto de D Manuel r. Após noviciado no convento de Santa Cruz, de Cintra, professou em i5<x>, vivendo em rigorosa observância da disciplina da sua regra Em 1605 foi provido no cargo de guardião do Convento de S. José de Ribamar. Resignando ssse cargo, retirou-se para a serra da Arrábida, onde viveu como eremita numa pequena habitação laboriosamente construída por suas próprias mãos e depois na que lhe mandou edificar o Duque de Aveiro, seu amigo. Morreu em 1619, recebendo excepcionaes homenagens de vene- ração. As suas poesias estão publicadas no pequeno volume Varias Poesias do Venerável Padre Frei Agostinho da Crus, Lisboa, 1771, edição prefaciada por José Caetano de Mesquita e Quadros, e nos volumes 1 ° e 2 ° do Archivo Bibliographico da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1901 e 1901, e agora, graças ao sr. dr. Mendes dos Remédios reunidas em volume sob o titulo de Obras de Fr. Agostinho da Crus, Coimbra, 1918, 466 pags.

Historia da Litter atura Clássica 179

Esses sentimentos anteriores á entrada na vida religiosa são expressos em formosos versos, de agudezas subtis, de forma engenhosa no gosto de Petrarcha e de Camões, em que se eleva a uma concepção do amor, impregnada de devoção extrema, forma mundana da capacidade de arreba- tadamente adorar, que dominaria a sua vida e que, certo, o levaria a grande altura de inspiração.

Mas foi outro o rumo seguido pelo poeta: á religião foi buscar os themas dos seus sonetos posteriores, em numero muito maior. Dizemos posteriores, porque se nos affigura fora de duvida que os poucos sonetos profanos são chrono- logicamente anteriores aos outros, como também cremos que os sonetos religiosos publicados pelo sr. Mendes dos Remédios sejam anteriores aos sonetos religiosos, publicados por José Caetano de Mesquita. São numerosos os sonetos, dos que temos como primeiros, em que apenas se metrifica o conteúdo das orações religiosas, sem se lhes juntar con- ceito pessoal do poeta, nem sequer lhes alterar a exposição geraimente estabelecida.

São esses sonetos os que desenvolvem os seguintes motivos: ao levantar da cama, espécie de orações da manhã, protestação da fé, forma poética do Credo, Padre Nosso, Ave- Maria, confissão geral ao levantar do Cálix, oração após as refeições, oração da noite, etc. Depois Frei Agostinho da Cruz, colhendo sempre na matéria religiosa os seus themas, aos seus sonetos a forma de panegyrico, isto é, não faz descripções, nem se permitte a apresentação de sentenças próprias, revolvendo em combinações novas a velha maté- ria; porque se trata de matéria de dogma, sem admissíveis variantes de interpretação, limita- se a fazer delia o caloroso elogio, em sonoros versos, de mystica religiosidade, fazendo assim uma espécie de apologética em verso, cujo quinhão de poesia consiste na harmonia rythmica, na visão serena da paysagem e das coisas ambientes e no irromper do seu exal- tado sentimento, que faria delle um apaixonado lyrico, se as

180 Historia da Litter 'atura Clássica

circunstancias não o houvessem feito um fervoroso asceta, tão abrazado em amor divino, como o fora no amor terreno da belleza feminina. Não se espera, pois, que no cunho pes- soal do' poeta esteja a valia original dos sonetos de Agosti- nho da Cruz. Seria para tal necessário o génio creador dum Gil Vicente, que do cansado mysterio medieval soube ainda extrahir nova e original matéria de arte. Nem Agostinho da Cruz, nem os seus pioneiros, António Ferreira e Caminha, foram capazes dessa empresa de transformar a matéria de em matéria de emoção esthetica. Um dos seus mais curiosos sonetos é o que se intitula A Saudade de hum rio, em que o poeta bruscamente impelle para a vereda sempre trilhada, da meditação mystica, o curso do pensamento que ia a fugir nas asas do devaneio. Temos, pois, três phases capitães do soneto em Agostinho da Cruz: soneto amoroso, muito no gosto do seu tempo, genialmente expresso por Camões, so- neto religioso sob forma oracional e soneto religioso sob forma panegyrica. Da primeira phase restam-nos apenas nove exemplos ; é mais abundante a segunda, que é de certo modo a aprendizagem do poeta, e a terceira é a mais abun- dante versando themas como a coroa de espinhos, Deus, as chagas, Senhora da Arrábida, Santa Clara, S. João Baptista, a oração, Jesus Crucificado, Magdalena, o Natal, Santo An- tónio, S. Francisco, etc.

Nas éclogas de Frei Agostinho da Cruz desapparece o elemento dramático, não tem movimento, descrevem tran- quillos instantes, doces quietações em que louva Deus; a primeira nem tem dialogo e poderia prescindir do nome de écloga, pois não tem adornos pastoris que imprimam cara- cter. Só ou acompanhado, sempre o pastor Limabeu entoa seus hymnos de divino amor.

Outros poetas menores são geralmente nomeados nos livros de historia litteraria com grande encómio. Certo é, porem, que de alguns não se conhecem obras e de outros

Historia da Litteratura Clássica » 181

as obras que possuímos claramente mostram que nenhum movimento differencial imprimiram aos géneros poéticos.

André Falcão de Rezende (1527 ?-i5Q8) foi auctor de varias obras, principalmente do curioso poema da Creação e composição do homem, em que perfigura todo o corpo humano e a sua vivificação pela alma num castello complicadíssimo e formosíssimo, que a breve trecho cahe em ruinas e total- mente se alue.

Balthazar de Estaco (1570- ?) auctor dos Sonetos, Eglo- gas e outras rimas, António de Abreu, cujas Obras Inéditas em 1805 se publicaram, poderão ser lembrados. Os restantes interessarão á bibliographia principalmente, pois em historia litteraria apenas attestam a extensão das influencias pela imitação.

CAPTULO IV

AS NOVELLAS

As novellas, que constituem o objecto deste capitulo, representam uma forma de gosto litterario, que foi muito divulgada no século XVI e que é uma das mais característi- cas originalidades das litteraturas peninsulares. É também mais como documento desse gosto e como feição typica, que taes obras boje offerecem interesse, pois não são muito nu- merosas as bellezas nellas contidas, que hajam triumphado da obliteração do gosto que lhes deu origem.

As litteraturas neo-classicas foram principalmente litte- raturas poéticas, isto é, litteraturas, em que na escala hie- rarchica dos géneros os primeiros lugares eram arbitrados aos géneros poéticos ; em prosa a musa austera da histo- ria recebia o seu culto. Poetas eram os principaès modelos gregos e romanos.

Pois, apesar desta condição geral, e da condição espe- cial de ser a nossa litteratura predominantemente lyrica, o nosso quinhentismo produziu vários romances em prosa, dois dos quaes, de influencia europêa, muito vivamente ex- pressaram o gosto da épocha pelas narrativas de maravilho- sas aventuras de amor. Na essência, estas obras eram tam- bém muito obras de lyrismo, algumas até de caracter auto-biographico, e estavam, pois, de accordo com a nossa tradição litteraria, se havendo appropriado dum meio de expressão, pouco em apreço, a prosa.

184 Historia da LUter atura Clássica

O romance moderno, das litteraturas neo-latinas que logo em plenos séculos xni e xiv o cultivaram, ainda na sua phase de intensa imitação dos modelos da Grécia e de Roma constituiu-se de modo muito imprevisto,, constitui- ção estranha que é uma das maiores surpresas da evolução litteraria. As litteraturas helíenicá e latina não podiam os auctores pedir exemplos, porque ellas os não podiam pro- porcionar. A Económica, de Xenophonte, em que o celebre discípulo de Platão sob forma dialogai faz o elogio da agri- cultura, da perfeita administração caseira e expõe o proveito que traz a collaboração da mulher nessa administração e a Cyropedia, bíographia amena de Cyror são as únicas obras clássicas a que se poderá attribuir por extensão o nome de romances. Mas não seria licito arbitrar-lhes também a pater- nidade do desenvolvimento, tão intenso e tão multimodo, do romance, que no fim da edade média e no principio da era clássica ostentou modalidades tão distinctas; Menéndes y Pelayo, na monographia magistral que ás origens deste gé- nero consagrou ('), aponta, e sem ar de classificação, as se- guintes espécies, algumas das quaes por sua vez ainda divi- síveis; livros de cavallarias, novellas sentimentaes, novelias by2antinas de aventuras, novellas históricas, novellas pasto- ris e livros de geographia fabulosa. É também obvio que: não se pode attribuir esse desenvolvimento complexo á trans-; formação do conteúdo de outras obras, que têm recebido um pouco apressadamente a paternidade das varias formas ulteriores do romance, como Daphnis e Chloe, novelia bucó- lica, cujo auctor se julga ter sido Longus; essa noveila é uma pintura idyllica da natureza e a narrativa cândida do amor sereno dos dois protagonistas.

Os auctores clássicos apenas proporcionaram o meio

(') Ortgehes de la novela Tomo i: Introducion, Tratado histo^ rico sobre la primitiva novela espaffola, Madrid, 1905,

Historia da Litteratura Clássica 185

pastoril, isto é, a intriga entre pastores, reaes pastores umas vezes, e outras estranhas personagens disfarçadas; se Iheo- erito foi fiel pintor da vida pastoral da Sicília e da Itália meridional, Virgílio embutiu muitas allusões a pessoas e ca- sos contemporâneos nas suas éclogas.

A intensa sympathia, que despertavam estas obras, de Theocrito, poeta da decadência grega, e de Virgílio, nellas menos original, era no geral pensar devida a dois sentimen- tos então muito vivos: a ansiedade por viver, por conhecer sequer, a vida despreoccupada e simples, sem artifícios, sem as pungentes mortificações que trabalhavam a vida do homem civilizado do século XVI, o século da historia •que fl % JWjMiSjf M**MÍàf* g ^°'1 portador, anseio a que alguém IfOWWU- *5£jj| moral ; e o vivido sentimento da natureza, que a incultura medieval e o mysticismo religiosa haviam obnubilado, pelo menos na expressão litteraria. A poesia bucólica de Theocrito e Virgílio e o romance de JLongus faltavam aos homens do século XVI numa espécie de edade de ouro da humanidade e ofFereciam á sua contem- plação quadros da natureza, a montanha, o prado, o ribeiro, paisagens que ainda não tinham visto com aquelles olhos. Não vinha também esse gosto contrariar hábitos litterarios, pois no lyrismo provençal, por toda a península ibérica am- plamente cultivado, muito abundavam as serranilhas e pas- torellas, cantigas para pastores na serra.

A épica medieval, ou fosse de original creação francesa, como é geralmente acreditado, ou fosse também de crea- ção árabe peninsular, como pretende o sr. Julian Ribe- ra (') , successivamente interpolada de novos episódios,

(•) V. Discursos leidos ante la Real Academia de la Historia cn la recepción publica dei senor D. Jiriián Ribera y Tarragó el dia 6 de junio de içij. Madrid, 1915, 81 pags. Segundo suas próprias palavras, é assim enunciada a these do sr. Ribéra : Huellas, que aparecer, cn los primiti* vos historiadores niusulmanes de la península, de una poesia épica rotnan*

186 Historia da Litteraiura Clássica

amplificada desmedidamente e depois prosificada, tomou-se desde que todo o decurso das aventuras se sujeitou a uma certa unidade de acção em romance de cavallaria. Em França esta transformação foi auxiliada pela dum género seu pró- prio, o fabliau, narrativa graciosa com uma comprehensão mais larga que as gestas, o qual extrahia os seus assumptos da vida commum. Deveria ter contribuído para a prosifica- ção da gesta a divulgação da imprensa ; o verso era um bordão para a memoria, desnecessário quando, por serem impressas, as narrativas podiam ser lidas e apresentarem uma maior extensão.

Alguns lais são conhecidos hoje tanto na forma poética antiga, como na redacção em prosa. E um delles é o famoso Amadis de Gaula, de que se tem pretendido que a primeira prosificação seja do português Vasco de Lobeira. Em Itália o poema arthuriano, amoroso e cavalheiresco, foi levado a grande brilho por Pulei, auetor do Morgante Maggiore, por Boiardo, auetor do Orlando Innamorato e por Ariosto no seu famoso Orlando Furioso, pela primeira vez impresso em 1516, obra de génio, que suscitou numerosas imitações sem mérito; depois do poema de Ariosto, que representa um thema me- dievo tratado com todos os petrechos intellectuaes dum ho- mem da Renascença, de cultura clássica, Cervantes apre- sentaria uma composição nova, a satyrica. Ainda na Itália Boccacio déra-nos um romance pastoral, o Ameto, Boiardo as suas Egloghe, Sannazaro a sua Arcádia, demonstrações elo- quentes do gosto pastoril, logo imitado na península por Boscan, Garcilaso de la Vega e de Miranda.

ceada que debió florecer en Andalucia en los siglos ix y x- Póde-se ver uma summula das idéas do sr. Ribéra a tal respeito na resenha que pu- blicámos, dos Discursos, no 5.0 vol. da Revista de Historia, pags. 88 e 89, Lisboa, 1916.

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JOÃO DE BARROS

É João de Barros, o historiador famoso que mais largo lugar occupará no capitulo sobre a historiographia, quem abre esta pequena galeria de novellistas.

Em 1520, publicou se a Chronica do Emperador Clarimundo donde os Reis de Portugal descendem, obra dedicada ao principe D. João, depois rei terceiro do nome, de cuja infância e estu- dos fora João de Barros assíduo companheiro .

O entrecho do romance é sobremodo enredado, porque muitas são as personagens, muitos os seus encontros casuaes, muitos os reconhecimentos, e repetidamente novas personagens accrescem com sua missão, donde derivam novas aventuras, correrias em busca de certo castello, encontros e recontros. Certo que João de Barros era fartamente lido na litteratura do género e que delia possuia os lugares communs de escola, com os quaes de prompto poderia urdir um novo romance. Mas, apesar da edade moça em que compôs este romance, não se limitou a obedecer passivamente ao gosto corrente, antes elementos pessoaes lhe juntou. Um sopro de lyrismo percorre todo o romance, c qual com elle se vitaliza e ame- niza ; a longa e emmaranhada acção tem sua emotividade, expressa pela fluência do estylo, pela descripção singela, mas viva. O que é da escola e o que é de João de Barros, na longa fiada de episódios, quaes os themas do cyclo e os introduzidos pela imaginação de João de Barros -7- é hoje difficil distinguir, como também não é fácil apurar o que de allusões pessoaes e contemporâneas se possa conter nesses episódios accrescidos por João de Barros. uma analyse minuciosa e uma comparação quasi juxtalinear poderiam offerecer indicações seguras, e tal pratica não tem cabimento senão em monographia especial sobre a obra. O elemento principal de novidade e esse bem evidentemente expresso, que a Chronica do Emperador Clarimundo trouxe, foi a glorifi-

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cação da pátria. João de Barros quiz fazer uma galante apo- theose patriótica e, como homem de letras do seu tempo, fê-la com os meios que o gosto do tempo lhe proporcionava. Gil Vicente fê-la mais duma vez pelo seu theatro ; João de Barros fê-la por meio dum romance de cavallaria. Logo em princi- pio da obra, quando a simula traduzida do húngaro e reve- lada por um fidalgo allemão da corte, Carlim Delamor, que teria vindo no séquito da rainha, declara que a curiosidade dessa obra está na circunstancia de ser o imperador Clari- mundo, de Constantinopla, antepassado dos reis de Portugal. O vinculo era o Conde D. Henrique, pae de D. Affònso I, segundo genito de um rei da Hungria e neto do imperador Clarimundo. Nos dois primeiros livros é narrada a vida tem- pestuosa de Clarimundo, desde o seu nascimento e creação até á entrada em Constantinopla e occupação do throno. No livro 8.°, são descriptos os errores de Clarimundo, imperador, que passando junto á costa de Portugal, aqui desembarca e tem combate com um maléfico gigante, que é vencido e tnorto. Desejoso de igualmente medir forças com um irmão do gigante, que diziam habitar o castello de Torres Vedras, para alli pretende dirigir-se. Desviado desse propósito por JFanimôr e conduzido ao eirado da mais alta torre do cas- tello, donde a vista alcançava larga extensão de mar e terra, ouve em grande recolhimento a prophecia das proezas he- róicas que na terra praticariam os reis de Portugal, seus descendentes. E sob a lua cheia, no silencio da noite, Fani- môr faz a sua invocação, pede á divina Trindade :

Infunde em mim graça pêra dizer

As obras ião grandes, que hâo de fazer

Os Reys Portuguezes com sua bondade.

E « arrebatado de hum espirito divino, que o accendeo com tanto furor, que ás vezes parecia um gigante», narra a Clarimundo maravilhado os feitos de Afíonso Henriques e

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dos reis subsequentes até ás navegações e conquistas de Africa e Oriente. A narrativa das prophecias é feita ora em verso, oitava rima, em estylo altiloquo, de tom épico, ora em prosa, representando o primeiro o discurso directo de Fanimôr, e a segunda a reproducção da sua falia por João de Barros. Esta apologia das grandezas da pátria pedia um estylo intenso, com expressão diversa da narrativa tran- quilla do romance, e João de Barros encontrou certa vehe- meneia de linguagem, ainda mais na prosa que no verso. Esta é a originalidade principal do romance de cavallaria do auetor das Décadas, que está plenamente de accordo com o caracter predominante e a intenção da sua obra histórica, que ao deante evidenciaremos. Uma das estancias deste poe- ma da falia prophetica de Fanimôr é muito provável fonte da passagem correspondente dos Lusíadas, sobre a apparição de Jesus Christo a D. Affonso Henriques, em Ourique :

« O campo de Ourique jágora he contente Da grande victoria que nelle será, Onde Christo em carne apparecerá Mostrando as chagas publicamente.

Ao qual este Rey Sancto, prudente

Dirá : Ó meu Deus, a mim pêra que ?

aos Herejes inimigos da Fé,

Da em que eu ardo d'amor muy ardente .

E toda a peça poderá também ser apontada como provável fonte da prophecia da sereia no canto X dos Lusíadas. Como se vê, então João de Barros tinha o pensa- mento fito da epopêa nacional. (*)

(J) A Chronica do Emperador Clarimundo, pela primeira vez publicada em 1530, foi reproduzida em 1553, 1601, 1742, 1791 c 1843.

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JORGE DE MONTEMOR

Em 1542 foi publicada a primeira parte da famosa novella Los siete libros de la Dia?ia, obra hespanhola do português Jorge de Montemor. Apesar da nacionalidade de seu auctor, tal obra pertence á historia litteraria de Hes- panha ; razões de facto e razões de critica nos determinam á deliberação de a não incluir no presente quadro do nosso quinhentismo. (')

( ) Jorge de Montemor nasceu na villa, de que tomou o appellido, no fim do primeiro quartel do scculo xvi. Passando muito cedo a Hes- panha, teve o lugar de musico da capella real de Madrid. Em 1552 acompanhou a Portugal a infanta D. Joanna, filha de Carlos v, que veio casar com o príncipe D. João, p>e de D. Sebastião. Foi durante esta estada em Portugal que escreveu a de Miranda uma epistola autobio- graphica, em castelhano, a que c potra português respondeu do mesmo modo. Em J555 acompanhou a Jrglaterra o príncipe D. Filippe e em 1560 achava-se na Itália, ro Piemonte. Ahi morreu em 1561, na cidade de Turim, dum duello cujas causas não são bem conhecidas Todas as suas obras foram escriptas em língua castelhana; do seu cultivo da lingua portuguesa apenas ha a tradição conservada por um editor de haver começado a escrever um poema O Descobrimento da índia Oriental, plano prejudicado pela morte.

Ai êrca da sua novella pastoral e acerca da sua larguíssima influencia 01a Europa, principalmente sobre a btteratura francesa, pode- se consultar a seguinte bibliographia : G Schõnherr, Jorge de Montemayor, sem Leben und seitt Schãjjcrrrcuian, Halle, 18^6; H A. Rennert, The Span>sh Pas- toral Novel, Baltimore, 1892; G. Ticknor, History 0/ Spanish Literatare, Boston, 1849; Domingos Garcia Pt-rez, Catalogo ra&onado, biográj co y b blw grájlco de los andores portugueses que escrib<ercn en castellano, Madrid, 1890; E Fernandez de Nav arrete, Bosquejo histórico sobre la ntvela esperneia;]. Fitzmaurice-Kclly, The Bbl ography o/lhe Diana ena- morada, na Revue Hispanique, 1895; Menéndez y Pelayo, Orígmes dela Novela, tomo i.°, Madrid, 1905; Sousa Viterbo, Jorge de Montemor, no Archivo Histórico Português, Lisboa, 1903; K. Tobler, Shakespeares Sommersnachtstrattm nnd Montemaycrs Diana. Weimar, 1898; Lu Pas- torale Drama tique en Vrance, Jules Marsan, Paris, 1905. As razões por

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FRANCISCO DE MORAES

Ao Imperador Clarimundo segue-se chronologtcamente o romance também de cavallarias, o Palmeirim de Ingla'errat de Francisco de Moraes, ( ) que appareceu provavelmente em 1544. Era esta obra a contribuição portuguesa para o cyclo dos Palmeirins, tão abundante e tão preferido, como o fora o dos Amadis. Á data do apparecimento da obra portu- guesa era muito divulgado o gosto desses romances, em Hespanha. Abrira o cyclo o original hespanhol, Palmeirim de Oliva, de Salamanca, 151 1 (8), escripta por auctor anonymo,

que excluimos do nosso estudo e consideramos estranha á historia litte- raria de Portugal a D ana em que ha algumas curtas phrases e dois poemetos em português estão expostas no nosso artigo, suggerido pelo próprio Montemor, Do critério de nacionalidade nas littcraturas, publicado no Instituto, vol. 64. °, Coimbra, 1917, e nos Estudos de Litte' r atura, 2 a Serie, Lisboa, 1918.

i1) Francisco de Moraes, o Palmeirim, nasceu provavelmente nos arredores de Lisboa, nos fins do século xv ou em 1500, filho deSebas- íião de Moraes, thesoureiro-mór do reino. Protegido por D. João nr, re- cebeu nomeação de thesoureiro da rasa real Privou com os condes de Linhares e acompanhou como secretario o conde D. Francisco de Noro- nha, quísndo este partiu para França, como embaixador. Na corte fran- cesa deixou-se tomar de amores por uma dama de honor da rainha D. Leonor, viuva de D. Manuel 1 e depois esposa de Francisco 1, de França Não sendo correspondido, compòz a Desculpa duns amores,.. publicados em 1624 Recentemente, o sr. Conde de Sabugosa recons- tituiu esses amores num ensaio desse mesmo titulo, Desculpa duns amo- res, nas Neves de Antanho, Lisboa, 1919.

Regressou a Portugal em 1543 e casou, passando de cincoenta annos de edade, com Barbara Madeira. Em 1549 voltou a França com D. Francisco de Noronha e em 1550 estava de volta, pois sabe-se que tomou parte num famoso torneio de Xabregas. Passou a ultima parte da sua vida em Évora, onde morreu assassinado talvez em 1^72. Usou, como appellido de família, o nome de Palmeirim, a isso especialmente aucto- rizado pelo rei D. João 111.

(2) Reeditada esta i.a parte em 1516, 1525, 1526, 1534, 1540, 1547, Í555, 1562 e 1580.

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provavelmente a filha dum carpinteiro de Burgos, segundo o testemunho coevo de Francisco Delicado ; a essa primeira parte se seguira logo em Salamanca, 15 12, o Primaleão da Grécia -('), segundo inferências do próprio texto, obra da mesma desconhecida auetora. Nelle se narram as aventuras corridas e os feitos praticados por Primaleão e Polendo, filhos do imperador Palmeirim, protagonista da i.a parte. Em 1533, Valladolid, outro anonymo auetor, também hespa- nhol, proseguia a chronica pittoresca dessa phantastica famí- lia dos Palmeirins e narrava a agitada e heróica biographia de Platir, filho do imperador Palmeirim da Grécia e de Gridonia ; e também se presume a existência de outra obra, de que hoje se não conhece o auetor, nem a data da publicação nem sequer nenhum exemplar, em que seria historiada a vida de Flortir, filho do imperador Platir e de Florinda, sua esposa, filha dum rei da Lacedemonia. Desta obra apenas se sabe que François de Vernassal, traduetor da Primaleão, viu um exemplar em 1549. Seu auetor crê-se fosse italiano,

Francisco de Moraes escolheu para heroe da sua chro- nica de aventuras a Palmeirim de Inglaterra, filho de D. Duardos, príncipe da Inglaterra, e de Flerida. Este protago- nista da novella portuguesa entroncava na genealogia dos Palmeirins por sua mãe, Flerida, que era irmã de Primaleão da Grécia e filha de Palmeirim de Oliva e Polinarda.

Resumimos a seguir, muito summariamente, o enredado entrecho do Palmeirim de Inglaterra.

D. Duardos, filho de Fradique, rei de Inglaterra, viera á Grécia para se casar com Flerida, casamento que fez em meio de esplendidas festas. Acabadas as bodas, retirou-se com sua esposa. Algum tempo depois, como ella se sentisse gravida e mal passasse durante tal período, D. Duardos, para

\}) Reeditada esta a." parte em 1516, 1524, 1528, 1534, 1563, 1566,. 1585 e 1588.

Historia da Litter atura Clássica 193

a distrahir, levou-a para uns paços, que possuía em meio duma floresta. Como Flerida se comprouvesse naquella moradia e D. Duardos amasse as caçadas de montaria, por alli estan- cearam até ao bom successo. Uma vez que D. Duardos sahira ú caça, vendo fugir um javali, perseguiu-o em tão doida correria que, sem o attingir, se affastou muito do acampamento, onde ficava a esposa com suas damas, e se perdeu.

Caminhando á toa, fora dar a um forte castello, em meio dum rio, onde o gasalharam a principio festivamente para o poderem surprehender desarmado e o prenderem. E que nesse castello vivia Eutropa, muita sabia nas artes de feiti- çaria e encantamento, que alli aguardava, muitos annos havia, o ensejo de tomar vingança da morte de Farnaque, gigante seu irmão, morto em combate por Palmeirim de Oliva. Eutropa creara desveladamente a Dramusiando, gi- gante filho de Farnaque, a quem confiara seus projectos de vingança. Fora, de facto, este Dramusiando quem subjugara D. Duardos, colhido no somno e sem armas. O destino de D. Duardos não ficara ignorado dos seus, porque Argonida, filha de Eutropa, o delatou, movida pelo antigo amor que a prendera ao esforçado cavalleiro.

Emquanto seu esposo era traiçoeiramente aprisionado, Flerida, em prantos e lamentações, desesperada de rehaver o esposo, dava á luz dois robustos filhos, que houveram no- mes de Palmeirim de Inglaterra, protagonista da obra, e Floriano do Deserto.

A ambos colhe e furta um feroz selvagem, que vivia da caça que fazia com dois leões seus companheiros. O selva- gem que roubara os infantes recem-nascidos não os deu a comer aos seus leões, como projectara, porque a mulher delle, tocac; i pelo instincto maternal, a isso se oppôs e até os creou do mesmo leite, com que alimentava outro seu ver- dadeiro filho. Um dos infantes, Floriano do Deserto, per- de-se na caça, em que aos dez annos era' muito dextro e é

H. da L. Clapsica, vol. 1.» 13

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levado para Londres por Pridos, que regressava das balda- das diligencias em procura do desapparecido D. Duardos. Na corte, Floriano do Deserto é posto ao serviço de Flerida, que ignora ser sua mãe. O outro infante Palmeirim e Sel- vião, o verdadeiro filho dos selvagens, são levados pelo ca- pitão dum navio, casualmente aportado áquellas paragens, para Constantinopla. Nesta corte é Palmeirim posto ao ser- viço de Polinarda, que ignorava fosse sua prima co-irmã. A inesperada revelação da dona do Lago das Três Fadas annuncia ao imperador de Constantinopla que a formosa creança, recem-chegada, de poderosos reis christãos des- cende e que lhe estão reservados grandes destinos pelo que o imperador redobra a sua estima.

Entretanto corriam mundo, por diversos caminhos, Pri- maleão, já nosso conhecido, e Vernao, príncipe allemão, genro de Palmeirim da Grécia. Primaleão conseguia chegar ao castello de Dramusiando. Este havia determinado que quem quer, que acudisse ao castello, travaria combate com D. Duardos, a quem para esse fim concedera limitada liber- dade, e depois, successivamente, com outros gigantes até chegar a vez de Dramusiando, se o forasteiro não houvesse sido morto em tão duras provas. Um dia chegou ao castello Primaleão. que pelejando com o sequestrado D. Duardos o reconhece. Vencendo aos gigantes Pandaro e Daliagão, é afinal vencido por Dramusiando, de quem fica também pri- sioneiro.

Em Constantinopla, Palmeirim, sempre ignorada a sua personalidade authentica, era armado eavalleiro por seu avô e deixava-se enamorar da princeza Polinarda, a quem servia. Com um torneio, deslumbrante de sumptuosidade e concor- rência, festejou o imperador a concessão da cavallaria a Palmeirim. É pois chegado á maioridade aquelle, cujos fei- tos e aventuras formam o núcleo principal do romance de Moraes. Logo nesse dia, de surprehendente maneira, re- cebe elle o seu escudo, onde se achavam gravadas armas

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allusivas á sua precedente vida de sequestro com o selva- gem dos leões, na floresta.

Acompanhado de Polendos e Belcar, chega Vernao ao castello de Dramusiando, sem que nenhum conseguisse o almejado fito de libertar D. Duardos e Primaleão. Como a noticia e o sentimento se espalhassem por toda a parte, Recindos, rei de Hespanha e Arnedos, rei de França, se determinaram a por suas próprias mãos se empenharem na libertação de tão assignalados cavalleiros. Não foi outro o resultado senão servir o intuito mesmo de Dramusiando, o qual projectava tirar da morte violenta de seu pae a seguinte nobre vingança : sequestrar em seu poder D. Duardos, Primaleão e todos os esforçados cavalleiros, que em seu auxilio accorressem para com elles ir á conquista da ilha do Lago sem Fundo, que fora de seu avô Almedrago e hoje se achava usurpadamente senhoreada por outros gigantes. Conseguindo este objectivo, Dramusiando restituiria á liber- dade os seus violentados collaboradores.

Neste meio tempo, ardendo em sede de gloria, o joven Palmeirim deixava sua senhora e namorada, a princeza Po- linarda, e partia em busca de aventuras, levando o escudo que Daliarte lhe offerecêra e acompanhando- se de Selviâo, seu collaço e supposto irmão. Na sua rota, tomou o nome de Cavalleiro da Fortuna. São numerosas e variadas as aventuras guerreiras, as justas e disputas em que participa o Cavalleiro da Fortuna, nas quaes porfiam primazias a valentia do seu braço, a generosidade do seu coração e a elegante subtileza do seu dizer, a viva e apaixonada lem- brança de sua ama Polinarda. Muitos são os encontros im- previstos, que se resolvem em reconhecimentos, para cuja explicação Moraes a cada passo regressa a anteriores episó- dios, que algumas vezes constituem matéria das outras novel- las do cyclo, precedentemente publicadas.

Algumas dessas aventuras têm por assumpto themas cyclicos também, como o passo da ponte, (cap. xx) que en-

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contraremos tratado na Menina e Moça, de Bernardim Ri- beiro. Agora a historia complica- se com o novo disfarce de Palmeirim : para aquelles que ignoravam ser elle um dos verdadeiros filhos de D. Duardos, ainda accresce o desco- nhecimento em que estão de ser o Cavalleiro da Fortuna, «armado de armas de pardo e abrolhos de ouro por ellas», o mesmo que o donzel Palmeirim, creado na corte do impe- rador Palmeirim de Constantinopla, que o armara cavalleiro em meio de ruidosas festas.

Facilmente se prevê que era a Palmeirim, o cavalleiro da Fortuna, que o Destino o que equivale a dizer o plano do novellista Moraes reservava o papel de libertador de seu pae D. Duardos e seus companheiros de captiveiro. De facto, depois de haver percorrido o roteiro da aventura, a mais extravagante geographia em que a Inglaterra, a França a Hungria, a Bretanha, a Syria, a Lacedemonia e o império romano do Oriente parecem fronteiriços ou próximos vizi- nhos, estreitados por extrema facilidade de communicações depois de haver saltado por todas as casas do mappa da cavailaria, Palmeirim chegou ao valle da Perdição é sem- pre expressivamente fatidica a nomenclatura topographica dos romances de cavailaria e attingiu emfim o castello de Dramusiando. Travou lucta com D. Duardos, seu ignorado pae, que ficou indecisa; com Pandaro, a quem subjuga; com Daliagão a quem degola; e com Dramusiando que se abate extenuado e vencido. Quando Palmeirim, também muito ferido, se sentou junto do gigante vencido para lhe tirar o elmo e lhe dar o golpe de misericórdia, a elles desce a chusma de cavalleiros captivos, pedindo ao vencedor que poupe a vida do gigante. Rapidamente se curam os feridos, por intervenção opportuna dum velho e duas donzellas, das quaes « cada uma trazia na mão uma boceta dourada, em que vinham alguns unguentos necessários a tal tempo». Esta é a variada matéria da primeira parte.

A segunda parte do romance começa com a partida de

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todos os cavalleiros para Londres, libertados, com grande desespero de Eutropa, que novas vinganças premedita. Des- encantando o castello, Dramusiando, tornado amigo dos seus captivos e christão, acompanha os cavalleiros para o novo percurso de aventuras, que se vae desenrolar. O reconheci- mento de D. Duardos e de seus filhos faz-se por meio da revelação do sábio Daliarte, na presença da corte assom- brada.

A segunda parte é, como a primeira, um emmaranhado tecido de aventuras, de accesas batalhas, que sempre escure- cem as passadas; de novo occorre a lucta com um caval- leiro que guarda a ponte e, como na parte primeira, ha tam- bém um episodio nodal. Naquella era elle a libertação de D. Duardos e seus companheiros ; nesta é a tomada do Castello de Almourol, onde um poderoso gigante, também de nome Almourol, guarda a formosíssima Miraguarda. Pal- meirim vence o Cayalleiro Triste, que era um dos defenso- res de Miraguarda e que por esta é affastado do Castello. E ao gigante Almourol vence o gigante Dramusiando que se encarrega da guarda do castello, durante o impedimento de Almourol, muito gravemente ferido. Ás portas do Cas- tello, repetem -se os combates e desfilam os mais heróicos e experimentados cavalleiros da christandade, dos quaes é sempre o primeiro entre os primeiros o protagonista Palmei- rim. E como a fama da formosura de Miraguarda transpu- sesse as fronteiras da christandade e suscitasse ciúmes a Targiana, princeza da Turquia, servida por Albayzar de Babylonia, também de tão longe vem Albayzar de Babylonia.

Seria bastante indicio da victoria dependurar o escudo vencedor em lugar mais alto que aquelle onde brilhava o escudo com o vulto de Miraguarda. Albayzar trava combate com Dramusiando, mas nas tréguas da noite, receoso de vir a ser vencido, rouba o escudo de Miraguarda e foge. Este episodio mostra, por parte de Moraes, prejuízos religiosos e de raças, pois em Albayzar, que não era christão, e em

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Targiana, que também christã não era, figurou as únicas personagens de cobardia e baixa inveja, que ha no seu ro- mance.

Em busca do roubador Albayzar, parte Florendos e muitos riscos corre e vence, accomettendo-o sempre novos perigos imprevistos; a esse rosário infindo de batalhas, captiveiros e sortilégios, associa-se Floriano do Deserto, que fora aprisionado por Auderramete, irmão de Albayzar. O amor que Floriano do Deserto concebe por Targiana inspira-lhe novos heroísmos e arriscadas proezas. E logo a primeira é o rapto de Targiana, que Floriano faz, levando-a para Constantinopla, então cidade christã. Esta audácia determina, da parte de Grão-Turco, o aprisionamento dos cavalleiros que confiadamente tinham vindo aos seus domí- nios, a acompanhar Targiana, restituída por ordem do imperador, aos quaes guarda em seu poder até que lhe entreguem o roubador da filha. E assim, sempre mais com- plicada de episódios novos, mas com feliz desfecho, a que logo accrescem outros, que de novo enredam o entrecho e não deixam amortecer-lhe a vivacidade e a complicação,

4ecorre o romance de Moraes, sequencia continua de acções árias, separáveis, quasi autónomas, escassamente ligadas por um ténue fio, cujo fim é sempre exemplificar e demons- trar qual era o theor de vida dum verdadeiro cavalleiro, sem medo, nem mácula, correndo aventuras por sua dama. No final da novella, aos combates singulares succedem-se as batalhas de exércitos ou grupos de cavalleiros, e assistimos ao combate dos doze batalhadores e a duas grandes bata- lhas campaes entre tropas christãs e tropas turcas. É por uma grande batalha campal onde uns enlouquecem e outros morrem e pela descripção da ôòr de suas damas que o romance fenece.

Muita matéria ficava ainda por tratar: de um lado, a Ilha Perigosa, onde jaziam os mortos e as viuvas os pran- teavam, continuava encantada,? porque o feiticeiro Daliarte

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fora assassinado sem quebrar esse encanto; doutro lado, daquelles heroes alguns deixaram geração digna de con- tinuar suas proezas. O próprio Palmeirim de Inglaterra teve um filho delle digno, D. Duardos li, e o mesmo Fran- cisco Moraes annunciou a sua chronica: «como na chronica do segundo D. Duardos, filho de Palmeirim de Inglaterra se pôde ver » (').

Unidade de acção ninguém a procure neste romance, que não teve em vista a ostentação de tal predicado, mas opulências de imaginação, sequencia ininterrupta de impre- vistos, exemplos de heroísmo inesgottavel, movimento e agitação, extrema inverosimilhança; isso intensamente se observa na obra de Moraes. As obras deste género tinham por objectivo dois vicios de composição litteraria, a que modernamente, sobretudo com o realismo, se fez a devida justiça: o maravilhoso e o romanesco. Taes obras corres- pondem a um género actual, inteiramente posto de lado do quadro dos vaiòres litterarios, o romance de aventuras, de Montépin, Richebourg, Ponson du Terrail oa Perez Escrich. os petrechos com que se architecta esse maravilhoso e esse romanesco divergem, porque também diverge o theor de vida dentro do qual o enredo tem de decorrer por con- descendência com o mínimo de verosimilhança, a que se obrigam seus auctores: em vez dos feitos heróicos, dos amores inspiradores de épicas façanhas, dos cavalleiros andantes, dos gigantes e das fadas, dos encantamentos, da geographia maravilhosa, os meios modernos como a astúcia, a lethargia, a audácia, a investigação policial, a crimina- lidade servida por inventos aperfeiçoados. É bom recordar este estádio do género para se reconhercer o grande per- curso de progresso andado para chegar a Balzac, Flaubert, Zola ou Dickens e para sabermos as razões históricas e

(*) V. pag. 382 da edição de Lisboa, 1852, 3.° vol.

200 Historia da Lttteratura Clássica

estheticas que relegaram o actual romance de aventuras para o subalternissimo lugar que se ihe abandona.

Todavia, o Palmeirim de Inglaterra aceusa algum pro- gresso na evolução do género. Mais diserta a dicção, plena- mente cumpre seu objectivo de dignificar a vida cavalheirosa dos altos ideaes, dominada por sentimentos de honra, de heroismo e de justiça corajosa. A imaginação mais fecunda ensancha a narrativa com episódios sempre variados, não se limitando á parte concreta e objectiva, mas demorando-se na pintura das physionomias e dos trajos e na descripção dos sentimentos. Assim, exemplificando, dá-nos o retrato de Dramusiando : «As condições de Dramusiando eram estas: de todalas cousas da natureza assaz perfeito: de corpo e rosto bem proporcionado : não de grandeza desmedida, como os outros gigantes, dotado de maiores forças do que seus membros pareciam; mui nobre de condição, e esfor- çado sobre os outros homens ; menos soberbo do que a gigante convinha: aprazível na conversação: grandemente destro em todas as armas; e sobre tudo o melhor cavalleiro que em seu tempo antre todos os gigantes houve > (1).

Reproduzimos outro exemplo: «Acabado o comer en- trou pela porta uma donzella fermosa, vestida ao modo inglez de uma roupa de setim avelludado negro, e em cima uma capa cueta de escarlata roxa, broslada de chaperia rica e louçãa, com rosto sereno e algum tanto descon- tente» (2).

Na sua linguagem ha não fluência, mas elegância e até subtileza, sobretudo nos diálogos entre cavalleiros, onde não será imprudente descobrir algumas agudezas prenuncias do gosto gongorico. Mas o mérito fundamental será sempre o da exuberante imaginação, em que a variedade dos epi-

(») V. i.° vol. da ed. cit., pags. 21-22 (2) V. i.° vol. da ed. cit., pag. 79.

Historia da Litteratura Clássica 201

sodios, a concorrência de personagens, a largueza do campo de acção, os petrechos litterarios da epocha, a topographia fatídica, a geographia phantastica e a chronologia fabulosa se deram as mãos para produzir esse trama enredado, que alguns auctores não hesitaram em comparar a Homero (*) e que antes merecera a Cervantes o bem conhecido elogio (2). A esse mérito real e ao facto de haver sido objecto de longa controvérsia a respeito da nacionalidade de seu auctor deve o Palmeirim as sympathias, que tem desfructado. A questão da naturalidade está hoje definitivamente resolvida a favor de Moraes. (*)

(') Y. Oclorico Mendes no seu Opúsculo acerca do Palmeirim de Inglaterra, a pag. 24 e 26, e Nicolas Diaz Benjuméa no seu Discurso sobre el Palmeirin de Inglaterra y su verdadero autor, a pag. 81.

(2) Por bocca do cura, occupado na queima dos romances de cavallarias que formavam a livraria de D. Quixote, diz do Palmeirim Cervantes no capitulo 6.° da Parte 2.a do seu famoso romance : . . «y esa palma de Inglaterra se guarde y se conserve como a cosa única, y se haga para el!a outra cajá como la que halló Alejandro en los despojos de Dário, que la disputo para guardar en ella las obras dei poeta Homero. Este libro, senor compadre, tiene autoridad por dos cosas; la una porque el por si es muy bueno, y la otra porque es fama que le compuso un discreto rey de Portugal. Todas las aventuras dei castillo de Miraguarda son bonissimas y de grande artificio, las razones corte- sanas y claras, que guardan y miran el decoro dei que habla con mucha propriedad y entendimiento. Digo pues, salvo vuestro buen parecer, senor Maese Nicolás, que este y Amadis de Gaula queden libres dei fuego, y todos los demás, sin hacer más cala y cata, perezean».

(*) Julgamos conveniente rememorar as phases principaes da controvérsia que se agitou cm torno da nacionalidade do auctor do Pal- meirim. Foi Vicente Salva, bibliophilo e livreiro em Londres, que, em 1826, no seu catalogo dos livros hespanhoes e portugueses impressos em Londres, levantou a questão, attribuindo a auetoria da obra a um hes- panhol, Miguel Ferrer ou Luiz Hurtado, com o fundamento de que a edição de Palmeirim, em hespanhol, é de 1547 e a edição portuguesa é de 1567, conforme reza o colophonte, e o da phrase formada pelas ini- ciaes do acróstico, que precede a edição hespanhola : Luis Hurtado autor ai lector da salud. Pascual de Gayangos perfilhou essa mesma

202 Historia da LU ter atura Clássica

A obra de Moraes foi traduzida para a língua hespa- nhola logo em 1547 a primeira parte e em 1548 a segunda por traductor desconhecido; para francês por Jacques Vin- cent em' 1552 e 1553; para lingua italiana por Mambrino Róseo em 1553 e 1555 e pelo mesmo continuada em 1558; e para lingua inglesa por A. Munday em 1596. Em portu- guês teve também seus continuadores: em 1586, Diogo

opinião e deu-lhe auctoridade para que fosse acceita nos meios littera- rios. Em defeza da hypothese da nacionalidade portuguesa, sahiu Ma- nuc 1 Odorieo Mendes, humanista brasileiro, que publicou em Lisboa, 1860, o seu Opusculo ácèrca do Palmeirim de Inglaterra e do seu autor no qual se prova haver sido a referida obra composta originalmente em português, em que adduz os seguintes argumentos: i.° a dedicatória do romance á infanta D. Maria em 1544, em que se falia da obra concluída ; 2.0 con- siderar como referente ao acróstico a phrase que as suas iniciaes formam : Luiz Hurtado seria auetor do acróstico ; 3.0 o episodio das justas ein honra de quatro senhoras francesas, uma das quaes é Torci por quem Moraes se apaixonara, quando estivera em França; 40 a declarada preferencia de Moraes pela paisagem e pelas personagens portuguesas. A este opusculo respondeu Pascual de Gayangos na Re- vista Espauola, mantendo a opinião em favor de auetor hespanhol, com o argumento principal de que a edição mais antiga continuava a ser a hespanhola e a única declaração franca era a do acróstico ; quanto Men- des allegava eram provas indirectas, sem segurança. Em 1877, o erudito hespanhol Nicolas Diaz Benjuméa volta a ventilar o problema mas deci- didamente a favor de Francisco Moraes. Benjuméa, muito diffusamente, repete as razões principaes de Odorieo Mendes, por nós reproduzidas, e outros pequenos argumentos também primeiramente adduzidos por Mendes. Em J904 renovou esta discussão o sr. W. Purser que pormeno- rizou e documentou mais seguramente as allegações de Mendes, fazendo também investigações acerca de Ferrer e Hurtado, aos quaes alternada- mente se attribuia o romance, para assim produzir também a parte ne- gativa da demonstração. A propósito desse livro, o sr. Fitzmaurice- Kelly no 10. ° vol. da Rcvue Hispanique oceupou-se também desta maté- ria, votando pelo auetor português. Em 1916, o sr. Henry Thomas rememora esta discussão, que considera definitivamente resolvida a favor de Francisco Moraes, na sua communicação á Sociedade Biblio- graphica de Londres, The Palmeirin Romances. Londres. O trabalho de

Historia da IÁtteratura Clássica 203

Fernandes (') fez publicar o seu D. Duardos II, partes terceira e quarta do Palmeirim de Inglaterra; e em 1602, Balthazar Gonçalves Lobato (3) deu o seu Clatisol de Bretanha, partes quinta e sexta do Palmeirim. D. Duardos 11 era filho de Pal- meirim de Inglaterra e Polinarda; e Clarisol de Bretanha era filho de D. Duardos II e de Carmelia.

Em torno dos heroes centraes, que deram o nome ás obras, muitos outros se agitam e ostentam seus heroismos. Os caracteristicos destas obras são semelhantes aos do Pai' meirim, mas em intensidade mais attenuada.

Em 1626, por diligencias de Manuel de Carvalho, appa- receram em Évora, com dedicatória a Manuel Severim de Faria, Os Diálogos de Francisco de Moraes, author de Palmeirim de Inglaterra. Com um desengano de amor, sobre certos amores, que o author teve em França com uma dama francesa da rai?iha Dona Leonor. Sâo trôs os diálogos e de Índole muito outra da novella. No primeiro são interlocutores um escudeiro que allega razões contra a nobreza de herança, sua contem- porânea, que não provinha da aristocracia moral, de feitos

Benjuméa está publicado no tomo iv, parte n da collecção Historia e Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa e oceupa 87 pags. Do conteúdo do excellente livro do sr. Purser póde-se avaliar pelo extenso e judicioso parecer sobre elle feito por José de Sousa Monteiro e publicado no vol. 2.0 do Boletim da Segunda Classe da Academia Real das Sciencias, Lisboa, 1910, pags. 281-299. Também de Francisco Mo- raes e da sua novella se oceupou a sr.a D. Carolina Michaelis de Vas- concellos na Zcitsc/irift. fúr Romanische Philologie, tomo vi, Halle, 1883. O sr. Henry Thomas condensou todas as investigações acerca da novellistica peninsular na obra recente : Spanish and Portugitese Ro- mances of Chivalry The revival 0/ the romance 0/ chivalry in tlie spanish Península, and ifs extension and influenze abroad, Cambridge,. 1920, 335 pags. E uma obra fundamental.— A bibliographia do problema da auetoria do Palmeirim está mencionada a pag. 182-5 da 3." ed. da nossa Critica Litteraria como Sciencia.

(x) Ignora-se a biographia de Diogo Fernandes.

(2) Ignora-se a biographia de Balthazar Gonçalves Lobato.

204 Historia da Litteratura Clássica

ou virtudes, e um fidalgo que defende a sua classe e impugna tantas letras que com surpreza nota no escudeiro contendor. A leitura devia ser defeza a escudeiros, que haviam «de ter alçada até Amadis, e não mais por diante». O segundo dia- logo decorre entre um cavalleiro e um doutor. Discutem estes um problema, que muito preoccupou nossos maiores e que repetidamente foi versado nas academias dos séculos xvn e XYlli: a primazia da carreira das letras ou das armas. Este dialogo é gracioso e vivo, um verdadeiro tiroteio de razões, frequentemente de ordem pratica e por isso mais pondero- sas. O terceiro, mais breve, reproduz o derrete dum moço de estribeira com uma regateúa e tem principal valor como repositório de miúdas informações sobre indumentária po- pular. A Desculpa duns amores narra, com encantadora since- ridade e elegante forma os seus não correspondidos amores por M.e,le de Torcy, de quem queria fazer-se comprehender em português, em castelhano, em prosa e em verso, mas sempre em vão, porque se a dama bem conhecia os desejos de Moraes, não sabia que cousa era «querer bem como por- tuguês». Esta formosa peça autobiographica, pelas seme- lhanças que ostenta com circunstancias da justa do Palmei- rim, capítulos i37.°-i47.°, em honra de quatro damas france- sas, constituiu novo e importante argumento em favor da auctoria portuguesa.

BERNARDIM RIBEIRO

Com alguns annos de intervailo, succedeu ao Palmeirim a Menina e Moça, cujo primeiro livro se publicou em Ferrara, no anno de 1554, e cuja primeira edição completa appareceu em 1557, datas ambas posteriores á morte de Bernardim Ribeiro.

O primeiro livro é uma espécie de prologo á parte mais intensa da acção, a qual decorre no segundo livro. Repro-

Historia da Litteratura Clássica 205

duzimos a seguir o enredo, para que mais seguramente se- jamos acompanhados no nosso exame.

Alguém, que se não nomeia, do sexo feminino, e que por desventuras amorosas se desterrara em plena mocidade de belleza para um cimo na Serra de Cintra, levanta-se uma manhã, absorto em pungentes recordações, como sempre, e põe-se a caminho, indo descansar num fresco valle, á mar- gem dum ribeiro. Na ramaria das arvores canta um rouxi- nol, que de cansado cahe e se affbga no rio. Emquanto lamenta a morte cruel da innocente ave, approxima-se uma dama de nobre presença, d'aspecto soffredor; uma instinctiva sympathia as attrahe, e a recem-chegada, havendo percebido que a donzella desejava recatar o seu segredo, propõe-se contar-lhe uma historia de desventurado amor, a historia de dois amigos que a seu pae ouvira e que decorrera naquelle mesmo valle, ao tempo habitado e opulento de paços nobres. E, após umas amargas reflexões, começa a longa narrativa: Alli se estabelecera em tempos um nobre cavalleiro , apor- tado á mais próxima praia. Lamentor se chamava elle e acompanhavam-no Belisa, que por devotado amor o seguira, abandonando a sua família e o seu paiz, e Aonia, irmã de Belisa.

Ao atravessarem a ponte, sahiu-lhes ao encontro o es- cudeiro dum cavalleiro, que alli aguardava aventuras du- rante o prazo de três annos, prazo que lhe fora ordenado por sua exigente e desapiedada dama, findo o qual, se hou- vesse logrado sahir-se victorioso de todos os passos, possui- ria a desejada mão. Resistindo a principio, Lamentor annúe, acceita o desafio e o cavalleiro da ponte é vencido e morre pouco abaixo do lugar da justa, de olhos postos no castello da sua dama, quando faltavam oito dias para concluir o longo prazo de ansiosa espera. Alli se fixa Lamentor, e logo na primeira noite, quando Lamentor pesadamente dormia, Be- lisa dá á luz uma filha, que se chamará Arima. e morre do parto.

£06 Historia da Litteratura Clássica

Não desiste Lamentor do seu primitivo propósito de alli se estabelecer, e ás primitivas tendas succedem uns opulentos paços. Entretanto novo cavalleiro chega para dis- putar o passo aos que cruzavam a ponte. Attrahido pelos prantos, com que era lamentada a morte de Belisa, Aonia e delia promptamente se namora. Após curta indecisão, de- termina abandonar Cruelcia, sua primeira dama, por cujo amor viera correr aventuras e para disfarce toma o nome de Bimnarder, suggerido por uma phrase dum mateiro que vinha passando. Uma vez que os lobos perseguiram e mata- ram o seu cavallo, travou conhecimento com os pastores do sitio ; esse conhecimento lhe lembrou a resolução de tomar o disfarce de pastor, o que faz sob aquelle nome, merecendo a alcunha do da flauta, por neste instrumento sempre pran- tear suas saudades. A narradora exemplifica os cantares de Bimnarder. Estas cantigas e o todo de Bimnarder fazem crer á ama de Arima e companheira de Aonia, que o pastor da flauta era um falso pastor. A perspicácia da ama foi au- xiliada pelo seu conhecimento do paiz, pois dalli era e dalli sahira para por amor acompanhar alguém, de que viuvara no paiz de Aonia, cuja mãe a recolhera. Communicando a Aonia as suas suspeitas, desperta-lhe a curiosidade. Esta, uma vez que do eirado o espreitava, presenceia um combate de touros e assustada do perigo que o falso pastor corria, desmaia. Sabe depois por uma conversa surprehendida quem é o pastor. A despeito dos prudentes conselhos da ama, com elle falia por uma fresta alta do seu quarto. Uma noite que precipitadamente descera dessa fresta, Bimnarder, que nella trepado continuava a aguardar o regresso de Aonia, deixou-se dormir e cahiu, ferindo-se bastante episodio sug- gerido talvez pela Ce/estitia, de Rojas, em que Calisto morre duma queda da janella da torre por onde chegava até Meli- bêa. Por uma creada, Enis, sabe delle e, indo a uma romaria próxima da sua choupana, consegue vê-lo. A ama, que ou- vira a queda dum corpo junto á parede do quarto, julgando

Historia da Litter atura Clássica 207

que fosse algum indiscreto pedreiro, mandou tapar a fresta. Entretanto, Lamentor combinava o casamento de Aonia com Fileno, que a leva para seus paços, com grande desespero de Bimnarder.

É este o assumpto da primeira parte e esse assumpto é, como se vê, uma sobreposição de narrativas, que concentri- camente se penetram umas nas outras, como caixas chinesas. E como nestas nenhuma caixa chega a ser utilizada, porque a immediata a obstrue, assim cada historia da Menina e Moça è addiada e suspensa pela que a seguir surge. A primeira, que esperávamos, seria a da menina e moça, que conhecemos ao abrir o livro; é posta de lado pela historia que suppomos seguir-se lhe, a da sua interlocutora, que afinal apenas conta a historia duns amores que naquelle valle decorreram e que ouvira contar a seu pae. E qual é a historia que nesse valle .decorreu? É a do cavalleiro da ponte? Esta promptamente •se fecha com a morte do cavalleiro. Será a do pastor disfar- çado e da joven Aonia ? Esta interrompe-se bruscamente pelo casamento de Aonia com Fileno. E assim por successi- vos addiamentos se chega á segunda parte, em que decor- rem os amores de Arima, a filha da fallecida Belisa, que alli mesmo nascera. Esta primeira parte não é pois um ro- mance, mas uma sequencia de episódios inacabados.

A belleza dessa primeira parte consiste no tom de me- lancholia profunda, na expressão de acatamento e reveren- cia pelos grandes amores que dão o cunho de serena gravi- dade á narrativa. Era a primeira vez que em lingua portu- guesa uma penna podia livremente correr a narrar máguas de amor, a lamentar-se soltamente, sem as peias do verso, o limite das pequenas composições ou a obrigação dum assumpto movimentado, como no theatro vicentino. Por isso se descurou a unidade da obra; os episódios succederam-se associados, todos elles a satisfazerem essa necessidade de dizer saudades e tristes amores.

A i.a edição da Menina c Moça é de 1554, de Ferrara, e

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apenas contem a i.a parte acima resumida (*) ; a 2.* de Évora» 1557, comprehende também a 2.a parte da novella; e a 3.* edição, de Ferrara, apenas contém os primeiros dezesete ca- pítulos-da 2.a parte.

Diverge muito da i.a esta 2.a parte, pelo que é corrente opinião não ser da auctoria de Bernardim Ribeiro. Os argu- mentos são as differenças intrínsecas que são principalmente- as seguintes:

A primeira parte da novella é uma expansão de subjecti- vismo e delia, tão infrene e tão impulsivamente sentimental, procede a própria irregularidade de composição desses pri- meiros trinta e um capítulos; a segunda parte é um confuso- romance de cavallarias, de milito escassa ligação com a parte antecedente, pois não continua a intriga, nem conclue a annunciada historia dos dois amigos, apenas contém algu- mas personagens da primeira parte, mas geralmente postas em segundo plano, no meio das numerosas personagens no- vas e que em breve desapparecem. Não tem a segunda parte um protagonista único, mas sim dois: Avalor ou Álvaro, namorado de Maria ou Arima, filha de Lamentor e depois Tasbião. Ora este Tasbião é um dos dois amigos daquella historia, que na primeira parte nos foi annunciada como muito trágica e desgraçada, apesar do que casa com Roma- bisa, irmã de Lucrécia, e muito pacatamente e felizmente- vive. A primeira parte, sempre dominada por sentimentos profundos de desalento e paixão, tem o meio termo entre romance de cavallaria e romance pastoril, mantendo uni- dade e coherencia 110 tom sentimental, que a domina ; a se- gunda parte é uma bem característica novella de cavallarias objectivamente narradas, sem o cunho subjectivo da prece-

(l) Desta edição se conhece o exemplar do Museu Britannico, que em 1918 mandámos photograpbar para promover uma reimpressão, revista pelo fallecido erudito A. Braamcamp Freire. O texto accusa bas- tantes differenças. do das edições vulgares.

Historia da Litkraluva Clássica 209

dente, mas evidentes vestígios de outras leituras, principal- mente nas imitações de Tristão e do Amadis.

Estas razoes são verificáveis e produzem uma justifica- ção sufficiente do conceito estabelecido e corrente, que con- sidera a segunda parte uma continuação de imitadores. Nós, por uma impressão de leitor, pelo sabor diverso que cada parte nos proporciona, pela disposição de espirito que adivi- nhamos em cada uma e pelo argumento extrinseco de não ter apparecido a segunda parte logo na i.a edição, inclina- mo-nos também a crer que não seja de Bernardim Ribeiro a segunda parte (M. Era uso corrente no século XVI prolon- gar um romance em extensas continuações, tomando a des- cendência dos heroes das partes precedentes, de modo que á chronologia bibliographica das obras pode corresponder uma genealogia das personagens (*). Mas também não podemos deixar de oppôr a esta nossa presumpção dois limites. O pri-

l1) Cabe ao sr. D. José Pessanha a auctoria da principal analyse da Menina e Moça com o objectivo de demonstrar ser apocrypha a 2.a parte. V. a sua edição da novella, Porto, 1891.

As razões adduzidas pelo sr. D. José Pessanha são as seguintes: i.a a diversidade de maneira artística das duas partes, a primeira bucó- lica e subjectiva e a segunda cavalheiresca e mais impessoal, excepção feita da historia de Avalor; 2.* o lapso de confusão que occorre no capitulo 3.0 da segunda parte, em que uma personagem se refere ao li- vro, em meio da sua exposição, lapso menos provável de ser commetido por Bernardim, diz o sr. D. J. P.; 3.a a discordância entre as duas partes quanto á explicação do apparecimento de Bimnarder ao lugar onde co- nheceu Aonia ; 4.* na segunda parte Bimnarder e Tasbião têm desti- nos diversos dos que lhe havia fixado a primeira; 5. a o editor de 1557-1558 achou logo alguma difterença entre as duas partes ; 6.» o sentido implícito no titulo de cada uma das partes. V. na edição do sr. D. J. P. a nota A. pag. 229-243.

(2) Para os romances do cyclo dos Palmeirins fez este trabalho de erigir um quadro chronologico das obras e uma genealogia da família dos Palmeirins o sr. Henry Thomas na sua monographia. The Palmerin Romances, a paper read before the Bibliographica! Society, London, 1916, 52 pags.

II. da L. Clássica, vol. 1.» H

210 Historia da Litter -atura Clássica

meiro é que estas razões differenciaes são muito relativas, tão relativas e contingentes que se prestam a conclusões di- versas para cada auctor (T) e até para o mesmo autor em epochas diíferentes (2).

O segundo é que a Menina e Moça, na sua primeira parte, não é uma obra regular, é, pelo contrario, como dili-

(') Exemplifica-se este nosso asserto com a impressão causada pelo romance de Avalor, peça poética engastada na 2.a parte da novella, no espirito de dois auctores concordes em julgarem por apocrypha essa 2a parte: Menéndez y Pelayo e o sr. Delphim Guimarães. Escreve o cri- tico hespanhol : « Algo suyo debe de haber en la historia de Arima y Avalor, que tiene toques rr.uy delicados, y por mi parte me cuesta tra- bajo creer que no sea suyo el romance inserto en el capitulo xi. Sea de quien fuere, es delicioso. Nada hay en las cinco éclogas de nuestro poeta, nada en la de Crisfal de Cristóbal Falcão, nada en la lirica portu- guesa de entonces, que tenga el extranho hechizo, la misteriosa vague- dad de este romance de Avalor». {Origenes de la novela , pag. cdsliii-iv). Depois segue-se a transcripção da peça poética ; sobre esse mesmo ro- mance de Avalor se pronunciou do modo seguinte o sr. Delphim Guima- rães : « Com effeito, é preciso não conhecer as producções do poeta bu- cólico, não ter estudado a sua maneira, para se lhe attribuirem os versos incorrectíssimos, intercalados na 2.R parte da novella, sob a designação de Romance de Avalor, em que um versejador da força de Rosalino Cân- dido conseguiu amontoar esta enfiada de rimas, sem elevação e sem senso commum». Segue-se a transcripção do romance, a que se junta ainda este outro commentario : «Pois esta infamissima imitação está correndo em selectas escolares, devidamente approvadas, como trecho escolhido, para as creanças aquilatarem do engenho peregrino de Ber- nardim Ribeiro». [Bernardim Ribeiro, o poeta Chris/al, pag. 7 e 9). O sr. D. Guimarães ver-se-hia, sem duvida, em grandes difficuldades, se lhe fosse pedida a explicação objectiva de ser esta composição poé- tica uma «infamissima imitação ».

(2) O sr. TheophiJo Braga teve a este respeito opinião muito di- versa da que actualmente professa : em 1872 claramente repudiava a 2.a parte como falsa ; em 1897 acceita-a como authentica e lógica conti- nuação da i.a parte. As irregularidades, que reconhece nessa continua- ção, attribue-as á «decadência mental do poeta». {Bernardim Ribeiro e os Biicolistas, pag. 267).

Historia da Litteratura Clássica 211

.mos evidenciar, muito irregular e é também um fra- gmento apenas, pois seria illogico considerar obra acabada o que é simples introducção. Correspondentemente, não pode julgar-se incapaz de ser auetor duma segunda parte irregular o auetor duma primeira parte irregular. Ha também que attender á possibilidade de decadência intellectual muito verosímil num engenho, que não foi genial e que foi doen- tio. A consideração destas objecções faz-nos crer, embora nos inclinemos á opinião corrente, que este problema con- tinuará no domínio das probabilidades, se uma prova irrefu- tável se não produzir. Bernardim Ribeiro não foi um génio excepcional, que não possa admittir a existência de desfalle- cimentos, cum dormitai Homcrus, nem a segunda parte da Menina e Moça é obra em conjuncto tão inferior, que não possua partes muito dignas da auetoria cie Bernardim Ribeiro, principalmente os dezasete primeiros capítulos.

JORGE FERREIRA

Jorge Ferreira de Vasconcelios, neste livro nomeado no capitulo sobre o theatro clássico, publicou em 1567 o seu Memorial das Proezas da Segunda Tavola Redonda, que dedicou a D. Sebastião. Presurne-se, com verosimilhança, que esta obra seja refundição de outra anteriormente publicada, os Triumphos de Sagramor, impressa em Coimbra, no anno de 1554. Depois de Barbosa Machado, que a mencionou em sua Bibliothcca Lusitana, nunca mais foi visto exemplar desta obra. Outros escriptos de Jorge Ferreira se perderam com- pletamente antes de impressos, como o Dialogo das grandezas de Salomão, Peregrino, talvez comedia na estruetura da Euphrosina e os Colloquios sobre parvos. Sabe-sc da existência destas obras pelas referencias do Conde da Ericeira, em 1724, e de Barbosa Machado. Constituíam ellas o códice das

212 Historia da Litteratura Clássica

Obras Moraes que se guardavam na livraria do Conde de Vimioso, destruída pelo terramoto de 1755.

No prologo do seu Memorial, reimpresso em 1867, Jorge Ferreira accentúa a idéa, muito corrente então, do poder suggestivo da leitura das acções heróicas dos grandes guerreiros, que pelo exemplo estimulavam á pratica de idênticas façanhas e, evocando a memoria do pae de D. Sebastião, o infante D. João, fallecido aos dezasseis annos, declara que é também para ensinamento do joven rei que compõe o Memorial, onde historia as proezas dos cavalleiros da Tavola Redonda e narra o brilhante torneio, que se realizara em Xabregas, por occasião de ser armado cavalleiro o príncipe D. João: «Pareceo-me de obrigação e necessidade trazer á luz ho torneo e mostra que nos delle ficou, pêra que como os que ho tratamos temos na memoria viva a dor de tal perda. » Havemos de reconhecer que é precisa uma extrema benevolência para oppôr ás longas complicadas e numerosas aventuras da Tavola Redonda, ainda que de pura imaginação, um simples torneio cortesão e a ephemera vida dum príncipe obscuro. Depois Jorge Ferreira relembra as origens da ordem da cavallaria, origens fabulosas que piamente expõe, desde a sua creação por Bacho. O alegre deus do vinho, conquistador da índia, teria libertado alguns companheiros mais illustres de todo tributo e servidão, e confiára-lhes o encargo de manter sobre todos a lealdade e a verdade, e defender e amparar fracas mulheres, a quem fosse feita injuria. Alexandre Magno concedera novos privilégios aos cavalleiros da ordem insti- tuída por Bacho, permittindo-lhes o uso de ouro, purpura e insígnias reaes, e punindo com a pena de morte quem de algum modo os aggravasse; Octávio Augusto concedera- lhes a regalia de jantarem á mesa real. Foi, porém, com o rei Arthur que a ordem da cavallaria attingiu grande desen- volvimento e esplendor. Por este rápido resumo se verá a confusão histórica, que reinava nalguns dos mais esclare-

Historia da Litteratura Classi 213

eidos cérebros do século XVI, e poderá medir-se a grande tarefa da critica histórica para chegar a formular o nosso corpo de idéas. N

As proezas da cavallaria, que sob o rei Arthur toma o nome de Tavola Redonda, preenchem todo o Memorial desde o capitulo li ao capitulo XLVI. São esses capítulos uma laboriosa compilação de quantas façanhas se attribuiam ao rei Arthur e seus principaes companheiros, Galvão, Laça- rote, Tristão, Galaaz, etc. compilação também de labo- riosa leitura, porque os dotes litterarios não esmaltam essa tortuosa narrativa. Segue-se a descripção das esplendidas festas de Xabregas, com muita minúcia e reconstituição da parte litteraria, profusa de discursos muito rebuscados que substituíam os antigos breves, como o próprio nome affirma, muito concisos. No final da descripção destas festas, Jorge Ferreira annuncia novo volume que não chegou a appa- recer. ,

O Memorial ostenta os característicos ordinários nas obras do seu género, mas sem brilho, antes com exaggero dos defeitos próprios da sua contextura: repetição dos epi- sódios mais estimados nas obras iniciadoras dessa modali- dade do romance; falta de sequencia através da inextricável confusão episódica, abuso dos processos da escola e a mono- tonia resultante. Estes defeitos cada vez mais avultarão, pois a invenção de proezas esforçadas tem um limite de variedade, em que logo começa a repetição.

CAPITULO VI

A HISTORIOGRAPHIA

Ao abrir o século XVI, os novos historiadores encontra- ram-se de frente com duas correntes de opinião acerca do modo de escrever a historia e da sua funcção; a que rece- biam da edade média, da tradição nacional, e a que da nova atmosphera de ideas e valores litterarios lhes vinha. Consis- tia a tradição nacional no género chronica, cultivado quan- tiosa e valiosamente desde que D. Duarte creára o cargo de chronista-mór do reino, em 1434 ('). A instituição desse cargo

(') O cargo de chronista-mór do reino, creado pelo rei D. Duarte em 1434 e logo provido em Fernão Lopes, é um dos factos mais typicos da nossa historia litteraria. Andou quasi sempre ligado ás funcções de guarda-mór do archivo da Torre do Tombo. Desempenhado com varia regularidade, existiu até 1842, anno em que foi extincto. Foi Garrett o ultimo chronista-mór do reino, tendo nessa qualidade feito apenas uma leitura publica. Regulamentado ainda em 1839, morreu de inanição após a frustrada tentativa de Garrett pelo transformar numa espécie de vul- garização da historia por meio de conferencias. Também não surtiu efíeito a sobrevivência desse cargo sob a forma de chronista-mór das províncias ultramarinas, em que Costa e chegou a ser investido. Se- ria de curiosidade e utilidade fazer a historia deste cargo que durou qua- tro séculos cumpridos. Para esse estudo, pódem-se ver as seguintes fon- tes principaes ; Dissertação Histórica e Critica para apurar o Catalogo dos Chronistas-móres do Reino e Ultramar, Fr. Manuel de Figueiredo, Lisboa, 1789, 19 pags; Breve Catalogo dos C/ironislas e escriptores porlu-

216 Historia da Litteratura Clássica

e as obras de historiadores como Fernão Lopes, Gomes Eannes de Azurara, Ruy de Pina, Garcia de Rezende e Duarte Galvão bastavam para crear uma tradição histórica nacionah opulenta e bem caracterizada. Bem caracterizada porque a chronica foi uma forma histórica bem distincta das outras então conhecidas e exercitadas: não se confundia com a vida ou biographia, porque não era uma composição intencionalmente organizada por escolha de factos e com estructura adequada para mostrar o desenvolvimento da acção dum homem e a sua influencia sobre a sociedade do seu tempo, trabalho de arte e de psychologia; não se con- fundia com o retraio moral, condensação da biographia. nem com as memorias, depoimento testemunhal, feito de descri- pções, juízos e commentarios, e do mais heterogéneo con- teúdo. A chronica, como o seu próprio titulo indica, era uma ordenação dos factos não em relação a um fim deter- minado, a um objectivo superior aos próprios factos, mas em que esses mesmos factos constituiam o objectivo em vista; o methodo único é o critério chronologico ; não cabe, pois, na chronica, a habilidade artística da biographia nem a perspicácia psychologica do retrato ; nella se trata de enseriar os factos argamassados pela narrativa do chronista. Essa narrativa seguida é que a distingue da forma histórica immediatamente inferior, o quadro de ephemerides, que

guezes, que florescerão no assigualado aano de ijouj a mais celebre epo- cha da língua por(ugueza_, Fr. Francisco de S. José, Lisboa, 1804, 22 pags ; Memorias authcaiicas para a historia do Real Archivo, João Pedro Ribeiro, Lisboa, 1819; Gabinete histórico, Fr. Cláudio da Conceição, Vol. xii, Lisboa, 1829, pag. xxvi l, peça preliminar sob o titulo de Re- flexão sobre a necessidade de se escrever a Historia c noticia dos Qhronis' tas-Mórcs do Reino que tem havido ; Historia dos Estabelecimentos Scien- UficoSj Liíterarios c Arlisticos de Portugal José Silvestre Ribeiro, Tomo vi, Lisboa, 1876, pags. 209-220, 298 a 307 e tomo ix, Lisboa, i88i,pags. 25-29; O Archivo da Torre do Tombo, srs. Pedro de Azevedo e. António Baião, Lisboa, 1905, pags. 212-214.

] listaria da Litteratura Clássica 217

encontrámos na edade Média. O rei ou a alta personagem que o titulo á chronica não é figura central, é uma designação que fixa os limites de extensão da obra.

A expansão colonial da nação portuguesa introduzira uma variante, melhor um alargamento das attribuições do chronista-mór do reino, que segundo a carta de nomeação de D. Duarte eram exclusivamente: «poer em caronyca as estorias dos Reys .que antigamente em Portugal foram». Mas Azurara se oceupára dos governadores de Ceuta, iniciando a chronica do ultramar.

A corrente nova do quinhentismo consistia em fazer da historia uma declarada apologia pessoal, de intenções lauda- tórias, didácticas e moraes, segundo os modelos offerecidos por Plutarcho e Tito Livio, com accentuação do tom orató- rio e do tom épico, portanto com predomínio dos elementos artísticos rudimentarmente contidos nos chronicons medie- vaes e com sacrifício da serenidade narrativa e da aprecia- ção critica.

A ufania causada pelas empresas militares de Portugal, os seus triumphos heróicos concordavam plenamente com a tradição nacional, com o gosto da épocha, para accentua- rem o sentimento épico que dominaria grande parte da his- toriographia quinhentista. E dizemos grande parte porque necessariamente as reflexões e o variável poder de imagina- ção de cada auetor haviam de imprimir cunho próprio nas obras; discernir essas impressões pessoaes dentro da gene- ralidade da concepção histórica da épocha será o objecto deste capitulo. A Itália não tinha ainda modelos para apre- sentar, porque os seus melhores historiadores do Renasci- mento são contemporâneos do intenso movimento historio- graphico português ('), em quantia apreciável estranho a

(1) É Machiavelli (1469-1527) que abre a galeria dos historiadores italianos do século xvi, em que figuram principalmente: Francesco

218 Historia da Litteratura Clássica

influencias eruditas, suggerido e estimulado pelos aconte- cimentos que regista. A vida politica colonial de Portugal determinará a creação dum cargo de chronista-mór do ultra- mar e um alargamento considerável do quadro das matérias históricas, o qual comprehenderá não elementos militares, mas também alguns económicos, e dará grande attenção a povos até então banidos da historia, povos de Africa e índia, com seus costumes, seu passado próprio, sua individuali- dade. Esse cunho de cosmopolitismo colonial é a verdadeira originalidade da nossa historiographia quinhentista.

A intenção de ensinamento moral da historia estava expressa em vários passos dos chronistas medievos. Frei João Alvarez escrevera: «A memoria das cousas passadas conhecimento para as do presente e avisamento das que som por vir. E asy os notavees factos dos antigos se põem em escripturas para suas obras vertuosas seerem em nembrança por ensinança e doutrina de nos outros» ('). E o anonymo auctor da Chronica do Condestavel exprime igual pensamento: «Antigamente foy custume fazere memo- ria das cousas que se faziam : assy erradas como dos valentes e nobres feitos: dos erros porque se delles sou- besse guardar. E dos vallentes e nobres feytos aos boõs fezessem cobiça auer per as semelhãtes cousas fazerem» (2). Alguma confissão deste género sobre o conceito, que da historia formava, teria feito Fernão Lopes nalguma das suas obras assignadas, mas como o inicio da sua obra, certamente

Guicciardini (1483-1540) ; Benedetto Varchi (1502-1565) ; Jacopo Nar- di (1476-1555); Bernardo Legni (1504-1559); Francesco Giambullari (1495-1555); Bernardo Davanzati (1529-1606); Angelo di Contanzo (1507- 1591); Camillo Porzio (1526-1603) e Paolo Paruta (1540-1598).

i1) V. Chronica do Infante Santo D. Fernando. Coimbra, 191 1, ed. do sr. Mendes dos Remédios, pag. 3.

■) Y. Chronica do Condestabre de Portugal Dom Nuno Alvares Vereira. Coimbra, 1911, ed. do sr. Mendes dos Remédios, pag. 1.

Historia da Litteratura Clássica 2 1 9

mais vasta que as partes que conhecemos, se perdeu, com elle desappareceu também essa opinião do historiador. Ruy de Pina expõe tarnbem semelhante opinião: « Estorea, muy excellente Rey, he assi muy liberal Princesa de todo b^m, que nunqua em sua louvada conversação nos recolhe, que delia não partamos, sem em toda calidade de bondades, e virtudes spirituaes e corporaes nos acharmos logo outros, e sentirmos em nós hum outro singular melhoramento. Nem he sem causa; porque a doutrina hystorial, polo grande provimento dos verdadeiros enxemplos passados que con- sigo teem, he assi doce e conforme a toda a humanidade, que atem os maaos que per lição, ou per ouvida com elia participam torna logo boõs, ou com desejo de o seer; e os boõs muyto melhores. Cuja virtuosa força he tamanha, que per obras ou vontade, dos fracos faz esforçados, e dos escassos liberaaes, e dos crus piadosos, e dos frios na Católicos e boõs christaaõs; e assi discorrendo per todalas outras virtudes» (*).

Esta doutrina da historia poder transformar os caracte- res pelo exemplo e pela emulação é confirmada, ampliada e vastamente exemplificada nas obras dos historiadores quinhentistas.

Como esta hi^Loriographia contém muito reduzidos ele- mentos de arte, nós occupar- nos hemos mais em surprehen- der os vestígios da personalidade dos auctores e em exa- minar o conteúdo das obras do que em lhes fazer a critica esthetica que não comportam. Apuraremos depois o cunho geral desta histori< .graphia do quinhentisrno.

(!) V. C/ironica d'El-Pá D. Dtwrte, pag. 6ç, Porto, 1914, a ?-. Alfredo Coelho de Magalhã

220 Historia da Litleratura Clássica

DE BARROS

Conta este historiador (}) como a empresa de narrar os altos feitos dos portugueses nas partes do Oriente muito cedo lhe tomara o espirito e como compuzéra a novella do

') João de Barres nasceu era Vizeu em 1496. Foi educado no paço, esmeradamente e em estreita amizade com D. Manuel 1 e D. João 111. Deste monarcha recebeu em 1522 o governo do Castello de S. Jorge da Mina, em que serviu até 1525. Neste anno teve a nomeação de thescu- reiro da Casa da índia, da Casa da Mina e da Casa de Ceuta, cargo que desempenhou até dezembro de 1528, como consta da respectiva carta de quitação. Em 1533 ascendeu a feitor da Casa da Guiné e da Casa da índia, após longa ausência na sua quinta da Ribeira de Litem, próxima de Pombal, para fugir a uma peste. Quando D. João 111 encetou a colo- nização do Brasil, João de Barros recebeu a capitania de cincoenta léguas de costa, ao norte, como consta do respectivo foral, de 1535, mas o naufrágio da esquadra que armara e a consequente morte dos colonos impediram que proseguisse no seu einprehendimento mercantil. Dos seus redditos de funecionario foi indemnizando as viuvas e os orphãos das victimas Mas parece não se haver quitado completamente porque por sua morte seus herdeiros fizeram declaração, datada de 1577, de que não queriam receber a sua herança em vista das muitas dividas que deixava. Em 1567 renunciou ao cargo de feitor das Casas da Guiné e da índia, recebendo então generosas doações para si, sua mulher e filhos. Passou os últimos tempos de sua vida na Ribeira de Litem, onde morreu em 1570. Prepara urna sua biographia o sr. António Baião, que colligiu importantes materiaes para ella na collecção de Documentos iné- ditos sobre João de Barros, sobre o escriptor seu homonymo contemporâ- neo, sobre a f omitia do historiador c sobre os continuadores das suas «Déca- das», no Boletim da Segunda Classe da Academia das Scicncias, vol. 11. o, Coimbra, 1917, de que nos soccorremos. É lamentável o estado de atrazo, em que se acham ainda os estudos sobre João de Barros e seus continuadores. No fim do século xvui, os philologos da Academia rejuvenesceram os créditos delle como clássico da lingua e o P.e Antó- nio Pereira de Figueiredo estudou mesmo o espirito da lingua portu- guesa, segundo as Décadas; Delphim Maia, em 1852, e Pinheiro Chagas,

Historia da Literatura Clássica 22 1

Imperador Ga /imundo, «afim de aparar o estilo de minha possibilidade pêra esta vossa Ásia.» (l)

Esse emprehendirnento ia ao encontro dum vivo desejo, que também alimentavam os reis D. Manuel I e D. João III, os quaes ainda não haviam conseguido pessoa idónea e de deliberação que lhe desse execução. Tomando cargo dessa ambiciosa empresa litteraria, João de Barros esboçou um vasto plano de construcção histórica, que elle mesmo nos communicou e que parece haver cumprido em grande parte. Esse plano é por elle referido no capitulo i da i parte da I Década, que de facto constitue um prologo a toda a obra da Ásia.

Na formação de Portugal e na sua expansão colonial, via João de Barros três principaes aspectos justamente aquelles mesmos que o rei D. Manuel i com justificadas razões enumerava em seu longo titulo; conquista, navegação e çommercio. Dos três se propunha tratar. A conquista comprehendia toda a sua actividade militar, principalmente aquella em que as suas milicias propugnavam a dilatação da christã; historiá-la- hia subdividida pelas quatro partes do mundo onde decorrera, das quaes as correspondentes quatro partes da sua obra tomariam o nome: Europa, histo- ria da metrópole, desde as longínquas luctas dos lusitanos com os romanos; Africa, que principiaria com a tomada de Ceuta; Ásia, desde os esforços preliminares do infante D. Henrique, mas cuja matéria principal desde 1500 seria

em 1867, relembraram a Ásia com admiração ; em 1917 o sr. António Baião apresentou a magnifica collecção documentar, que ha-de servir de base á nova biographia do escriptor e logo suggeriu uma nota de Mr. Edgar Prestage sobre os seus retratos e a reimpressão do Dialogo em louvor da nossa linguagem, dirigida pelo sr. Prof. Luciano Pereira da Silva. Excellente serviço foi também a organização duma anthologia de Barros pelo sr. Agostinho de Campos.

(') V. Ásia, Década 1, Parte 1, Prologo, ed. de Lisboa, 1778.

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seccionada por periodos de dez armes ou Décadas; e Santa Crus, que se oceuparia do novo mundo, desde a descoberta de Pedro Alvares Cabral. O segundo aspecto, navegação, seria tratado em um compendio geral de geographia^ redigido em latim para maior circulação, no qual se comprehendia a descripção de todos os continentes, ilhas e mais territórios e mares revelados pelos portugueses, com noticias dos costu- mes e policia de seus habitantes. E o terceiro aspecto, com- mercio, daria objecto a uma espécie de systematização das boas, sensatas e regulares normas de trafico, de forma a fazè-lo sahir dos domínios da arbitraria ambição soffrega e sem escrúpulos, para o morigerar e tornar mais seguramente fecundo. Melhor nos esclarecem as suas próprias palavras : «A parte do Commercio, porque elle geralmente andava per todalas gentes, sem lei, nem regras de prudência, somente se governava, e regia pelo Ímpeto da cubica, que cada hum tinha, nós o reduzimos, e puzemos em arte com regras uni- versaes, e particulares, como tem todalas sciencias, e artes activas pêra boa policia, onde particularmente se verão todalas cousas de que os homens tem uso, ou sejam natu- raes, ora artiiiciaes, com a natureza, e qualidade de cada huma delias, (segundo o que podemos alcançar,) com as mais partes de pezos. medidas, & cetera que a esta matéria convém. »(1) Este vasto projecto cremos que foi executado em grande parte, porque no texto da Ásia repetidamente menciona as outras partes da obra (/•') e porque ha noticia da sua existência em manuscripto. (3)

(') V. Década I, ed. 1778, pags. 14-15.

(*) Na sua Década I refere-se a Europa a pags. 137 e 268, á Africa a pags. 16, 23 e 133 ; á parte de Santa Cruz a pags. 389 ca 1 parte e 20 da 11 parte; á Geographia a pags. 79, 221 e 442 da 1 parte. 285 e 323 da 11 parte.

(•;) Os bibliographos referem-se nomeadamente ao manuscripto da Geographia UniversaliSj ao ca Africa e a outro, que trata da comtnuta-

Historia da Litleraiura Clássica 223

Da Ásia escreveu João de Barros quatro décadas; a i.\ a 2.a e a 3.* foram publicadas em 1552, 1553 e 1563; e a 4.% após varias diligencias morosas, foi publicada por João Ba- ptista Lavanha em Madrid, em 1615, depois de reformada e accrescentada. Portanto, as três primeiras podem attes- tar authenticamente sobre os méritos de João de Barros, como historiador. Vasta matéria alcançam essas três déca- das, ordenadamente distribuída.

Trouxe João de Barros, formado na leitura fervorosa de Tito Livio, duas novidades á nossa historiographia: o pro- pósito de patriótica glorificação e as preocupações litterarias. Verdadeiramente estas novidades foram apenas o avultar com maior relevo de caracteres implícitos na concepção histórica dos escriptores precedentes. Simplesmente, como não sabiam pôr em historia o muito escrúpulo scientifico que ella comporta, assim nella não punham o muito de arte que a mesma pôde conter; um e outro aspecto, para occupa- rem na construcção histórica o vasto lugar, que hoje senho- rêam, precisavam do lento e laborioso progresso dos séculos. Os escriptores precedentes, fazendo historia, apenas elabo- ravam o que na velha philosophia se chamava conhecimento vulgar; registá-lo em bôa ordem era quanto faziam. João de Barros, mais dominado por sentimentos artísticos e patrió- ticos, approxima-se mais da forma superior do conhecimento

ção e comr.iercio com o Oriente. O pensamento acima transcripto, de João de Barros, sobre a constituição pelos portugueses de normas com- merciaes, é exacto. Uma confirmação delle é a obra recente do sr. Almi- rante Vicente Almeida dJEça, Normas Económicas na Colonisação Portu- guesa até 1808, Coimbra, 1921, 161 pags. que, assente sobre os textos lega es e regulamentares, faz resaltar que a exploração mercantil e populacional das colónias tinha methodos calculados e variáveis com as regiões. A obra é muito breve, quasi uma indicação de problemas, mas tanto? regista e suggere, que poderia ser tomada como introducção ou programma duma serie de investigações sobre as praticas económica- da antiga colonisação portuguesa.

224 Historia da Littcr atura Clássica

histórico porque organiza num todo concatenado logica- mente os dados esparsos, que as informações, os depoimen- tos escriptos e o seu testemunho lhe proporcionam. E esse todo concatenado, tal como elle o concebe, não pode conse- guir-se, sem sacrifício da realidade. Se o propósito que João de Barros tem em vista é o engrandecimento caloroso da sua pátria, elle não poderá deixar de proceder por escolha, guardando os elementos que servem a esse propósito e engeitando os que o contrariam. Assim fez, porque nos revelou os aspectos favoráveis dos heroes, dos guerreiros e navegadores, que em sua obra perpassam e sendo benévolo para com os nossos amigos do Oriente e severo para com os nossos inimigos. Encarou a historia da nossa conquista no Oriente dum ponto de vista estrictamente português e por isso não apontou o espirito intimo, as razões e intenções dominantes do procedimento dos índios para comnosco; viu essa occupação militar e commercial da Europa para a Ásia e não também da Ásia para a Europa, pois quando recorreu ás chronicas asiáticas o fez para bem apurar factos e não para se erguer a um ponto de vista mais cora- prehensivo. Dahi uma lamentável falta de espirito de pro- porção, de justa apreciação dos factos, principalmente na sua grandeza e valor. Esta voluntária exaggeração foi ser- vida pelas suas preoccupações litterarias: contar em bom estylo e de modo convincente e communicativo. Os discur- sos vehementes, que na obra abundam, são uma consequên- cia do seu propósito patriótico, a qual elle contemplava prestigiosamente exemplificada em Tito Lívio. Do historia- dor romano tomou Barros a elegância da prosa, a composi- ção equilibrada até ao artificio pois artificio é a arbitraria divisão em décadas e o gosto da rhetorica. Em rhetoricos bem fallantes nos apparecem transmudados os seus guerrei- ros. Um sopro épico percorre a sua obra, que ás suas quali- dades litterarias deveu o êxito immediato que teve. Bem se comprehende como delia se inspirou tão funda e fecundamente

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Camões: ao historiador das Décadas e ao poeta dos Lusíadas o mesmo propósito patriótico os irmanava. O móbil econó- mico das empresas ultramarinas é repetidamente apontado, mas João de Barros não tem coragem de o apontar como primacial, ou essa verdade repugnava aos seus sentimentos de catholico, porque é sempre a causa da religião que occupa o primeiro lugar; mais duma vez parece que, menos sincero, disfarça o grande relevo que as causas económicas tinham na determinação dos factos, que narra.

E um exemplo desse embréchado hybrido de espiritua- lidade religiosa e interesse mercantil a passagem seguinte, de cujo typo muitas outras poderíamos recortar: < Vasco da Gama quando ouvia taes palavras, sem leixar ir El-Rey mais avante com ellas, disse, que verdadeiramente elle não punha culpa cuidarem delles muitas cousas, porque grão novidade devia ser a todolos seus vassallos verem naquellas partes nova gente em religião, e costumes ; e mais vindos per caminho nunca navegado, com embaixada de hum pode- roso Rey, que não pertendia mais interesse que sua ami- zade, e communicação de commercio, pêra dar nova sahida ás especiarias daquelle seu Reyno Calecut ; porque homens, armas, cavallos, ouro, prata, seda, e outras cousas á humana vida necessárias no seu Reyno ás havia tão abastadamente, que não tinha necessidade de as ir buscar aos alheios, e mais tão remotos como eram os da índia ; porem sabendo elle Çamorij o que El-Rey seu senhor quiz de mil e seiscen- tas léguas de costa, que elle, e seus antecessores mandaram descobrir, haveria não ser nova cousa enviar mais avante per esta mesma costa chegar a sua Real Senhoria, cuja fama era muito celebrada na Christandade. E nestas mil e seiscentas léguas que mandou descubrir, achando-se muitos Reys, e Príncipes do género Gentio, nenhuma cousa quiz delles, somente doctrinallos em a de Christo Jesus Re- demptor do Mundo, Senhor do Ceo, e da Terra, que elle confessava, e adorava' por seu Deos, por louvor, e serviço

H. da L. Clássica, l.° vol. 15

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do qual elle tomava esta empreza de novos descubrimentos da terra. E com este beneficio da salvação das almas, que El-Rey D. Manuel procurava áquelles Reys, e povos, que novamente descubria, também lhes enviava navios carrega- dos de cousas de que elles careciam, assi como cavallcs, prata, seda, pannos, e outras mercadorias. Em retorno das quaes os seus Capitães traziam outros, que havia na terra, que era marfim, ouro, malagueta, pimenta, clous géneros d'especiaria de tanto proveito, e tão estimada nas partes da Christandade, como a pimenta daquelle seu Reyao de Ca- lecut. Com as quaes commutações, os Reynos que sua ami- zade acceptavam, de bárbaros eram feitos políticos, de fracos poderosos, e ricos de pobres, tudo á custa dos trabalhos, e industria dos Portuguezes. Nas quaes obras El-Rey seu Se- nhor não buscava mais que a gloria de acabar grandes cousas por serviço de seu Deos, e fama dos Portuguezes» f1). Se as coisas assim se houvessem passado, se Vasco da Gama houvesse exposto esta philosophia dos descobrimen- tos marítimos, de euphemismos que são hypocrisias, segundo a qual os portugueses se aventuravam a tantos perigos e sofírimentos para enriquecerem e felicitarem os povos do Oriente, o soberano de Calicut e a sua corte ririam a bom rir. A mesma disposição insincera de fechar o espirito á verdade evidente, porque repugnava a um espirito grave e austero a grossaria do factor económico, encontramos no capitulo em que o historiador explica por que trocou o vulgo o nome de Santa Cruz pelo de Brasil.

E também por critério religioso que João de Barros classifica os povos com que os portugueses tratavam no ul- tramar: christãos, judeus, mouros e gentios. Com os dois últimos pugnava Portugal, por Deus destinado a os perse- guir sem tréguas. Desses mouros e gentios nos descreve o

(') V. Dccada T, Pags. 346-348, ed. de 1778.

Historia da Litteratura Clássica 227

historiador a situação geographica, os costumes, modos de governo e administração, como faziam a «guerra, se arma- vam cavalleiros e o cerimonial de suas cortes. E por João de Barros que o exotismo pittoresco entra na nossa histo- riographia. Mas o sentimento que lhe abre as portas não é uma curiosidade sympathica, nem o gosto da cor local; é ainda o intuito patriótico: mostrar as desvairadas e podero- sas gentes que os portugueses revelaram, trataram e domi- naram no Oriente. E para surprehender é a franqueza com que Barros confessa o seu assombro pelas coisas da China, tão inesperadas para um europeu, de educação clássica e todo ufano da sua pátria, que chegou a sentir esta perplexi- dade de duvida. Ao contrario do que se espera, depois cie ver o perfil que do infante D. Henrique, João de Barros não nos deu retratos das. personagens da sua épica historia.

Aias, mesmo com taes caracteres e até por via delles e porque muito bem distribuiu a sua matéria e ordenou a nar- rativa, sem deslocar partes inopportunas, mas sem deixar de a outras partes ir buscar o que era legitimamente neces- sário para boa intelligencia, a obra histórica de João de Barros é uma das melhores do nosso quinhentismo (').

Da Ásia, João de Barros apenas viu publicadas as três primeiras décadas, que alcançam o percurso chronologico que vae da fundação do vice-reinado até ao governo de

(') Todos os historiadores do século xvi grandemente utilizaram os primeiros chronistas, chegando a copiá-los textualmente em muitos passos. A João de Barros faz o sr. Th. Braga, em pag. 254 do seu Curso de Historia de Litterc-tura Portuguesa, Lisboa, 1885, a seguinte aceusa- çâo : « Plagia no primeiro livro das Décadas a Chronica de Azurara, fiado na existência do único exemplar manuscripto que possuía.. .». Ora n pag. 31 da i.a Parte da a.» Década declara João de Barros, a propósito de Azurara: « Gomezeanes de Zurara, que foi Chronista destes Reynos, de cuja escritura nós tomamos quasi todo o processo do descubrimento de Guiné, (como se adiante verá)...». É legitima a aceusação a Barros assacada pelo sr. Th. Braga?

*

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D. Henrique de Menezes: 1500- 15 26. A quarta posthu- mamente foi publicada por João Baptista Lavanha ("), que a reformou e additou. Mas aquelle vasto monumento histo- riographico, o mais importante desta primeira epocha do classicismo, apesar de representar apenas um cunhal da ambiciosa fabrica delineada por João de Barros, não deixou de attrahir outros espiritos e teve continuadores. Filippe 11 nomeou chronista-mór da índia a Diogo do Couto (2), que

('■) João Baptista Lavanha nasceu em Lisboa antes de 1555. Sob o patrocínio de D. Sebastião estudou em Roma humanidades e sciencias exactas, vindo a ser muito perito em mathematicas. Filippe 11 de Hes- panha nomeou-o cosmographo-mór do reino e Filippe m confiou-lhe a educação scientifica do príncipe, depois Filippe iv, e nomeou-o chronis- ta-mór do reino. Deixou numerosas obras de cosmographia, pela maior parte inéditas, e como chronista narrou a viagem de Filippe 11 a Portu- gal, numa publicação castelhana de 1622 e promoveu a edição da 4.a década de Barros, a que juntou notas geographicas. Foi tombem elle quem achou na Bibliotheca do Escuiial o nobiliário do Conde D. Pedro de Barcellos, que o 2.0 Marquez de Castello Rodrigo, filho de Christo- vam de Moura, fez estampar em Roma, 1640. Morreu em Madrid, em 1625.

(2) Nasceu Diogo do Couto em Lisboa, no anno de 1542. Foi educado em casa do infante D. Luiz, em companhia do filho deste, D. António, Prior do Crato, e sob a direcção de D. Fr. Bartholomeu dos Maríyres, então no Convento de S. Domingos de Bemfica. Em 1559 partiu para a índia, onde militou activamente, e em 1570 veio a Portu- gal, desde Moçambique na companhia de Camões, « aquelle Princepe dos Poetas do seu tempo, meu matalote e amigo Luiz de Camões, tão pobre que comia de amigos. . Regressando de novo á índia, projectou escrever uma historia contemporânea daquelle Estado, mas por suggestão de Filippe n, que o nomeou chronista official das coisas da índia em 1595 e sempre protegeu o seu emprehendimento litterario, veio a proseguir a Ásia de Barros. As suas décadas soflreram contratempos grandes, em contraste da alta protecção de Filippe n : a sétima perdeu-se na tomada da nau Santiago pelos ingleses, e a oitava e a nona foram-Ihe roubadas de casa, achando-se doente, pelo que teve de reescrevê-las, mas mais abreviadamente do que antes fizera; e a sexta, apenas impressa, ardeu quasi totalmente em casa do impressor. Também o Dialogo do Soldado

Historia da Litteraiura Classim 229

escreveu as décadas quarta a duodécima; a quarta, editada em 1607, é uma repetição da matéria tratada por Barros na sua quarta, conhecida depois que Lavanha a publicou, e a duodécima ficou incompleta e deveu a sua divulgação a Manuel Fernandes Villa Real, cm Paris, 1645, nome triste- mente celebre como victima do Santo Orficio (!). Posterior- mente, António Bocarro (-) escreveu a década decima-terceira, em duas partes e publicada em 1876, por diligencias da Academia Real das Sciencias, que confiou a edição a Lima Felner. Xarrando Bocarro os succcssos do governo do 20.0 vice-rei D. Jeronymo de Azevedo, a Ásia veio a abran- ger na sua exposição o curriculo de 1500 a 16 17, mas não seguido regularmente, porque a década undécima de Couto perdeu- se, a duodécima não se concluiu e da parte escripta desta ao principio da de Bocarro medeiam os doze annos dos governos de Ayres de Saldanha, D. Martins Affonso de Castro, D. Frei Aleixo de Menezes, André Furtado de Men- donça e Ruy Lourenço de Távora.

Pôde comparar-se a Ásia do quinhentismo com a Monar- chia Lusitana, do seiscentismo, ambas delineadas por um chefe de escola e continuadas por uma plêiade de histo- riadores que, a despeito do inevitável variar dos seus tem- peramentos litterarios, se deixou irmanar na mesma con- cepção histórica. A Ásia é obra do enthusiasmo épico pelas

Pratico foi subtrahido e teve de ser reescripto. Couto casou-se em Gòa com uma irmã de Frei Adeodato da Trindade. Morreu em Gòa no fim de 1616. Frei Joaquim Forjaz, Memorias de Lit ler atura, i.° vol., revelou a existência de alguns mss. de Couto no Convento da Graça.

(l) V. o opúsculo de José Ramos Coelho, Manuel Fernandes Villa Real c o seu processo na Inquisição de. Lisboa. Lisboa, 1894.

(*) EJ mal conhecida a vida de António Bocarro. Lima Felner, que dirigiu a edição académica da sua obra, não pôde prefaciá-la por ter cegado. Apenas se descobriram então seis documentos respeitantes ás suas obras. Foi nomeado guarda-mór do archivo da índia em 1631 Dei- xou numerosas obras inéditas. Deve ter morrido pouco antes de 1649.

230 Historia da LÀtteratura Clássica

conquistas e navegações orientaes, inspira-a uni alto senti- mento de orgulho e vitalidade; a Monarchia é obra de pro- phetisrno messiânico, de que o espirito critico desertou. De Fr. Bernardo de Brito a Fr. Manuel dos Santos ha uma evidente decadência, após o élo superior que António Bran- dão representa; também de Barros a Bocarro ha declínio, porque este é menos escriptor que Barros e menos histo- riador que Couto, dos três irrefragavelmente o melhor dotado para tal empresa: viveu no oriente e conheceu os lugares e muitas das pessoas que intervieram nos successos que conta, teve á mão a massa documentar do archivo de Gôa, de que foi chefe, cuidou mais da realidade que do effeito artístico, fito primacial de Barros, e não deixou obumbrar o seu natural espirito critico com a commovida admiração das façanhas heróicas. Testemunha da mudança dos costumes e de moralidade politica, operada no Oriente entre os portugueses pela cubica, não se temeu de a registar, abonar concretamente e censurar. E para mais de espaço a verberar compôs o pittoresco e elucidativo Dialogo do Sol- dado Pratico, pamphleto de critica politico-social contempo- rânea. Bocarro alimenta o mesmo escrupuloso amor da ver- dade, mas é ainda menos escriptor que Diogo do Couto. Este deixou ainda uma Vida de D. Paulo de Li?na Pereira, heroe de famosas façanhas no Oriente, que morreu em Africa em trágicas condições na viagem de regresso ao reino. Esta obra permaneceu inédita até 1765.

DAMIÃO DE GÓES

O historiador Damião de*Goes, Q) tão famoso peia sua obra litteraria como pela sua vida variada de episódios, nas- ceu em Alemquer no anno de 1502, sendo filho dum fidalgo

(*) Ao contrario do atrazo apontado a respeito de Barros, os estu- dos goesianos estão muito adiantados. Irdciou-os A. P. Lopes de Men-

Historia da Lit ter atura Clássica 231

ao serviço do infante D. Fernando, pae de D. Manuel I, e duma senhora de sangue flamengo, por ser filha e neta de commerciantes daquella nacionalidade que, vindos a Portu- gal em negócios diplomáticos, aqui se fixaram a exercer a sua profissão. Em 151 1 foi admittido no paço do rei ventu- roso e ahi começou os seus estudos ; se conservou até á morte de D. Manuel 1 em 152 1, havendo noticia de receber moradia régia desde 15 18, como moço da camará do soberano. De D. João 111 continuou a receber a mesma protecção, e uma das suas demonstrações foi a nomeação, que teve para o cargo de escrivão da nossa feitoria commer- cial de Flandres Ç), espécie de succursal e armazéns do com- mercio português em Antuérpia. Para ahi partiu em 1523, na armada de Pedro Affonso de Aguiar, assistindo no cami- nho a um recontro das esquadras inglesa e francesa no canal de Inglaterra.

No meio de elevada cultura litteraria e artística, que era então a Flandres, Damião de Góes pôde satisfazer as

donça em 1858 e proseguiram-nos com perseverança e methodo seguro os srs. Joaquim de Vasconcellos, Sousa Viterbo e Guilherme Henriques (Carnota). Modernamente, o sr. António Baião referiu-se ainda ao seu processo no Santo Officio, o sr. Edgar Prestage publicou o manuscripto dum censor da Chronica de D. Manuel, e os srs. Fortunato de Almeida e Eduardo Moreira, com pontos de vista oppostos, occuparam-se da heterodoxia de Góes, particular versado em 1880 por Menéndez y Pelayo. Deste modo, os materiaes eram numerosos para fundamentar a urdidura duma biographia sequente, trabalho meritório que levou a cabo com pleno êxito o sr. Prof. Maximiano de Lemos na Revista da Historia, vols. 9.0, 10. ° e 11. °, 1920-1922. A enumeração dos estudos goesianos pôde ver-se a pags. 195-200 da nossa Critica Litteraria como Sciencia, 3.* ed.

(') Damião de Góes trabalhou na feitoria de Flandres primeira- mente em alguma situação mais subalterna, porque foi escrivão, quando Ruy Fernandes ascendeu a feitor. Sobre a feitoria de Flandres veja-se o estudo de A. Braamcamp Freire no Archivo Histórico Portu* guêSj vols. 6.c e 7.0, Lisboa, 1908-1909.

232 Historia da Litteratura Clássica

exigentes necessidades do seu espirito, tão dado aos estu- dos humanísticos como ao cultivo das bellas artes, musico como era e collecionador de quadros. porque a natureza do cargo se prestava á attribuição de funcções consulares e diplomáticas, porque entretanto havia Damião de Góes grangeado considerável prestigio, recebeu varias incumbên- cias diplomáticas, como ir em 1529 á Polónia, á corte do rei Segismundo, então residindo em Wilna, á Prússia; em 1530 á Hollanda; em 1531 de novo á Polónia, para negociar o casamento do infante D. Luiz. Pouco depois, ainda em serviço do rei D. João ni, foi ás cortes da Dinamarca e da Suécia. Em missão commercial, foi também á Bósnia. Nessas digressões, Damião de Góes não se limitou ao estricto desempenho das incumbências, que lhe haviam sido com- mettidas; obrigado pela forma lenta por que então se faziam tão longas viagens, demorava- se nas cidades princi- paes do trajecto, procurava os homens mais ndtaveis e com elles convivia.

Era nessa epocha a Allemanha theatro da batalha acérrima da reforma religiosa, e batalhadores de pugna gigantesca eram alguns dos amigos intellectuaes cem que Damião de Góes privara : a figura principal desse movi- mento, Martinho Luthero, e Filippe Melanchton, também em grande evidencia, que frequentou em Wiburgo; Munster e Grynius, de Basiléa. Estas relações tanto contribuíram para sua elevação espiritual e gloria como para a sua per- dição no futuro.

Em 1533, sendo chamado d Lisboa, recebe de D. João 111 a offerta do rendoso cargo de thesoureiro da Casa da índia, mas pretextando a promessa duma romaria a Sant'Iago de Compostella, dahi escreve ao rei, a pedir que o dispense de acceitar essa mercê e lhe permitta regressar ao estrangeiro. Habituára-se á vida de largo convívio intellectual do estrangeiro, á vida militante da intelligencia e não desejava trocá-la pela immobilidade dum funecionario

Historia da Litleratura Clássica 233

absorvido pelo seu cargo num meio, que estava longe de se comparar, em cultura de espirito, ás cidades que percorrera e em que se relacionara. Regressando á Europa septen- trional, visita Erasmo, que o hospeda na sua casa de Fri- burgo, em 1534; vae a Antuérpia cuidar dos negócios á sua guarda e depois, propondo-se conhecer outro aspecto da vida culta do estrangeiro, a outra linha da batalha religiosa, visita a Itália. Em Pádua, cuja universidade frequentou,, viveu alguns annos em cordeal convívio com o cardeal Jacob Saddoleto. Em 1538 se achava de volta á Flan- dres, onde casou com uma senhora nobre flamenga, Joanna van Hargen.

Recomeçando as suas digressões, Damião de Góes volta á Itália, demorando-se em Roma, visita as cortes de Inglaterra, (J) França, Hungria e Bohemia, e determinase por fim a fixar a sua residência em Brabante, cidade de Lo- vaina, sede duma celebre universidade. Ahi viveu algum tempo, dando-se ao estudo das humanidades, ao cultivo das artes e ao convívio dos bons espíritos, quando em 1542 a cidade foi cercada por um exercito de Francisco 1, de França. Apesar de estrangeiro e residindo havia pouco tempo na cidade, recebeu a honra sem par de ser um dos escolhidos para organizar e dirigir a defeza militar da cidade. Os outros escolhidos eram nobres, naturaes do paiz; era portanto elle o único estrangeiro. Este facto necessitava uma explicação mais pormenorizada, mas a ignorância das circumstancias que rodearam este episodio, torna tal expli- cação impossível. Levantado o cerco precipitadamente, Damião de Góes, que se achava fora da cidade em nego- ciações com os sitiantes, é aprisionado e conduzido a França, onde sendo julgado boa presa é internado como prisioneiro de guerra á espera de resgate, que conseguiu mediante

(1) São muito vagas as noticias da sua estada em Inglaterra. V. Dr. Maximiano de Lemos, Revista de Historia, vol. g.°, pag. 214.

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elevada quantia. Estes serviços foram reconhecidos por Carlos v, sob cujo sceptro jazia então a Flandres, e por elles recebeu deste soberano um brazão de armas.

Chamado á corte por D. João in, chega a Évora em 1543 e recebe a nomeação de guarda-mór do archivò da Torre do Tombo, em 1548, em substituição interina de Fernão de Pina, filho do chronista Ruy de Pina. Terminava deste modo a quadra internacional da sua vida, durante a qual se não limitara ao exercicio do seu cargo commercial, das suas missões diplomáticas, á convivência brilhante e ao estudo assíduo, antes procurara litterariamente ser o mesmo distin- cto embaixador que era no mundo dos negócios, pois em pequenas obras em latim, a lingua internacional de então, pro- movia a divulgação dos descobrimentos dos portugueses, das suas façanhas militares em Africa e na índia, e dava noticias dos novos domínios devassados pelos conquistadores portu- gueses, sempre defendendo e engrandecendo o bom nome português. Foi este nobre propósito que dictou a publicação da pequena obra descriptiva Hispânia, calorosamente lou- vada por Pedro Nannio, professor da Universidade de Lovaina e seu amigo, como também inspirou a obrinha Hispânia? adversus Munsierum defensio, em que repudiava as severas apreciações que do caracter e da policia dos costu- mes peninsulares fizera Sebastião Munster na sua Cosmogra- p/iia. Ainda sobre o mesmo assumpto travou correspondên- cia com Jacob Fuggerum. A pedido do cardeal Bembo, o auctor dos Asolani, escreveu uma narração da tomada de Diu, Dicnsis Nobilissimcc Carmanicv sev Cambaice urbis oppugna- tio. Vulgarizava as bellezas de Lisboa na eloquente e eru- dita Urbis Olisiponis Descriptio, que dedicou ao cardeal D. Henrique, então ainda infante. Com Paulo Jovio discute questões varias sobre os feitos e sobre o império português. Ao papa Paulo 111 dedicou o seu opúsculo acerca do reino do Preste João, Fides, Religio, Moresque Aetkiopum, nova pro- víncia da christandade com quem os portugueses haviam

Historia da Lilteratura Clássica 235

conseguido estreitar relações. O theor dessas mesmas rela- ções entre o negus e os reis de Portugal é também des- cripto por Damião de Góes, que transcreve algumas i entre esses soberanos trocadas. Ao mesmo pontífice dirigia uma carta sobre os povos nórdicos, Dcploratio Lappiance gentis, inspirada em vivos sentimentos de philanthropia e num grande interesse de zelar pela unidade da christã. Dedicado ao infante D. Luiz. fazia correr outro opúsculo acerca do segundo cerco de Diu, De Be lio Cambaico Secundo Commentarii Três. Esta obra de hábil diplomacia patriótica e intellectual, combinada á convivência selecta que manteve em todos os principaes centros da Europa, faz de Damião de Góes uma figura brilhante do nosso século xvj e por esse aspecto não menos meritório que pelo de historiador. A predilecção da aventura e da viagem por dilatados mun- dos, em que os portugueses tanto se compraziam que para a exprimir crearam uma litteratura bem caracteristicamente original, como em seu próprio lugar diligenciaremos eviden- ciar— a esse gosto da aventura deu Damião de Góes uma forma sua. O sentimento era o mesmo, mas as formas em que o vasaram Fernão Mendes Pinto ou Damião de Góes é que foram diversas. Damião de Góes preferiu divagar pelos mundos novos do pensamento, contemplar os novos hori- zontes rasgados á vida europêa pelo humanismo, pela re- forma, pelo absolutismo monarchico, pelas descobertas scien- tificas, pelas viagens e conquistas dos portugueses; por isso viajou pela Europa, seguindo esse pendor de deambulação e de maravilhoso intellectual, buscando não o exotismo lon- gínquo dos mundos revelados pelos seus compatriotas, mas o exotismo e a novidade á velha intelligencia europêa reve- lados por todos os obreircs do grande movimento da renas- cença e do humanismo.

Para que assim tão fácil e promptamente se deslocasse e percorresse paizes tão diversos, em tempo de diíílcilimas cora- municações, e para tào rapidamente se adaptar a meios diffe-

23ô Historia da Litteratura Clássica

rentes e se insinuar, creando por toda a parte amizades e dedicações, era necessário não ser um sedentário, antes ser um homem de acção, de prompta deliberação. E que o era demonstra-o a sua defeza da cidade de Lovaina. A versatili- dade do seu espirito, dado ás humanidades, á admiração das artes, ao cultivo da musica, á pratica dos neg'ocios cornmerciaes e politicos e aos assumptos militares, eviden- cia também nelle aquella admirável multiplicidade de apti- dões, que caracteriza a mentalidade dos homens superiores da renascença.

Encarregado de escrever a Chronica de D. Manuel T, desse encargo se desempenhou desde 1566.

As suas relações com os homens mais notáveis dos pai- zes do norte, partidários da reforma religiosa, tornaram-no suspeito de heterodoxia, pelo que o provincial dos jesuí- tas, Simão Rodrigues, o denunciou em 154.5 á Inquisição de Évora, denuncia que não teve seguimento ; a que o mesmo delator apresentou em 1550 ficou também sem resultado.

Xa capital vivia uma vida de conforto, de elegância es- piritual, reunindo quadros, fazendo musica e recebendo em casa os melhores espíritos do tempo, como João de Barros que apadrinhou um seu filho. Em sua casa recebeu os emis- sários estrangeiros, que em 1565 vieram buscar a princeza D. Maria, que se ia casar á Bélgica. No mesmo anno rece- beu do rei D. Sebastião as honras de fidalgo cavalleiro da sua casa; no anno seguinte recebeu a mercê duma tença, o foro das terras de Magalhães e a successão para seu filho, António de Góes. do cargo de guarda-mór da Torre do Tombo. Em 1567 D. Sebastião concedeu-lhe brasão d'ar- mas igual ao que o escriptor recebera do imperador Carlos v. A successão do cargo do Archivo em seu filho não se cumpriu, porque, havendo sido processado em 157 1 pela Inquisição, foi substituído no desempenho daquelle cargo por António de Castilho. Preso durante vinte meses, foi condemnado ao confisco dos bens e a penitencia rigorosa

Historia da Litterafura Clássica 287

em cárcere perpetuo (') no mosteiro da Batalha, onde ainda cumpriu parte da sua pena. Attenuado o rigor delia, Damião de Góes obteve permissão para recolher á sua casa de Alemquer, onde pouco tempo viveu, pois numa manhã de janeiro de 1574 appareceu morto sobre a lareira, a que se aquecia (2). Assim se reconheciam em Portugal os altos méritos e relevantes serviços de Damião de Góes, que a Inquisição condescendeu ser muito conhecido no mundo, pelo que não publicou a sua sentença condemnatoria.

Desde Fernão Lopes, nomeado guarda-mór da Torre do Tombo por 141 8 e chronista-mór do reino em 1434, que os dois cargos andavam adscriptos para maior viabilidade do propósito de D. Duarte: a redacção das chronicas de todos os reis de Portugal de forma a constituir-se uma historia sequente do reino. De Fernão Lopes a Damião de Góes ha- viam dirigido o archivo nacional os seguintes guarda-móres:

Gomes Eannes de Azurara ou Zurara 1454-1475 ;

Affonso Eannes de Óbidos 1474 (?)-i482;

Fernão Lourenço 1483-1484;

Vasco Fernandes de Lucena— 1486 (?)-i4QÒ;

Ruy de Pina 1497-1523;

Fernão de Pina 15 23- 1548;

Foi a este, preso e afastado do cargo por motivo ainda desconhecido, que Damião de Góes succedeu com caracter de interinidade, em 1548 ; mas o seu exercício prolongou-se até 157 1, anno em que, por causa do seu processo inquisi- torial, foi substituído por António de Castilho.

Até ao momento, em que Fernão Lopes annuiu ás ins- tancias do seu amigo, o infante-cardeal D. Henrique, haviam

(') Segundo o Regimento do Santo Officio, a pena chamada de cárcere perpetuo durava apenas três annos.

(i) Segundo os srs. Profs. Maximiano de Lemos e Thiago de Al- meida, Damião de Góes teria morrido de arterio-esclerose. V. Revista de Historia, vol. n.°, pags. 63-Í8.

238 Historia da Litteraiura Clássica

desempenhado o cargo de chronista-mór do reino os seguin- tes escriptores:

Fernão Lopes 143 4- 1459;

(romes Eannes de Azurara 1459-1484;

Vasco Fernandes de Lucena 1484-1497;

Ruy de Pina 1497- 15 25 ;

Fernão de Pina 1525-;

D. António Pinheiro 1550 1593.

A remuneração destes cargos era vantajosa e accrescida por mercês extraordinárias dos soberanos e, para Ruy de Pina, segundo refere Damião de Góes, por presentes de suborno do seu critério julgador. Este declarado e pertinaz patrocínio da historiographia havia produzido seus fruetos, mas não todos aquelles que os reis desejavam, porque as circumstancias ou a falta de zelo dos chronistas algumas vezes os tornavam litterariamente menos fecundos. Todavia, no tempo de Damião de Góes, Portugal possuía em partes publicadas e em circulação, e em partes inéditas toda uma sequente chronica pátria. Essa sequencia obtem-se gru- pando-se as suas varias partes por ordem lógica e despre- zando a ordem da redacção :

Chronica de D. Affonso Henriques Composta por Duarte Galvão ; > de D. Sancho 1 » por Ruy de Pina;

» de D. Affonso 11 » por Ruy de Pina ;

» de D. Sancho n » por Ruy de Pina ;

» . de D. Affonso 111 » por Ruy de Pina ;

» de D. Diniz » por Ruy de Pina ;

» de D. Affonso iv » por Ruy de Pina ;

* de D. Pedro 1 » por Fernão Lopes ;

» de D. Fernando 1 » por Fernão Lopes;

» de D. João r,i.»e 2." partes Compostas por Fernão Lopes; » de D. João 1, 3.a parte Composta por Gomes Eannes de

Azurara; » de D. Duarte Composta por Ruy de Pina;

» de D. Affonso v » por Ruy de Pina ;

» de D. João n » por Garcia de Rezende

e Ruy de Pina.

Historia da Liiteratura Clássica 239

Fora deste corpo geral, havia chronicas particulares de figuras preeminentes e dos primeiros successos coloniaes, a saber:

Chronica do Condestavel obra anonyma, que começa a ser com vero- similhança attribuida a Fernão Lopes ;

> do Infante Santo composta por Fr. João Alvares ; Historia das Conquistas dos portugueses pela Africa composta por

Affonso Cerveira. Obra perdida, mas aproveitada por Azurara. Chronica do descobrimento e conquista da Guiné composta por Gomes Eannes de Azurara ; » de D. Pedro de Menezes composta por Gomes Eannes de Azurara ;

> de D. Duarte de Menezes composta por Gomes Eannes de Azurara ;

Vida do infante D. Duarte, filho de D. Manuel i composta por André de Rezende.

Seguia-se logicamente a narrativa do reinado de D. Ma- nuel I, morto em 152 1, cujas grandezas, mais que os feitos dos seus antecessores, lisonjeavam o orgulho nacional. Delia estiveram encarregados, por dever do cargo ou por pessoal sollicitação, Ruy de Pina, que a redigiu até á tomada de Azamor em 15 13; seu filho Fernão de Pina, António Pinheiro e João de Barros. Damião de Góes, que havia dez annos geria o archivo de S. Jorge (1), se desobrigou da incumbência.

A Chronica do Sereníssimo Senhor Rei D. Emanuel appa- receu em 1566 e 1567. Nessa obra diligenciou Damião de Góes tomar uma attitude critica, isto é, não acceitar as ingé- nuas explicações, que João de Barros defendia, nem nos

(*) São bem conhecidos os trabalhos de Damião de Góes na Torre do Tombo, pelos documentos publicados pelo sr. Guilherme Henriques e pelo Dr. Sousa Viterbo. Este deu-nos também uma apreciação na 2.a serie dos Estudos sobre Damião de Coes, Coimbra. 1900, cap. II.

240 Historia da Litteratura Clássica

apresentar os factos através de amplificações patrióticas. Mais imparcial para com as figuras que apresenta e cuja actividade nos desenha, chega a esboçar um propósito de apreciação, mais claro sobretudo quando se occupa das vio- lências exercidas sobre os judeus e da politica de D. João II. Trata na sua obra menos de matéria da metrópole que dos successos ultramarinos, pelo que se podem comparar com os de João de Barros os seus processos ao versar os mesmos assumptos, na sua penna tornados mais com- muns e correntios. A primeira parte trata dos aconteci- mentos de Portugal e restante Europa dos fins do século XV e princípios do século XVI, dando logo demorada pre- ferencia ás occorrencias coloniaes, da Ásia e Africa, que occupam a segunda, terceira e quarta partes, em que são figuras centraes Vasco da Gama, Alvares Cabral, Duarte Pacheco, Affonso de Albuquerque, D. Francisco de Almeida, Tristão da Cunha, Lopes de Sequeira, Fernão Peres de An- drade e Pêro de Annaya. Aos acontecimentos do reino regressa para fallar da beneficência da rainha D. Leonor, viuva de D. João II, das obras religiosas de D. Manuel i e das ordenações e outras leis.

O exotismo tem também lugar na sua Chronica, onde se descrevem costumes dos povos tratados pelos portugueses no ultramar, especialmente dos abexins, parte em que aproveitou a sua anterior publicação sobre a Ethiopia. Também assim precedeu a respeito dos cercos de Diu, sobre os quaes escrevera opúsculos latinos.

Parece que Damião de Góes diligenciou não fallar muito de matéria metropolitana, da vida interna do paiz, delibera- ção que tanto pôde ser devida ao plano adoptado como ser uma consequência dos desgostos que o chronista soífreu com a publicação da i.a parte da sua obra, cuja melindrosa matéria suscitou resentimentos e determinou mesmo a inter- venção do rei. Em nome de D. Sebastião se lhe emendou essa i.a parte, que teve no mesmo anno uma segunda edição.

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três séculos depois se tirou a limpo este facto pelo appa- recimento dum exemplar das folhas substituídas. A censura alterou principalmente o texto que se referia á conspiração da nobreza contra D. João li, nobreza que se encontrava então no reino, rehabilitada e exercendo influencia, e passa- gens de caracter ethnographico que foram julgadas menos convenientes á orthodcxia religiosa ou talvez á moral, bem como apreciações tidas como severas da administração de D. Affonso v e D. Manuel i, das relações do rei de Castella, Fernando o Caiholico, com D. Manuel I e as referencias á infanta D. Joanna, a Excellente Senhora. Na 3/1 parte foram totalmente substituídos dois capítulos.

Um dos mais vehementes censores de Damião de Góes foi o 2.0 Conde de Tentúgal, D. Francisco de Mello, cujas reprehensões foram quasi sempre dominadas por precon- ceitos injustos. O seu manuscripto, que se guarda no Museu Britannico, foi ha poucos annos publicado por Mr. Edgar Prestage (')•

Este facto, as queixas de Azurara, de João de Barros e de D. Jeronymo Osório, o famoso bispo de Silves, a relu- ctancia que vários historiadores tiveram em cumprir o man- dato de escrever a chronica do rei venturoso, mostram que era bem espinhoso o officio de chronista-mór do reino, quando tinha de versar matéria contemporânea. As circuns- tancias da epocha em que escrevia e as reacções, que susci- tou, fazem honra a Damião de Góes, que, se é menos escri- ptor que João de Barros, é mais historiador. Como era uso em seu tempo, Góes utilizou amplamente trabalho alheio, nomeadamente de Ruy de Pina e Bernardo Rodrigues (2).

(*) V. Archivo Histórico Português, vol. 9 °, 1914.

(2) em 191^-1920 foi publicada a chronica inédita de Bernardo Rodrigues, Annaes de Arzilla, edição da Academia das Sciencias de Lis- boa, dirigida pelo sr. David Lopes. É a pag. xxxi a xxxv que o erudito editor evidencia o aproveitamento que dessa obra fez Damião de Góes.

H. DA L. CLAS6ICA, vol. l.» ic

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Damião de Góes também nos deixou uma Chronica do Príncipe D. /oão, publicada em 1567, em que narra a vida de D. João n desde o nascimento á ascensão ao throno. Ruy de Pina e Garcia de Rezende haviam reconstituído a biographia do Príncipe Perfeito. Mas Góes quiz corrigir as versões correntes desse período, como declara: «... minha teçam, que he reduzir ha Chronica d'elRei dom Afonso quinto do nome, desno nascimento do Príncipe dom Joam seu filho, atte que elle falleceo, a milhor modo, & ordem da em que anda divulgada, ho que nas mais Chronicas destes Reynos seria também necessário fazersse, se ho tempo a isso de sim desse lugar, porque nellas faltam muitas cousas, que por negligencia cu receo do trabalho, hos Chronistas passados deixaram descrever e assentar nos lugares em que ho fio da historia da manifesto signal do descuido que nelles houve.» A novidade principal desta pequena chronica é o lugar que á exposição das explorações oceânicas do infante D. Henrique, de que então com desenvolvimento fallára Luiz Cadamosto, participe de algumas delias. Góes deplora que os chronistas antecedentes não houvessem dado a essa matéria a attenção devida, e essas considerações, bem como outras que expende na Chronica de D. Manuel I, fazem delle o pae da critica histórica, que, como se vê, acompanhou o apparecimento da critica litteraria, iniciada por António Ferreira.

Para preencher a lacuna, que havia no ponto de par- tida da historia nacional, ordenada por chronicas, D. Manuel 1 encarregou Duarte Galvão í1) de redigir a chronica de

(*) Duarte Galvão nasceu em Évora, em data desconhecida, filho de Ruy Galvão, cavalleiro e secretario de D. Affbnso v. Foi tam- bém secretario e conselheiro de D. Affbnso y, D. João u e D. Manuel 1. Desempenhou muitas missões diplomáticas em Roma, Flandres e Ethio- pia. Foi durante esta embaixada que Duarte Galvão morreu em 1517. Sousa Viterbo reuniu em duas memorias, Duarte Galvão e sua família,

Historia da Litteratura Clássica 243

D. Affonso Henriques. Desobrigou-se o seu servidor da incumbência promptamente, mas a sua obra, acceitavel litterariamente, era tão insegura historicamente, que não se promoveu a sua publicação, porque como acervo arbitrário de lendas, tradições infundadas, levianas interpretações contrastava singularmente os progressos innegaveis do espi- rito critico nesse tempo. em 1726 foi impressa, mas antes dessa data circulou grandemente por copias manus- criptas. É um legitimo preparador de Fr. Bernardo de Brito, uma sobrevivência do medievalismo historiographico, anterior á reforma de Fernão Lopes. Também nenhum pro- gresso traz a refundição das chronicas manuscriptas de Ruy de Pina, feita por Duarte Nunes de Leão (?-i6o8), em obe- diência a Filippe 11, de que se publicou em 1600 a primeira parte, e em 1643, posthumamente, a segunda.

BRAZ DE ALBUQUERQUE

O filho de Affonso de Albuquerque, (') por piedade filial e para dar uma base de factos á alta opinião que acerca de seu pae reinava, organizou a sua obra Commeniaríos, publi-

1905 e 1913, numerosos documentos, dos quaes respeitam ao chronista principalmente a escriptura de dote de sua mulher D. Catharina de Sousa, de 1486; uma carta de D. Affonso v regulando a forma de paga- mento de 250 ducados, apanágio do habito de SantTago ; outra carta de D. Manuel i concedendo-lhe 25.000 reaes brancos ; e uma carta sua ao secretario de Estado António Carneiro.

(J) Braz de Albuquerque, filho natural de Afibnso de Albuquerque, nasceu em 1500, na Alhandra. Sendo recommendado a D. Manuel 1 por seu pae, em carta escripta pouco antes de morrer, tomou por ordem do rei o nome de Aftbnso, foi educado no convento de Santo Eloy e ligou-se por atfinidade á casa de Linhares. Recebeu tenças régias importantes, foi vedor da fazenda e presidente do senado de Lisboa. Morreu em 1580. O dr. António Baião publicou numerosos documentos respeitantes a Braz

»

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cada em 1557, que elle mesmo declara haver colligido dos próprios originaes que Albuquerque, em meio da agitação da sua vida no Oriente, escrevia a D. Manuel 1 (1). Nessa obra conta, com simplicidade narrativa, mas sempre com signaes de intensa veneração, a vida do heróico guerreiro, desde a sua primeira ida á índia em 1503 com seu primo Francisco de Albuquerque, até á sua morte em frente de Goa, dictando a celebre carta ao rei, na qual lhe recommendava o filho único, auctor dos Commentarios. A obra não tem pretensões litterarias, tem-nas de probidade e estas foram satisfeitas quanto permittiam os sentimentos de piedade filial e a con- cepção histórica da epocha. « Para que fallar em capitães, havendo AfFonso de Albuquerque na índia?» isto dissera D. Sebastião uma vez, quando os cortesãos lhe apontavam guerreiros de génio, como conta Braz de Albuquerque. E dentro deste conceito, dos sentimentos de filho extremoso e da concepção da historia como meio de formar altos cara- cteres, que Braz se dispõe a dar uma demonstração de factos. do aspecto guerreiro se occupa e, como é obvio, occulta quaesquer episódios que revelem facetas menos nobres da individualidade de seu pae, por as não acreditar e por não servirem ao seu propósito. A suspeita de parcialidade repu- dia-a Braz de Albuquerque com a seguinte consideração : «E não devem de ter menos crédito, e auctoridade diante de Vossa Alteza estes Commentarios poios eu colligir, sendo seu Filho, do que César tem, pelo Mundo, escrevendo de si

de Albuquerque na obra Alguns descendentes de Albuquerque e o seu filho á luz de documentos inéditos, Lisboa, 1915. São cartas de padrão, confirmações de tenças, mandados de pagamento, um aviso para as Cortes de 1578, que reuniram em Almeirim, e um pedido de 6.000 cru- zados, feito em 1524 por D. João 111.

(x) A Academia Real das Sciencias prestou o alto serviço de publicar a collecção dessas Cartas de Affonso de Albuquerque, 6 vols., 1884-1915. Dirigiram a publicação Bulhão Pato e o sr. Henrique Lopes de Mendonça.

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ha tantos annos, pois neste estylo rudo conto a verdade do que se passou.» Esta fraca razão mostra como Braz de Albuquerque ignorava a existência das inclinações involun- tárias, tendências dominantes que se installam na consciência e dominam toda a sua vida, creando mesmo uma lógica sua. A probidade histórica pôde ser um acto da vontade, mas não pode esta conseguir a imparcialidade, que nasce do desinteresse.

Muito de accordo com o processo do seu tempo, no fim dos quatro livros da obra, no breve capitulo derradeiro, nos proporciona alguns informes acerca da vida de Albu- querque antes da partida para a índia, antes de entrar na historia, poderemos dizer, e nos aponta alguns dados moraes da sua personalidade. Falhos dé' dotes psychologicos, os nossos quinhentistas sabiam miudamente pulverizar em fa- ctos toda a grande actividade dum homem superior, mas eram de todo incapazes de restituir num todo integro a mo- ral da personalidade, nunca chegando por isso a bem sur- prehender a causa intima e profunda dessa superioridade, cujas affirmações em factos nos contavam por narrativas incansáveis.

FERNÃO LOPES DE CASTANHEDA

Vinte annos gastou Castanheda ('), bem como toda a sua fazenda, em colleccionar os materiaes para a sua Histo- ria do Descobrimento e Conquista da índia pelos portugueses di-lo elle e repete-o o alvará de privilegio para a impressão

(') Nasceu Fernão Lopes de Castanheda em Santarém, provavel- mente em 1500. Muito novo entrou para a Ordem de S. Domingos, de que pouco depois sahiu. Em 1528 partiu para a índia; regressando ao reino em precárias circunstancias, acceitou um modesto lugar de bedel na Faculdade das Artes, da Universidade de Coimbra, onde falleceu em 1559.

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da obra, e que os trabalhos de ordenação desses materiaes lhe apressaram a morte dizem-no seus filhos. Assim seria, porque Castanheda accumulou com extrema avareza todos os factos que rigorosamente pôde apurar, para abonar os quaes colleccionou papeis, ouviu testemunhas, inquiriu pro- tagonistas e visitou os lugares, pratica que entre nós inaugurara" Gomes Eannes de Zurara. A sua obra é por isso uma compilação quanto possível exhaustiva de factos, fastidiosamente enumerados numa grande despretensão litte- raria.

Este escrúpulo de informação faz da sua obra uma espécie de revisão das airirmações da historiographia qui- nhentista. Pelo lado theorico, para a historia das idéas sobre historia, a obra de Castanheda contém no seu prefacio a exposição e defeza dum modo de comprehender a capa- cidade educativa da historia, que é Castanheda o primeiro a affirmar. Segundo elle, a lição da historia era a mais efficaz maneira de preparar os príncipes para o governo de seus estados; a relles era mais necessária que aos particulares, a elles devia por isso ser destinada. Esta concepção de Casta- nheda, a que faltou o amplo desenvolvimento, para o qual a sua intelligencia não tinha a necessária malleabili- dade, contém em si a opinião que sobre a utilidade da historia formulou mais tarde Bossuet e também a que tem defendido o sr. Seignobos, partidário da educação politica por meio da historia. Escreve Castanheda: «Em grande obrigação sam os homês aos historiadores, muito alto & muito poderoso Rey nosso Senhor, principalmente os prin- cepes peraquem parece q. õ especial se fez a historia, cousa tão proueitosa pêra a vida humana q. ensina o q. façamos & do q. avemos de fugir, o q. conuè muito mais aos prince- pes q. aos outros homês porq qualqr home privado q. faça ha erro não he nada pois não dana mais que a si mesmo, & princepe se ho faz dana a todos os q. debaixo de sua gouernãça, porq dela ser boa ou depêde ho bem & mal

Historia da Litteratura Clássica 247

de todos os da sua Repubrica. Pelo q. he muito necessário ser ho princepe mais virtuoso, mais sabedor & mais pru- dente que todos, & peraque aprenda estas cousas não te melhor preceitor q. a historia, pprque? Que doutrina, q. dis- crição, q. prudêcia ha pêra boa gouernança de Repubrica assi na paz como na guerra que a historia não insine com experiecia de exempros, que sam muito mais do que hu home pode ver em sua vida por mais comprida q. seja, & por isso todos esses princepes famosos assi Bárbaros como Gregos & Latinos forão tão dados a ler historias.» (')

Dos livros, que Castanheda annunciou, appareceram oito; a obra completa comprehenderia a narrativa dos pro- cessos da dominação portuguesa em territórios da índia, desde o descobrimento do seu caminho por Vasco da Gama até ao segundo cerco de Diu, em 1546.

GASPAR CORRÊA

A vasta obra de Gaspar Corrêa ('), Lendas da índia, permaneceu inédita cerca de três séculos, havendo corrido riscos não pequenos. Foi D. Miguel da Gama, neto de Vasco da Gama, que, sabendo que nas Lendas grande lugar occupavam as façanhas do navegador seu avô, adqui- riu no espolio do historiador o manuscripto, e foi a Acade- mia Real das Sciencias, que em 1858-1866 conseguiu publi- cá-lo. As Lendas alcançam a historia militar da índia até ao

0) V. Castanheda, Prologo, i.° vol., ed. de 1833.

(2) É muito mal conhecida a vida de Gaspar Corrêa. Apenas se sabe que partiu muito novo para a índia, em 1512, onde militou, que foi secretario de Affonso de Albuquerque, que por 1529 veio ao reino, que por seus serviços recebeu de D. João m a mercê de ser cavalleiro da casa real, que exerceu vários cargos obscuros no Oriente e que morreu em Gòa, no anno de 1561.

248 Historia da Litteratura Clássica

governo de Jorge Cabral, que terminou em 1550. Não tem Gaspar Corrêa o menor prurido artístico; expõe em linguagem despretensiosa, em mais dum passo diffusa. as Lendas que os portugueses na índia crearam, isto é, os feitos que a lendas se assemelhavam. Suppôs que a circunstancia de ter podido visitar os lugares, ter ouvido muitos coopera- dores e haver presenceado grande parte da matéria que historiava, lhe bastaria para crear obra nova, que comple- tasse ou substituísse a de João de Barros, como manifesta- mente dá a entender. Faltavam-lhe, porém, a educação litteraria de João de Barros, os seus dons de escriptor e de historiador; o titulo de landas denuncia uma concepção dada ao maravilhoso, depois no texto da obra exemplificada pela invenção ou acceitação crédula da existência dum filho de Duarte Pacheco Pereira, chamado Lisuarte Pacheco, mais épicamente esforçado que seu pae, pois as suas façanhas attingiam o sobrenatural.

Muitos outros historiadores se occuparam da vida por- tuguesa do século XVI, principalmente António Galvão ('), André de Rezende (1498-1573) (*), Gaspar Fructuoso (1522- 1591), auctor das Saudades da Terra, a historia do descobri-

(') António Galvão, filho do chronista Duarte Galvão, nasceu tal- vez em 1490, mas não na índia, como se suppoz. Foi governador das Ilhas Molucas, cargo que exerceu com supremo heroísmo e desinte- resse, e promoveu a expensas próprias a divulgação da christã e a construcção de templos, pelo que grangeou o nome de Apostolo das Molucas. Passando ao reino, aqui viveu longos annos em abandono e extrema miséria. Morreu em 1557. Escreveu o Tratado dos diversos e desvairados caminhos per onde nos tempos passados a pimenta e a espe- ciaria veio da índia . . . Lisboa, 1563.

('-) Sobre o eminente humanista escreveram copiosamente Diogo Mendes de Vasconcellos e Francisco Leitão Ferreira. O trabalho deste foi publicado com importantes notas de A. Braamcamp Freire no Arçkwo Histórico Português, vols. 7.0, 3.° e ç.°, Lisboa, 1909-1914.

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mento das ilhas do Atlântico, Lopo de Sousa Coutinho (i5i5?-i577), Frei Marcos de Lisboa (1511-1591), etc.

Porém estes auctores, muito úteis para os estudos de erudição para confronto das informações que sobre a mesma matéria proporcionam e assim mutuamente se rectificarem, não offerecem interesse para a historia das idéas sobre theoria e funcção da historia e para a historia da arte litte- raria. Todos se comprehendem na concepção da historia por nós apontada como professada por alguns historiadores e todos são mais do que escassamente artistas; era á curiosidade e ao patriotismo de seus leitores que elles se dirigiam ; longe delles o intuito de visarem a produzir emoção esthetica, então reservada ás obras de pura imaginação. Entre si differem apenas pelo grau maior ou menor de credulidade, pela cautella das suas informações, por pormenores da nar- rativa e por maior ou menor destreza no uso da lingua. Exposição systematica da sua concepção histórica, com desenvolvimento, nenhum escriptor quinhentista a fez. De resto a intelligencia portuguesa sempre se tem mostrado pouco propensa a estudos theóricos, e se não fossem peque- nos trabalhos de gente moça, do século XIX, ainda hoje estaria por abrir a nossa bibliographia dessa matéria (J).

É opportuno momento de perguntar se a historiogra- phia, que nós muito summariamente caracterizámos, reproduz com fidelidade o typo humanístico da historiographia do seu tempo ou se delle se afFasta e em quê.

A historiographia do século xvi, tal como a idéa do regresso á antiguidade clássica e o humanismo a fizeram, é uma creação inteiramente italiana, como também italianos furam os primeiros historiadores humanistas dos outros paizes, por exemplo Paulo Emilio, que á França deu o seu

(*) V. o appendice bibliographico sobre theoria da historia no nosso trabalho, O E^/irito HistoricOj 3.* ed.

250 Historia da Litter atura Clássica

modelo, De rebus gestis f rancor um, Poiidoro Virgílio, que semelhantemente procedeu para com a Inglaterra, e Lúcio Marineo para a Hespanha. (*)

O .typo humanístico da historiographia tinha algumas predominantes feições. O abandono do quadro genérico in- troductorio, que nas obras medievaes chegava a remontar á creação do mundo, permittia uma considerável concentração da matéria; a rejeição do milagre e da intervenção divina dava um mais amplo lugar á causalidade humana; a fabula passava para os romances de cavallaria; a anecdota e o pit- toresco muito se reduziam como prejudiciaes á intenção, que tinham os auctores, de restituírem á historia uma grave dignidade.

Ao mesmo tempo que se deixava cahir em descrédito extremo a historiographia medieval, por se reconhecerem os seus defeitos, por ignorância e tendenciosa inclinação de seus auctores, illogicamente se passava a dar aos historiado- res clássicos uma excessiva. E quanto á composição, a forma chronistica foi substituída por outra, de mais arte, posto que mais pessoal e por isso mais arbitraria: as datas e os factos miúdos na idade média superabundantes foram reduzidos e os successos, agora ligados entre si, argamassa- dos pela exposição do auctor em construcção compacta, puderam formar um todo, uma resurreição e uma interpre- tação da epocha. Simplesmente a intelligencia humana, recem-sahida das faixas medievas, ainda não inventara os meios mais aperfeiçoados para servirem esse intuito de orga- nizar um todo, de reconstituir e interpretar uma epocha.

A cor local e seus meios, os retratos, as descripções, a flexibilidade do espirito critico appareceriam trazidas

('■) Vejam-se as paginas magistraes do sr. B. Croce sobre a histo- riographia do renascimento no seu estudo, Interno alia Síoria. delia Storiographia, Bari, 1913.

Historia da Litteratura Clássica 251

pelo progresso da própria historia, dum género a princi- pio convizinho da historia, o romance, e do espirito phi- losophico.

Ao bárbaro latim medieval succedeu o apurado latim dos humanistas, que na imitação de Cicero e Tito Livio se desvelavam ; o nacionalismo estricto dos chronistas cede seu lugar a uma sympathia mais larga, a um interesse curioso pelo que occorre fora das fronteiras, pelas outras parcellas da humanidade europêa e christã.

A historiographia portuguesa do século xvi permaneceu muito chronistica, abriu é certo as portas ao interesse e curiosidade dos europeus a povos até então ignorados, mas com tal originalidade ganhou mais valia ethnographica que histórica e pelo largo lugar dado á matéria ultramarina muito se distanciou da vida politica e intellectual da Europa.

Emquanto os historiadores italianos á historia estran- geira davam a sua attenção, nós permanecíamos muito obsti- nadamente nacionalistas e deixávamos aos nossos humanistas a tarefa das relações com o pensamento europeu.

A inspiração épica, que domina a nossa historiographia, o nacionalismo fervente, a unilateralidade de critério de avaliação, de que é um exemplo a doutrina do Soldado Pra- tico, eram germens dissolventes que ella em si abrigava, promptos a avultarem e a imperarem, reduzindo considera- velmente os lugares occupados por outros elementos menos gratos, a imparcialidade e o espirito critico. Bastaria que causas enérgicas, externas, compellissem para esse trilho da desproporção do seu conteúdo a historiographia creada pelo fugaz imperialismo de Portugal. Assim succedeu; essas causas foram a rápida decadência da moralidade adminis- trativa e do espirito heróico no Oriente, e a perda da inde- pendência nacional. A historiographia foi então a voz desa- nimada dos louvadores dos velhos tempos, na lembrança vivos, a voz evocadora dos patriotas; intensificou-se o seu

252 Historia da Ldtteratura Classiea

patriotismo, o seu tom épico, reduziu-se o seu criticismo e tornou-se na historiographia mystica e até um pouco sebas- tianista do século xvn. A jorros sobre ella se precipitou o maravilhoso religioso e heróico, o milagre e o esforço sobrenatural e então, rica de estylo, variada de expressão, impregnada de sentimentos vivos, tornou-se verdadeira- mente arte.

CAPITULO VII

CAMÕES A VIDA

Longa e accesa tem sido a disputa sobre a naturalidade e data do nascimento de Luiz Vaz de Camões, sendo hoje geralmente acceito que a nossa primeira figura litteraria do quinhentismo tenha nascido em Lisboa, no anno de 1524, filho de Simão Vaz de Camões e de sua mulher Anna de e Macedo (l). Os Camões são nomeados desde o terceiro quartel do século xiv e provêem de uns fidalgos gallegos que do seu paiz emigraram para Portugal, onde gozaram de estima e favores reaes. Mais do que muito escassas são as noticias acerca da sua primeira infância, que segundo infe- rências muito contingentes de algumas suas poesias, teria decorrido em Coimbra. Possível será que Camões tenha fre- quentado desde 1537 os estudos de algum Collegio das Ar- tes, como necessária preparação para passar á Universidade. Nesse anno, D. João 111, reformando o ensino, concentrara nesses collegios os estudos de humanidades, deixando que fora delles se exercesse o ensino das primeiras letras.

í1) É de Coimbra a outra naturalidade, que com mais sólidos fun- damentos se lhe attribue. V. Vida e Obras de Luiz de Camões, I Parte, Wilhelm Storck, trad. port. da sr.a D. Carolina Michaêlis, Lisboa, 1898, ed. da Academia Real das Sciencias, em pag. 105-117.

254 Historia da Lit ter atura Clássica

Também nesse anno foi transferida de Lisboa para Coimbra a Universidade, que para sempre alli permaneceu. Julga-se ordinariamente que em Coimbra estanceou Camões até ao anno de 1542, em que suspensos os seus estudos se trans- portaria a Lisboa.

Para attenuar um pouco o desconhecimento, em que estamos, de quanto se refere a esse primeiro periodo da vida do poeta, talvez o seu único momento de sossegado estudo e calma meditação, não deixaria de ser opportuno recordar o plano de trabalhos escolares que o poeta haveria seguido e assim conjecturar algumas das influencias que sobre o seu espirito se hajam exercido. Porem, apesar da historia da nossa primeira universidade ter sido objecto de demorados estudos, não se pode fazer essa conjectura (*), para formular a qual também seria necessário saber primeiro a faculdade que o poeta teria cursado.

Em Lisboa Camões frequentou a corte, onde teria desde logo revelado o seu génio poético e onde a convivência fe- minina teria estimulado o seu temperamento amoroso. Dessa frequência do paço parece ter nascido um dos seus grandes amores, o que lhe inspirou a dama por elle occulta sob o anagramma de Nathercia, a qual parece haver occupado grande lugar no seu coração, nas suas recordações e dado repetidamente fecunda inspiração poética. A identificação deste anagramma tem dado motivo á formulação de hypote- ses muito subtilmente imaginosas. Parece todavia que os argumentos mais resistentes se alliam á tradição, segundo a qual teria Nathercia sido D. Catharina de Athayde, filha de D. António de Lima, nascida talvez em 1531 e morta em 1556.

(') O sr. Theophilo Braga, nos quatro grossos volumes da sua Historia da Universidade de Coimbra, tratou vastamente da matéria, mas sem plano lógico, incluindo muita matéria desinteressante e inoppor- tuna, esquecendo a principal. Essa obra não corresponde ao titulo, por- que é apenas um cahotico amontoado de apontamentos.

Historia da Litter -atura Clássica 255

O accesso á corte julga-se haver sido preparado pela influencia dos Condes de Linhares, que Camões privou. Da corte sahiu, em 1546, para o Ribatejo, affastado pelo desa- grado no animo do rei, que se costuma attribuir ás allusões que o Auto de El-Rei Seleuco fazia ao amor de D. João III por sua madrasta segundo se interpretaria na epocha ou simplesmente por serem conhecidos os seus amores, que o rei, movido pela família de Nathercia, quereria contrariar.

Em 1547 Camões parte para Ceuta, a militar na guarni- ção dessa praça forte. O que esse passo na sua vida signifi- caria facilmente se interpreta, a deliberação por determinado caminho, a carreira militar, após um periodo de descuidada perplexidade ou de frustrada espectativa na curte. Em Ceuta militou valentemente e perdeu num combate um dos olhos.

No fim de 1549 estava em Lisboa e logo no anno seguinte projectou partir para a índia, pois o seu nome fi- gura entre os alistados na guarnição da armada daquelle anno, na nau S. Pedro dos Burgaleses. Envolvendo-se em rixa com Gonçalo Borges, moço do paço, foi preso em 1552, obtendo perdão em 1553, anno em que parte para a índia na nau 6*. Bento.

Na índia toma parte, obscura parte que não mereceu registo de contemporâneos, em algumas expedições, nomea- damente ao Golpho Pérsico e ao estreito de Meca. Em 1555 estava de volta a Goa e contribuía com o seu auto de Vhilo- demo e a Sátira do torneio para as festas da investidura do vice-rei. Na cidade de Goa se deixou prender de amores da escrava Barbara, que lhe inspirou as famosas Endechas. É tam- bém durante essa estada na capital do vice-reino que Camões escreve e faz circular a satyra dos Disparates da índia. Re- gressando á actividade militar, toma parte em outra expedi- ção ao sul e oriente, em 1556. Dois annos depois esteve em Macau, como provedor-mór dos defunctos e ausentes do pe- queno estabelecimento concedido pelo império chinês para ponto de appoio das esquadras portuguesas, que perseguiam

256 Historia da Litteratura Clássica

os piratas. Incriminado de prevaricação, é preso e compel- lido a abandonar o cargo para vir justiíicar-se á índia. Re- gressando a Goa soffre um naufrágio, em 1.5,59, na *oz do rio Mekong, estanceia em Malaca e chega á capital da índia portuguesa. Não se sabe o seguimento do processo ; apenas se sabe que foi liberto pelo Conde de Redondo. Foi por essa occasião que o poeta offereceu aos seus amigos o gracioso banquete das trovas, em que os convivas acharam versos em vez de iguarias. Em Goa conheceu Garcia da Orta, a cujos Simplices e Drogas antepôs um seu soneto, espécie de apresentação do sábio, num tempo em que ainda não eram bem discriminados o meio scientifico e o meio littérario.

Em 1567 partiu para o reino, demorando-se de passagem em Moçambique, e em 1570 se achava de regresso em Lisboa, trazido pela nau Santa Clara. Devia trazer consigo, completo ou em via disso, o seu poema, pois dois annos depois, apparecia a i.a edição dos Lusíadas. Difficeis teriam sido decerto os últimos annos da sua existência penosa, que em 1580 terminava, quando também terminava a autonomia politica da sua pátria, cujos altos feitos calorosamente glori- ficara. Como recompensa, conseguiu em 1572 uma. pe- quena tença regia, em 1582 renovada a favor de sua mãe, que lhe sobreviveu.

Não ha elementos em quantidade sufnciente nem de solidez indiscutível que permittam a reconstituição da per- sonalidade de Camões. A fazer-se, esse esboço de synthese moral seria um trabalho imaginação artística, phanta- sia de romancista. Noutro domínio, onde ordinariamente o quinhão de contingência é menor, na biographia, do qual alguns factos seguros se conhecem, em phantasia artística,.

Historia da LU ter atura Clássica 257

em imaginosos romances deram os esforços devotados de tudo apurar, dos principaes biographos. Tanto a biographia architectada por Storck. como a do sr. Th. Braga, nada mais são do que um tecido de hypothsseB engenhosas, ligadas pelas fracas escoras dos poucos factos incontroversos.

Para levar a cabo o alto emprehendimento litterario da sua epopt-a, para idealizar a sua vida interior com a pro- funda e intima emoção das suas lyricas, Camões teria de viver uma intensa vida individual, subjectiva, que em senti- mentos, idéas e juizos pessoaes magicamente transmudava os baldões e as dores acarretadas pela onda amarga e re- volta da vida. Mas qual fosse o cunho próprio, o caracter essencial dessa personalidade, que em sua desprotegida humildade exerceu a maior e mais perduradora soberania, que ainda dominou em Portugal, quaes os processos moraes por que essa personalidade pôde concentrar com a ávida in- tensidade dum foco e reflectir com a poderosa fidelidade dum crvstallino espelho, quanto havia de intenso e de origi- nal no coração e no espirito dos portugueses do século xvi, para sempre, como tocado do annel de Giges, se fechou esse segredo. Quanto se tentasse seria propor vãs hypotheses, fazer inopportuna arte litteraria e ha sempre qualquer coisa de irreverente mau gosto, quasi sacrílego, em tomar a personalidade de quem fez litteratura de génio para pretexto de litteratura.

O LYRICO

Aquella matéria poética, que, extrahida do ideal amo- roso e litterario de Petrarcha, vimos vir sendo elaborada desde de Miranda, em suecessivos ensaios como á busca da perfeita expressão nunca attingida, encontrou no tempe- ramento poético de Camões cabal realização, e dentro da forma para que nascera: o soneto. Todo o cyclo de themas H. da L. Clássica, vol. !.• 17

258 Historia da Litteratura Clássica

poéticos, que andava no ar, o tomou Camões, revolvendo-os de todos os modos para lhes extrahir quanto podiam offere- cer á sua genial imaginação. Era essa matéria o ideal da transcendente abnegação amorosa, confessado nos senti- mentos complexos e contradictórios que essa mystica ado- ração em si abrigava, explicados pela belleza divina do rosto que recebia essa adoração; por um lado a subtil psy- chologia da paixão amorosa, por outro o retrato da belleza sua inspiradora. Dentro destes dois pólos, amplo, porque não infinito? era o espaço aberto á imaginação individual. Penetrar incansavelmente até aos mais absconditos escani- nhos da alma; procurar a expressão ao mesmo tempo intel- ligivel e bella desses novos mundos de sentimento e variar no processo de produzir o conjuncto de summa formosura, que se queria delinear; juntar o cunho pessoal das emoções da vida, metamorphoseando em juizos, sentimentos e idéas o que para outros ora facto ordinário, vulgar, da existência quotidiana, tal era o horizonte illimitado que á phantasia poética dum Camões se offerecia. Ninguém como elle soube devassar esse horizonte, percorrendo-o palmo a palmo. Como conseguiu o poeta passar da categoria de imitador do soneto petrarcheano á categoria de creador do soneto camoneano? Em primeiro lugar dominando completamente a execução externa do soneto, quanto á estructura da phrase que se lhe torna plástica para se moldar obediente' ao seu propó- sito, já quanto á metrificação que pratica com extrema cor- recção e fluência, á parte os fataes pequenos deslises; deste modo conseguiu Camões as condições do primeiro grau de belleza, a que resulta da harmonia e da elevaçãp, da conci- são bem equilibrada, da clareza da linguagem, isto é, a bel- leza da forma, como idóneo instrumento da expressão. Em segundo lugar manejando de modo novo e pessoalíssimo a matéria que se lhe offerecia. Dotado dum excepcional poder de intuspecção e também trazendo em si permanentemente um mundo revolto de sentimentos e idéas, Camões soube

Historia da Lit ler atura Clássica 259

discriminar a emmaranhada rede do seu mundo interior, decompô-la, e a cada parte, a cada peça, a cada fio dar expressão litteraria, soube traduzir em linguagem poética todo aquelle vasto mundo de phenomenos psychicos, que então laboriosamente os philosophos ainda se acuravam em analysar e designar na sua incipiente terminologia. Mas como era poeta e não philosopho, como era arte litteraria e não psychologia geral que elle queria fazer, dá-nos desse encapellado mar da sua alma os movimentos seus pró- prios, as variantes pessoaes, muito suas, da alma que na generalidade humana os pensadores analysavam. Para se confinar no limitado invólucro de quatorze versos, Camões condensa a sua matéria tanto e tanto que torna o seu soneto conceituoso, quasi sempre subordinado a uma final conclu- são subtil, elegante no pensamento, que indica que para ella foi feito o soneto, que delia é preparação quanto a antecede. Á clareza, precisão e harmonia da forma correspondia a existência dum fundo de idéa também claro, preciso e ele- gante, dessa delicada elegância de pensamento de que foi Camões um dos inauguradores no mundo. Em terceiro lugar, á comprehensão do amor, corrente no mundo litterario da epocha, um delicioso soffrimento, um procurar de vontade a dor e delia se lamentar e comprazer deu Camões tradu- cção poética por meio dos paradoxos, que repetidas vezes ensaiou. Esse processo poético tão simples e tão bello, e ao mesmo tempo apparentemente tão fácil de occorrer, não o tinham descoberto os quinhentistas: ao paradoxal amor pinta-o Camões por paradoxos. Em quarto lugar, a esse thema, tão repetido, do retrato da mulher supremamente bella, traz Camões alentos novos, com variar as tintas do quadro, que são umas vezes as cores da natureza, são outras os effeitos em sua alma nascidos da contemplação e são ainda outras as divinas expressões que irradiam as feições bellas que contempla. Estes retratos, absolutamente ideaes porque de elementos absolutamente ideaes se compõem,

260 Historia da Litter atura Clássica

representam sem duvida o acumen da inspiração lyrica da alma de Camões, que nesses momentos como que se librou num transcendente mundo de idealidades, onde nem a cor tinha .cabida. E exprimir tal requinte de abstracção, tor- nando-o não intelligivel, segundo a terminologia philoso- phica, mas bello, duma emoção intensa e profunda, sem deixar de pairar nessa luminosa região, mas dando-nos azas para ascendermos até ella é ter génio. Por isso os retratos, engastados nos sonetos camoneanos, nãb são esboços, di- ligencias, estudos para um sonho de arte, são todos elles ideaes perfeitos, formam uma galeria de obras-primas, como mais tarde as Virgens de Murillo, em cada uma das quaes o poeta semrre varia o seu processo. É por Camões e por Anthero de Quental que a lingua portuguesa é inseparável da evolução do soneto, forma poética cosmopolita, na qual a nossa lingua introduziu duas phases geniaes.

Postos de lado, alguns de intuito laudatório ou comme- morativos de públicos acontecimentos, que repugnam á essência intima do soneto e outros religiosos que não são os mais adequados á Índole artística do poeta, os sonetos de Camões organizam-se numa verdadeira encyclopedia poé- tica do amor, formando um poema com unidade, com sua proposição, sua acção intensa, o drama duma alma que intensamente amou e soffreu, e deliciosamente encontrou na poetização do seu sorfrimento a sua própria felicidade, com suas conclusões e seus propósitos de edificação moral.

Eis os caracteres predominantes do mundo poético con- tido nos sonetos.

Xão será sem vantagem fazer uma pequena exemplifi- cação de quanto affirmámos. .Os sonetos a seguir transcriptos mostrarão Camões a manejar o paradoxo, como magico remo que o conduz com segurança no mar da paixão, batido de ventos contrários, o furacão irreprimível do illogico, da contradicção, do irracional, do imprevisto:

Historia da Litteratura Clássica 261

Tanto de meu estado me acho incerto, Que em vivo ardor tremendo estou de frio ; Sem causa juntamente choro e rio ; O mundo todo abarco, e nada aperto.

He tudo quanto sinto hum desconcerto :

Da alma hum fogo me sahe, da vista hum rio ;

Agora espero, agora desconfio;

Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céo voando ; Num, hora acho mil annos, e he de geito Que em mil annos não posso achar humJhora.

Se me pergunta alguém, porque assi ando, Respondo que não sei : porem suspeito Que porque vos vi, minha Senhora.

Carece este soneto de intensidade e condensação no conceito final, que em outros melhor se demonstra, naquel- les em que o poeta define o por que «de matar-se vive», quando se entrega á felicidade de amar a «cara sua inimiga» e do tempo em que foi livre se arrepende :

Amor he um fogo que arde sem se ver ; He ferida que doe e não se sente ; He um contentamento descontente ; He dor que desatina sem doer ;

He hum não querer mais que bem querer ; He solitário andar por entre a gente ; He hum não contentar-se de contente ; He cuidar que se ganha em se perder ;

He hum estar-se preso por vontade ; He servir a quem vence o vencedor ; He hum ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode o seu favor Nos mortaes corações conformidade, Sendo a si tão contrario o mesmo Amor ?

262 Historia da Litteratura Clássica

Que doudo pensamento he o que sigo ? Após que vão cuidado vou correndo ? Sem ventura de mi ! que não me entendo ; Nem oque calo sei, nem o que digo.

Pelejo com quem trata paz comigo ; De quem guerra me faz, não me defendo. De falsas esperanças que pretendo ? Quem do meu próprio mal me faz amigo ?

Porque, se nasci livre, me captivo ?

E pois o quero ser, porque o não quero?

Como me engano mais com desenganos ?

Se desesperei, que mais espero ?

E se ainda espero mais, porque não vivo?

E se vivo, que accuso mortaes danos ?

Vejamos como Camões elaborou o thema mal delineado por de Miranda no seu melhor soneto, o do contraste entre o mudar cyclico da natureza, que envelheceu para rejuvenescer, e o mudar da vida humana:

Mudâo-se os tempos, mudão-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança : Todo o mundo he composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente, vemos novidades, Differentes em tudo da esperança : Do mal ficão as mágoas na lembrança. E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que coberto foi de neve fria,

E em mi converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia Outra mudança faz de mor espanto, Que não se muda como sohia.

Historia da Litteratura Clássica 263

A concepção platónica do amor vasou-a Camões no se- guinte soneto, que ainda conserva vestígios da linguagem philosophica:

Transforma-se o amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar : Não tenho logo mais que desejar, Pois em mirn tenho a parte desejada.

Se nella está minha alma transformada, Que mais deseja o corpo de alcançar? Em si somente pôde descansar Pois com elle tal alma está liada.

.Alas esta linda e pura semidéa,

Que como o accidente em seu sojeito,

Assi com a alma minha se conforma :

Está no pensamento como idéa ;

E o vivo e puro amor de que sou feito,

Como a matéria simples busca a forma.

Esta identificação do sujeito e do objecto e a vivifica- ção duma doutrina abstracta em formoso pensamento poé- tico revelam a multiplicidade de dons da imaginação de Ca- mões, que em pleno século XVI, á vontade e com pleno êxito, nos dava exemplos da forma do soneto, que no fim do século xix immortalizaria Anthero de Quental.

Percorramos agora alguns retratos da sua galeria e apontemos em cada um a matéria prima empregada para desenhar e perspectivar a causa primaria de todos os seus anceios, o gérmen que fecundou a sua alma com farta messe de sonhos, aspirações, sentimentos e idéas, aquella causa incoercível :

Que dias ha que na alma me têe posto Hum não sei quê, que nasce não sei onde ; Vem não sei como; e doe não sei porque.

264 Historia da Litteratura Classiet

Primeiramente a belleza concreta e pictórica dum rosto desenhado com as cores e encantos da natureza primaveril e florida :

Está-se a Primavera trasladando Em vossa vista deleitosa e honesta Nas bellas faces, e na boca e testa. Cecéns, rosas e cravos deb-oxando.

De sorte, vosso gesto matizando, Natura quanto pode manifesta, Que o monte, o campe, o rio e a floresta, Se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama Possa colher o frueto destas flores, Perderão toda a graça os vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama, Que semeasse o Amor em vós amores, Se vossa condição produz abrolhos.

No seguinte soneto com gestos e expressões abstra- ctas reconstitue a ideal formosura da sua musa:

Hum mover de olhos, brando e piedoso, Sem ver de quê ; hum riso brando e honesto, Ouasi forçado ; hum doce e humilde gesto, De qualquer alegria duvidoso :

Hum despejo quieto e vergonhoso ; Hum repouso gravíssimo e modesto ; Huma pura bondade, manife Indicio da alma, limpo e gra

Hum encolhido ousar; huma brandura; Hum medo sem ter culpa ; hum ar sereno ; Hum iongo e obediente sofFrimentc ;

Esta foi a celeste formosura

Da minha Circe, e o magico veneno

Que pôde transformar meu pensamento.-

Historia da Litteratura Clássica 205

O soneto seguinte, que iodos sabem de cór, é o mais flagrante exemplo do poder de intensa expressão de Camões para traduzir a aspiração vebemente duma saudade apaixo- nada. Ha neste soneto, prejudicado pela sua extrema vulgarização, a reverencia piedosa duma oração, que como que molda, contem e limita o arroubo desesperado duma grande dor sem consolação, prestes a irromper. Um mar encapellado se adivinba sob aquella apparencia de contenção :

Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida descontente, Repousa no Céo eternamente, E viva eu na terra sempre triste.

Se no assento Ethereo, onde subiste, Memoria desta vida se consente, Não te esqueças de aquelle amor ardente, Que nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pôde merecer-te Algua cousa a dôr que me ficou Da mágoa, sem remédio de perder-te;

Roga a Deos, que teus annos encurtou, Que tão cedo de me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou.

E; no muito pouco pedir deste soneto, apenas a recor- dação do antigo amor, se ella no ceu se consente, que sob uma irónica amargura se contem a maior intensidade de sentimento, em contraste com o estado de extrema dôr nas outras partes do soneto revelado.

Nas éclogas, Camões, encontrando estabelecida uma interpretação, praticou-a apenas accrescentando esse pouco, que é muito, da sua inspiração poética. Os quinhentistas fizeram da écloga um género lyrico e uma peça auto-biogra- phica; lyrico é o bucolismo de Camões, que também

266 Historia da Lilteratura Clássica

algumas éclogas piscatórias compôs. Amores ardentes, apar- tamentos dolorosos, inconstancias volúveis, indifferenças desdenhosas e lamentações de saudade pelos que para sem- pre partiram, formam o fundo das éclogas camoneanas. Somente, a riqueza de imaginação do poeta e o seu senti- mento da natureza como que renovam esses themas, dando- lhes expressões mais vivas e mais fieis, mais sensibilidade; a sua forma é transparente, promptamente deixa ver seu fundo, sem as subtilezas rebuscadas e difficeis argucias, que era uso attribuirem-se aos pastores, desde que a Diana os intellectualizára, tornando-os quasi sophistas. De todas a mais bella é a quinta, em que falia um pastor, o qual confessa o seu amor ardente e firme até além da morte, apesar da fria indifferença da amada. A riqueza das imagens e a sequencia de provas desse amor, que tudo alegrava ou entristecia, exemplo magnifico desse outro divino Amor, pelo qual na natureza «se move tudo», mostram bem o poder do estro camoneano, ao versar um thema, que para outro poeta se tornaria monótono, por ter de ir buscar fora da sua imaginação e do seu coração, ás recordações littera- rias, ás aiiusões mythologicas, aos conceitos vulgares e inexpressivos a matéria para essa longa peça.

No bucolismo, Camões foi acima de tudo poeta lyrico. E os dois oppostos escolhes do género pastoral, intele- ctualizar os pastores rudes, de grosseiras inclinações e aca- nhadas opiniões ou, para evitar esse inconveniente, descahir nessa mesma grossaria e acanhamento vulgar (') não os praticou Camões, nem os adivinhou como navegante perito e feliz que passasse entre Scylla e Carybdes sem o suspei- tar, pois lyrismo subjectivo quiz fazer e não pequenos qua- dros de género.

(*) O problema da adopção do estylo rústico no género pastoral foi discutido na litteratura portuguesa, no século xvnr, por António Diniz. V. Historia da Critica Littcraria em Portugal, 2.a ed., pag. 96-97.

Historia da Litteratura Clássica 207

O mesmo mundo de sentimentos, que Camões engastou nos sonetos, deu a matéria poética para as canções, elegias, sextinas e odes ; mas ahi, sem a severa limitação da estreita moldura do soneto, os sentimentos do poeta correm livre- mente :

Soltando toda a rédea a meu cuidado.

do conteúdo riquíssimo da sua alma extrahe o poeta os motivos poéticos, sempre variados, porque a sua sensibilidade experimenta sempre de modo novo as mais velhas emoções e porque a sua imaginação se não cansa de encontrar na natureza as mais delicadas metaphoras e de achar no próprio mundo do sentimento as expres- sões mais subtis para traduzirem os requintes da sua alma e os extremos apaixonados de quem fez do Amor um culto e da belleza feminina uma divindade, para quem cons- tantemente idealizar e sentir era um indispensável alimento espiritual e que erigiu a torrente de sentimentos do seu. coração numa espécie de philosophia, que com esses mate- riaes sentimentaes. todos tecidos de pessoaes emoções, explica a vida e o mundo. Para traduzir esta concepção artistica é necessário crear uma linguagem própria, que á harmonia junte a profundeza, a intensidade e que não recue ante os paralogismos que se lhe possam deparar, antes obediente se adapte á lógica, á symetria e ás ultimas consequências dessa idealissima architectura. Ao fim o que se achará não é uma construcção que se deva aferir pelos valores correntes do mundo, nem pelas leis geraes da lógica, mas que se ha-de somente acatar como reconstituição duma alma eminente- mente esthetica. É nesse todo que se organizam as lyricas de Camões. Não como os sombrios cavalleiros do ideal, que fazem do seu sonho a única realidade da sua vida e que em cómicas decepções sentem o conflicto da sua phantasia com a positiva existência, mas conciliando plenamente o espirito

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de realidade com a elaboração intima dessa soffrida realidade, o poeta deu- nos. no seu lyrismo as ideaes verdades de quem com uma espécie de segunda vista as mais longinquas perspectivas da vida e que, onde outros se detinham, seguia avante na aza do sonho. Como um escholastico de olhos fechados, pensando, constrae o seu systema, ao espirito pedindo materiaes, avançando destemido de deducção em deducção, assim o poeta vae descendo nas espiraes profun- das que ao intimo da sua alma conduzem. Lyricos, subjecti- vos, curiosos de si mesmos, haviam sido os outros poetas quinhentistas e todos elles se apetrecharam das formas poéticas novas, das correntes idéas estheticas, do alvião da analyse e da sonda da intuspecção, mineiros promptos a penetrarem nas entranhas fugidias da alma humana. Mas na sua alma havia superfície, quando muito um immediato sub-sólo. Camões em si tinha profundidades occultas, desvãos esconsos, meandros confusos e a esse labyrinto des- ceu elle confiadamente e pôde auscultar-se, sentir as palpita- ções do seu coração e largamente e em todos os sentidos percorrer esse novo mundo de liberdade e plenitude. Este descobrimento da própria alma pelo caminho da dor é na nossa litteratura um momento de génio supremo, porque é a vez primeira que se exemplifica a these de que para ter génio litterario é preciso ter uma personalidade própria, que é daquelle a primeira creação.

A dor de amar, se limitadamente porque a mais não pôde, se com transporte porque soffrimento colhe, occorre a cada passo nas suas lyricas como thema sempre viçoso, porque toda a sua belleza não a podia colher. E vê-se que esse estado de permanente tensão da sua alma era para Camões o mais difiicil de exprimir, porque constantemente a elle regressa e quando o exprime, ora avança ás ultimas consequências, ora pára a restringir e aclarar:

Historia da Litteratura Clássica 269

Formosa e gentil Dama, quando vejo

A testa cTouro e neve, o lindo aspeito,

A bocca graciosa, o riso honesto,

O collo de crystal, o branco peito,

De meu não quero mais que meu desejo,

Nem mais de vós, que ver tão lindo gesto.

Alli me manifesto

Por vosso a Deos e ao mundo ; alli mJinflamo

Nas lagrimas que choro ;

E de mi que vos amo,

Em vêr que soube amar-vos me namoro ;

E fico por mi perdido de arte,

OuJhei ciúmes de mi por vossa parte.

Se por ventura vivo descontente

Por fraqueza d^esprito, padecendo

A doce pena qu'entender não sei,

Fujo de mi, e acolho-me correndo

A vossa vista ; e fico tão contente,

Que zombo dos tormentos que passei.

De quem me queixarei,

Se vós me dais a vida deste geito

Nos males que padeço,

Senão de meu sogeito,

Que não cabe com bem de tanto preço ?

Mas inda isto de mi cuidar não posso,

Doestar muito soberbo com ser vosso.

Sempre as categorias lógicas do seu mundo amoroso umas nas outras se penetram, se sobrepõem para logo se repudiarem e em seguida se juxtapôrem num incansável e dolorido esforço de, com phrases de sentido feito, aquelles caixilhos immutaveis, aquelles conceitos crystallizados que introduziram no mundo dos sentimentos e das idéas a mesma descontinuidade espacial, que separa os objectos materiaes de com a linguagem commum dizer o que de mais individual em si havia.

E assi de mi fugindo traz mim ando

270 Historia da Literatura Clássica

no desatino e no desconcerto que lhe vêm de em si trazer um revolto oceano de ideal, de cujas profundezas se erguem em grita aspirações e tendências, de que o poeta não pode ser fiel porta- voz:

SJeste meu pensamento,

Como he doce e suave,

DJalma pudesse sair gritando fora ;

E dando ouvidos ás vozes que dentro em si clamam, o poeta vivamente sente o seu illogismo e a sua descommuni- dade, e por isso pede que não julguem os effeitos que des- creve pelo vulgar entendimento humano:

Canção, se quem te lêr

Não crer dos olhos lindos o que dizes,

Por o que a si s'esconde ;

Os sentidos humanos (lhe responde)

Não podem dos divinos ser juizes,

Senão hum pensamento

Que a falta suppra a do entendimento.

Quando o poeta pinta e descreve a natureza, mistura também ás tintas a coloração dos seus sentimentos, attri- buindo assim aos quadros uma expressão subjectiva, um tom de melancholia calma, mas profunda.

As suas obras menores em redondilhas reservou o poeta a elegância conceituosa, galante e ligeira, o commentario ameno, gentil ou irónico do giro quotidiano em convívio. Apartam-se estas peças em terem a sua belleza na sua mesma facilidade, no prompto relevo com que offerecem todo o seu conteúdo, ao passo que as lyricas graves, como as canções e os sonetos, pertencem a este género de arte que na repe- tição não perdem, porque como uma musica rica em seu complexo de harmonias na successão das audições lentamente se vae deixando possuir, assim aos poucos vae descobrindo o seu occulto mundo de emoções.

Historia da Litter atura Clássica 271

Como a alma, que tacs sentimentos experimentou, era original e complicada, assim a sua expressão poética o era; por isso, uma frequência assídua nos descobre esse vasto mundo.

Xão que a forma não seja duma simplicidade surprehen- dente, mais duma vez quasi vulgar, mas porque ella veste conceitos tão requintados e traduz attitudes da alma tão pes- soaes e tão novas, que necessário se torna, para passar aiêin desse vestido singelo e gozar a intrínseca belleza, ter em receptividade esthetica um pouco daquella ultra sensível elegância espiritual que Camões teve sob a forma de produ- ctiva actividade. Não se repetiu Camões, antes muito lhe fi- cou por dizer, como elle declara no fecho daquella muito formosa canção auto-biographica :

Não mais, Canção, não mais; qiTirei fallando,

Sem o sentir, mil annos; e se acaso

Te culparem de larga e de pesada ;

Não pode ser (lhe dize) limitada

A água do mar em tão pequeno vaso.

O COiMZDTOGRAPHO

O breve theatro camoneano. que de três peças se compõe, não traz novidades á evolução do género, mas offe- rece á critica algum interesse pela sua mixta composição. Nessas três peças se combinam três influencias não muito diversas, mas até contradictorias : a do auto vicentino, a da comedia clássica e a do romance de cavallarias.

Pretendendo seriar as três peças chronologicamente, aproveitar-nos-hemos das informações históricas acerca das circunstancias, que rodearam a sua representaeão e apurare- mos que os Amphytriões foram escriptos para um divertimento escolar, ainda no tempo de Coimbra ; que El-Rei Seleuco o foi por 1545 ; e que o Philodemo foi representado na índia, em

272 Historia da Litterainra Clássica

1555, nas festas ao governador Francisco Barreto. Dizemos que este ultimo foi nessa data representado e não escripto, por uma razão externa e uma interna. A razão de ordem externa é a grande differença que faz o texto conservado por João Lopes Leitão no seu Cancioneiro do publicado pos- thumamente ; a razão de ordem interna é que os caracteres litterarios dessa comedia fazem-nos crer que, por defeituosa em extremo, será da mocidade do poeta, porventura o seu primeiro ensaio dramático, e não obra da plena maturidade do seu engenho. Certamente o texto publicado em 1587 era a reproducção da primitiva redacção, que entrara em circula- ção. Seguiremos a ordem, a que somos chegados pelas nos- sas inferências.

O Philodemi no ..orne é theatro. na essência é uma

serie de quadros episódicos juxtapostos chronologicamente e lado a lado para nos fazerem assistir a uma narrativa. O poeta conta-nos um romance complicado de aventuras, as quaes decorrem por muitos lugares e preenchem muito tempo, lugares que levam alguns dias a percorrer e tempo que abrange mais de um mês. Um irmão de D. Lusidardo, uma das personagens, aggravado de el-rei, emigra para a Dinamarca, cujo rei o cumula de honrarias, a que elie retri- bue raptando-lhe uma filha. Fogem numa galé, que pró- ximo das costas de Hespanha o mar destrue. a pobre princesa, adeantadamente gravida, consegue salvar-se, segura a uma prancha. á costa, põe-se a caminho, mas dando á luz, junto duma fonte, a dois gémeos, morre exhausta. Esses recem-nascidos, creados por um caridoso pastor, são Philo- demo e Florimena. O primeiro, não se resignando á vida humilde do pastoreio e tornando-se galã e bem prendado, é recebido em casa de D. Lusidardo, de quem é sobrinho sem o saber e toma-se de amores pela filha do seu amo, Dionysa, de quem vem a ser primo ; Florimena, de formosura pere- grina, accommoda-se á vida pastoril e tranquillamente vive com seu pae adoptivo. A alta ascendência e a procedência,.

Historia da Liitcraíura Clássica 273

das duas creanças soube- as o pastor pela pratica das artes magicas, em que era douto. Um dia, Venadoro, irmão de Dionysa, vae á caça e no impeto da carreira perde-se do seu monteiro. Logo os seus o procuram por toda a parte, o vindo a encontrar, mais de um mês depois do seu desap- parecimento, quando se iam celebrar as suas bodas com a pastora Florimena, de quem se enamorara ao vê-la junto duma fonte. Esclarecido sobre a proveniência de Florimena e Philodemo e sobre o parentesco que com elles tem, Lusi- dardo consente com alegria em os tomar por nora e genro. Se analysarmcs a forma por que Camões desenvolveu esta narrativa, facilmente discriminaremos os seus elemen- tos constitutivos, os endossaremos ás suas legitimas paterni- dades e concluiremos ser esta peça o que noutro lugar (*) chamámos uma obra tecida com os lugares communs de es- cola. O maravilhoso romanesco das creanças perdidas, reco- lhidas per um pastor e creadas em casa de parentes na igno- rância do seu parentesco ; a parte pastoril do entrecho ; o desapparecimento dum caçador que se abandonou ao impeto da carreira ; a eliminação duma personagem supérflua, a par- turiente dos futuros protagonistas, por meio da morte, são elementos suggeridos pelos romances de aventuras, em gosto na epocha ; a gaiatice do creado Vilardo e o seu alegre des- contentamento, que da própria situação precária se ri, bem como a adopção do metro curto, de sete syllabas, são de Gil Vicente, que muito tratou esse veio do cómico ; o papel de Solina é confessadamente semelhante ao de Celestina em Calisto y Melibca, de Fernando de Rojas ; e a methodica divi- são em cinco actos com suas scenas e a ousada adopção da prosa, á mistura, é evidente influencia da comedia clássica. Assim pois, Camões organizou a sua peça com os ele- mentos heterogéneos, que andavam no ar, como recorda-

(1} V. Historia da Litteratura Romântica, Lisboa, 1913. H. da L. Clássica, \.° vol.

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cão das leituras mais em moda. Esta confusão de géneros, romance e theatro, em suas estructuras plenamente adver- sos, dá causa a essa dispersão da acção no tempo e no espaço que vimos ser um grave defeito no theatro vicentino e que tem sido sempre um dos maiores óbices ao progresso do theatro.

Os Amphytriões têm por assumpto o thema da comedia de igual nome de Plauto : o disfarce do trefego Júpiter em Ampkytrião para vencer a mulher deste, a virtuosa matrona Alcmena, que se consumia em saudades de seu marido ausente. São as mesmas as personagens, análogo o desen- volvimento, só o cómico é menos grave que em Plauto, porque Camões com melhor veia cómica soube aproveitar os qui-pro-quo, as confusões a que lugar o desdobra- mento de Amphytrião e seu creado Sósia em duas persona- lidades iguaes, inimigas por não poderem soífrer a pre- sença uma da outra. Como no Philodemo, é a redondilha o metro adoptado e é praticada com o mesmo rigor a divisão em cinco actos e suas scenas. Sem duvida por influencia do próprio original de Plauto, a acção apresenta-se mais con- centrada no seu desenvolvimento e na sua localização e até no seu próprio thema, bem se podendo dizer que Camões praticou a regra das unidades.

El-rei Seleuco é a sua peça mais regular. Tem por assum- pto o caso antigo, narrado pelos auctores clássicos e repetido por um contemporâneo de Camões, o Dr. João de Barros, homonymo do historiador, no seu Espelho de Casados, a cessão que o rei Seleuco fez de sua própria esposa ao filho, enteado delia e delia enamorado. Viram os contemporâneos nessa peça uma allusão ousada ao caso, parcialmente semelhante, succedido com o rei D. João in, quando principe.

El-rei Seleuco compõe-se dum prologo em prosa, dialo- gado entre personagens estranhas á peça, cuja representação estão preparando e aguardando, e dum único acto em redon- dilhas em que se reconstitue a doença moral do principe e

Historia da Litter -atura Clássica 275

o remédio que lhe a generosidade do pae. O mérito prin- cipal deste auto, como das outras comedias camoneanas, consiste na destreza do verso, que corre espontâneo e fácil, sem as bruscas quebras de tom e de expressão, que em Gil Vicente notámos, e em linguagem mais avançada na sua progressiva evolução, mais desligada das faixas dos archaismos.

O ÉPICO

Como a tragedia, na definição clássica, deve expressar uma súbita mudança da fortuna com tempestuosa exaltação das paixões que desperte, no dizer dos theoricos «o terror e a compaixão», assim a epopéa tem por objecto prcprio o estado de lucta da humanidade, aquelle estado em que uma mudança violenta se opera nas consciências e nas con- dições sociaes, fértil de acontecimentos heróicos, de inspiração da phantasia sacudida sob esse estimulo. Sem diligenciar achar a normalidade causal, a regularidade sequente para desses tempos fazer exposição lógica, serena e explicativa, como a historia, a epopéa escolherá da farta messe de episódios heróicos aquelles que mais avultarem pelas proporções, pelo agigantado esforço que revelam e pelo amplo significado, comprazendo-se assim no maravi- lhoso. A lucta que produz um theor de vida maravilhosa, a aventura feita de tradição e lenda, não de facto apurado e rigoroso, mas visão collectiva, synthese artística de peri- phrases e hyperboles, constitue a matéria própria do poema épico. Ao trágico, que exalça os seus auctores com o cothurno e lhes retumbante voz, importa principalmente a violência titânica das paixões que encapellam a alma dos seus protagonistas, o mundo interior do coração humano tornado lobrega caverna onde rugem impetuosos ventos; ao épico importa principalmente a acção externa da alma do

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276 Historia da Litteraiura Clássica

protagonista, a sua agitação dramática e heróica. E\ pois, a epopêa movimento narrativo mas sempre em tom heróico,, onde se canta com voz grandíloqua a lucta temerosa pela realização dum grande ideal collectivo. Os poemas homéri- cos, concebidos quando a intelligencia grega ainda não for- mulara o ideal de pátria, cantam as luctas duma família de heroes e têem por ideal a união familiar sob um commum princípio, o amor da victoria e da honra. Virgílio canta a formação da pátria romana; Dante expressou a aspiração da unidade italiana.

Quando Camões delineou o seu poema haveria em Por- tugal, no meio litterario, o pensamento duma epopêa ? Este pensamento andava no ar, era idéa que todos os espíritos respiravam, suggerida pelos modelos da antiguidade, acordada pelas circunstancias históricas da nação portu- guesa. O historiador Gomes Eannes de Azurara, em mais de um passo cita Lucano, o creador da epopêa histórica latina, que pela sua Pharsalia quasi convertera o género épico em amena historia contemporânea, tanto carece de sopro épico. Em 1533 no seu Panegyrico a D. João III, o historiador João de Barros muito francamente declarava a sua preferencia da epopêa ao lyrismo e ás novellas de cavallaria : ...«ás mesas dos príncipes e grandes senhores se cantavam antigamente em metro os feitos notáveis dos .grandes homens, donde primeiro nasceu a poesia heróica, e segundo eu tenho ouvido ainda neste tempo os Turcos, em suas cantigas, louvam feitos de armas de seus capitães, o que se fosse usado em Hespanha e toda a Europa, se me não engano, mais proveito de tal musica nasceria, do que de saudosas cantigas e trovas namoradas». em 1520 o mesmo escriptor, no seu romance Chronica do Emperador Clarimundo, introduzira a originalidade de embutir nessa obra uma intenção de apotheose patriótica. Na ultima parte da novella, um propheta prenuncia a Clari- mundo a gloria dos reis seus descendentes, que formarão a pátria portuguesa e a engrandecerão pelas navegações e

Historia da Litteratura Clássica 277

•conquistas. apontámos em lugar próprio este facto e registámos a possibilidade de ter sido o romance do Clari- mundo fonte dos Lusíadas. A própria forma poética de oitava- rima ou verso heróico é por João de Barros exemplificada nesse seu romance. António Ferreira claramente suggere essa empresa a Pêro de Andrade Caminha, indicando-!he como personagem central um dos filhos de D. João i:

Dos mais claros Heroes hum, que cante

Escolha teu sprito, real sujeito

Tens na alta geração do grande Inffante.

Ergue-te, meu Andrade, arca esse peito Inflamado dJAppolo, cante e sôe igual tua voz ao teu tam alto objeito.

Ouça-se o grã Duarte, por ti voe Pelas bocas dos horr.ês; de sua mão Inda Palias, ou Phebo te coroe.

O mesmo poeta, espécie de theorico do ideal clássico e orientador dos nossos primeiros quinhentistas, exhortava António de Castilho a organizar uma historia pátria, cuja intenção e sentimento dominante não distariam muito da intenção e sentimento dominante da epopêa, segundo as idéas da época:

Quando será que eu veja a clara historia

Do nome português por ti entoado.

Que vença da alta Roma a grã memoria?

Igual incitação fazia o auctor da Castro a D. António de Vasconcellos, na ode 8.a do livro i.°, a António de Castilho, guarda-mór da Torre do Tombo, na carta 6.a do livro 2.°, a Diogo de Teive, poeta latino. E Diogo Bernardes em carta a António de Castilho justificava-se de não tentar a empresa por falta de um Augusto, «a quem tão bom trabalho seja acceito. >

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A ventilação desta idéa duma epopêa nacional, ainda noutros passos dos Poemas Lusitanos, de Ferreira alludida, (ode i.a do livro i.°, carta 3.* do livro i.° e ode i.a do li- vro 2.0}, a sua satyra contra os Chérilos e os epigrammas têm sido combinadas de modo a reconstituir a celeuma de protestos e inimizades que o génio de Camões e o seu ambi- cioso projecto duma epopêa haveriam despertado na corte. (')

A própria historiographia do século XVI palpita dum sopro épico; João de Barros desfigura em heroes de epopêa as personagens da historia que narra em sua Ásia, complexo de façanhas que Gaspar Corrêa appellidou de lendas e a que elle mesmo misturou seu elemento phantastico. E a prefe- rencia dada por todos os historiadores aos successos decor- ridos no remoto Ultramar, mesmo quando declaradamennte a incumbência recebida era para tratar das coisas do reino, é também um evidente signal da ufania dum povo que levara a cabo grandes empresas. no principio do século XVII, Diogo do Couto, quando nos seus diálogos do Soldado Pra- tico, investiga das causas da decadência do dominio portu- guês na índia, é aindef com critério épico que faz o seu exame, pois ao amollecimento do espirito guerreiro, do en- thusiasmo heróico attribuia a decadência do dominio que, em seu critério, por armas se devia manter.

A matéria épica oíferecia-se a Camões, palpitante de realidade e opportunidade. Toda a historia de Portugal de Affonso Henriques a D. João III estava narrada com sequen- cia de methodo e doutrina; todos os chronistas haviam im- pregnado suas obras de sentimentos de vivo patriotismo e ardente piedade religiosa, factores únicos reconhecidos. O milagre, o elemento cavalheiresco e o elemento lyrico e trá- gico dessa historia estavam também revelados, Ourique, a

(') V. para exemplo as pacientes e profundas investigações do sr. Doutor José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas, cap.o 7.0, publ. no Instituto, de Coimbra, trabalho incompleto.

Historia da L literatura Clássica 279

infanta D. Maria, Ignez de Castro, Nun'Alvares, os infantes de Ceuta, as lendas dos mares ainda não navegados povoa- dos de gigantes e monstros. Estava suggerido o titulo, estava exemplificada a forma, estava demonstrada a capacidade épica de figuras como Vasco da Gama e Affonso de Albu- querque, figuras centraes dos successos do Oriente e perso- nagens principaes da historiographia que os narrava. Esta- vam dadas idéas para a composição da obra, o processo da prophecia por João de Barros, treinada a lingua portuguesa num incessante exercício de metaphoras, periphrases, euphe- mismos e numa experimentação continua de adjectivos, de modo que se creára um estylo de austera grandiloquencia. Organizar esses dispersos elementos sob a unidade duma principal acção, dentro delia sob a forma de episódios que se narram e que se futuram embutir a historia anterior e posterior a essa principal acção, converter em symbolos o que era typico e representativo nessa historia,, revolver todos os episódios lyricos, trágicos ou cavalheirescos para lhes encontrar a face épica e para nós a voltar, visto que o engrandecimento da gente portuguesa se tinha em vista era crear a epopêa nacional. Tal emprehendimento de syn- thetica intuição executou-o Camões com os seus Lusíadas.

Após o formoso pórtico da proposição, da invocação e da dedicatória, abeiramo-nos da acção, que, segundo manda- vam os theoricos. desejosos de cavar distincções nítidas en- tre a chronica e a epopêa, ia adiantada.

os portugueses navegavam no Oceano Indico havendo até passado muitos perigos e trabalhos, quando os deuses do Olympo reúnem seu concilio para deliberar sobre se ha- veria de ser concedido aos navegantes que attingissem a almejada Iadia. Apesar da opposição de Bacho, ciumento por não querer que a fama do seu domínio na índia se perdesse offuscada pelo valor dos portugueses, preva- lece a opinião de Marte, que nos navegantes herói- cos guerreiros e protegidos de Vénus, sua amada. Essa é

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também a vontade de Júpiter,* porque assim se promettia nos Destinos.

Entretanto chegam os portugueses a Moçambique, onde estiveram a ponto de soffrer traição, passam em frente de Quiloa e surgem em Mombaça onde, auxiliada por Bacho, maior traição se prepara e de que escapam por virtude da mediação de Vénus e suas nymphas, que impedem a entrada da armada no porto. Novas instancias faz Vénus junto de Júpiter pelos portugueses, ainda perseguidos de aventuras arriscadas, apesar do que se deliberara no olym- pico concilio.

Logo parte para a terra Mercúrio, que em sonhos acon- selha e inspira confiança em Vasco da Gama, a quem annuncia a próxima chegada a Melinde, cujo rei o gasalhará amigavelmente. Visitando o rei de Melinde a frota, pede a Vasco da Gama que de noticias da situação geographica da sua pátria, do seu nobre rei, da historia delia. Isso faz o Capitão e essa narrativa é um dos muito habilidosos artifí- cios usados por Camões para ter ensejo de cantar a historia anterior á viagem da índia, muito bem escolhida para acção fundamental, porque ella foi a principal das navegações portuguesas, assim considerada no seu tempo, em que se reconhecia ser ella o coroamento dos longos e sequentes esforços iniciados pelo infante D. Henrique.

A narrativa ao rei de Melinde comprehende a des- cripção da Europa, localização de Portugal nesse continente e os feitos principaes de D. Henrique, D. Thereza, D. Affonso Henriques, D. Sancho I, D. Affonso II, D. Sancho n, D. Affonso III, D. Diniz, D. Aífonso IV, D. Pedro i, D. Fer- nando, D. João I, D. Affonso V e D. João II. Mas como o poeta épico canta e não conta, terá de escolher e fazer avultar os episódios que ao seu propósito melhor sirvam. E assim é a batalha de S. Mamede, em que sobresahem o arrojo e a altivez de D. Affonso Henriques fundando uma pátria; é a batalha de Ourique, er.tãc uma formidável bata-

Historia da Liderai ura Clássica 281

lha, que daria consagração bellica ao novo rei, o ungiria de sar.cção divina e lhe daria o pleno acatamento dos seus; é a generosidade de AfFonso IV, que ante as lagrimas commovi- das da filha depõe os seus resentimentos contra o genro, acode em seu auxilio, contribue para a victoria e volta desinteressado dos despojos; é a morte de Ignez, em que sobresahe a vehemencia do amor português e a rigidez da razão de estado, do interesse da rjatria que esses reis caval- leiros vinham construindo; Nun'Alvares e Aljubarrota, o heroísmo santo e o mais exaltado amor da pátria; de D. João ii os seus esforços por attingir a índia e de D. Manuel a decisão de mandar a frota, que ora o rei de Melinde visita e festeja.

Mas, repetimos, como Camões era poeta épico e não historiador, não fez derivar essa decisão da fria conclusão de estudos scientificos e das informações de precedentes; seria isso uma exposição de razões, que perderia com ser feita em verso. Como manejava symbolos e imagens para construir uma obra de arte e não enseriava factos apurados para fazer uma obra histórica, usou do artificio muito do gosto clássico, amplamente exemplificado em epopêas da epocha, dum sonho; em sonho apparecem a D. Manoel i os rios Indo e Ganges, que pela voz do primeiro lhe propheti- zam que dominará na índia, mas á custa de dura guerra. Conta depois Vasco da Gama como o rei promptamente ordenou a partida da expedição do seu commando, a sua partida e a sua viagem até á chegada áquelle posto amigo; e como a viagem, feito principal da nação portuguesa, sym- boiiza a parte principal da actividade dessa nação, a sua parte de interesse humano, assim de symbolos é tecida essa narrativa. É um symbolo o velho do Restello, personificação do descontentamento popular, do bom-senso rasteiro, aziu- mento, mas a que sempre se vem a reconhecer razão, tardia razão; é um symbolo o episodio de Fernão Velloso, aventu- reiro gabarola; é um symbolo a prosopopêa magnifica do

282 Historia da Littcraiura Clássica

gigante Adamastor, que é para nós, portugueses, o que foram as columnas de Hercules para os phenicios e todos os antigos, o non plus ultra afinal desmentido. Tal hymno á pátria, enthusiasticamente entoado perante o rei de Melinde, tinha uma conclusão, que se não dirigia áquelle longínquo soberano, mas a todos os portugueses e ao mundo inteiro: que os heroismos portugueses, verdadeiros e duplos pelo que acommetteram e pelo que resignadamente elles soffre- ram pelo seu Deus e pelos seus reis, excedem toda a densa massa de phantasiosas aventuras de phantasiosos heroes do mundo antigo e moderno, excedem a própria força humana:

Julgas agora, Rei, que houve no mundo Gentes, que taes caminhos commettessem ? Crês tu, que tanto Eneas, e o facundo Ulysses pelo mundo se estendessem ? Ousou algum a ver do mar profundo, Por mais versos que dJelle se escrevessem, Do que eu vi a poder d"*esforço, e de arte, E do que inda hei-de ver, a oitava parte ?

Esse, que bebeo tanto da agua Aonia, Sobre quem têm contenda peregrina Entre si Rhodes, Smyrna e Colophonia. Athenas, los, Argos e Salamina : Essoutro, que esclarece toda a Ausonia, A cuja voz altisona e divina, Ouvindo o pátrio Mincio se adormece, Mas o Tibre coJo som se ensoberbece :

Cantem, louvem, e escrevam sempre extremos BJesses seus semideoses, e encareçam, Fingindo Magas, Circes, Poliphemos, Sirenas, que coJo canto os adormeçam : Dêm-lhe mais navegar á vela e remos Os Cicones, e a terra, onde se esqueçam Os companheiros, em gostando o Loto: Dêm-lhe perder nas aguas o piloto :

Historia da Litteratura Clássica

Ventos soltos lhe finjam, e imaginem Dos odres, e Calypsos namoradas, Harpias, que o manjar lhe contaminem, Descer ás sombras nuas passadas ; Que, por muito, e por muito se afinem Nestas fabulas vãs, tão bem sonhadas, A verdade que eu conto nua e pura, Vence toda grandíloqua escriptura.

Depois de farta e generosamente obsequiado pelo rei de Melinde, que solemnes promessas de viva amizade declara, põe-se a frota a caminho, guiada por fiel piloto melindano. E prospera e confiadamente vae navegando, quando Bacho, vendo approximar-se o termo da viagem que o será também da sua fama de conquistador do Oriente, reúne os deuses marinhos e os persuade á destruição dos seus zelosos competidores. Effectivamente, as divindades marinhas afanosas acodem em auxilio de Bacho e quando em amena confraternidade a marinhagem ouvia a historia dos doze de Inglaterra, pagina eloquente do heroismo por- tuguês, contada por Fernão Velloso, desencadeia-se a tem- pestade. Delia se salvam ainda por mediação de Vénus que com sua corte de nymphas e deusas abranda em ternura amorosa a fúria destruidora dos ventos. E emfim chegam a Calicut. Ahi é Vasco da Gama festivamente recebido do Samori. Entretanto o Catual de Calicut, particularmente in- formado da gente portuguesa por Monçaide, quer visitar a armada.

E durante essa visita que Paulo da Gama, explicando as pinturas das bandeiras, que ornam as naus, vae expondo ao soberano indio, não a historia seguida como em Melinde fizera seu irmão, mas uma galeria de episódios que nova demonstração sejam do heroismo sobre-humano dos portu- gueses: Egas Moniz, D. Fuás Roupinho, D. Prior Theoto- nio, Mem Moniz, Giraldo Sem Pavor, Martim Lopes, Paio Peres Corrêa, Gonçalo Ribeiro e outros.

284 Historia da Litteratura Clássica

Em sonho, é o Samori advertido por Bacho da supposta falsidade da gente portuguesa e contra elles concebe suspeita. Prepara o Catual a sua destruição, dificultando o embarq-ue do Capitão e impedindo o livre commercio, entre- tendo delongas sem fim á espera das naus de Meca que po- riam em obra a sua traça. Conseguindo partir a salvo, põem-se os portugueses a caminho da pátria, quando Vénus, sempre sua generosa protectora, lhes prepara a grata sur- presa da ilha dos Amores, éden terrestre que no caminho se lhes depara e onde colhem as mais gostosas delicias de amores divinos e banquetes divinos. Novo ensejo prepara Camões para cantar o heroísmo que os portugueses exerci- tariam nas partes do Oriente, cujo caminho acabavam de descobrir. O artificio agora adoptado é o da prophecia que uma nympha cantando faz, na qual annuncia aos enlevados portugueses a vinda de successivas armadas por aquelle ca- minho, agora devassado, a vingadora destruição da traiçoeira Calicut, as façanhas sobre-humanas do invencivel Duarte Pacheco, D. Francisco de Almeida, D. Lourenço de Almei- da, Affonso de Albuquerque, a figura máxima do oriente, em que o poeta põe o reparo da crueldade, Soares de Al- bergaria, Sequeira, Menezes, Heitor da Silveira até D. João de Castro. Depois, subindo a um monte, Tethys mostra ao Gama a machina do mundo e a descreve circunstanciada- mente. E nessa descripção que se contém aquella estancia de mau gosto, que parece proceder de exigência da censura, -sempre sollicita em guardar a pura orthodoxia:

Aqui verdadeiros gloriosos Divos estão ; porque eu, Saturno, e Jano Júpiter, Juno, fomos fabulosos, Fingidos de mortal, e cego engano : para fazer versos deleitosos Servimos; e se mais o trato humano Nos pôde dar, é so que o nome nosso Nestas estrellas poz o engenho vosso :

Historia da Litter 'atura Clássica 285

Dentre desta composição, sem duvida a mais feliz que á sua imaginação se podia offerecer, Camões não teve des- falecimentos, quebras de tom épico, manteve a unidade es- tructural, sóbria e equilibrada, e a sequencia de levantada inspiração. parece quebrar a unidade do poema, retirar-lhe um pouco aquelle caracter de exacta necessidade, em que cada parte está no seu lugar próprio e se mostra indispensá- vel, a final descripção da machina do mundo. Porque faria Camões que Tethys tão circunstanciadamente descreva o systema geral do mundo, pondo assim um tão scientifico re- mate a umas horas de deliciosos amores, remate que parece inopportuno ? Porque, querendo os portugueses tudo devas- sar na terra, mares e continentes, condigna recompensa de suas façanhas seria erguê-los ao intimo conhecimento da machina do universo ? Pôde ser essa uma explicação, pois a outra, que occorre, de querer a bella deusa apontar as par- tes do mundo por onde os portugueses discorreriam e obra- riam feitos illustres, não é defensável, porque muito pouco lugar oceupam os portugueses na oração da deusa, por- que essa descripção de muito mais se oceupa, além dessas partes percorridas dos portugueses. Mesmo esse intuito seria mal servido, pois em presença dum tão grande todo, a acti- vidade dos portugueses era bem pequena coisa.

Para nós, não se offerece uma explicação esthetica acceitavel.

É sempre na clave heróica que Camões canta a maravi- lhosa acção, sequencia de causas e effeitos maravilhosos. Dos portugueses têm os deuses ciúmes ; por esses zelos se cava a cizânia na corte celeste ; deuses os perseguem, deuses os protegem.

Para sobre elles desencadear uma tempestade, reune-se, na opulenta e profunda corte de Neptuno, um concilio de deuses marinhos e delles mandados rijamente sopram sobre as frágeis naus os mais furiosos ventos ; para impedir a des- truição visada por esses ventos, acode Vénus e toda a amo-

286 Historia da Litteratura Clássica

rosa corte. Quem pretende oppôr-se á passagem dos portu- gueses e quem, delles vencido, perpetua vingança tirará inexoravelmente? Um gigante, deus, que na guerra dos deuses andara. É sempre no dominio da causação maravi- lhosa que se mantém o entrecho dos Lusíadas.

Por isso, mais surprehende, o gosto infeliz, incoherencia em meio da geral congruência do poema, trahido na exposi- ção do s}'stema do mundo por uma deusa, que por sua pró- pria bocca declara não existir, servir para adornar versos, mas que no emtanto tudo sabe. Essa penúltima parte do canto décimo dos Lusíadas é um problema na comprehensão esthetica do poema, talvez um enigma.

Da symbolcgia camoneana, é a prosopopéa do Adamas- tor a mais genial concepção, sem duvida a pagina mais bella do poema e uma das creações mais altas da poesia humana. Ignez de Castro e Aljubarrota são de extrema bel- leza, mas os elementos seus componentes são bem conheci- dos de modo a limitarem um pouco o campo de pura creação individual do poeta, depois a nota lyrica do episodio da morte trágica da amante de Pedro, como lyrismo é dema- siado oratório para um poeta que repetidas vezes, nas suas lyricas, bateu á porta da eterna belleza ; e o reverso politico e patriótico desse trágico medalhão é muito secundário.

O episodio de Aljubarrota, com a parte de Nun'Alva- res, é exemplo da eloquência vibrante de linguagem, da vi- veza movimentada, da decisão heróica, intensa e invencível, daquella imprudência, que uma scentelha divina esclarece e guia :

. . .são grandes as cousas, e excellentes, Que o mundo encobre aos homens imprudentes.

Esses episódios são principalmente superfícies bellas, opulentamente adornadas e coloridas, mas o Adamastor é o acumen do génio pcetico de Camões e da imaginação litte- raria dos portugueses, o mais perfeito exemplo do bello

Historia da Lilteratura Clássica 2S7

sublime da epopGa. A localização, a personificação escolhida e a historia desse monstro, que perfigurava o medonho cabo, um todo único e harmónico formam. O medonho cabo, que constituiu o maior obstáculo da navegação portuguesa, ver- dadeiro cabo das Tormentas, e depois de transposto, o maior triumpho, verdadeiro cabo da Boa- Esperança, não podia ser melhor personificado que em um gigante, o maior, mais horrivel de aspecto e proporções, que a phantasia humana creára. O Atlante da mythologia era muito impreciso, inhu- mano e por isso inconcebível, quasi uma abstracção, e os gigantes-cavalleiros das novellas em moda eram homens invulgares. Mas o Adamastor é um gigante humanamente concebível, embora preencha todas as grandes disponibili- dades dessa imaginação perplexa. E um gigante, que abra- çamos em todo o seu conjuncto, a figura horrenda e domi- nadora fechando os mares e a sua historia triste. Sobretudo a sua historia triste é duma commovente belleza, enternece- dora e põe nessa rocha abrupta e medonha uma crispação humana, uma vibração de amor, daquelle Amor, eterno causador de todo o bem e de todo o mal, cujos arcanos invios, em lingua portuguesa, ninguém percorreu como Camões. Cumprindo sempre rigorosamente o seu propósito de todo o maravilhoso entrecho sujeitar a uma também maravilhosa causação, o poeta conta-nos, explica-nos muito coherentemente porque alli se encontrava aquelle gigante, em tão avio recanto do mundo, longínquo, isolado e perigoso a mais não poder ser, até para um deus. Estava alli o gigante porque amara e por amor se rebellára contra Júpiter. Que effeitos surprehendentes de belleza sublime, dos mais arro- jados contrastes nos deu Camões nesse quadro : enchendo o horizonte e escurecendo o mar immenso a figura colossal do cabo, ainda mal perdidas as antigas formas humanas ; sobre as ondas agitadas, débeis e apoucados, os navios dos portu- gueses ; e das profundidades cavernosas uma voz enchia o espaço a rugir coléricas ameaças e logo brandamente a dizer

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uma delicada historia de amor que enternecera, humanizara até á infantilidade a extincta alma desse gigante.

E quem acordara do seu silencio millenario essa voz, quem depois de Júpiter com elle media forças e o vencia como Júpiter o vencera, quem vencendo-o agora vencia o próprio Júpiter, por cujo mandado elle guardava aquelle passo ? Os portugueses. Por isso dizemos que o intuito épico de engrandecimento da gente portuguesa em nenhuma outra parte do poema se cumpriu com tão supremo génio, como nesta creação do Adamastor bella como nenhuma outra por servir com exacção inexcedivel esse propósito e pelo contraste delicado entre a força potente desse gigante e a terna paixão que por Thetis concebe, o contraste da audácia desse gigante rebellado contra Júpiter que é afinal joguete duma frágil deusa «única despida >>.

Outra creação camoneana de grande belleza e também originalmente camoneana é a do velho do Restello, face opposta ao heroísmo cavalheiresco. A philosophia desse velho, vulgar, mas tão profunda e desdenhada, sempre velha por ser repetida, sempre nova por não ser ouvida, a desillu- são sceptica e o bom senso conservador, forma bello con- traste com todo o furacão de heroísmo, que bate as estancias do poema ; contraste que trinta e três annos depois, desen- volvido sob forma narrativa e pittoresca, daria matéria a outra obra de génio, o D. Quixote.

Psychologo, como o vimos nas lyricas, pensador como se revela em todo o conjuncto da sua obra e particularmente nas muitas sentenças argutas e profundas, em linguagem lapidar, que esmaltam o poema, narrador habilissimo e des- criptor elegante e incisivo, Camões fez convergir todos os elementos que podiam servir á elaboração da obra, mas nenhum lhe serviu tão bem, além do seu génio creador de symbolos e imagens, como esse deslumbrante dom da lin- guagem intensa, de hyperboles que avultam as proporções, de periphrases que avultam a vulgaridade, eloquente e

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vibrante até ao enthusiasmo, ao exaggero glorioso. E esses effeitos magníficos do seu estylo, principalmente nos discur- sos e diálogos, conseguiu-os o poeta não por meios artifi- ciosos, adjectivos sonoros, a musica enganosa das palavras, mas em pleno connubio de sentido e expressão; é o senti- mento que sobe a alturas ainda não attingidas na velha gamma dos affectos e comsigo a expressão que o veste. Elle é que fez as phrases de sentido certo, petrificadas, que evocam sempre o mesmo sentido, porque foi elle que as creou para seu uso.

Está apurado por sólidas investigações o que é Camões como pintor da natureza, qual a verdade objectiva da fauna e da flora, que em seu poema elle nos refere, da sua geogra- phia e da sua cosmographia, quaes as prováveis fontes inspiradoras, quaes as idéas geraes que ao poeta, como moralista e como pensador, guiaram. Fazê-las era repetir sem opportunidade os resultados dessas investigações. (*) se não tem feito muito a simples coisa de dar á critica litteraria o poema como thema de analyse esthetica, um pouco impres- sionista, ainda que tende bem presentes valores litterarios menos caducos que os do arbítrio pessoal. Tempo é de se fazer esse trabalho.

Ao poema camoneano seguiram-se outras tentativas desse género, legitimamente justificadas em ser a epopêa um dos mais nobres géneros de gosto clássico, na exube- rância de matéria épica nacional, que aos poetas de engenho se offerecia e ainda proximamente suggeridas pelo êxito dos Lusíadas.

(') V. a bibliographia dos estudos Camoneanos na Critica Littera- ria como Scicncia, pags. 185-195.

H. da L. Clássica, l.* vol. 19

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Jeronymo Corte Real (') publicou em 1574 o Successo do Segundo Cerco de Dm, a Felicíssima victoria concedida dei cielc ai senor Don Juan d' Áustria, en el golfo de Lepanto, 1578, e o Naufrágio c lastimoso successo da perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda e Dona Lianor de Sá, sua Mulher e Filhos, posthu- mamente publicado por diligencias de seu genro, António de Sousa, em 1594. Luiz Pereira Brandão (2) escreveu o poema da Elegiada, sobre a guerra, perda e morte do rei D. Sebastião, 1588, e Francisco de Andrade (?) o Primeiro Cerco de Diu, em 1589.

Os dois poemas sobre os cercos de Diu e o outro sobre o naufrágio de Sepúlveda são como pormenorizações de epi- sódios já contidos nos Lusíadas, no lugar e papel que lhes cabia como pedras do grande edifício: os dois cercos entre as prophecias ouvidas na ilha dos Amores, e o naufrágio no caudal de vinganças que o Adamastor cobrará dos portu- gueses. Tirá-los desse lugar para constituírem matéria de longos poemas seria legitimo, quando elles revestissem um interesse humano, superior ao seu significado episódico,

(') Jeronymo Corte Real nasceu em Lisboa, filho de Manuel Corte Real, donatário da Ilha Terceira; ignora-se a data do seu nascimento. Exerceu cargos militares em Africa e na índia, entre elles o de capitão- mór duma armada. Regressando ao reino, foi viver para uma sua quinta, próxima de Évora, onde cultivou as artes e onde morreu em 1588. É frequente affirmar-se que tomou parte na batalha de Alcácer Kibir, mas não ha fundamento seguro para tal asserção.

(*) Luiz Pereira Brandão nasceu no Porto, entre 1520 e 1540. Pro- fessou na Ordem monastico-militar de Christo. Era filho do capitão das Molucas, António Pereira Brandão. Tomou parte na batalha de Alcácer Kibir, onde foi aprisionado. Conseguindo a sua libertação, voltou ao reino onde morreu em lugar e data, que se ignoram.

(3) Francisco de Andrade nasceu em Lisboa; ignora-se em que anno. Foi filho de Fernão Alvares de Andrade, fidalgo da corte de D. João ih. Por morte de António de Castilho, recebeu os cargos de guarda-mór da Torre do Tombo e de Chronista-mór do Reino. Publi- cou em 1613 uma Chronica de D. João III e morreu em 1614.

Historia da Litter atura Clássica 201

mas essa transfiguração não souberam os poetas oprrá-la ou não a comportavam tacs themas. São, por isso, narrativas poéticas complicadas da apparelhagem mythologica e dos artifícios da composição literária. Estes reduzem se na Ele- giada, plangente narrativa chronologica da derrota de Mar- rocos, matéria de todo destituída do espirito épico. Quanto se contem de melhor, na pintura, na symbolização ou no estylo poético destes poemas, está comprehendido com relevo inexcedivel nos Lusíadas.

CAPITULO VIII

A PROSA MYSTICA

Noutro lugar dissemos que considerávamos como uma das fundamentaes caracteristicas da litteratura portuguesa a persistência dum certo mysticismo intellectual e summaria- mente expuzémos o conteúdo que para nós comporta essa expressão de mysticismo. Os tópicos, que então apresentá- mos, constituem um typo muito especifico de estados de consciência, em que abunda certo Irybridismo, queremos dizer, em que co-existem as disposições de espirito mais oppostas, como são a acceitação do determinismo e da su- perstição, dos hábitos creados pela educação scientifica e dos grosseiros prejuízos repetidos pela rotina mais ingenua- mente crédula. Não é deste mysticismo na accepção de estado da consciência, que nos queremos agora occupar, muito embora grandemente delle participe aquella espécie de mysticismo, para a qual reclamamos por alguns momen- tos a attenção: o mysticismo como género litterario.

O mysticismo para nós consiste no isolamento, tão com- pleto quanto possível, do mundo exterior, e na meditação sobre um thema único. Elle é um extremo de subjectivismo, porque ou é o próprio espirito esse thema único da medita- ção ou, quando se exerce sobre outro thema, é o próprio espirito que fornece os materiaes para construir o edifício. Portanto o mysticismo exclue toda a observação, procede pela mais cerrada lógica deductiva e exerce-se pela intus-

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pecção, que desse modo é a principal faculdade do espirito interessada. Este exclusivismo da idéa única, que ha quem chame mono-ideismo, tanto pode conduzir á liberdade espi- ritual, pela pratica e aguçamento do dom da intuspecção, como á irnmobilidade espiritual, attingindo-se assim um estado muito vizinho da loucura, com total perda da noção de tempo.

A idea de tempo tem como bases a consciência das mudanças, da successâo das variações e a consciência da repetição das mesmas mudanças. Essas variações e essas repetições deixa o mystico de as surprehender na sua flagrân- cia, desde que mergulha na meditação da idea única, inespa- cialmente e intemporalmente, para attingir a suprema forma do mysticismo, o estado de êxtase. Isso trahiam os próprios mysticos, quando chamavam á eternidade um perpetuo presente. O êxtase é um estado que se caracteriza pela máxima con- centração de espirito, mas também por uma actividade do mesmo absolutamente simples, vizinha da suspensão, frontei- riça dos limites da consciência. Durante elle não ha atten- ção, nem sensibilidade, nem sequer receptividade sensorial. As agiographias contêm numerosas descripções deste estado de êxtase mystico, produzido por causas internas ao próprio espirito. Visão se lhe chama nessas narrativas, mas esse modo de o chamar não é exacto, porque presuppõe ainda um desdobramento para o exercício do ver, que não existe, pois uma completa identidade se estabelece então entre o sujeito e o objecto. Acode-nos um exemplo extrahido dum prosador mystico que doutro mystico escreveu, uma visão de S. Frei Gil narrada por Frei Luiz de Sousa: «Cele- brava hum dia em Santarém : Eis que no meio da Missa fica subitamente arrebatado: e a cabo de grande espaço torna rindo, e fazendo festas com huma alegria tão fora do ordiná- rio, que deu em que cuidar a muitos Padres, que acudirão ao rapto, chamados do ministro, e fazião vários discursos, tendo por descomposição o que virão, em tal lugar, e tempo.

Historia da Litteratura Clássica 295

Acabada a Missa, fez-lhe pergunta o Prior polo que vira, e ouvira, como quem fora hum Sós que o ministro chamara : e que causa houvera pêra tal, sendo assi que sempre acabava aquelles santos mysterios com lagrimas, e as extasis com queixas, e sospiros. Não pode o Santo negar nada, a quem inquiria como Prelado, e foi-lhe contando, que naquella hora se lhe representara, e vira com os olhos corporais a alma de hum grande seu amigo, e grande Santo, que se hia ao Ceo cercado de resplandores de gloria, e levada por mãos de Anjos.» O

O mysticismo é um estado de espirito eminentemente litterario, participa até de attributos do lyrismo, disposição moral que deu origem ás maiores obras primas das litteratu- ras do mundo; delle se differença porém porque o lyrismo é sentimental, e o mysticismo é também racional e tanto o é que deu base a uma philosophia das mais coherentes e har- mónicas construcções metaphysicas. Também participa do moralismo, mas delle se aparta em que o moralismo pode ser, e é-o frequentemente, activo, e o mysticismo é sempre passivo.

Na sua forma religiosa, o mysticismo foi fomentado pela religião christã. É elle «a doutrina philosophica, que acceita a communicação com a divindade e que, como processo, consiste' na indagação introspectiva do que se passa num espirito, fiscalizando severamente todo o seu mecanismo, não elle afastar-se um passo da vereda directa que a Deus conduz. . (2j, ou mais simplesmente, segundo a pratica de cada um, a realização do reino de Deus a dentro da própria consciência. Esta simples coisa foi a innovação essencial do christianismo e a maior revolução da historia. A principio pela abnegação, logo a seguir pelo flectir-se do espirito

(') Primeira Parte da Historia de S. Domingos, Lisboa, 1866, vol. i.°, pag. 233-4.

(2) Características da litteratura portuguesa. Lisboa, 1915, 2.a ed.

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sobre si mesmo, os primeiros christãos desinteressaram-se dos bens do mundo terreno, renunciaram á felicidade terrena do bem estar, que os bens terrenos unicamente podiam pro- porcionar, e sentindo dentro do próprio espirito a liberdade, a eternidade e a felicidade, architectaram a bella fabrica da sua fé, o reino de Deus.

Os quatro escriptores, que constituem o assumpto deste capitulo, são exemplos dos muitos espiritos que pela histo- ria adeante vieram reconstituindo esse extincto sonho. Per- dendo a realidade, a aspiração do reino de Deus foi ganhando em recursos imaginosos, em pictórico, em variedade e com- plexidade. Em vez dum simples quadro, a ridente paisagem oriental, assoalhada, um lago tranquillo, um bando de po- bres, que da pobreza se orgulhavam, e os ensinamentos aprazíveis, em parábolas, imperativas sentenças e exemplos dum mestre adorável, em vez do seu martyrio, no seu tempo muito commum, que taes eram os materiaes que á medita- ção dos primitivos mysticos se offereciam os futuros mys- ticos tiveram todo o grande edifício do christianismo como instituição social, como moral, como philosophia, como or- gânica concatenação de todos os sentimentos, actos e pensa- mentos da consciência humana; tiveram tudo que a historia multi-secular, a imaginação e o commentario dos Padres da Igreja accrescentou ao primitivo christianismo galileu.

Isto fez do mystico um pensador e, quando se aprimo- rou na moda de registar e expressar a sua meditação, um escriptor. Era agora bem differente do antigo mystico que, segundo Renan « sans rêve millénaire, sans paradis chiméri- que, sans signes dans le ciei, par la droiture de sa volonté et la poésie de son âme, saurait de nouveau créer en son cceur le vrai royaume de Dieu ! »

E o século XVI que em Portugal produz os primeiros corypheus desse género. A religiosidade medieval, sentin- do-se tranquilla e ao abrigo de intimas dissenções e sem os progressos mentaes, que a Renascença traria, foi esponta-

Historia da I Alter atura Clássica 207

neamente descuidada, se applicando em defender-se com as armas da guerra dos inimigos externos, dos infiéis. Mas as grandes scisões da reforma lutheriana obrigaram o chris- tianismo a defender-se dos seus inimigos internos com as mesmas armas e também com as armas do espirito. O mys- ticismo litterario toma assim um caracter doutrinário, de ca- techese, e em Portugal ainda o de refugio de alguns espí- ritos combalidos, pois três dos escriptores representantes deste género, Frei Heitor Pinto, Frei Thomé de Jesus e Frei Amador Arraes, numa phase adeantada do quinhentismo se revelam, quando as desgraças da pátria eram matéria de sérias apprehensões.

SAMUEL USQUE

A obra de Samuel Usque, judeu português, muito douto e entre os seus contemporâneos muito venerado, appareceu em 1553 sob o titulo de Consolaçam ás tribulaçoens de Israel, publicada em Ferrara, annos depois do êxodo violento dos seus correligionários ordenado por D. Manuel I. Aos seus companheiros de exilio e de soffrimento se dirigia na lingua que fallavam na pátria que os havia expulsado, para os con- solar dos males presentes com a recordação de mais acerbos males passados e a perspectiva de melhores dias, segundo asseguravam os seus prophetas. Esta obra de edificação religiosa e de intuitos moraes emprega para o seu objectivo não os elementos que a mesma religião proporciona: a resignação ao soffrimento e a interpretação do transcendente significado desse soffrimento, mas também uma odienta cólera. E uma obra nobilíssima, que honra a lingua portu- guesa, cujos recursos de expressão da dor serena e da espi- ritualidade religiosa se não evidencia nesta obra menos do

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que com os mysticos christãos se ha-de evidenciar (1). Abre o livro uma dedicatória â benemérita dona israelita, Gracia Nasci, que sacrificou o seu bem -estar e pôs os seus haveres ao serviço dos seus correligionários. Depois num prologo explica o auctor os motivos da obra e a forma de composi- ção adoptada.

Quiz Usque fazer decorrer ante a imaginação maravi- lhada do leitor o passado grandioso da sua pátria e as des- graças que sobre ella cahiram ; para esse fim adoptou uma perfiguração muito ao gosto do seu tempo : o dialogo e o scenario pastoril. Icabo, anagramma de Jacob, representando Israel, embrenha-se pelos bosques penando suas pungentes e desesperadas maguas, como fizera a narradora da Menina e Moça ; encontram-no casualmente Numeo, derivado de Nahum, e Zicareo, derivado de Zahariahu, pastores, aos quaes conta a sua triste historia e dos quaes recebe consolações. O meio pastoril, em que decorre a perfiguração symbolica da obra, era o obrigado disfarce da epocha, a composição obrigada para todas as obras onde a phantasia tomava largo fôlego, quando se não tratasse de géneros prefixamente regulados. Também modernamente, quando os poetas querem interpre- tar artisticamente a historia dum povo numa larga synthese, adoptam o processo posto em voga por Victor Hugo e entre nós praticado com brilho pelo sr. Guerra Junqueiro^ na sua Pátria : representar a evolução histórica desse povo nos seus mais salientes vultos e episódios e fazê-los desfilar ante nós, fallando em inflados alexandrinos.

Ao tempo de Samuel Usque era o disfarce pastoril o usado. Eloquentemente se lamenta Icabo, a todas as partes do mundo dirigindo o seu protesto vehemente e a sua plan- gente confissão, e nessas passagens põe Usque um senti-

(1) De Samuel Usque, israelita português, ignora-se toda a bio- graphia, incluindo o próprio lugar de naturalidade e as datas de nasci- mento e morte.

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mento tão profundo de desespero, de saudade e de cólera, que a muito viva lembrança de males recentes poderia inspirar-lhe essas litanias vehementes : «O mundo mundo, jaa que tuas racionaes creaturas nam consentes se doiam de minhas tribulações e lazeiras, se nas insensíveis influíram os çeos algum modo secreto de piadade, daa licença aos rios que daltas montanhas com espantoso rumor vem quebrar suas escumosas agoas em bayxo, que detendo o seu arreba- tado passo, com manso e lamentoso roydo, acompanhem o cõtinuo cursso de minhas lagrimas, e em seu correr cansado, mostre novo sentimento de minhas longuas misérias: e vos outros princepes de todos elles, Nilo, Ganges, Eufrates, Ti- gre, que desatandouos do paraíso terrestre desenfreados vin- des abreuar os sequiosos Egípcios, os molles e cheirosos Yn- dios, e torcedo o passo, e escondedouos nas áreas por muitos dias, sahis depois a mostramos aos bárbaros e queimados guineos, e sobindo e descendo por ásperos e montanhosos desertos, ys tambê saudar os guerreiros e cruéis tártaros pois laa vos comunicaes coaquelle tam desejado mèsageiro que em carro e caualos de fogo arrebatado foi leuado aos ecos, rogouos que aqui manso me digaes este segredo.

«Quando cansaram meus males, e fadigas, minhas injurias e offensas, minhas saudades, e misérias, as feridas nalma e minhas magoas, as bemaventuranças em sonhos, as desauen- turas certas, os males presentes, e esperanças longas e tam cansadas ; e quando terá paz tanta guerra contra um fraco subgeito, temor, sospeita, reçeos de minhas entranhas, tee quando gemerei, respirarei, matarei a sede co as lagrimas de meus olhos ?•* (T) Corno os pastores, prophetas disfarçados, o surprehendessem e pedissem lhes referisse a causa de tão grande desalento, elle referiu-lhes a sua historia, que é afinal a historia do povo de Israel, commentada com lamentos e

(1) V. Consolaçam às Trihulaçoens de Israel. Coimbra, 1906, ed, do sr. Mendes dos Remédios, i o vol., pag. B i.

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apreciações. E Icabo conta-lhes toda a sua vida, como o Doido da Pátria, do sr. Junqueiro. São paginas formosas pelo seu poder descriptivo e pictórico, e mais aindas pelos senti- mentos que a impregnam, paginas de prosa, onde sobra inspiração poética.

A historia dramática, mais duma vez intensamente trá- gica, de Israel, onde o sobrenatural, o maravilhoso e a cer- teza da intervenção divina andam sempre presentes, impri- mem esse cunho tão caracterisco a essa chronica, tal como tradicionalmente se teceu, da Biblia e dos prophetas.

Os factos argamassou- os Samuel Usque com a sua imaginação, organizando uma visão plangente, dominada de fatalidade, que é também uma interpretação histórica, ainda que nella predomine a sensibilidade artística e um propósito de edificação e de apologética. Um vivo sentimento da realidade impregna a obra : aconselha Usque resignação aos divinos desígnios e apella para o effeito consolador da reli- gião porque muito soffrera e vira sorfrer, e porque em toda a historia de Israel via misérias, perseguições, um vento permanente de desgraça. Esta circunstancia, esta base de realidade ao seu mysticismo um caracter especial, torna-o mais sentido, mais vivido, mais eloquente e mais tocante. Ordinariamente, o mystico christão aborrece o mundo e contra elle se indigna, contra elle dirige as suas invectivas coléricas, sem o haver visto e soffrido, quantas vezes em plena mocidade feliz e em meio de propicio bem- estar. E de olhos fechados, com a alma posta em Deus, que elle phantasia o mundo da graça, conhecendo e reconhe- cendo o soffrer de Christo e dos martyres, que o repetiram. Dos nossos mysticos christãos, Fr. Thomé de Jesus, o heróico captivo de Marrocos, possuiu um pouco o dote emi- nente de Samuel Usque, o espirito de realidade, apparente- mente tão opposto á posição moral dum mystico religioso. Sobre esse, outros dotes litterarios avivam a obra: o estylo parenetico, vibrante de convicção, caloroso, em intensas

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evocações ; a todos os povos, a toda a terra, a todos os ele- mentos se dirige para que todos e tudo, juntamente, oiçam as desgraças sem nome de Israel, para que unisonamente vibrem com as lamentações tétricas de Icabo : « Sede pre- sentes gentes a ouuir, e vós outros povos pêra estar attentos, ouça a terra e quanto nella ha, a redondeza e todas suas plantas, que a yra do Senor vem sobretodalas gentes, e seu furor sobre todos seus exércitos, com maldições as offereceo, e ao sacrifício e matança as entregou para que seja seus mortos arremessados, e de seus corpos se levante pestenen- cial fedor, e estilem os montes com seus sangues, apodrecera também todo o exercito celeste, e revolverseam os ceeos como o volume de hum livro se revolve, e todo seu exercito cahirá como cahem as folhas da vide e figueira. » Mais duma vez a sua linguagem attinge uma intensidade de expressão e uma violência de sentimentos até então inteiramente des- conhecidas na nossa lingua. A máxima expressão, intensa até á violência, e o lyrismo eloquente foram cordas pela primeira vez desferidas na historia da nossa litteratura por Samuel Usque, que Ferreira repete na sua Castro, pela bocca do infante D. Pedro e pelo coro final do 4.0 acto, e que Camões excedeu nos seus Lusíadas. A cada passo se trahe uma imaginação habituada a pre- sencear desgraças, incestos e sacrilégios, a meditar nos casos mais terríficos da maldade humana, a vibrar de piedade religiosa e a confranger-se de horror perante blas- phemias e destruições iconoclastas. O soffrimento perde o caracter de dôr physica para ascender á sublimidade de sagrada cólera determinada por offensas a Deus, sem numero e sem nome. Usque soffre principalmente como creatura que com Deus tem alguma communicação, que pelo menos sem- pre sobre si postos sente os olhos perscrutadores dum Deus vingador e inexorável. «Vi daquelles que desatinados da incomportauel fome, sem temerem outra morte (por mais crua que fosse) que aquella de que começauam jáa a morrer,

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entregarsse híía grande cãtidade nas mãos do cruel ymigo q. no cerco estava ; e vivos lhe abrirem as barrigas os árabes assyrios que em fauor de Titos vieram, buscando-lhe o ouro dètro nas entranhas, que algús auião englutido pelo não auerem os tiranos da pátria : assi que sahyam da bocca da loba faminta ; e cahiam nas unhas do esfaimado lião, como Yehaschel primeiro antevio dizendo : De fogo sahiram e fogo os queimará, o lião que faz cerca de suas cidades tudo o que delias sahir espedaçará.

«E per remate e concrusão de todos meus males: com cornos de brauo touro dos desertos despanha, e com forças de ensanhado lião Africano entre ouelhas, e cõa raiua vnhas e bico de monstruoso Tigre de Hircania trás os filhos rou- bados, vi entrar em Yerusalaim aquella Águia romana nas mãos do fero Titos, desatando as azas, ensanguentando o bico, estragando bosques de humanas criaturas, inglutindo carnes, chupado sangues, destríçãdo ossos, espedaçando membro a membro milhões de corpos, de sacerdotes, prín- cipes, velhos, mancebos, molheres prenhes, formosas meças, e de criaturas pouco antes nacidas ; e o duro bico (ve- dando os santos sacreficios) ateou o foguo nelles, e em todo o corpo do divino templo, tee penetrar no mais interior e vedado, e voando com elle ligeirissimamente na soberana altura das torres o sobia, nos muros, e em todolos ricos edeficios e ingeniosa architetura da maravilhosa cidade o pegava.

« Aqui muitos sacerdotes posto que lançandose da parte dos romanos, se podia salvar, antes se lançavão elles mes- mos no foguo, por se queimar o templo, entre os quaes foram Merio, filho de Belga, e Joséfo, filho de Darea, e ou- tros muitos côas arcas e caixões do tisouro em cinza se con- verterõ...» (l). E após uma descripção tão viva, a lamentação

(l) Ed. cit. i.° vol., pag. xix e xx.

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tão intensa: «Ay derribada he minha fortaleza, donde me de- fendia dos dous ymigos, desfeito he o ninho da única Fé- nix, arrancada a arvore, que de seus divinos frutos me mantinha, secas sam suas folhas, que me faziam delitosa sombra, sobida hc aos ceos a verdadeira Alma do meu espi- rito, tendido deixa em terra nas unhas das cruas feras o corpo onde morava. Ó misquinho de mi, que me lançarom do meu terrestre paraizo, pisarõ os pés as virgens de Is- rael, que eram suas boninas e flores, de que estava semeado, destruíram a gentil mancebia e grave velhice, seus novos cedros e antiguos aciprestes que suas raizes tinhão sobello derradeiro ceco arreigadas; turbarom com sangue e amar- gura as suas claras agoas de ley divina que os regava, asso- larom os justos e prophetas cerca de seus muros, que repa- ravam as yras do senor, finalmente o meu claro Sol se escu- receo, e em profunda tenebra me deixou envolto Num paiz de forte tradição litteraria e apurado gosto, esta obra, se houvesse podido circular livremente, teria grandemente con- tribuído para dois importantes effeitos litterarios : revelar os recursos de arte da historia de Israel, que tanta matéria trá- gica contem e offereceu aos poetas do tempo de Luiz xiv, com o que desempenharia papel um pouco semelhante ao do Génic do Christianisme , cerca de três séculos mais tarde ; e preparar o gosto épico, grandiloquo e evocativo, tão próprio do nosso quinhentismo que desse gosto sahiu a sua obra- prima, os Lusíadas.

A obra fecha consoladoramente com o annuncio de me- lhores tempos para Israel, segundo a mesma vontade de Deus, que deixara os maiores males arHigircm o seu povo. E assim a obra de Usque é, para os israelitas, rigorosamente orthodoxa e para nós eminentemente litteraria, duma belleza original, exemplo de ardente amor da pátria alliado, con- fundido a fervorosa religiosidade, ambos expressos com bri- lhante relevo.

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FREI HEITOR PINTO

Frei Heitor Pinto (') publicou a sua famosa obra Ima- gem da Vida Christã, em 1563. Grande foi o seu êxito, por- que varias vezes se reeditou e para varias linguas foi tradu- zida.

A reedição e a traducção eram então, como agora, as formas supremas do triumpho litterario por denunciarem a existência dum largo publico de leitores. Modernamente accresceu a homenagem da critica.

O titulo completo da obra indica o seu conteúdo : Imagem da Vida Christã ordenada por diálogos, como mêòros de sua composiçam. Os diálogos são seis : Da verdadeira philoso- phia ; da religião ; da justiça ; da tribulação ; da vida solitária ; da lembrança da morte.

O primeiro dialogo, entre um ermitão dos campos de Coimbra e um philosopho, decorre todo em torno da res- posta, que o ermitão dera ao philosopho que o cumprimen- tara: «Eu estou, tenho hu soo ano de idade, e o mesmo pode de si dizer todos os homês». Como o philoso- pho, com grande copia de argumentos, pretendesse rebater a asserção do eremita, este justifica-se depois longamente. Esta justificação constitue o segundo capitulo, em que pro- cura provar a brevidade da vida humana, comparada á vida eterna. A sua demonstração é tirada do « thesouro infallivel

(*) Frei Heitor Pinto nasceu na Covilhã, suppõe-se que em 1528. Professou no convento dos Jeronymos, de Belém, e seguiu os seus estu- dos no convento da Costa, na Universidade de Coimbra e na de Si- guenza. Em 1565 teve a nomeação de reitor do Collegio de Coimbra e em 1571 foi eleito provincial da sua ordem. Ensinou na Universidade de Coimbra, na cadeira de Escriptura, para elle especialmente creada. No- bremente aífecto á causa nacional, que D. António, Prior do Crato, re- presentava, foi affastado do ensino e transferido por ordem de Filippe 11 para o convento dos Jeronymos de Silla, onde morreu em 1584.

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da sagrada Scriptura e da liçam dos Doctorcs Theologos » (pag. 10). E conclue do seguinte modo muito elucidativo quanto ao processo lógico da sua demonstração : « E com isto ficam provadas as duas proposições, que eu auia de provar, que nem eu estaua, tinha dias de idade. E não vos enganeis vos parecer que me vedes estar, porq. assi como híí home qu vay níía náo com todas as velas despre- gadas a força dos vetos atrauessando as duuidosas ondas, caso q. elle assêtado, todavia anda chegãdose ao porto, assi eu ainda q. pareça que estou, tudo caminho para a morte. E olhay, quã pouco ha q. vos aqui topey, que des então ategora passey hila hora de vida, q. agora tenho me- nos. E esta perdi este espaço que vivi, porq. viver he per- der a vida, & perdela he morrer, e morrer he deixar de ser, q. o nosso viver & o nosso ser andam ao livel unidos, & in- separáveis híí do outro. Dõde se colhe q. quê deyxa de vi- ver, vay deixando de ser, & deixado de ser, não está sem- pre níí ser. E daqui se cõclue ser falso o que vos dizeis, que me vieis vossos olhos viver & estar. Porq. como vi- ver seja passar a vida, & passar seja não estar, seguese que se me vedes viver, vedesme passar & estar. Quanto mais q. me não vedes viver. Hiía cousa he verdesme vivo, outra he verdesme viver. A primeira he verdadeira, a segílda falsa. Porq. se me vísseis viver, verieis ir caminhando a vida, & ella não se vê, dado q. se vejam seus effeytos ; porque como â cor seja objecto da vida corporal, & ella nam possa ser se- não cousa corada, porq. nenhiía cousa se senão por meo da cor, & a vida não tenha cor, seguese que he invisivel. Dõde está clarissimo que me não vedes viver» (pags. 130 e seg.).

Como o philosopho, sollicito em defender os sentidos, fizesse um caloroso elogio da vista, cujos dados particular- mente o ermitão refutara, este rebate-o, allegando entre outros argumentos o de que a vista contenta o coração e distrahe o pensamento cujo único objecto deve ser Deus. H. da L. Clássica, vol. 1.» 20

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Confessando, como confessa, o seu horror da observação sensorial, Frei Heitor Pinto mostra o seu perfeito estado de sincero mysticismo. Apontando os perigos do homem prestar attenção aos dados dos sentidos, é levado a definir a sua idéa de Deus: «Ninguém he bom senão Deus. Assi como o centro he hú, & indivisível, & está no meo, & delle, sae as linhas para a circuferencia, assi Deus he hua unidade simplicíssima, hu acto puríssimo, q. está em todas as cousas, do qual procede os rayos da fermosura das creaturas. Elle está d£tro em nós, & he fonte de todo o ser sendo mesmo nosso ser, mais intimo a nós q. nós». E algumas linhas abaixo: < DEOS he hum principio sem principio, a mesma bondade, dõde vem tudo o que he bom. A fermosura da terra com suas heras, flores, plantas, rios & animaes: a beleza do ceo com toda a tapeçaria das claras & resplande- centes estrellas, toda a graça, sapiência, virtudes, & orna- mètos cTalma, finalmete toda a fermosura assi interior, como exterior, he hum resplandor dos rayos da divina fermosura. Tudo vem de Deos, daquella fermosura antigua, daquella sapiência infinita, daquella bondade immensa, daquelle cen- tro summo & sempiterno, que he Deos». (Pag. iS e 18 v.). A verdadeira philosophia deve começá-la o homem pelo conhecimento de si mesmo, e deste conhecimento de si próprio virá elle ao conhecimento supremo de Deus, porque seria com conhecer-se bem a si que elle poderia medir a terrena miséria e por contraste alcançar a infinita grandeza de Deus. Mas conhecer-se o homem a si mesmo é conhe- cer somente aquella parte digna de alguma meditação e analyse, a alma, porque a outra, o corpo, era uma parte inferior do género humano, que não merecia que nella se attentasse. Este conhecimento da alma, esta intuspecção da própria consciência, ainda que quanto ao methodo se appro- ximasse da moderna psychologia, era quanto ao fim coisa muito diversa, porque não visava ao conhecimento da indi- vidualidade moral de cada um, ao mecanismo espiritual do

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commum dos homens, sequer, mas apenas a chegar ao con- vencimento da baixa origem do género humano, e a pro- duzir a mais contricta humildade. Porque nalgum tempo os homens se affastaram da pratica do amor de Deus e da humildade e, em contrario, se possuíram de enfatuada pro- sápia, é que se tornou necessária a vinda de Jesus. «E estando o mundo feito híí labirintho de incomportáveis erros, falsas, & diabólicas opiniões, avendo Deos misericórdia do home que criara, mandou seu filho unigénito, Christo, nosso Deos, para nos salvar. Veo o bom Jesus, aquelle explendor da Gloria, como lhe chama S. Paulo, & figura de sua subs- tancia, veo aquella verdade sempiterna, aquella verdadeyra vida, aquella sapiência sem fim, aquella bondade immensa, aquelle lume do lume, aquelle verbo divino nosso summo bem, & tomada nossa humanidade conversou cõnosco para nos ensinar, & mostrar o caminho da bemaventurança & allumiar nosso entendimento. Porque nas cousas sobrenatu- raes sem o lume divino está cego o engenho humano». (Pag. 34 v). Depois de explicar a encarnação de Jesus, para sob a forma humana maior diffusão poder dar ás suas dou- trinas, de narrar o seu ensino e a sua morte generosa, Frei Heitor Pinto chega á conclusão sobre a verdadeira philoso- phia que é o amor de Deus com todas as suas consequências: conhecermo-nos a nós mesmos, subirmos por este próprio conhecimento ao de Deus, amá-lo de todo o coração, a elle nos entregarmos totalmente, e amar ao próximo como a nós mesmos, desinteressando-nos de todos os valores da vida, não receando a morte, fugirmos das vaidades e enga- nos do mundo, mais velar que dormir.

O segundo dialogo decorre entre dois frades portugue- ses, que se encontram na Lombardia, entre Parma e Plasen- cia. Conversando das saudades, que um delles, frade Jero- nymo, tinha da tranquilla clausura que em Portugal gozara, antes de partir a tratar de negócios da sua Ordem, este faz o elogio da vida monástica. Com grande belleza, logo de

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entrada nos aponta a felicidade do repouso solitário: «O ramo da oliveira com que a pomba hia contente ]evando-o no bico, he a esperança de certa & propinqua tranquillidade, na qual posta' híía alma fica clara, ainda que antes estivesse escura. Que isto tem a quietação: aplacar o espirito & aclarar o entendimento. Assi como agua dum tanque, se a moverdes e removerdes, fica turva, e escura, mas acabado todo o movi- mento, estando ella em paz, e sem se bolir, fica clara e limpa, assi alma distrahida e perturbada está escura e cuja, mas quietando-se e repousando, vae-se aclarando até que de todo fica limpa. E assi como estando agua turva e bascolejada nam vos vedes nella, mas como está quieta, vos representa logo vossa imagem, assi o desassossego e perturbaçam na alma faz com que vos não vejaes nella, mas sua quietação e repouso faz com que vos esteis nella conhecendo e vendo quem sois. De maneira que a tranquillidade do espirito he como híí espelho, que vos está pondo ante os olhos vossa própria imagem. E creio eu que não haí lugar onde se ella milhor alcance & conserve, que no recolhimento do mosteiro e da cella». Distinguindo a religião, como virtude moral, do estado da religião, como modo de viver separado, explica a etymologia da palavra, delia extrahindo ora o sentido de ligação espiritual, que a religião estabelece, ora o de aparta- mento a que obriga os que a ella se votam. Depois enumera as virtudes e os hábitos espirituaes, que cabem ao religioso. O terceiro dialogo, sobre a justiça, decorre entre um doutor theologo, um mathematico e um cidadão. As idéas e sentimentos expostos neste, como nos seguintes diálogos são todos os que uma viva imaginação pôde extrahir da chriatã fervorosa; prevê-se por isso que, muitas vezes antes e depois dos Diálogos de Frei Heitor Pinto, hajam sido affirmados. Não são o mérito principal e muito menos a razão da origi- nal belleza da obra; o que se distingue caracteristicamente é o estylo calmo, serenamente analytico, que da comparação a cada passo se soccorre e que, todo preoccupado em fazer

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comprehender, não se detém ante a mais longa metaphora, a mais minuciosa descripção.

Vejamos esta que allude á influencia dos sentimentos sobre os juizos: «Assi, disse o mathematico, como o sol que entra pelas vidraças, tal cor representa, qual he a das vidraças, assi qual he a affeição, tal he a sentença. O sol quando nasce, & quando se põe parece mayor que ao meio dia sendo elle sempre de hti tamanho, mas enganam-nos a vista os vapores, que pela manhã e á tarde se nos põem ante os olhos, atravessando-se entre nós & o sol, os quaes vapores nos servem de óculos, em que os raios visuaes batem como em vidros transparentes, e estendendo-se por elles, fazem parecer o sol mór do que parece ao meio dia, & doutra cor, porque quanto os rayos visuaes mais se alargam, tanto mór nos parece a cousa que vemos. Estes vapores, que sobem da terra, são nossas affeições, que são de nós, que somos terra: & elles são os que atravessando-se- nos diante dos olhos d'alma nos fazem parecer-nos as cousas vistas mayores, & doutra cor. E assi enganado o juizo, e corrupto o entendimento, julgamos as cousas nam segundo a verdade delias, mas segundo afeiçam do amor, ou do ódio que lhe temos. E esta he causa porque na terra ha tão pouca justiça. Assi como o pintor per arte de perspectiva nos faz parecer as cousas altas e baixas, sendo a taboa igual e toda lisa, assi nossa estimativa per industria da affeiçam, nos faz parecer híías mesmas obras em híís grandes e emi- nentes, e em outros pequenas & escuras, sendo a substancia delias níía mesma igoaldade & resplandor. E desta enganosa perspectiva da affeiçam ser commíl a muitos, vem a desen- ganada justiça a estar em poucos > (Pag. 91). Em Heitor Pinto as comparações, muito numerosas, desempenham ver- dadeiramente o papel de razões e argumentos, e sobre ellas construe o seu raciocínio e delias extrahe conclusões, con- fundindo com um trabalho de lógica demonstração o que é trabalho de artística approximação. Alem da profusão das

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circunstanciadas comparações, frequentemente tão longas que envolvem miúdas descripções, uma característica saliente do seu estylo é a serenidade, de concepção de expres- são, que o affasta dos modos de dizer muito intensos, muito extremos, dos superlativos categóricos. Comparando e des- crevendo, mostra a cada passo procurar a fiel expressão, não a mais concisa, mas sempre a mais verdadeira. Que o estylo lhe mereceu carinhos de artista, provao a exuberância de metaphoras e circumloquios, referida, e também o gosto relativamente frequente das formas parallelisticas e dos contrastes: «... mais descontente me faz a lembrança do contentamento que tive, que o descontentamento que tenho. Bem passaria com o trabalho, senão fosse a lembrança do descanso que perdi : porque então causam insoffrivel dor os males presentes, quando são acompanhados da memoria dos bens passados». (Pag. 49). Os Diálogos são um tratado de psychologia, semelhante aos que modernamente se publicam como auxiliares da auto-educação do caracter. Os processos são os mesmos, analysando a consciência intima e nella influindo, ou sejam a intuspecção e auto-suggestão; os obje- ctivos é que são oppostos. Nos tratados hodiernos ensaia-se excitar a actividade, avigorar a energia e despertar impulsos combativos, ensina -se a luctar e a triumphar, graças ao esforço diligente e vigilante, á persistência e á audácia como não podia deixar de ser numa sociedade, em que são de lucta as condições normaes, e o ideal é o triumpho fácil dessa lucta. Nos Diálogos Frei Heitor Pinto ensina o homem a conhecer-se a si mesmo, para que desolado da sua mesqui- nhez extirpe os vícios, os seus mais terrenos attributos, vença as paixões, evite o fragor do mundo, suas ambições, seus vãos triumphos, suas enganosas seducções, para se entregar na solidão á meditação das verdades christãs e a ellas aspirar, esperando a morte terrena sem a recear, após a qual começará verdadeiramente a viver. São dois ideaes oppostos, a febril actividade de hoje e a obstinada

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passividade do mystico quinhentista. A dor, que este ideal activo e combativo de hoje pretende evitar a todo o transe, como o maior inimigo da felicidade humana, aponta-a Heitor Pinto como uma maneira de superiormente viver a vida, porque sendo a paciência uma virtude essencial, o soffri- mento a gerava: «Mas não haverá paciência, senão havendo tribulação. E por isso he a tribulação necessária pois obra paciência. Diz S. Joam no Apocalypsi, que vio ante o throno de Deus grande numero de sanctos com palmas na mão, & que lhe disse bit delles: Estes são os que vieram da grande tribulação. Isto he o que dizia Christo a seus discipuios: O mundo será ledo e vós tristes, mas a vossa tristeza se con- verterá em alegria. Oppõe o mundo aos discípulos como cousas contrayras, como se dissesse: Os que são do mundo terão aqui alegria, mas ser-lhe-ha convertida em perpetua tristeza, mas os meus terão aqui tristeza, de que depois nas- cerá eterna alegria. O falsos prazeres do mundo convertidos tão azinha em pesares, ó enganosos contentamentos que logo no principio da viagem sossobram, e antes de verem a barca se vão ao fundo, suecedendo em seu lugar insoffriveis tormen- tos. Diz Salomão que o pranto oceupa o fim do contentamento. E assi como a serenidade do gosto dos mãos se torna em dilu- vio de lagrimas, assi o diluvio das lagrimas dos bons se torna em serenidade de contentamentos>. (Pag. 139 v). Mostra neste particular Frei Heitor Pinto um claro conhecimento da alma humana, dos effeitos vários que nella operam a alegria e a dor, empedernindo e couraçando de egoismo, afinando-a, re- quintando-lhe a sensibilidade e a generosa sympathia: «assi com híía mesma tribulação hus se afinam, outros se queimam, hus se mostram soffridos, outros impacientes, finalmente hús se melhoram, outros se empeóram». (Pag. 142 v).

da sua calma se afFasta o escriptor, quando abeira themas que para elle comportavam matéria para arrebatada eloquência, Deus e Christo. Então anima-se e procura deli- beradamente a expressão intensa, os termos extremos.

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FR. AMADOR ARRAES

E-de 1589 a i.a edição dos Diálogos, de Fr. Amador Arraes, re-impressos em 1600, após revisão cuidadosa de seu auctor. E, portanto, á 2.a edição que nos referimos na nossa resenha. (')

Sobre os Diálogos uma informação inteiramente ines- perada o P.° Pereira Sotto Maior (? 1632), no seu Tratado da Cidade de Portalegre: «... foi muito bom letrado e estu- dioso. Acabou hus Diálogos que o Doctor Hieronymo a Rais s^u irmão, auia começado, cheos de muita Doctrina e eru-

('') Frei Amador Arraes nasceu em Beja em 1530. Em 1546 pro- fessou na ordem dos carmelitas descalços; cursou a Universidade de Coimbra onde se doutorou em theologia. Foi pregador régio com D. Se- bastião, coadjuctor do cardeal infante D. Henrique, quando este gover- nou o arcebispado de Évora, e esmoler-mór do reino, quando o mesmo reinou. De Filippe 11 teve a nomeação de bispo de Portalegre, onde pas- toreou de 1582 a 1596, anno em que renunciou á dignidade episcopal, recolhendo-se a Coimbra, onde morreu em 1600. Sobre Frei Amador Arraes, principalmente sobre o seu governo do bispado de Portalegre, sua personalidade moral e motivos que o levaram a renunciar esse cargo, ha noticias desenvolvidas e muito curiosas num manuscripto recente- mente publicado pelos srs. A. J. Torres de Carvalho e Luiz Keil, o pri- meiro como editor e o segundo como prefaciador e revisor, intitulado Trotado da Cidade de Portalegre- e de suas anliguidadas e fundação, bispos que nélla residiram, e outras antigualhas e curiosidades, feií o pelo Padre Diogo Ver eira ae Solo Maior j indigno capellão em a Sane ta See da dita cidade, dirigido a Dom Rodrigo da Cunha, bispo de PorlalegrÇ, ele., Elvas, 1919, si 63 vn pags. E no capitulo 9.0, pags. 25-29, que Sotto Maior se oceupa de Arraes, 3.0 bispo daqueila diocese, mostrando o seu caracter dadivoso e caritativo, sóbrio, disciplinador e voluntarioso. Resignou o bispado por motivo duma demanda contra el!e intentada pelo Cabido sobre os redditos de certa igreja. Como a sentença não fosse inteiramente conforme ao "*?ç:u juizo opinioso, retirou-se. Do valor das noticias ministradas por Sotto Maior póde-se julgar pela declaração se- guinte: «Eu sou testemunha e fallo verdade que estive em sua compa- nhia quasi dous annos, até sua partida. (Pag. 29).

Historia da Litteraiura Cíassioa 3Vó

dição pêra todo o fiel Xpão se aproueitar delles. » (Pag. 29). Não podemos negar valor a este informe, porque Sotto Maior viveu na privança do escriptor e é geralmente exacto nas suas noticias, mas não podemos derimir claramente o assumpto. Não encontramos nas bibliographias referencia a Jeronymo Arraes, nem vestigio de relevo da sua existência.

A obra do benemérito bispo de Portalegre é inteira- mente semelhante á de Frei Heitor Pinto, quanto á compo- sição, mas delia se aparta quanto á Índole, intrinsecamente. Como o auctor da Imagem da Vida Christã, ordenou a sua exposição sob a forma de diálogos, em que um interlocutor é a alma a catechisar, que com suas objecções e resistência provoca a argumentação do outro, que expõe a doutrina do auctor. Esse dialogo não é natural, pois a naturalidade não era sequer o propósito do auctor, é lento e longo, profuso, representando verdadeiramente a conversa sincera do auctor com a sua consciência, expondo todas as razões de crer, em voz alta pensando e respondendo a todas as duvidas que se possam levantar, accumulando todos os argumentos possí- veis, os da intelligencia e observação, os da historia clás- sica e os elementos da biographia das grandes individualida- des. A erudição é também um bom subsidio para argumentar.

Trata Frei Amador Arraes nos seus Diálogos : das queixas dos enfermos e curas dos médicos ; da gente judaica; da gloria e triumpho dos lusitanos ; das condições do bom príncipe ; da conso- lação para a hora da morte ; da paciência e fortaleza christã ; do testamento christão ; da invocação de nossa senhora. Como se deste enunciado, Frei Amador Arraes é mais comprehensivo na sua obra que Frei Heitor Pinto; este é o verdadeiro mystico para as coisas da alma voltado; aquelle também para a matéria profana volve olhos attentos e delia se occupa.

O segundo, terceiro e quarto diálogos versam assumpto mundanal, são mesmo dissertações profanas; um expõe a historia judaica, dispersão do povo judaico, sua situação nos paizes catholicos e explicação da mesma, outro faz o desen-

314 Historia da Litteratura Clássica

volvido perfil moral dum príncipe modelo, justíssimo, pru- dentíssimo e christianissimo, e outro resume a historia de Portugal, incluindo a velha Lusitânia, e occupa-se dos des- cobrimentos e conquistas de alêm-mar. E claro que o pensa- mento religioso domina: os judeus eram justamente punidos do procedimento havido com Jesus Christo; o príncipe justo e bom, com justiça e bondade seria ajudado de Deus e serviria a sua causa; e os portugueses haviam subordinado todo o seu esforço ao pensamento de derramar a fé, e com a ajuda de Deus se podiam explicar os seus triumphos. Mas o sentimento religioso de Fr. Amador Arraes não tem a exaltação do de Frei Heitor Pinto, e por isso também é o seu estylo mais equilibrado, com menor brilho artístico, menos profusamente ornado das poéticas metaphoras, em que o auctor da Imagem da vida christã tanto se comprazia. Isto mesmo se nos diálogos que versam matéria de edificação religiosa. Frei Amador Arraes até mostra estimar a cultura litteraria e humanística, e curiosa é a passagem dos seus Diálogos, em que expõe o que seria a illustração dum espirito elevado e distincto do seu tempo, a qual de seguida reproduzimos: «Herc. Não me digaes nada porque me sobeja razão.

Também entendo o que entendo, e tenho mêu pedaço de latim, e grego, e de Tópicos, e elêchos, e dos Metheoros : e sei algo da sphera, porque quando Pêro Nunez a lia a certos homês Principes, eu me achava presente. E li as décadas de João de Barros, e o Petrarcha em sua lingua, e essa mercê me fez Deus, que pronuncio, e escreuo o Italiano, quomo se fora hum dos naturaes; e li as historias do Jonio en latim, e as antiguidades de Florião de Campo en Caste- lhano, e o summario de Esteuam de Gariba Cãtabro, e a historia Imperial do vezinho de Sevilha, e a Pontifical do Illescas de Duenas, e as Republicas, e os lettreiros do Mo- raes Cordubense: e sabe de mim que faço sonetos, que corre por este Reino, festejados, sen se saber o nome do auctor.

Historia da Litteratura Clássica 315

Deixo o saber do paço, estimado de muitos, por ser galante, e não ganhado ao fumo da candea, quomo o scholar dos Bacharéis, que nenhum primor tem, nem passo substancial para homês de arte: na qual cuido ninguém me fazer vanta- gem, en saber cometer híía de cortesãos. Também sou lido nas chronicas dos Reys, e sei as linhajes dos fidalgos de sua casa, e os modos per que alcançarão medrança: cou- sas essenciaes do paço.» (Pag. 42, ed. 1589).

Em Amador Arraes ha, a par do fervoroso sentimento religioso, que a seu serviço pôs a penna do escriptor, maior observação da vida e do seu tempo, mesmo certo fundo de bom senso, revelado principalmente no dialogo sobre as qualidades moraes, que deve ter um bom príncipe. Todavia, convém limitar, muito sahe do seu tempo e da observação da commum natureza humana, para procurar argumentos na velha antiguidade. Assim, exemplificando, para atacar a medicina terrena, á qual contrapõe a medicina espiritual dos consolos religiosos, não se refere a vivos, «pois a enueja os persegue, e roe com seu dente canino», mas disputa sobre Hippocrates e Galeno.

FR. THOMÉ DE JESUS

Os Trabalhos de Jesus, escriptos no captiveiro de Marro- cos, em meio das mais agras atribulações, foram dedicados á nação portuguesa, que á data soffria todo o cortejo de consequências do desastre de Alcácer- Kibir. Na carta, datada de 158 1, que Fr. Thomé de Jesus endereçou aos seus com- patriotas, explica com vivo patriotismo e viva uncção reli- giosa o por que o fazia e o que tinha em vista. Podia ser que, sob o peso de tão amargas humilhações do dominio estrangeiro, os portugueses perdessem a paciência e a resi- gnação, que são essenciaes virtudes christãs e dos maiores méritos da vida. Era, por isso, opportuno lembrar-lh'as e exhortá-los ao amor de Deus, como aos povos dTtalia fizera

316 Historia da Litter atura Clássica

Santo Agostinho, fundador da ordem a que pertencia Fr. Thomé de Jesus (*), quando o vento da desgraça furiosa- mente soprara por sobre elles. Diz o escriptor, tendo apon- tado as separações no género humano, que resultam das variedades de opinião sobre matérias incontroversas: «A reformação destas variedades, e desatinos do humano coração consiste em entender, que huma he a cousa no ceo, e na terra, no tempo, e na eternidade importante, que he cumprir- se a divina vontade em tudo por sua honra, e gloria, e em o querer assi como o entende com humilde sujeição. Aqui está a fonte de todos os bens quantos de Deos podemos esperar, e o remédio, e cura de todos os males quantos causam, e fazem pesada, e perigosa a vida humana, e a quietação do humano coração em todas as mudanças, e per- turbações da vida.» (Pag. xxn). Seria necessário que os por- tugueses, longe de se abysmarem no desespero, levantassem o pensamento para o muito que pela humanidade Christo soffrêra, considerassem no muito de favor e protecção que de Deus haviam recebido, se conformassem agora na adver- sidade á vontade divina e ainda agradecessem o haverem sido por Deus eleitos para lhe provarem a perseverança da sua e executarem a sua divina vontade. «Fundados nestas puras e eternas verdades, charissimos meus, e Christianissi-

(') Frei Thomé de Jesus nasceu em Lisboa em 1529, filho do alto funccionario da coroa, Fernão Alvares de Andrade. Entrou e fez o novi- ciado no Convento dos Agostinhos, da Graça, de Lisboa, onde professou em 1544, anno em que passou ao Coliegio de Coimbra a concluir os seus estudos. Regressando a Lisboa exerceu o delicado cargo de mestre de noviços. Para mais se isolar, retirou-se para o convento de Penafirme no termo de Torres Vedras, onde exerceu o priorado. Foi também visi- tador da ordem. Em 1578 acompanhou a expedição de D. Sebastião, tomando parte na batalha de Alcacer-Kibir, onde foi ferido e aprisionado, quando exhortava os combatentes e acudia aos feridos. No cárcere soífreu os peóres tratos e humilhações, com piedosa resignação até á sua morte, oppondo-se sempre a que o resgatassem. Morreu em 1582.

Historia da hitteratura Clássica 317

mos Portugueses, não façais conta da ignorância dos que vos têm por nação desamparada de Deos, e desfavorecida delle pelos muitos trabalhos que nos tempos presentes vos deo. Mas conhecendo a paternal condição do amor de nosso Deos que aos filhos que mais ama, mais castiga (como diz a Divina Escriptura) e aos que lhe são mais acceitos menos defeitos lhes soffre, agora vos havei por mais lembrados delle e confiai que vossos presentes trabalhos são para muitos maiores bens: e que serão vossas dores as medidas de vossas consolações: não pêra se medirem huma por huma, mas por cada huma muitas. Lembrai-vos das grandes mercês que vossa oração tem de Deos recebido, e a muita honra que por ellas entre todas as nações quiz esse Senhor que tivésseis. E confiai que nenhumas mudanças são poderosas para escu- recer vosso nome: se da vossa parte não faltar firme fé, e segura confiança na bondade, e poder daquelle Senhor que sempre até agora vos alentou e favoreceo. Agradecei, Chris- tianissimos Portugueses, a nosso Senhor ser de vós escolhi- dos entre todas as nações do mundo por hum muito principal instrumento de accrescentar por vós a gloria do seu santo nome, e quantas e largas mercês para isso vos fez, das quaes vos deveis lembrar para não acabarem os castigos presentes de derribar vossos corações. Mas tomarde-los com humildade, por disposições pêra procurardes mais com a vida, e sangue, fazendas e forças, de prosseguir o accrescentamento de sua honra por todo o mundo : e accenderdes mais seu amor em vossos corações, e resplandecer mais agora em vós seu ser- viço á Christandade.» (Pag. xxv). Os portugueses, que longe da metrópole, em captiveiro duro dos infiéis, não podiam presenciar os soffrimentos que no reino occorriam, não soffreriam menos. Se os males, que aos portugueses livres da metrópole affligiam, tinham maior resonancia, «maior toada» pelos tempos adeante, tinham também as consolações da livre pratica do culto, da frequência dos tem- plos, da privança dos ministros da igreja, das consolações e

818 Historia da hitUr atura Clássica

arrimos que de taes fontes provêm. Porem, os captivos dos mouros, entre os quaes se contava Frei Thomé de Jesus, ao tempo da redacção da sua capital obra, soffriam como os outros,' mas ainda com o aggravamento de não terem aquellas consolações e de correrem grande risco de queda espiritual» a do desespero, da duvida ou da cólera. Para consolar os seus irmãos da pátria e de amarguras, desses soffrimentos dentro e fora do captiveiro é que Frei Thomé de Jesus com- pôs os Trabalhos de Jesus, bálsamo de piedade ineffavel, que pelas circunstancias adversas em que foram escriptos e pelo acabamento e êxito alcançados o próprio auctor julgava dictados por inspiração divina. Elle no-lo diz: «Fazendo-me Deos do numero destes seus filhos atribulados, e posto em escura prisão, ora em ferros, ora sem elles, com os mais annexos do estado de captivo, sabendo quanto maior era minha fraqueza que a de todos os outros, assi como sem meus merecimentos me fez mercê destes trabalhos, assi por sua bondade me fez de me inspirar que passasse o tempo nelles (que tinha desoccupado) em recopilar os Trabalhos de Jesus, que me podiam ser allivio certo de minhas affli- cções. Commetti esta obra, havendo por industria, e muito segredo papel e tinta, e escrevendo as mais das vezes sem mais luz que a que entrava por gretas da porta, ou agulhei- ros e buracos das paredes. Furtava para isto o tempo, por me não verem, e os mais aparelhos necessários, senão o que de graça a luz divina a meus interiores e cegos olhos dava, sem eu lh'o merecer. Cuidei no começo, fazer huma muito breve recopilação dos trabalhos do Senhor; e confesso a sua bondade, que nem sabia por onde começasse, nem como continuasse, nem em que acabasse. Mas indo escre- vendo, e levado não de meu cabedal, senão da sua mão, costumada a guiar as ovelhas perdidas, achei-me no cabo com dous volumes feitos, a historia de seus trabalhos, consi- derações e exercícios, e doutrinas que sobre elles, elle, sem eu o ouvir, me ensinou, As quaes, confesso a sua misericor*

Historia da Litteratura Clássica 319

dia, que nunca, nem antes, nem depois, nem então soube sentir da maneira que m'o elle fazia escrever. E como isto foi sem nenhuma ajuda de livros, e sem nenhum uso de escrever cousas desta matéria; ainda que eu não queria, ficam todas as faltas e imperfeições desta obra minhas, e o que nestes livros pode aproveitar fazenda sua.» (Pag. XXVI e xxvil).

O plano dos Trabalhos de Jesus é muito differente do das outras obras congéneres, anteriormente referidas; não tem o cunho artístico da de Frei Heitor Pinto, nem de Samuel Usque ou de Frei Amador Arraes ; é mais didáctico. Divi- dem-se em duas partes: a primeira alcança vinte e cinco trabalhos soffridos por Jesus desde o seu nascimento até á Paixão; a segunda toda a Paixão. Cada trabalho é circuns- tanciadamente narrado, em seguida devidamente interpretado e apreciado nos chamados exercícios, que propõem matéria para meditação. Alem dos exercícios correspondentes aos •vinte e cinco trabalhos narrados em cada parte da obra, ha alguns exercícios extraordinários sobre outras matérias. Conhecimento da natureza humana, grande resignação ao soffrimento, conceitos substanciosos e argutos, linguagem límpida e as mais das vezes fluentíssima, são as principaes feições dos Trabalhos de Jesus, obra traduzida para varias línguas (*).

(') V. a lista das traducções inglesas em *Os Trabalhos de/esus», de Frei Thomé de Jesus, do sr. Edgar Prestage, publicado no iv vol. do Boletim da Segunda Classe da Academia das Sciencias de Lisboa, Lisboa, 191 1. Para as traducções francesas ver Biblioilieque de la Compagnie de Jesus, Bibliographie, tomo i.° Ha também traducções em italiano, hespa- nhol e latim.

CAPITULO IX

GÉNEROS MENORES A. - ESCRIPTOS MORALISTAS

Abre esta pequena galeria o Dr. João de Barros (') com seu Espelho de Casados, publicado em 1540 e reproduzido em 1874 por esforços de Tito de Noronha e António Cabral. O manuscripto, que se guarda na Bibliotheca de Évora, com o titulo de Doze razões sobre o casamento, deve ser uma pri- meira redacção do Espelho de Casados. Nessa obra, o auctor impregnado da philosophia dos antigos e conciliando-a em sua consciência com o christianismo, propõe-se tirar conclu- sões úteis, pragmáticas da vasta sciencia, pois como elle diz, citando Aristóteles, vários são os fins com que cada um pretende saber. Doze são as razões que João de Barros reu-

(*) João de Barros, que é necessário não confundir com o auctor das Décadas, seu homonymo, era natural do Porto, segundo uns, e de Braga, segundo outros, entre elles fundadamente Camillo ; foi doutor em leis pela Universidade de Coimbra. Foi ouvidor do arcebispo de Braga, escrivão da camará de D. João 111 desde 1548 e desembargador dos aggra- vos em 1549. Fez parte duma commissão encarregada de rever os im- postos e, por ordem do Cardeal D. Henrique, dirigiu a reforma dos cartórios de vários conventos. ígnoram-se as datas do seu nascimento e morte. O sr. Frazão de Vasconcellos deu alguns informes sobre a famí- lia deste escriptor no opúsculo, Ascendência materna do Desembargador João de Barros, Lisboa, 1917, e o sr. António Baião publicou alguns do- H. da L. Clássica, vol. 1.» 21

322 Historia da Litter atura Clássica

niu dentre as allegadas contra o casamento, as quaes enun- cia e rebate, segundo os processos demonstrativos da epocha por nós referidos noutros passos.

Essaá razões são as seguintes : ser o matrimonio um es- tado cheio de encargos; o desgosto a que se sujeitam os ca- sados com perderem os filhos ; a servidão que no fundo elle é ; a inferioridade moral e mental da mulher ; a inconstância delia ; a sua incontinência ; as discórdias acarretadas pelo adultério ; a impossibilidade de viver com a adultera ; as «tachas e manhas» das mulheres; a pobreza, a doença e a velhice; a desegualdade de haveres; a indissolubilidade do casamento. A estas razões de opposição contrapõe João de Barros outras tantas em defesa do casamento ; a necessidade de o homem se perpetuar ; ser um sacramento divino ; a sua gloria e alegria ; o exemplo dos antepassados ; a grande re- petição do casamento mesmo entre os modernos ; os praze- res da paternidade ; a honra; o respeito da amizade ; o proveito que delle resulta para o paiz ; a ajuda que ao homem traz a mu- lher ; ser com o estado de religião dos dois únicos estados polí- ticos admissíveis ; e evitar o peccado. Numa terceira parte nova discussão e additamentos fez o auctor a estas doze razões, e numa quarta e ultima parte enunciou doze requisitos que se devem observar para que os casamentos sejam felizes.

cumentos a elle referentes na seguinte collecção valiosíssima: Documen- tos inéditos sobre João de Barros, sobre o escriptor seu homonymo con- temporâneo, sobre a família do historiador e sobre os continuadores das suas cDécadas», no Boletim da Segtmda Classe da Academia das Scien- cias, vol. ii, Coimbra, 1917. Os documentos biographicos sobre o auctor cio Espelho de Casados, divulgados pelo sr. A. B., são : alvará de 1562, pelo qual se faz mercê de quatro moios de cevada emquanto servir o cargo de escrivão das cousas da comarca da Extremadura, que declara desempenhar ha quatorze annos, ou seja desde 1548; declaração de 1586 sobre a successão dum padrão de juros concedido em 1563 ; mercê de di- nheiro em 1571 ; carta de aposentação no cargo de escrivão da comarca da Extremadura, em 1572; mercê de dinheiro em 1575.

Historia da Litter atura Clássica 323

Todo o arrazoado de João de Barros, feito de fundamen- tos tirados da generalidade da natureza humana e de auctori- dade dos antigos, mostra bem o desconhecimento em que se compraziam estes auctores a respeito da diversidade infinita dos caracteres e a sua completa carência de instincto psy- chologico. Mais original é o pequeno tratado encomiástico do licenciado Ruy Gonçalves intitulado Dos privilégios e pre- rogativas que o género feminino iem por direito commum éf orde- nações do Reyno mais que o género masculino, publicado em 1557. Essa obrinha, dedicada á rainha D. Catharina, tida como um exemplo das superioridades femininas defendidas pelo autor, tem uma evidente intenção de galantaria, a que até se adequou a forma extrínseca, que lhe o aspecto do que hoje .se chama uma plaquettc. Com grande erudição e grande copia de argumentos, que não excluem certa inge- nuidade, o auctor enuncia as seguintes virtudes, em que as mulheres igualaram ou excederam os homens, do que exemplos : doutrina e saber ; conselho ; devoção e temor de Deus; liberalidade: clemência e misericórdia, castidade e outros elevados dotes moraes ; a seguir aponta algumas es- peciaes disposições legaes, que beneficiavam o sexo femi- nino. Ruy Gonçalves tratou este assumpto, tão fecundo de matéria litteraria, muito mecanicamente, com erudição e muito pequena observação da alma feminina. Bem merece, não obstante, ser lembrado, porque a sua voz foi a primeira que se ergueu a defender o sexo das opiniões tradicionaes, que sobre elle pesavam,

O historiador das Décadas também nos deixou escriptos de moral, mas em exposição didáctica, sem qualquer propó- sito de arte ou mesmo alguma implícita belleza artística na dicção. Os escriptos moraes de João de Barros são a Ropi- capnefma, de 1532 (*); o Dialogo de João de Barros com dons fi-

(') V. a edição do Visconde de Azevedo: Compilação de varias obras do insigne portitguês João de Barros— Contem a Ropica Pnefma e

324 Historia da LitUr atura Clássica

lhos seus sobre preceitos moraes em forma de jogo, 1540; e o Dialogo da Viciosa Vergonha, (*) do mesmo anno. São todos estes escriptos trabalhos de educador e por elles, bem como pela sua Cartinha e pela sua Gramática da lingua portuguesa, se prende indissoluvelmente o nome de João de Barros á historia da educação em Portugal.

A Viciosa Vergonha tinha sido promettida no prologo da Cartinha e com ella e com a Grammatica forma um sys- tema de educação da primeira infância. A moral que domina estes escriptos é a ethica enrista, acerescida de sentimentos activos, como o amor da gloria e o heroísmo, a dedicação civica, que trahem influencia de Plutarcho, o biographo dos grandes caracteres da antiguidade, e que, também, se har- monizavam perfeitamente com a concepção histórica do au- ctor da Ásia. De arte têm a forma em diálogos e as per- sonificações de sentimentos, de faculdades da alma ou de abstractas idéas: na Ropicapnefma são interlocutores o tempo, o entendimento, a vontade e a razão. Além do interesse,, que devem merecer ao historiador das idéas moraes e das idéas sobre educação da mocidade, estas obras são um ves- tígio bem accentuado da influencia de Plutarcho e Séneca, auetores verdadeiramente cosmopolitas pela acceitação in- fluente que em toda a parte tiveram.

A pequena obrinha de D. Francisco de Portugal (2)r

o Dialogo com dons filhos seus sobre preceitos moraes. Porto, mdccclxix, 340 pags.

(i) V. Compilação de varias obras do insigne porluguez foão de Barros, Lisboa, mdcclxxv, 340 pags.

(2) D. Francisco de Portugal, i.° Conde do Vimioso, nasceu etn Évora em anno que se ignora, e foi filho de D. Affonso de Portugal, depois bispo daquella cidade. Gozou de grande prestigio entre os seus contemporâneos e desempenhou missões de responsabilidade e confiança : acompanhou D. Manuel 1 numa sua viagem a Castella, acompanhou a princesa D. Isabel na sua viagem para a Allemanha, para se casar com Carlos v. Distinguiu-se por seus feitos militares em Arzilla. em 1509,

Historia da Litteratura Clássica '525

Sentenças, é o primeiro escrito deste género, máximas, em lingua portuguesa. em 1605 seu neto D. Henrique de Portugal publicou as Sentenças, o que faz attribuir a esta publicação tardia e fora das vistas de seu auctor as irregula- ridades de texto e deficiências de pontuação, que evidente- mente existem na obra, hoje mais divulgada, graças á reedição que delia fez em 1805 o sr. Prof. Mendes dos Remédios. Contém o livrinho duzentas e quarenta e seis sentenças em prosa e cento e trinta e oito em metro, as quaes versam, na sua grande maioria, a natureza humana, vista através dum pessimismo normativo, que simultanea- mente reprehende e quer ensinar. Elias e o theor de vida, activa, digna, esmoler e despretensiosa do seu auctor, attes* tam uma elevada vocação de moralista. E se nós fizermos uma combinação, nem muito profunda, nem muito subtil- mente philosophica, das tendências da moral christã, do estoicismo de Cicero, da lição dos grandes varões de Plu- tarcho e do pessimismo aristocrático e severo de Séneca, teremos recomposto o conteúdo dessa curiosa obra. por- que a lingua ainda então não possuía a necessária malleabi- lidade, porque D. Francisco de Portugal, collaborador do Cancioneiro Geral, de Garcia de Rezende, não se acurasse em limar o seu estylo de modo a produzir a máxima ex- pressão e relevo, como mais tarde La Rochefoucald, de quem se conhecem differentes redacções das mesmas máximas, a dicção das Sentenças nem sempre é clara, antes muitas vezes o seu pensamento é obscurecido, mesmo occulto por uma redacção infeliz. Isto succede mais frequentemente nas sentenças em verso do que nas sentenças em prosa. Numas

em Azamôr, em 1513, tendo chegado a governar esta praça em substi- tuição do Duque de Bragança, D. Jayme. Foi vedor da fazenda de D. Manuel 1 e de D. João in e camareiro-mór dos filhos deste rei. No fira da Tida resignou a vida publica e retirou para Évora, onde morreu em 1549, deixando de si a recordação da muita beneficência que praticara.

326 Historia da Litteratura Clássica

e noutras predomina a forma parallelistica, quanto ao sentido; cada quadra tem dois pensamentos, que se exprimem por dois versos, mas nem sempre o segundo termo joga com o primeiro em correspondência lógica. D. Francisco de Portu- gal, porque viu muito mundo e porque o soube ver, conheceu bem a fragilidade da argilla humana, interesseiramente astuta e malévola e ás vezes um pouco inclinada ao bem, emquanto essa rara inclinação não envolve compromettimento. Essa fragilidade a aponta elle repetidamente, ensinando também algumas boas e sãs normas de prudência, de senso e gene- rosidade. Devemos, porem, notar que é mais arguto e mais amplo na comprehensão, emquanto observa e expande o seu desilludido pessimismo, do que na reprehensão, quando construe a sua moral. Esta é um conjuncto de máximas abstractas, que seriam o proceder duma consciência christã, justa e desambiciosa. O seu lado negativo é todo fundamen- tado na observação ; o lado positivo deriva da contemplação dum ideal inattingivel, quando muito de alguns casos em que a verdade e a justiça se revelavam ostentando o caudal das suas consequências. Surprehende como um fidalgo da corte de D. Manuel I pôde ter da vida uma visão tão desan- nuviada de preconceitos e uma tão critica interpretação, que o levaram a formular as opiniões seguintes, corajosamente declaradas :

O que está na pessoa se deve estimar ; tudo o mais é da fortuna.

Calando se desonra quem com medo se cala.

Bem basta para desprezar o mundo, serem os homés julgados pellos

homés. O poder endurece os máos, e justifica os bôs. A justiça como as mãos do sorurgião com quanta mais leuidão cura

melhor he. A desestima dos bons ousadia aos máos. Para conhecer quem cada he, não ha differença de estados. O home somente a Deos, & á vergonha deve auer medo. O saber comú" aproua o q. se usa.

Historia da Litteratura Clássica 327

O estado dos Reys são os homés, o que os tem melhores he mais

poderoso. O poderoso deve somente usar do poder da razão. Ao bom somente obriga o em que a virtude obriga. 0 Rey deve ser triaga contra a mentira. Quem não emmudece vendo que falia com as orelhas dos homés, & não

com os corações dos homés ! Os homens são jornaleiros do mundo ; paga mal a quem o despreza. Mais se sente ao? Reys calãdolhe ( sic ) verdades que dizendolhe {sic)

mentiras. O verdadeiro a si mais que a todos deseja satisfazer. Espanto he sosterse o mundo côa idolatria dos poderosos. Ser sogeito a outrem he desterro da vontade. Quem quizér emmendar o mundo seja em si. Quem deseja ordenar o mudo não segue o mudo. Os homens são alcatruzes do mudo, pellos sãos vem a ordem, e pellos

quebrados se vay a virtude.

Estas sentenças, que escolhemos e reproduzimos, mos- trarão que D. Francisco de Portugal, entre desdenhoso e desilludido, bem conheceu os homens, bem penetrou os motivos das suas acções, intelligentemente mediu o grande lugar que o mal occupa, limitado pelo medo. A sua analyse profunda a todos observou, não detendo a sua curio- sidade nem ante os prejuízos do mundo, nem ante os pode- rosos, nem ante os reis. A todos apontou o mal e o bem, mas como este é uma aspiração, desdenhou o mundo, fugiu delle, acoitando-se á sua consciência e a Deus ; á sua consciência porque era um individualista e a Deus porque era christão.

Ser tão declarada e affoitamente individualista e, sendo christão, construir para expansão do seu individualismo uma moral tão nobre e tão ampla, e também tão estranha ao mys- ticismo, tão laica, como hoje se diria é em que consiste a originalidade destas Sentenças, escriptas num tempo em que o mysticismo era a solução de todos os pessimismos. O que D. Francisco de Portugal pretendia era que, desilludido, se procurasse bem proceder:

328 Historia da Litteratura Clássica

He ignorância esperar Por outro tempo melhor E no presente acertar Convém sempre ao Sabedor.

Apesar de claramente haver escripto: não ha buraco na mundo para escapar do mundo senão Deos, o auctor das Senten- ças nunca teve em mira a renuncia do mysticismo. Disso o preservaram as suas leituras dos moralistas clássicos, prin- cipalmente de Cicero, Séneca o Philosopho e Plutarcho, que ha a certeza de serem bem conhecidos nesse tempo em Por- tugal.

A obrinha de Joanna da Gama, (*) Ditos da Freira, publi- cada a primeira vez em 1555 (?) foi muita mal conhecida até á reproducção feita por Tito de Noronha. Consta de vários pensamentos, ordenados alphabeticamente por seus títulos, a saber: affeição, adversidade, amizade, amor, amor próprio, arreceios, auctoridade, abilidades (sicj, bem do espirito, bens temporaes, bemaventurança, bons, contentamento, castidade, cegueira do coração, consultação, conselho, conversação, cortezia, cólera, coração, culpa, costume, cobiça, Deus, des- canso, discreção, desenganos, desejo, desassocego, descuido, dor, etc, etc. Sobre tão vasta e múltipla matéria compôs Joanna da Gama os seus pensamentos cuja philosophia se reduz ao desengano dum coração que reconheceu a inani- dade dos bens terrenos, expresso de modos muito communs, que não aceusa a perspicácia psychologica nem a redacção concentrada de D. Francisco de Portugal. Modestamente, a

í1) Joanna da Gama nasceu em Yianna do Castelo em anno, que se ignora. Após a morte de seu marido, retirou-se para Évora, onde fundou o Convento de S. Salvador do Mundo, no qual praticou as regras de S. Francisco até ao momento em que, por ordem do cardeal D. Hen- rique, as recolhidas se dispersaram. Morreu em Évora, em 1586. A sua obra corre na impressão dirigida por Tito de Noronha, Porto, 1872.

Historia da Litter -atura Clássica 320

auctora explica a sua obrinha: «Estes ditos me estam amea- çando que por elles heide ser condemnada no juizo de muv- tos: se a ignorância sobeja me faz sel-o que tenha necessi- dade de perdão, d'aqui o peço aos que o lerem.

Assaz de muita pequice e pouca prudência, grande ou- sadia e alta presunçam seria a minha se cuidasse que ha ninguém de achar sumo ou sabor nestes ditos, pois sam fei- tos de quem nam sabe; pêra mim os fiz por ter fraca memoria» (1). São effectivamente reflexões dum espirito propenso ao isolamento e conhecedor dos valores do mundo, que curioso de a si mesmo se conhecer, de organi- zar o seu corpo de opiniões e. sentimentos, se deu ao tra- balho de registar o que lhe ia occorrendo. Não tem, nem pretendem ter originalidade, nem profundeza, nem brilho litterario. Acompanham os Ditos algumas peças poéticas, onde não sobra a inspiração e que repetem as reflexões da parte em prosa.

B- ROTEIROS DE VIAGENS

Dcs muitas viagens, que por mar e por terra, aventuro- samente fizeram os portugueses no século XVI, numerosas narrathas se fizeram, sem se limitarem aos trágicos episó- dios dcs naufrágios, quando das maritimas se occupavam, como os auctores dos opúsculos colleccionados sob o titulo genérico de Historia Tragico-maritima . Estas narrativas mais circurstanciadas foram os roteiros e itinerários, que por coincilencia podem constituir géneros litterarios, por coinci- denciaporque o seu objectivo não era deliberadamente pro- curar a emoção esthetica, mas servir os estudos geographi- cos e . curiosidade de exotismo e maravilha. Litteraria- mente, aes obras participam de caracteres próprios do

(*) \ Ditos, Pag. 23, ed. de 1872.

330 Historia da Litter atura Clássica

romance, da historia e das memorias. Como o romance de cavallaria, são apologias do heroimo individual e das virtu- des da perseverança, da abnegação e espirito de sacrifício, ainda .como o romance de cavallaria no maravilhoso roma- nesco cifram o seu interesse, e as suas aventuras decorrem em paizes exóticos litterariamente tão vagos como os da phantastica geographia dos Amadises e Palmeirins onde por consequência cabia toda a aventura. Da historia têm o escrúpulo de exactidão e das memorias a intenção autobio graphica; divergem, porem, daquellas porque visam mais i narrar as deslocações affoitas e complicadas do auctor-pro- tagonista no espaço, do que os feitos no tempo dum rei ou governador, e das memorias porque não têm os juizos e reflexões, que estes sempre comportam, as intimas revela- ções que delias fazem o principal mérito. Quem escreve me- morias abstrahe por completo do publico e sente-se, por isso, numa posição amplamente livre. Ora este cunbo das opiniões e julgamentos dos auctores é que não exiíte nos roteiros itinerários.

Um dos mais curiosos e mais úteis roteiros é o da via- gem de Vasco da Gama, attribuido a Álvaro Velhq o qual é certamente de todos o menos litterario. D. João di Castro (1500- 1548), o famoso vice-rei da índia, escreveu tós rotei- ros e projectou um quarto, que provavelmente de projecto não passou. São esses três o Roteiro em que se contem a viagem que fizeram os portugueses no anno de 1541 de Gôa aii Suez, publicado em Paris, em 1833, por diligencias do 3outor Nunes de Carvalho; o Roteiro da Costa da índia, de a Dio, publicado no anno de 1843 por Diogo Kõpke; e < Roteiro de Lisboa a Gôa, editado em 18S2 com importantef annota- ções históricas, geographicas, náuticas e astronómicas por Andrade de Corvo. O projectado teria sido um oteiro de outra parte das costas da índia. Estas obras intressam á historia da sciencia náutica principalmente, pois são a nar- rativa, em forma de diário, das viagens do illustrí guerreiro,

Historia da Litter atura Clássica 331

em que cada dia é designado sob a rubrica de caminho, e ó o caminho que realmente se descreve, dessa descripção sahindo para nos referir as operações do calculo da altura do sol, fazer as suas notações e extrahir os seus corollarios.

A seguinte passagem dará uma idéa do texto, naquella parte menos tomada pelas operações astronómicas : «Sesta feira 3 1 de maio todo dia foi o vento calma ; quanto a naao gouer- naua, rizemos o caminho ao susueste e ao sul quarta de sueste : (l) o Piloto e mestre tomarão o sol, e acharanse em 20 grãos -T-: este dia vimos muitos (*) grajaos e Rabiforca- dos.

De noite toda foi o vento nordeste e lesnordeste muito bonança ; ao quarto da prima gouernamos ao sul quarta de sueste e ao susueste ; mas a modorra e alua gouernamos ao susueste e ao sueste quarta do sul » (3).

O Padre Francisco Alvares (4) contou o que observara na corte do negus da Abyssinia, que longamente privou, na obra Verdadera informaçam das terras do Preste João... 1540.

De Frei Gaspar da Cruz (5) possuímos uma curiosa obra

(') Altura do meo dia. Nola de D. João de Caslro. (2; Aves aparecerão. Idem.

(') V. Roteiro de Lisboa a Gôa, ed. da Academia Real das Scien- cias, Lisboa, 1882. Pag. 178.

(4) Francisco Alvares, cuja biographia em grande parte se ignora, fez parte da embaixada que, em 1515, D. Manuel 1 enviou ao soberano da Abyssinia, de que foi chefe Duarte Galvão, morto no caminho. Suc- cedeu-lhe no cargo D. Rodrigo de Lima, que o P.e Alvares acompanhou do mesmo modo, residindo na Abyssinia até 1526. Em 1527 voltou a Lisboa, donde ainda sahiu para acompanhar a Roma um embaixador abexim. Os seus serviços foram recompensados por D. João rn.

(5) Frei Gaspar da Cruz nasceu em Évora em data desconhecida e professou no convento de Azeitão. Em 1548 partiu para a índia com mais doze religiosos, sob a direcção do vigário Diogo Bermudes. Viveu em Gôa e Malaca, onde activamente trabalhou pelos progressos da reli- gião enrista, esteve no reino de Cambaia e em 1556 passou a missionar na China, onde foi o primeiro apostolo. Igual ministério exerceu no reino

332 Historia da Litteratura Clássica

de informação, mais quantiosa de noticias que os simples roteiros e itinerários, o Tratado em que se contam muito por extenso as cousas da China, com suas particularidades , e assim do reino de Ormus, Évora, 1570.

António Tenreiro, Fr. Pantaleão de Aveiro e Fernão Cardim contaram também o itinerário de suas viagens. Po- rém sobre todos destaca Fernão Mendes Pinto, (*) auctor da Peregrinação, na qual alem do interesse geographico, que é o

de Ormuz. Em 1569 regressou ao reino. Provido por D. Sebastião no cargo de bispo de Malaca, declinou essa dignidade. Falleceu em Setúbal, em 1570, victima de peste, quando se oceupava na caridosa enferma- gem dos pestíferos.

(') Fernão Mendes Pinto nasceu em Montemór-o-velho provavel- mente em 1509, de familia humilde. Em 1521 um seu tio trouxe-o para Lisboa, onde serviu uma senhora nobre, de cuja casa fugiu por causas que não confessa, embarcando logo numa caravella que partia para Se- túbal. Nessa viagem foi a caravella accommettida por piratas, que apre- saram Mendes Pinto com outros tripulantes. No caminho para Marrocos, aonde ia ser vendido, os piratas assaltaram uma nau, que vinha da Africa, com opulenta carga, pelo que abandonaram os captivos na costa de Portugal para poderem vender no norte da Europa a carga roubada. Servindo vários amos se conservou no reino até 1537, anno em que par- tiu para a índia. No Oriente correu as aventuras extraordinárias, que na sua Peregrinação conta, e regressou a Lisboa em 1558. Passou o resto da vida em Almada, onde morreu em 1583. Filippe 1 concedeu-lhe uma tença de dois moios de trigo.— Devem-se ao sr. Christovam Ayres pro- gressos importantes no conhecimento das relações de Fernão Mendes Pinto com o Japão, consignados nas duas memorias Fernão Mendes Pinto Subsídios para a sua biographia e para o estudo da sua obra, Lisboa, 1904, 127 pags., e Fernão Mendes Pinlo e o Japão, Lisboa, 1906, 1.55 pags. A primeira funda-se sobre cartas de padres da Companhia de Jesus, contemporâneos do viajante, das quaes existe uma collecção na Bibliotheca da] Academia Real das Sciencias, e reconstitue completa- mente a viagem de Fernão Mendes ao Japão, desde a sua sahida de Gôa em 18 de abril de 1554 até á chegada ao porto japonês de Bungo em principio de julho de 1556, e depois a viagem de regresso a Lisboa, aonde chegou em 22 de Setembro de 1558. A segunda memoria escla- rece vários pontos importantes, como as relações do viajante-escriptor com a Companhia para cujo grémio entrara por occasião dos solemnes

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principal nas obras dos outros auctores nomeados, se exem- plificam dotes litterarios. A Peregrinação publicada em 1614 é um notável exemplo da arte de serenamente contar, que em grau eminente possuíram os portugueses do século xvi, minuciosos chronistas da historia episódica, e exempli- fica também flagrantemente o que era a vida aventureira dos viajantes e exploradores do seu tempo, que anciosos de ver e observar pacientemente corriam os maiores riscos e sof- friam humilhações para homens de hoje incomportáveis. Esse homem, que foi o primeiro europeu que desembarcou no Japão, muitos trilhos novos percorreu no Extremo Oriente e muitas cortes e costumes exóticos revelou á Europa. Na fluência da sua linguagem, feita de serenidade narrativa e sincera simplicidade, e na matéria, uma fieira complicada de aventuras, que vão do martyrio á extravagância complicadai da extrema miséria á grandeza cumulada de honrarias, se cifra o interesse litterario da obra. Os outros interesses, que ella pode despertar, são de natureza geographica. como obra de informação, pela sua prioridade e veracidade.

C - RELAÇÕES DE NAUFRÁGIOS

As relações dos naufrágios foram um dos géneros crea- dos pelo theor de vida que em Portugal se viveu, durante o se-

funeraes de S. Francisco Xavier e donde sahiu por causas mal conheci- das, e a prioridade do seu descobrimento do império japonês. A discus- são deste ponto ultimo, ainda não derimido de modo definitivo, é feita á luz de fontes japonesas, a par de outras europêas. São também de apreciar as contribuições do sr. Jordão de Freitas com os dois estudos Subsídios para a bibliographia portuguesa relaliva ao Japão e para a biographia de Fernão Mendes Pinto, no Instituto, vols. 51. ° e 52. °, Coim- bra, 1904-1905, e Fernão Mendes Finto Sua ultima viagem a China (ijj4-ijjS), no Archivo Histórico Português, 3.0 vol., Lisboa, 1905. Este segundo escrito contem uma carti do P.e Luiz Froes, não mencio- nada entre as divulgadas pelo sr. Christovam Ayres.

334 Historia da Litter atura Clássica

culo xvi. Como eram periódicas as partidas de armadas para a índia e para o Brasil, repetidos eram os naufrágios, consequência do permanente estado de guerra com mou- ros e piratas, de insufficiencias da construcção naval, que, apesar de muito aperfeiçoada pelos nossos navegantes e de ser a navegação regida por sólidos princípios scientificos, ficava áquem da ousadia dos longos e perigosos percursos transcorridos. Ansiosa era a curiosidade de noticias das ar- madas que partiam, pois grandes eram os perigos e escassos os meios de haver essas noticias. Tão raras eram ellas que frequente era darem-se por mortos parentes ausentes, cujo destino longo tempo se ignorava, os quaes mais tarde ines- peradamente appareciam. Este regresso inesperado de paren- tes, do marido sobre todos, proporcionou alguma matéria litteraria aos comediographos deste século, como vimos no capitulo respectivo. Esses auctores é que não extrahiram todos os recursos que esse thema comporta, o que Garrett muito mais tarde fez com superior inspiração dramática. Para satisfazer a curiosidade de noticias e para divulgar os nau- frágios sensacionaes, pelo grande perigo corrido ou pelo heroismo revelado, surgiu um género litterario novo, a rela- ção dos naufrágios, folha volante, que pela repetição e actua- lidade, se approximava um pouco do caracter periódico e noticioso do jornal moderno. Era um jornal sinistro que pretendia divulgar as fúnebres noticias das mortes, incêndios e mil misérias que corriam no mar os que se aventuravam a essas longas travessias. Eram seus auctores humildes narra- dores, que reproduziam quanto haviam presenciado ou que compunham o que sabiam de outiva dos próprios figurantes desses pungentes dramas no alto mar. Numerosas teriam sido essas folhas volantes, de que muitas se conservam ainda, e cujo gosto durou alem do século xvi. No século xviii, um erudito curioso e de gosto, Bernardo Gomes de Brito (1688 ?) reuniu uma collecção apreciável desses opúsculos em circulação, sob o titulo geral e bem appropriado de His-

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toria Tragico-maritima, cujos dois primeiros volumes, únicos publicados, appareceram em 173,5 e 1736 (*).

Nessa suggestiva collectanea estão comprehendidas as seguintes relações de naufrágios occorridos dentro do alcance chronologico deste livro: do galeão S.João, em 1552; da nau S. Bento, em 1554; da nau Conceição, em 1555; viagem e successo das naus Águia e Graça, em 1559; da nau Santa Maria da Barca, em 1559; da nau S. Paulo, em 1561 ; e da nau de Jorge de Albuquerque, em 1505. Estas relações são o que nós chamaremos arte litteraria por coincidência, pois não nasceu dum deliberado propósito de crear belleza per- duradora. A vivacidade de linguagem, impregnada de reali- dade, o tom simples da narrativa de casos por si mesmos intensamente emocionaes, que dispensam adornos e artifícios, a novidade das situações que descreve o perigo extremo no alto mar fizeram dessas narrativas verdadeiras obras de arte. Por ellas, entrou no quadro dos themas litterarios o naufrágio, e duma delias nasceu até um poema épico, o Naufrágio de Septtlveda. Essas relações abrem horizontes novos aos olhos cansados de verem o mar através dos poemas homéricos e da Eneida, com suas tempestades regu- ladas por aquelles modelos e povoadas de nymphas; as relações revelam o mar tal como o viram, singraram e soffreram os marinheiros da índia. Grandes paginas de dor humana alli se contêm em esboços rápidos, mas não pouco vigorosos. E desenhando esses rápidos esboços, os narrado- res fazem-no como comparsas dos grandes dramas, pungen- tes e desesperados, que para sempre ficariam ignorados sem esses humildes e vibrantes chronistas. Fieis á verdade e entendidos na arte e nos perigos da navegação, não se preoccupam com os effeitos dramáticos, dizem-nos a

(') Em 1904-1907 appareceu nova edição da Historia Tragico-ma- ritima, em 12 pequenos volumes. Ao texto primitivo aggregaram-se ou- tras relações posteriores.

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causa próxima do naufrágio, qual a peça da mastreação que primeiro o vento levou, e porque a não puderam reparar, quaes as velas despedaçadas e porque é que o novo leme, á pressa- construido, se não pôde collocar em seu lugar. Frequentemente o narrador «se achou no dito naufrágio»; por isso nos descreve com tão intensas cores essas horas trágicas de lucta com os ventos no mar deserto, com a única companhia e o único testemunho da viva religiosa. Esses transes agudos foram provas bem árduas da tempera heróica desses homens de enérgica vontade, de estreita solidariedade e forte crença em Deus. Após o perigo maior, «dissimulando cada um quanto podia o interno descor- çoamento que levava», enérgica e confiadamente corriam a novos riscos. Raros momentos de confusão nos são referidos, pois no ultimo lance quasi todos, resignadamente, se despe- diam, imploravam perdão de passados aggravos e aguar- davam a morte. Sem duvida a mais pungente narração é a do naufrágio de Sepúlveda e dos seus sorfrimentos em terra de cafres, daquelle Sepúlveda que enlouqueceu e morreu de dor, á vista da mulher e dos filhos, nus, mortos de tantas vexações e privações.

Outras collecções de narrativas de naufrágios, inéditas, se guardam nas Bibliothecas Nacional de Lisboa e Munici- pal do Porto (x).

D - EPISTOLOGRAPHIA

Este género, sob a forma poética teve cultivo intenso no século XVI, ao contrario do que veio a succeder nos

(') V. Navegação portuguesa dos séculos xn e xvii Naufrágios inéditos {Novos subsídios para a Historia Tragico-maritima de Portugal, Carlos de Passos, O Instituto, vol. 64. °, n.° 2, Fevereiro de 1917, Coim- bra, pags. 69-93. O auctor minuciosa descripção da collecção manus- cripta da Bibliotheca do Porto e publica, escrupulosamente copiadas, seis relações inéditas.

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séculos subsequentes, em que quem alguma coisa tinha a dizer com pruridos litterarios, sempre adoptava a forma de carta, quando não tivesse preferido o dialogo pastoril, por muito exhausto. Em lingua portuguesa, pois arte litte- raria elaborada com a matéria prima da lingua portuguesa sempre nos referimos, merecem especial menção as Cartas Por- tuguesas do bispo de Silves, D. Jeronymo Osório (l). É muito curiosa esta faceta do espirito do benemérito erudito, tão profundo e probo em seus estudos humanísticos como preoccupado do bem publico. São cinco as cartas recopila- das em 1819 e foram endereçadas ao rei D. Sebastião para o demover do seu projecto da jornada a Marrocos, ao mesmo aconselhando-o a casar com princesa da casa real francesa,

(') D. Jeronymo Osório (1506-1580) é uma das mais illustres figu- ras do humanismo português do século xvi e ainda das menos estudadas, posto que as suas obras sejam de importância grande para a historiogra- phia, para a historia da philosophia, para a do direito e para a do uso litterario da lingua latina, em que brilhou entre os seus contemporâneos. A fonte principal para a sua biographia é o esboço, redigido por seu sobrinho e homonymo, que precede as suas Opera Omnia, Roma, 1592. Da sua estada em Salamanca é difficil colher novas noticias, porque o archivo universitário apresenta grandes lacunas correspondentes a essa epocha. Da sua chronica De rebus Emmanuelis geslis, publicada em 1571, deu Filinto Elysio uma traducçâo portuguesa em 1804-1806. As suas car- tas chamam-se portuguesas em opposição á que em latim dirigiu em 1567 a Isabel de Inglaterra, a quem exhortava a voltar ao catholicismo. O texto dessas cartas é variável segundo os editores. Publicaram-nas no todo ou em parte Barbosa Machado, o Marquez de Pombal, (nas Provas da Deducção Chronologica), Bento José de Sousa Farinha, António Lourenço Caminha e Alvares da Silva. Recentemente a Imprensa da Universidade fez uma edição, em que adopta os textos de Barbosa Machado e Alvares da Silva e exclue uma 6.a carta, endereçada ao Cardeal-rei D. Henrique, que defende a candidatura de Filippe 11, de Hespanha, ao throno português. Cândido José Xavier deu uma resenha da edição de Alvares da Silva, Paris, 1819, nos Annacs das Sciencias, das Artes c das Letras, vol. 4.°, Paris, 1819, em que aponta importantes variantes textuaes.

H. da L. Clássica vol. 1.» 22

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ao Padre Luiz Gonçalves da Camará acerca da politica do reino e das influencias que sobre o moço rei deleteriamente se exerciam, á rainha D. Catharina solicitando-lhe que não sahisse do reino, ao rei sobre um litigio em Tavira occorrido por motivo dum conflicto entre os direitos reaes e as commu- nidades ecclesiasticas. Todas ellas tém grande desenvoltura de linguagem e ostentam coragem civica, desassombro e tino politico de quem muito havia estudado nos livros e nos homens. As duas cartas sobre o casamento do rei, sobre a jornada de Africa e sobre as influencias cortesanescas que sequestravam o rei do convívio e até o forçavam a residir em Lisboa, são muito frizantes exemplos dos dotes litterarios e moraes dessas cartas, que deixam a perder de vista as quasi gaguejantes cartas de de Miranda, salvo o mérito da prioridade no uso da quintilha. E muito curioso e muito fecundo de effeitos lógicos o processo usado em duas cartas por Jeronymo Osório, de começar por defender e suppôr realizado justamente o que elle depois vae impugnar.

CONCLUSÃO

De harmonia com a nossa concepção critica, procu- ramos descrever nos seus caracteres mais geraes, explicar pelas suas próximas determinantes e apreciar nos seus va- lores de maior vulto a productividade de arte litteraria desde 1502 a 15S0, desde o theatro vicentino, que ao renas- cimento deveu alentos, até que a perda da independência nacional, o mysticismo, o sebastianismo e o desenvolvimento próprio dos germens de mallogro, que em si mesma trazia essa litteratura, puzeram termo a essa epocha litteraria e iniciaram nova epocha, mais psychologica que artística. E agora que a consideramos no seu conspecto geral, bem po- deremos concluir que tal litteratura não cumpriu o seu pro- gramma. Não que alguma vez esse programma chegasse a ser posto duma maneira clara, objectiva, mas porque todas as litteraturas neo-classicas tiveram, implicito ou declarado, se não um ambicioso programma, pelo menos um sentido de evolução, um destino próprio. E esse destino não poderia deixar de ser o autonomizarem-se das litteraturas antigas para viverem de vida sua, não poderia deixar de ser o fazer uma construcção nova sobre as velhas e solidas fundações, que gregos e latinos lhes offereciam. A imitação dos velhos clássicos foi um bordão para o alvorecer da nova phase das litteraturas europêas, que, após a dissolução do gosto me- dieval, bárbaro e infecundo, a tal bordão tiveram de se arri-

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mar emquanto não puderam caminhar com segurança, alfor- riadas dessa tutela. Mas, em breve, por toda a parte onde esse feracissimo movimento do Renascimento produziu seus fructos, esse bordão tornou-se supérfluo, e delle nada mais ficou que o sentido geral, o cunho dominante dentro de cujos moldes se executou a evolução histórica das modernas litteraturas ou a esperança e o recurso a que sempre se re- gressou, quando as forças de creação desfalleciam.

Effectivamente é este o cunho geral, esta atmosphera de antiguidade que por toda a parte caracteriza o conjuncto da elaboração litteraria dos séculos XVI, xvu e xviii ; e são essas reviviscencias do espirito clássico que repetidamente contemplamos durante esse transcurso de tempo.

Mas também o que vemos é que os vários géneros, nas- cidos da imitação dos antigos, ou porque conservassem ele- mentos medievos ou porque encorporassem outros poste- riormente accrescidos, soffreram transformações profundas, de modo que, dentro desse espirito de antiguidade, diver- síssimos são os idyllios de Theocrito e as bucólicas de Ver- gilio da Arcádia de Sannazaro, a Eneida de Vergilio do Or- lando de Ariosto ou dos Lusíadas de Camões, o theatro de Aristophanes e Plauto do de Molière, a tragedia de Euripi- des da tragedia de Corneille, como diversíssimos são os princípios por que taes obras se apresentam á nossa admira- ção. Mas dos modelos primeiros a estes exemplos modernos decorreu uma evolução complicada, sequente e consciente. Verificou-se, em Portugal, essa evolução complicada, se- quente e consciente ? Crearam os géneros vida própria e por seu mesmo passo acharam trilhos novos, formas novas e bel- lezas novas? E ao que vamos diligenciar responder.

Logo á primeira vista se reconhecerá que tendo esta incipiente elaboração litteraria, que nós designámos de qui- nhentismo, soffrido o remate violento de 1580, com as suas consequências, incluindo a da penetração hespanhola, não poderia dentro do escasso currículo de três quartéis verifi-

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car-se toda uma evolução litteraria como em parte ne- nhuma se verificou. Em Itália, a litteratura clássica apresen- ta-se então em plena maturidade, mas por ter sido prece- dida de alguns séculos de preparação, a todas se anteceden- do; em Hespanbe no século xvn alguns géneros attin- gem plena florescência, como em Inglaterra ; e em França igualmente no século xvn se forma a sua epocha de esplen- dor. O século xvi foi a epocha de iniciação, em que os imi- tadores, sem qualquer noção de progresso litterario e de na- cionalidade em litteratura, apenas procuravam servilmente imitar os velhos modelos. Igualmente o foi em Portugal, mas aqui dessa phase não passou.

Por esta razão nos insurgimos contra o dizer daquelles auctores que qualificam o século xvi como a epocha áurea da nossa literatura, e insurgimo-nos não porque no século xix localizemos esse esplendor, mas porque percorremos atten- tamente toda a nossa evolução litteraria sem nella nunca en- contrarmos esse esplendor, em parte alguma. O quinhen- tismo foi um embryão lançado á terra, que se não achava convenientemente preparada para o receber e fazer germinar com exuberância, e a esse mesmo lento germinar veio um con- juncto de circunstancias fazer abortar, A terra, neste caso o espirito nacional representado pelos seus escriptores, não se achava convenientemente preparada, porque não havia em Portugal nem viva tradição humanística, nem os hábitos do esplendido mecenatismo. O humanismo ao tempo dos en- saios de de Miranda reduzia-se ao conhecimento de pou- cos auctores da antiguidade, restricto a um escasso numero de eruditos : depois da reforma da Universidade e da creação dos collegios das artes, em 1537 e 1548, por D. João iii, a corrente dos estudos de humanidades engrossou e avultou, chegando a produzir nomes illustres no cultivo des- ses estudos, como os Gouvêas, os Estaços e os Caiados. Ay- res Barbosa, o primeiro professor universitário de grego, re- geu em Salamanca e no primeiro quartel do século. E es-

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tes eruditos portugueses professaram no estrangeiro e re- gressaram a Portugal, chamados por D. João ni, de modo que, embora elles hajam attingido grande saber e capaci- dade, não foram obreiros da renascença litteraria da sua pá- tria, antes foram delia derivados, do espirito que ella infun- dia e derramava, foram uma consequência e não uma causa, ao invés do que fora succedêra. Creado em Coimbra, por esforços de D. João in, um foco de cultura humanística no amplo sentido que esta designação pode comportar logo as devassas e perseguições da Inquisição e a perda da independência politica o dispersam. E quanto a mecenatismo igualmente poderemos allegar que os escassos actos de pro- tecção ás jletras que nos são conhecidos partem exclusiva- mente, de reis e principes, ás letras se reduzem e a pedir copias de obras e conceder tenças se limitam . Dahi a estimu- lar com o gosto sincero e esclarecido, a organizar um meio idóneo, a recompensar com amplas munificencias que elevem e dignifiquem, vae grande distancia.

A infanta D. Maria com suas damas é mais uma mulher illustrada, que se compraz na leitura e no estudo que uma protectora das letras. As grandes obras do mecenatismo são a creação do cargo de chronista-mór do reino, ainda' no século XV, por D. Duarte, e o acolhimento dado no paço ao theatro de Gil Vicente, que á rainha D. Leonor princi- palmente foi devido. Infelizmente o cargo de chronista- mór vinha servir uma intenção interesseira do amor próprio dos reis, e a protecção dada a Gil Vicente não tendo sequen- cia não pôde salvar o auto da morte a que a sua condição interna o condemnava.

Mas a estas duas causas geraes, outras accresciam tam- bém de determinante influencia, como eram a incultura espiritual, o theor de vida nacional, a falta de espirito critico e philosophico, a [Inquisição e a perda da nacionalidade em 1580.

A sociedade portuguesa desse tempo não era uma socie-

Historia da Litteratura Clássica 343

dade de intensa cultura intellectual. Estranha ao movimento scientifico da Renascença, ainda que para elle de modo decisivo houvesse contribuído com os seus descobrimentos maritimos e conquistas ultramarinas, quasi se reduzia a sua actividade puramente intellectual ao exercício poético, e o seu ensino na única Universidade se concentrava, cujo func- cionamento fora modernizado por D. João III, como referimos. Pedro Nunes, um mathematico, Garcia da Orta, um botânico, Francisco de Mello e os humanistas nomea- dos, Rezende, um archeologo e antiquário, constituem o escol da mentalidade scientifica e philosophica.

Mas, ou pela sua Índole de ténue influencia sobre o vulgo ou por s*e haverem exercitado e divulgado fora de Portugal, esses estudos de modo nenhum podiam crear uma sociedade culta, de gosto litterario elevado e exigente, de fino espirito critico, um publico criterioso, exigente com sóe ser o das grandes epochas litterarias, que são funcção da productividade dos auctores e das solicitações e receptividade do publico. Sem esse publico, não pode haver a potenciação de talento creador, multiplicando-se em cambiantes vários, que está no fundo de todas as epochas de esplendor litterario. Não podia a sociedade portuguesa ser uma sociedade de refinada cultura espiritual também porque todas as suas energias e recursos, o melhor sangue do seu sangue, tudo absorvia no emprehendimento bellico das navegações e conquistas; esse emprehendimento era um esforço titânico para um paiz de minguados cabedaes, de gente e dinheiro. Annualmente, no bojo dos navios que partiam, se ia boa parte da sua riqueza ('), que não era resgatada pelos pro-

(') Seria de extrema utilidade para vários géneros de estudos elaborar quadros das armadas partidas do reino, como os que delineou o sr. Braamcamp Freire para os annos de 1488 a 1490, nos quaes se dessem informaçôss sobre a data da partida, destino, [composição da armada, capitão, tripulação e demora da viagem, quando chegavam a

344 Historia da Litteratura Clássica

ventos da troca dos productos coloniaes, troca dirigida por uma defeituosa administração económica. Era um empobre- cimento continuo, uma absorpção das attenções para o alèm- mar, que desnorteava os espíritos e os inadequava para o trabalho sereno da meditação. E, porGm, de justiça esclarecer que este modo de vida nacional se por um lado contribuiu para a impossibilidade de crear um meio litterario, solido e elevado, na metrópole, não foi de todo infecundo litteraria- mente porque abriu novos horizontes, revelou novas emoções, assim dando origem a géneros novos, como a historiogcaphia colonial, os roteiros, as narrações de naufrá- gios e a epopêa das navegações, a todos vivificando com o espirito novo da aventura. Se não houve' rspirito critico, e menos ainda critica litteraria, limitada aos conselhos e suggestões de Ferreira, se esta epocha litteraria não teve a presidi-la e guiá-la a acção normativa da critica, quizéram as circunstancias do viver, que então em Portugal se vivia, que ella formasse um conjuncto do certa originalidade, e essa originalidade consiste no cunho que sobre ela imprimiu esse theor de vida nacional, suggerindo alguns novos themas á litteratura clássica ou metropolitana, determi- nando a creação de novos géneros. A essa originalidade corresponde um interesse e uma curiosidade, certo prazer de leitura, que são dominados pelo exotismo, que prompta- mente cansa e se esgota.

Influiu a Inquisição nos destinos desta litteratura, con- tribuiu mesmo para o seu mallogro ? Evidentemente. Pequeno paiz, cansado do sobresalto permanente que era o seu normal viver, empobrecido pelo esforço gigantesco que representava

bom termo. V. Expedições e Armadas nes mino* de 140S e 1498. Lisboa, 1915, 192 pags. V. também do mesmo auctor Emmcnta da Casa da índia, copia manuscripta dum livro fundamenta] da escripturação da Casa da índia, na qual se dão noticias das armadas desde 1503 até 1583. Foi publicada no Boletim da Sociedade de Geographia, Lisboa. 1907.

Historia da Litteratura Clássica 345

a manutenção dos seus emprehendimentos colonizadores e pela expulsão dos judeus, homens do dinheiro e de multípli- ces capacidades, levando a vida incerta duma fictícia pros- peridade mercantil, quando a Inquisição assentou em Lisboa, Coimbra, Évora e Goa os seus rigorosos tribunaes, começou as suas devassas e exemplificou os seus cruéis rigores, servindo umas vezes a intolerância religiosa e outras a cupi- dez do rei, abriu-se uma era de terror, o que poderia ser ainda um estimulante de enei-gias de curto fôlego e de fisca- lização dos rumos que o pensamento seguia. e esta espécie de severa policia espiritual é que veio estancar as fontes da originalidade creadora. Servida pelos Índices expurgatórios e pelas complicadas formalidades de exames e licenças que precediam a publicação dum livro, essa policia espiritual correu uma cortina sobre os vastos horizontes do mundo profano e da heterodoxia, limitando por longo tempo e inexoravelmente o campo da creação á matéria religiosa, á estreitamente afim ou intimamente de accordo com ella. A publicidade morosa e dirficil reduziu-se consideravelmente, a leitura limitou-se de tal modo que alguns auctores e algumas obras esqueceram, apagaram-se da memoria nacional, dor- mindo um vasto somno de catalepsia, terminado á força ie sacudidelas da erudição. Em taes casos, como era possível uma tradição litteraria nacional ?

Poderia a Inquisição, com as suas devassas e defesas, com a sua tyrannia, impellir a originalidade creadora para nova vereda, a do mysticismo, onde os auctores e o publico encontrassem a mesma pujança de lyrismo, a mesma vehe- mente eloquência, a mesma delicadeza conceituosa que nou- tra parte buscavam. Para tal acontecer seria necessária uma potencia creadora, que entre nós não existia então e que, pequeno, centralizado e combatido como era o Portugal de então, se não deixasse absorver inteiramente pela acção illa- queadora do Santo Officio. Isso conseguiu a Hespanha, paiz muito maior, que no seu imperialismo europeu ampla com-

34 G Historia da Litter atura Clássica

pensação encontrava para as despesas de energia feitas na America e que possuia forças creadoras muito superiores. Isso succedeu em Hespanha, mas no século immediato, em que a Inquisição e a liberdade de creação litteraria pode- ram coexistir, porque esta soube encontrar uma plataforma acceitavel.

Para o mysticismo pela via do sebastianismo derivou effecti vãmente o espirito nacional, mas com tão completa obliteração do senso critico que seria pedir-lhe o impossivel esperar delle novas creações litterarias.

Mas muito melhor se verificará a veracidade do nosso modo de apreciar o quinhentismo português se nós apontar- mos o destino que seguiu cada género litterario do que se nos limitarmos a considerações geraes, necessariamente teci- das com espirito deductivo.

Ora esse exame á saciedade nos demonstrará que o embryão do classicismo, a esthetica clássica, não fructificou em Portugal, pois das suas varias partes umas morreram sem successão, outras continuaram-se sem brilho e outras ainda fora de fronteiras conseguiram a plena expansão dos seus recursos.

Em matéria de theatro, esta epocha litteraria produziu os autos vicentinos, os medíocres ensaios de comedias clás- sicas, de António Ferreira e Jorge Ferreira de Vasconcellos e as tragedias Vingança de Agamenon de Victoria e Castro do mesmo Ferreira. O auto género feito de indetermina- ção, lyrico, satyrico, pastoral, cavalheiresco, patriótico, ple- beu no tom, baixo na linguagem morreu com Gil Vicente, pois os seus continuadores nenhum movimento lhe atribuí- ram, que comportasse modificações estructuraes.

E se fossem repetir os progressos mais ousados, conse- guidos por Gil Vicente, mais e mais se arrastariam do cami- nho do aperfeiçoamento do theatro. Se se houvesse chegado a estabelecer uma creação dramática nacional, outro não poderia ter sido o sentido dessa tradição senão a fusão do

Historia da Litteratura Clássica -'U7

auto vicentino e da comedia clássica; o auto tomaria da comedia a sua perfeição estructural, pois estulto é querer arripiar caminho e desdenhar os resultados da experiência seleccionadora dos séculos; a comedia acceitaria do auto a nova matéria cómica que elle mesmo soubera achar. Deste modo se tornaria consciente, autónomo e nacional, esthetica- mente differenciado, o theatro, e não teríamos visto morrer, afundado no anonymato e na insignificância da litteratura popular, a magnifica creação de Gil Vicente, como não se limitaria ás servis imitações, que possuímos, o nosso thea- tro clássico, de Paulo e Terêncio tomando as intrigas e os meios servis, em que decorrem.

Em El-Rei Seleuco Camões fez uma tentativa feliz ; gra- ciosa, mas com os defeitos próprios do auto e por isso mesmo extemporânea, foi a tentativa de D. Francisco Manuel de Mello, com seu Fidalgo Aprendiz. As modificações em seu theatro introduzidas por António José da Silva, no século xvin

texto mixto, prosa e verso, e elemento musico e coral

não puderam eliminar o hybridismo desse theatro, antes o complicaram. Foi em Hespanha que o auto vicentino con- tinuou a sua evolução, onde o génio de Lope de Vega, Cal- deron de la Barca e Tirso de Molina lhe esgotaram todo o conteúdo, levando-o ás suas ultimas consequências. Das imperfeições do género triumpharam a imaginação, o instin- cto dramático e o estro lyrico destes poetas.

É certo que foi António Ferreira quem primeiro ensaiou a nova forma, que a tragedia iria revestir e que faria o triumpho desse género em França, mas como não teve con- tinuadores e como todas as novidades em historia litteraria se costumam datar daquelles que as fizeram triumphar, perdeu-se o significado do seu papel innovador. De theatro trágico, apenas teremos muito depois, no movimento res- taurador da Arcádia Lusitana, de António Diniz, aquella abundante profusão de peças, que se dizem trágicas, mas a que totalmente falta o espirito trágico. Durou essa moda

348 Historia da Litteraiura Classim

até ao século xix, e nella chegou a cooperar o próprio Garrett.

Do lyrismo, conseguiu-se estabelecer uma tradição para o soneto, que vivificado pelo génio de Camões, acompanha desde então a nossa lingua. Vimo-lo nascer, sob a influencia de Petrarcha, cultivado com êxito pequeno por de Miranda e seus discípulos, vimos formar-se um mundo poético próprio do soneto, por todos tentado, mas por Camões ampla, original e genialmente tratado. Conhecemos outras modali- dades, como o soneto laudatório e o soneto mystico. Umas e outras serão cultivadas depois, o soneto mystico de Antó- nio das Chagas, o soneto gongorico, o soneto bocageano, o soneto pinturesco e o soneto philosophico. Estranho a limi- tações de escolas, este pequenissimo género poético todas atravessará e de todas escolherá os elementos que melhor se adaptarem á sua estructura, e o seu êxito muito dependerá da conservação dessa mesma estructura incólume.

A novellistica de fora veio e para fora regressou, O triumpho da novella pastoral deve-se a um português, Jorge de Montemor, que por haver escripto em lingua hespanhola á historia da litteratura hespanhola pertence. De fora nos veio, porque a sua modalidade pastoril é de proveniência italiana e a sua modalidade cavalheiresca, embora se prove a existência duma redacção portuguesa do Amadis de Gaula, não é originalmente portuguesa. Para fora regressou porque foi em Hespanha com Cervantes, em França com Lesage e em Inglaterra com Fõe que novas e progressivas formas revestiu. Em Portugal o género continuou-se sob a forma pastoral, tecido de lugares communs da escola, sem accres- cimo de novidade ou interesse, e um dos seus continuadores immediatos foi Rodrigues Lobo, fatigante auctor da trilogia da Primavera.

A historiographia foi quantiosa, mas deixou-se impregnar em excesso de espirito épico, que lhe o tom grandíloquo e exaggerador, que nella observamos e lhe retira espirito

Historia da Litter atura Clássica :U0

critico; carece geralmente de espirito de proporção, de cri- tério de realidade e na maior parte dos casos é uma narra- tiva de factos miúdos, que se não apreciam, antes se avul- tam. Este defeito nota-se mais na parte colonial que na metropolitana. E todavia meritória por trazer á tela histórica mundos e povos até então mudos para os europeus e ainda pelo caracter pittoresco que ostenta. Esse caracter da nossa historiographia, grandemente colonial, affastou-a do typo humanístico de construcção histórica, creado pela Itália, como em seu próprio lugar referimos. Dessa tendência huma- nística poucos são os signaes em Portugal, a saber: o en- cargo commettido a Matheus Pisano e a D. Frei Justo Ba!- dino, bispo de Ceuta, ambos italianos, de traduzirem para latim as chronicas do reino; a obra do bispo de Silves, D. Jeronymo Osório, De rebus Emmanuelis gestis ; e a traducção parcial da obra do italiano Sabellico (1436- 1506) Enneades ou Rhapsodice historiarum, por D. Leonor de Noronha, (1488- x563)- O Tomamos como signal de tendência humanística o projecto da traducção para latim das chronicas porque esse trabalho não se limitaria a uma rigorosa versão, seria antes uma paraphrase, uma recomposição da obra, como era usual na epocha e como ainda Pisano chegou a fazer no seu Livt0 da Gueira de Cetita, em relação a Azurara. Em se affastar do typo humanístico da historiographia italiana e se crear um typo próprio, a chronica ultramarina, consistiu a originali- dade da nossa historiographia quinhentista. Enganar-se-hia porem de todo em todo quem a essa historiographia fosse pedir complicada philosophia histórica ou elevados dotes litterarios, reconstituições psychologicas , vivas descripções, pois geralmente o seu estylo é apathico e uniforme, se animando para louvar e encarecer. A fidelidade da narrativa vem a reduzir- se consideravelmente, porque o mvsticismo

( 1 ) V. Coronyca geral de Marco António Cocio Sabeliro des Jm. começo do mundo ate nosso tempo. . ., Coimbra, 2 vols., 1550 e 1553.

350 Historia da Litter atura Clássica

virá obliterar essa rudimentar forma de espirito critico, verda- deiramente mais probidade que outra coisa. A historiographia alcobacence e os historiadores mysticos introduzirão neste género uma credulidade dogmática, e Jacintho Freire de Andrade fará avultar o seu tom oratório.

Será uma excepção a Historia de los movimientos , separa- cion y guerra de Cataluíia, en tiempo de Felipe IV, que por ser escripta em lingua castelhana, como a Diana, á litteratura castelhana pertence. Será a Academia Real da Historia, creada por D. João V, que abrirá uma nova epocha de pro- bidade histórica. Todavia, cumpre registar, será sempre o século xvi, a epocha que estudámos, a parte mais florescente da nossa historiographia, e pelo seu assumpto o de mais largo, mais humano interesse.

Na épica, conseguiu o génio de Camões crear uma epo- pêa nacional, conciliando os moldes clássicos com o espirito do seu tempo e as condições históricas do seu paiz. Em que consistiu a originalidade do poema camoneano, em seu pró- prio lugar o dissemos. Agora perguntaremos se as frias narrativas rimadas, sem espirito épico, que se lhe seguiram, bastam, com a sua abundância quantiosa, para podermos considerar como vivificado o género épico na lingua portu- guesa e através dos séculos XVII e XVIII vivendo de vida própria, intensa e sempre nova? Evidentemente que o poema épico com Camões morreu, pois nunca mais outro génio creador, como o poeta dos Lusíadas, abeirou esse género e nunca mais a vida politica e social de Portugal offereceu tão abundante e inspiradora matéria épica como a que no século XVI Camões tomou, nem teve mais originalidade igual.

A prosa mystica estabeleceu-se e perdurou, até com variantes e progresso, principalmente no P.e Manuel Bernar- des, conceituoso e purista.

E aquelles géneros, que das especiaes condições da vida do tempo nasceram e que ao gosto do exotismo ou da origi- nalidade e aventura correspondiam, necessariamente morre-

Historia da Litteratura Clássica 351

ram logo quo essas condições caducaram e essa curiosidade satisfeita verificou a sua forçosa monotonia. por coinci- dência eram elles obras litterarias, não podiam por isso multiplicar e variar attractivos que não tinham em vista.

É esta litteratura suficientemente rica e variada para ser appellidada do século áureo, epocha de esplendor, como Irmos em tantos auctores, até nos de melhor critério, e como se ensina nas escolas publicas? Se assim fosse, ainda mais po- bres, insufficientes e escassos de originalidade deveriam ser os séculos anteriores e posteriores da nossa historia litteraria.

Se o quinhentismo, por nós descripto, clássico porque dentro dos moldes estheticos da antiguidade decorreu, clás- sico porque não é medieval e ainda não é romântico, se este quinhentismo português fosse também clássico por ser a phase mais rica de valores litterarios, mais significativa pela sua comprehensão humana, se elle fosse para nós o que foi para a França o século de Luiz xiv, o que foi para a Ingla- terra a epocha da rainha Anna e de Jorge 1, o que foi para a Allemanha a epocha de Herder, Goethe, Lessing e Schil- ler, o que foi para Itália a epocha de Ariosto, Machiaveli e Tasso certamente encontraríamos nelle outras mais altas virtudes estheticas que as que lhe apontámos. Elle não seria tão imitador, viveria mais de si mesmo, da concentração das suas próprias forças creadoras e teria capacidades de expan- são penetradora, de suggestiva irradiação; embora elabo- rasse elementos outrora recebidos de fora, reagiria podero- samente e seria uma epocha litteraria de capacidades determinantes e estimulantes, irradiaria mais do que pediria. E assim não succedeu.

Nessa hypothese, a nossa litteratura quinhentista teria produzido os melhores modelos da boa linguaguem portu- guesa, perfeita como meio de expressão e instrumento de belleza e a ella teríamos sempre de regressar para tonificar- mos a nossa lingua em pureza, belleza, elegância, poder expressivo por meio da lição desses clássicos.

352 Historia da LiHcratiira Clássica

Ora isso não succede: não são do século XVI os melho- res clássicos da lingua portuguesa, antes muito posteriores, como Vieira, Bernardes, Frei Luiz de Sousa e Lucena, e nús não cremos que entre Damião de Góes, João de Barros, Gil Vicente ou Moraes, d'um lado, e Vieira, Lucena, Bernardes e Frei Luiz de Sousa possa haver hesitação quando se quizér discriminar quaes são verdadeiramente os clássicos da lingua portuguesa. O quinhentismo não teve esses clássicos por- que a lingua não attingira o acumen da sua perfeição referimo-nos ao nosso ponto de vista esthetico e critico e não philoiogico, pois para o philologo uma lingua esthetica- mente perfeita é um monstro. A lingua dos quinhentistas ou está muito próxima da sua phase archaica, como em Gil Vicente, de Miranda, Bernardim Ribeiro e Christovam Falcão, ou não assimilou ainda a grande riqueza lexicogra- phica, syntaxica que os estudos humanísticos lhe proporcio- navam, nem achou ainda a vasta variedade de modos de dizer que a necessidade e a própria experiência da arte de escrever ensinariam, como vemos nos auctores restantes. Se ella tem em João de Barros certa gravidade e em Fernão Mendes Pinto certa simplicidade pittoresca, em todos carece de variedade, é monótona, move-se dentro de alguns poucos caixilhos que enquadram e apertam o discurso, comprimem a expressão. Essa monotonia em Damião de Góes desce até á pobreza, quasi até á uniformidade. A lingua dos nossos quinhentistas será um passo progressivo na historia da lin- gua portuguesa, está porém longe da sua forma perfeita.

Um pouco hirto, sem plasticidade, esse estylo estava ainda virgem de certas adaptações, como o estylo philoso- phico e scientifico, com suas complexas e bem definidas terminologias.

Uma condição só, cremos nós, se verifica, ao menos Darcialmente, no nosso quinhentismo daquellas três que usualmente ostentam as epochas de esplendor das varias litteraturas, e é ella o ter um forte cunho nacional. Ainda

Hwtona <fa IÀtteratum Clássica 3§8

que limitado pelo patriotismo, esse cunho nacional é evidente e caracteriza se principalmente por aquelles géneros e aquel- les themas provindos das especiaes condições de vida do paiz e que nós apontámos. Mas esse nacionalismo não teve energia para reduzir a dependência das litteraturas estrangeiras em que se encontrava a litteratura portuguesa.

Estas três condições independência ante as litteraturas estrangeiras, perfeição da língua, fiel reproducção do caracter nacional discriminou-as Brunetière nos períodos áureos das varias litteraturas da Europa, e da convergência das três extrahiu a noção de classicismo, não com referencia aos velhos modelos de Grécia e Roma. mas em sentido abstracto, de bom, de perfeito. Não as verificamos nós no nosso século xvi. Depois, se applicarmos ás creações deste século, pura- mente artísticas, theatro, poesia ou romance, um módulo de valores litterarios, se formos indagar que themas elaborou que ainda hoje fallern com emoção á nossa consciência de homens e de portugueses, mesmo feitas as necessárias acla- rações da relatividade do gosto, acharemos em quasi todos esses themas um caracter de frívola infantilidade, que não interessa, nem commove, nem edifica moralmente e que faz um contraste desagradável com o esforço desses gigantescos homens de acção, heróicos e temerários, que eram os guer- reiros, os navegadores e os missionários de Marrocos, da índia e do Brasil. São exemplos disso sobretudo o bucolismo, os ensaios de theatro clássico e os romances. Estes ainda têm a attenuante de servirem com sua enredada intriga a necessidade de distracção e devaneio por meio da frequência ideal dum falso mundo, tido como tal e por isso mesmo attrahente, o mundo da maravilha. Esses romances eram para os leitores do século xvi o que são hoje para as crean- ças as historias phantasticas. A belleza da vulgaridade quo- tidiana só souberam achá-la mais tarde outros auetores e outro publico,

Do que fica dito se conclue o infundado da doutrina

H. Vi L. O.ARR1CA, TOl. !.•

354 Historia da Litter atura Classie-a

daquelles escriptores modernos que, concordes em que é necessário promover uma reviviscencia das letras portuguesas, apontam como solução o que elles chamam o regresso á tradição portuguesa representada na sua idade de ouro, este abortado e exhausto século xvi. Sollicitados para exemplifi- carem a sua doutrina, grandes seriam as suas perplexidades. De facto, se puzérmos de lado prejuizos nacionalistas, feitos de exaltado patriotismo e de outros sentimentos, mas não inspirados por imparcial espirito critico, poderemos procurar com attenção, paciência e infinita boa- vontade que nunca lograremos saber qual a capacidade determinante da obra de de Miranda ou do theatro de Jorge Ferreira ou do buco- lismo abundante desse século. Será licito esperar uma epocha fecunda de valiosas obras dramáticas da leitura e imitação de Gil Vicente? O que ultimamente se tem presenceado responde pela negativa, pois da moda vicentina não vieram forças novas para os géneros dramáticos, entre nós em ex- trema decadência. Será licito esperar que a lição dos chro- nistas determine a restauração dos estudos históricos e o apparecimento dalgum moderno historiador, de larga com- pleição intellectual como para esse districto dos estudos se exige? Não, porque até uma das boas normas de quem modernamente pretenda fazer historia, será reduzir cada vez mais a leitura e o acatamento dos clássicos, por menos dignos de crédito. Terá fundamento legitimo a esperança de que da novellistica quinhentista possa provir uma nova forma ao moderno romance português? Não, porque desde então até ás formas ultimas do romance grande caminho se ha percor- rido, e insensato seria querer regressar a uma forma obsoleta ou delia querer extrahir o que os séculos ha muito extra- hiram e lentamente elaboraram.

Não, decididamente, não é aos quinhentistas que se hão-de ir buscar as forças credoras de novas bellezas littera- rias, mas á vida moderna, representada nos estados de consciência, que nas modernas litteraturas estrangeiras se

Historia da Lit ter atura Clássica 355

trahem, na vida triste vida! que em Portugal se vive. Ter-se-ha de inaugurar uma epocha de imitação, de ampla e insatisfeita neophilia, de vasto cosmopolitismo, haverá que se intensificar deixemo-nos de euphemismos , haverá que se iniciar o gosto dos estudos críticos e philosophicos, pois não ha litteratura superior sem espirito critico e sem espirito philosophico.

Sahindo do estricto nacionalismo, essa litteratura aberta a todas as influencias veria entrar em seu seio, trazidos por fortes rajadas de pensamento e de arte, os germens fecundos de novas formas e novas idéas. Desnacionalizada a principio e fecundada depois pelo pollen vigoroso que um vento de novidade de longe lhe trouxera, cobraria alentos e elaboraria de maneira própria esses germens, nacionalizá-los-hia. O nosso mal tem sido a obstinação em querermos ser portu- gueses, esquecendo-nos que essa qualidade tem de convergir com outras, a de europeus e a de homens. Ora, sem um fundo de permanentes valores humanos e sem a solidariedade ideal que liga todas as principaes litteraturas europêas, não é possível um progressivo movimento litterario.

Deste modo, a revolução a fazer seria de sentido inverso á que Herder levou a cabo no seu paíz, conduzindo a litteratura allemã da imitação estrangeira á originalidade nacional.

ADDIÇÕES E CORRECÇÕES

A 2.* EDIÇÃO)

Pags. 38-39 . . Os créditos litterarios de Fernão Lopes, cujo estude» desenvolvido estava fora do plano deste livro, têm subido grandemente nos últimos tempos, graças á monographia, que lhe dedicou o insigne lusitani- sante Mr. Aubrey F. G. Bell e que é a 2.a da serie portuguesa das Hispanic Notes o Monographs, que a Hispanic Society of America vem publicando ; e aos três volumes cia vuigarisaçâo das suas mais formosas paginas, que lhe destinou na sua Anlholo- ,í,ia Portuguesa o sr. Prof. Agostinho de Campos. Cabe a estes dois illustres campeões da nossa cultura litteraria a gloria do inicio dum movimento de sym- pathia e curiosidade pelo velho chronista, á luz dum gosto mais esclarecido e também mais liberto da concepção clássica dos valores litterarios. A esta corrente de opinião pretende oppôr-se .Mr. W. Bentley, que da comparação do texto da Chronica de D. João 1 com o dum manuscripto da Bibliotheca Nacional conclue ter sido Fernão Lopes somente um plagiário. Pag. 60, nota. . Além dos notáveis estudos vicentinos, apontados a pags. 176-180 da Critica Litteraria como Sciencia, a sr.* D. Carolina Michaclis de Vasconcellos fez recentemente, quando estava impresso o capi- tulo deste livro sobre Gil Vicente, uma importan- tíssima publicação, pelo Centro de Estudos Históri- cos de Madrid, Autos portugueses de Gil Vicente e da escola vicentina. É uma introducção á edição fac- similada de 19 autos a saber:

358 Addições e Correcções

Summario da Historia de Deus e Auto de Inês Pereira, de Gil Vicente ; Auto do Nascimento e Auto de Santa Caterina, de Balthazar Dias; Auto de Santiago e Auto de Santo António, de Affonso Alvares; Auto do Dia de Juízo, anonymo ; Auto das Re gat eiras, de António Ribeiro Chiado ; Auto dos Dous Ladrões, de António de Lixbôa ; Auto de Florença, de Joam de Escovar; Auto da Bella Menina, de Sebastião Pires ; Auto do Duque de Florença, anonymo ; Farsa penada, anonyma ; Auto de Vicente Anes Joeira, ano- nymo; Auto de D. Fernando, anonymo; Auto dos Capellos, anonymo; Auto dos enanos, anonymo; Auto de D. André, anonymo; e Atuo de D. Luiz e dos Turcos, anonymo. A gloriosa auctora recapitula as conclusões, a que che- gou nas Notas Vicentinas, precedentemente publi- cadas, descreve externamente os opúsculos avulsos que bibliographicamente formam os autos, cuja existência lhe foi revelada por D. Ramon Menén- dez Pidal, e apresenta noticias sobre os auctores e dados novos acerca da censura inquisitorial. Como se vê, a publicação que este trabalho prefacia, vem enriquecer de espécies desconhecidas e noticias inéditas a modesta historia do theatro português do do século xvi.

Pag. 69, lin. io.a Em vez de 1532 leia-se 1535.

Pag. 69, lin. i2.a Em vez de 1470 leia-se 1535.

Pags. 257-271. . em 1920 lemos as conferencias de Joaquim Nabuco sobre Camões e os Lusíadas, proferidas nos Esta- dos-Unidos, das quaes se publicou modernamente uma traducção em lingua portuguesa, devida ao sr. Arthur Bomilcar. Entre a nossa apreciação do lyrismo camoneano e a interpretação delle pelo insigne orador brasileiro ha pontos de coincidência, que, sem aíTectarem a nossa inteira autonomia espiritual, muito nos lisonjeiam.

Pags. 339-355- A conclusão deste livro foi redigida á luz dum con- ceito esthetico inteiramente clássico, com o qual fomos aferir os valores litterarios do nosso quinhen- tismo designação menos compromettedora que a de classicismo , porque apenas tem sentido chrono- logico sem prejuízo esthetico e compará-lo com

Addições e Correcções 359

a avoluçâo litteraria de outros povos, de condições históricas e moraes bem diversas das da sociedade portuguesa. A bellezae a originalidade da litteratura nacional do século xvi reside precisamente, exce- pção feita de Camões, nas obras e nos géneros que mais se apartam do typo neo-classico do | umanis- mo : theatro vicentino, historiographia colonial e narrativas de viagens. Taes obras e taes géneros affastar-se-hão dos cânones helleno-romanos, mas são os que mais fielmente traduzem a individuali- dade nacional, no momento supremo da sua exis- tência histórica. Assim fica suggerído o caminho a futuros impugna- dores.

ÍNDICE

N»TA TRÉTIA 5

Ihtbcducção : A litteratura medieval. O humanismo. O re- nascimento 7*

Capitulo 1 Gil Vicente 53

i.a phase (1502-1508) 59

2.a » (1508-1516) 62

3.a » (1516-1536; 70

Capitulo II de Miranda :

A vida 99

O homem 105

O poeta 107

O comediographo 119

Capitulo III 0 theatro c/assico :

A A tragedia 129

B Comedia 144

Capitulo IV 0 Lyrismo 153

Bernardim Ribeiro 154

Christovam Falcão 157

António Ferreira 166

Pedro de Andrade Caminha 173

Diogo Bernardes 176

Fr. Agostinho da Cruz 178

Capitulo V As novellas 183

João de Barros 187

Jorge de Montemor 190

Francisco de Moraes 191

Bernardim Ribeiro 204

Jorge Ferreira 211

362 Índice

PAG.

Capitulo VI A historiographia 215

João de Barros 220

Damião de Góes , 230

Braz de Albuquerque 243

Fernão Lopes de Castanheda , 245

Gaspar Corrêa 247

Capitulo VII Camões:

Ávida ^ . . . 253

O lyrico. 257

O comediographo 271

O épico 275

Capitulo VIII A prosa mystica ........ 293

Samuel Usque ........ 297

Frei Heitor Pinto 304

Frei Amador Arraes. ...... 312

Frei Thomé de Jesus " . . 315

Capitulo IX Géneros menores :

A Escriptos moralistas 322

B Roteiro de viagens 329

C Relações de naufrágios ..... 333

D Epistolographia 336

Conclusão 009

Addições e corkkcções 357

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