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Full text of "Historia da litteratura classica"

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Historia  da  Litteratura  Clássica 


TYP.  DA  EWFfi.  L1TTER.  £  7VPCGRAPHICA 
(§  OíficiDa*  movidas  a  electricidade  jf) 
R.  DA  BQAV:STA  32!  «  PORTO  »  MCtyXXH 


DO  MESMO  AUCTOR: 


0  Espirito  Histórico,  3.a  edição. 

Historia  da  Critica  Litteraria  em  Portugal,  2.»  edição. 

A  Critica  Litteraria  como  sciencia,  3.a  edição. 

Historia  da  Litteratara  Romântica,  (esgot.) 

Historia  da  Litter atura  Realista,  (esgot.) 

Historia  da  Litteratura  Clássica,  2  vols.  (o  1.°  em  2.*  edição). 

Características  da  Litteratura  Portuguesa,  2."  edição. 

Estudos  de  Litteratura,  3  vols. 

Portugal  nas  guerras  europêas. 

Como  dirigi  a  Bibliotheca  Nacional. 

Revista  de  Historia  (direcção  e  coilaboração),  10  vols. 


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BiBLIOTHECA  DE  ESTUDOS  HISTÓRICOS  NACÍONAES-VÍ 


F1DELINO   DE   FIGUEIREDO 


Historia  da  Litteratura  Clássica 


1.»  EPOCHA:  1502-1530. 


2.'    EDIÇÃO,    REVISTA 


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5  I-  I--3LM 


LISBOA 
LIVRARIA  CLÁSSICA  EDITORA 

DK 

A.  M.  TEIXEIRA  &  C.a  (Filhos) 

17.    PRAÇA    DOS    RESTAURADORES,    1T 

1991 


Apesar  dt  noutro  volume  termos  exposto  já  a  nosso,  concepção 
da  critica  litteraria,  cremos  que  será  de  conveniência  accentuar,  á 
frente  deste  livro,  que  neste  novo  ensaio  de  critica  não  pretendemos 
fazer  investigações  novas  sobre  as  biographias  dos  andores  ou  sobre 
a  bibliographia  de  suas  obras,  nem  indagações  de  historia  politica 
ou  social,  e  menos  ainda  de  philologia.  Foi  nosso  propósito  fazer 
exclusivamente  uma  analyse  esthetica  das  obras,  interpretá-las  cri- 
ticamente, quanto  possível  explicar  a  sua  contextura  litteraria  e 
avaliá-las  como  obras  de  arte,  qzie  a  exprimir  belleza  e  emoção 
visaram  sempre,  segundo  deliberado  intuito  de  seus  andores.  Da 
biographia,  da  bibliographia  e  da  histotia  nos  soccorremos  quando 
ellas  podiam  de  algum  modo  contribuir  para  o  ?iosso  escopo,  sem 
deixar  de  ter  bem  presente  qual  este  fosse. 

Problemas,  que  foram  longo  tempo  conhovertidos,  mas  que  á 
data  da  redacção  deste  volume  se  achavam  de  vez  solucionados, 
apenas  os  relembrámos  para  prestar  homenagem  aos  C7"uditos  que 
na  sua  solução  collaboraram  e  para  recapitular  as  phases  das  co?i- 
troversias. 

O  rápido  bosquejo  sobre  a  litteraiura  medieval,  o  humanismo 
e  o  renascimento,  que  conslitue  a  matéria  da  introducção,  ê  fundado 
sobre  trabalhos  de  insignes  medieva  listas ;  organizámo-lo  para  oppôt 
a  esthetica  litteraria  medieva  á  neo- clássica,  principal  assumpto  do 
livro. 

Ao  publico  curioso  de  historia  litteraria  desejámos  apresentar 


uma  pessoal  interpretação  do  quinhentismo português.  Com  os  dados 
que  já  hoje  a  erudição  proporciona,  argamassados  pelas  nossas 
idéas  geraes  e  pelos  nossos  princípios  críticos,  tentámos  erguer  uma 
construcção ,  que  pudéssemos  considetar  como  não  alheia,  onde  ao 
menos  nos  fosse  legitimo  reconhecer  a  marca  de  alguns  elementos 
pessoaes.  Diligenciámos  converter  os  milito s  factos  dispersos,  a  vasta 
matéria  inorgânica,  que  já  se  ha  produzido  sobte  a  nossa  littera- 
tura  do  século  XVI,  em  sysiema  dejuizos.  Condensando  em  synthese, 
abslrahi?ido,  generalizando  e  julgando  é  q?ce  o  espirito  passa  do 
dado  sensorial  á  idéa  ;  porque  não  experimntar  fazer  trabalho 
semelhante  em  critica  liiterariaf  Não  faz  mal  a  este  ramo  de  estu- 
dos um  pouco  de  espirito  philosophico, 

E  se  a  nossa  tentativa  fôr  insuficiente,  não  provará  isso  con- 
tra o  critério,  mas  contra  o  andor. 


Lisboa,  jj  de  Março  de  i<jrj. 


F  F. 


Para  a  nova  edição  revimos  o  texto,  achializando  as  suas  ba- 
ses de  erudição  perante  os  progressos  desta  e  os  seus  conceitos  críti- 
cos perante  o  nosso  espirito,  que  se  não  immobilizou  em  idéas  feitas. 

Lisboa,  iá  de  Dezembro  de  1020. 

F.  F. 


1NTRODUCÇÃO 


A   LITTER ATURA   MEDIEVAL  -  O    HUMA1 
O   RENASCIMENTO. 


Gil  Vicente  e  Sá  de  Miranda,  os  iniciadores  do  nosso 
quh:hentismc,  não  foram  os  pioneiros  da  cultura  litteraria 
deste  paiz,  o  qual  no  tempo  delles  tinha  já  uma  vigorosa 
individualidade  histórica  e  occupava  no  concerto  internacio- 
nal um  lugar  que  não  era  secundário;  antes  dessa  iniciação 
no  gosto  clássico,  durante  os  quatro  séculos  incompletos  da 
vida  medieva  do  paiz,  havia-se  já  formado  uma  tradição 
litteraria,  que  levou  Portugal  a  collaborar  com  brilho  nos 
principaes  géneros  da  litteratura  coetânea.  Desde  que  Paio 
Soares  de  Taveiros,  enamorado  de  Maria  Paes  Ribeiro, 
compôs  a  sua  pequena  poesia  amorosa,  em  1189,  até  que 
Gil  Vicente,  em  1502,  lançasse  a  pedra  inicial  da  grande 
fabrica  do  seu  theatro,  o  povo  português,  apesar  de  occu- 
pado  primeiramente  na  constituição  do  seu  território  e  sua 
organização  interna,  e  logo  depois  nas  disputas  com  Leão  e 
Castella,  na  lucta  intestina  das  classes  e  nas  empresas  ultra- 
marinas, pôde  encontrar  algumas  horas  de  lazer  para  se  dar 
á  elaboração  artística.  Em  todos  os  tempos,  por  mais  com- 
batidos de  objectivos  cuidados  que  andem  os  ânimos,  por 
mais  que  a  azáfama  interesseira  do  trato  commercial,  o  mal- 


8  Historia  da  Litteratura  Clássica 

estar  económico  ou  os  sobresaltos  da  guerra  absorvam  os 
espiritou,  sempre  dentre  estes  alguns  haverá  que  do  theor 
da  vida  preoccupada,  que  vivem,  saibam  extrahir  matéria 
de  belleza  e  traduzi-la  com  os  meios  de  expressão  de  que 
possam  dispor.  Quaes  os  rincões  da  vida  medieval  escolhi- 
dos para  elaboração  litteraria  e  que  expressão  de  belleza  os 
revestiu  —  é  o  que  vamos  rapidamente  expor  por  meio  dum 
conspecto  genérico  da  litteratura  anterior  a  1502. 

Occupar-nos-hemos  da  poesia  em  primeiro  lugar.  E  desce 
já  declaramos  que,  de  harmonia  com  o  critério  por  nós  ado- 
ptado, deixamos  de  lado,  não  por  desinteressante  ou  desva- 
liosa,  mas  por  estranha  ao  nosso  propósito,  a  litteratura 
popular,  anonyma,  que  oralmente  circulou  e  se  differenciou, 
litteratura  occasional  que  não  apresenta  cunho  de  indivi- 
dualidade. Só  á  litteratura  culta,  pessoal,  assignada,  delibe- 
radamente elaborada  com  intenção  artística,  que  seu  auctor 
fica  testemunhando  e  gozando,  faremos  referencia. 

Pelos  monumentos,  que  da  nossa  poesia  medieval  hoje 
nos  restam,  nós  não  poderemos  com  rigor  medir  a  intensi- 
dade e  viveza  da  tradição  poética,  que  chegou  á  corte  de 
D.  João  11.  Todavia,  os  muitos  nomes  de  poetas,  que  enchem 
os  quatro  cancioneiros  conhecidos,  os  do  Vaticano,  da 
Ajuda,  de  Colocci-Brancuti  e  de  Garcia  de  Rezende,  per- 
mittem  presumir  que  o  cultivo  da  poesia  de  gosto  proven- 
çal foi  intenso  e  que  nas  mais  altas  espheras  elle  encontrou 
favor,  pois  ao  lado  de  simples  jograes  vemos  os  reis  e  os 
nobres  a  poetar  suas  canções.  O  accesso  de  D.  Affonso  11  ao 
throno,  que  de  Bolonha  viera  para  succeder  a  seu  irmão 
desthronado,  determinou  um  recrudescimento  no  fervor  poé- 
tico, que  por  influencia  pessoal  do  seu  su.ccessor  se  prorcgou 
ao  longo  do  século  xm. 

Os  três  primeiros  cancioneiros  contêm  exclusivamente  a 
matéria  poética  trobadoresca,  metrificada  de  acccrdo  com  a 
gaia  scicncia.  Essa  matéria  poética  está  longe  de  ser  a  expres- 
são esthetica  duma  superior  belleza.  Com  a  obliteração  da 


Historia  da  Lilterafura  Clássica  9 

civilização  romana,  também  se  quebrara  a  corrente  da  sua 
cultura,  de  modo  que,  como  as  sociedades  medievas  longo 
tempo  se  agitaram  perplexas  em  procura  dum  equilíbrio 
estável  de  intrínseca  composição  —  primeiramente  as  mcnar- 
chias  barbaras,  logo  o  império  de  Carlos  Magno,  depois 
o  communalismo  e  o  feudalismo  até  ás  nacionalidades  mo- 
dernas—  assim  também  para  constituir  a  sua  litteratura 
tiveram  de  ensaiar  tentativas  varias.  Dessas,  a  que  reper- 
cussão maior  teve  em  Portugal  foi  a  do  provençalismo. 
Não  havia  uma  opulenta  herança  a  tomar,  que  abrigasse  um 
conteúdo  considerável  de  themas  litterarios,  de  formas  e 
modelos,  toda  uma  esthetica  theorica  e  pratica,  como  o 
século  de  Augusto  herdara  dos  precedentes  e  da  Grécia;  era 
uma  tradição  que  principiava,  que  a  si  mesma  se  constituía. 
Língua,  matéria  a  elaborar,  gosto  e  publico,  tudo  havia  que 
crear.  E  essa  creação  fez-se  com  adoptar  uma  forma  poética 
popular,  na  forma  e  no  fundo  rudimentar,  e  com  insuíiar-ihe 
alentos  vigorosos,  que  a  dignificassem  e  divulgassem.  Dessa 
origem  popular  sempre  se  lembrou  o  lyrismo  provençal,  pois 
foi  sempre  rudimentar  na  forma  e  no  fundo.  Rudimentar  na 
forma,  porque  a  sua  lingua  é  ainda  indecisa,  mal  caracteri- 
zada na  differenciação  em  que  se  ia  dispersando  o  latim 
vulgar,  e  não  possue  riqueza  de  vocabulário,  variedade  de 
construcções  syntaxicas,  nem  regularidade,  nem  harmonia 
que  proporcionassem  aos  poetas  meios  eloquentes  e  vivos  de 
expressão.  Rudimentar  no  fundo,  porque  vulgares  e  desinte- 
ressantes são  os  sentimentos,  os  themas  e  conceitos  que 
nessa  forma  se  expressam.  O  sentimento  do  amor,  a  sau- 
dade, o  desejo  de  ir  foliar  com  o  namorado,  a  ausência 
ansiosa,  o  elogio  da  formosura,  os  soffrimentos  dum  amor 
contrariado  e  a  dor  de  amar  quem  nos  aborrece  —  sentimen- 
tos eternos  são  que  nas  almas  mais  rudes  e  nas  mais 
selectas,  em  todos  os  tempos,  oceuparam  lugar  exigente. 
E,  porém,  necessário  que  duas  condições  se  verifiquem  para 
que   tão   persistentes  sentimentos  se  tornem  matéria  de  arte 


10  Historia  da  Litteratura  Clássica 

litteraria,  condigna  matéria  de  arte  litteraria:  é  a  primeira 
que  a  "alma,  que  os  experimenta,  tenha  individualidade 
typica,  característica,  que  a  causas  tão  communs  opponha 
reacções  pessoaes,  com  evidente  cunho  seu,  que  ame,  soffra, 
se  encolerize  e  sinta  saudades  de  modo  pessoal  e  com  con- 
sequências inteiramente  suas  pesscaes,  a  tudo  imprimindo  o 
cunho  da  sua  alma;  é  a  segunda  condição  que  essa  alma, 
por  si  ou  por  outrem,  saiba  dar  expressão  de  relevo  e  de 
belleza  a  essa  individual  maneira  de  sentir.  Certo  é  que 
vidas  curiosamente  combatidas  ou  muito  aventurosamente 
agitadas  decorreram,  sem  que  as  almas  que  taes  vidas  vi- 
veram fossem  almas  de  eleição,  antes  sendo  muito  com- 
muns; mas  então  o  interesse,  que  essas  biographias  ou 
esses  simples  casos  offerecem,  já  não  é  um  interesse  lyrico 
ou  psychologico,  é  um  interesse  romanesco  ou  maravi- 
lhoso—  e  este  não  faltou  na  idade  media  turbulenta  e  incerta. 
O  que  faltou  foi  a  individualidade:  individualidade  moral 
no  modo  de  viver  a  vida,  de  a  sentir,  reflectir  e  interpretar, 
e  individualidade  artística  para  encontrar  para  a  primeira  a 
expressão  litteraria  própria.  Não  obstante,  em  Portugal,  como 
por  toda  a  parte  nesse  tempo,  exuberantemente  campeou  o 
individualismo  —  que  não  é  individualidade,  differenciação 
das  almas,  mas  egoismo  arrogante,  audácia  volitiva,  prepo- 
tência desordenada,  ainda  que  em  todas  de  igual  modo  se 
revelem  esse  egoismo,  essa  audácia  e  essa  prepotência.  Não 
faltaram  exemplos  do  individualismo,  reis  turbulentos  e  ca- 
prichosos, infantes  ciumentos  que  contra  seu  pae  se  rebella- 
vam,  amores  constantes,  amizades  fieis  até  ao  heroísmo.  Taes 
exemplos  são  porém  ou  a  exaltação  de  sentimentos  vulgares 
ou  a  demonstração  heróica  do  conceito  de  honra  do  seu  tempo ; 
estão  inteiramente  de  accordo  com  o  seu  tempo,  com  o  modo 
de  sentir  e  opinar  do  seu  tempo.  Mesmo  assim  seriam  excel- 
lente  matéria  litteraria;  mas  só  a  ulterior  litteratura,  do  clas- 
sicismo e  do  romantismo,  aproveitaria  esses  themas,  quando 
o  heróico  entrou  no  gosto  culto.  Os  poetas  do  século  XIII, 


Historia  da  Litteratura  Clássica  11 

xiv  e  xv — principalmente  dos  dois  primeiros  —  confinaram- 
se  estrictamente  na  gaia  sciencia,  compondo  ingénuos  canta- 
res de  amor  e  cantares  de  amigo;  ingénuos  artisticamente  por 
demonstrarem  uma  concepção  de  arte  infantil  ou  popular, 
não  porque  acatem  supersticiosamente  as  conveniências,  que 
pelo  contrario  com  extrema  indifferença  maltratam.  Recita- 
das na  corte  e  nos  bailes  populares,  pelos  reis,  por  nobres 
cortezãos  e  por  simples  jograes,  as  albas,  as  serranilhas,  as 
pastoreias,  as  bailadas  ou  bailias,  as  barcarolas  e  as  romarias 
contêm  e  exprimem  os  mesmos  sentimentos  e  empregam  a 
mesma  forma,  sentimentos  e  formas  nuns  e  noutros  rudi- 
mentares —  o  que  confirma  o  nosso  asserto  de  carência  de 
individualidade.  Distinguem-se  estas  espécies  não  pelo  seu 
conteúdo  marítimo,  pastoril  ou  religioso,  mas  apenas  por 
summarias  e  vagas  referencias  á  madrugada  que  rompe,  ás 
ondas  do  mar,  a  alguma  romaria  de  grande  devoção,  adorno 
artificioso  que  acompanha  a  affirmação  de  factos  muito  com- 
muns,  repetidos  só  com  variantes  na  expressão  métrica.  Como 
se  enganaria  o  critico  que  ao  folclore  actual,  que  corre  oral- 
mente, fosse  buscar  assumpto  para  investigações  de  psycho- 
logia  do  caracter  e  para  apreciações  estheticas  —  assim  se 
illude  o  que  for  abeirar  a  obra  poética  de  D.  Diniz,  Ayres 
Corpancho,  de  Martim  Codax,  Pêro  Dardia  ou  Pêro  Garcia 
para  estudos  de  psychologia,  de  esthetica  e  alta  critica.  Prin- 
cipalmente elementos  para  a  historia  da  métrica  e  da  lingua 
contem  a  producção  desses  poetas,  dominados  pelo  gosto 
provençal  e  ligeiramente  tocados  da  influencia  do  gosto  épico 
da  Bretanha,  que  sem  fim  repetiram  os  mesmos  themas  e 
formas. 

A  satyra  poética  diffundiu-se  muito,  satyra  pungente 
pela  intensidade  e  grosseira  pelo  seu  conteúdo ;  ella  consti- 
tuía uma  prerogativa  dos  poetas,  que  pelas  suas  sirventêses 
e  tenções  mostravam  o  reverso  das  almas  enamoradas  das 
cantigas  de  amigo  e  davam  curso  á  malevolencia  e  ao  des- 
contentamento  do  seu  tempo,  desempenhando  desse  modo 


12  Historia  da  Litteraturu  Clássica 

funcção  semelhante  á  dos  soberanos  maldizentes,  que 
eram  os  bobos.  Esse  legado  medieval  ha-de  tomá-lo  Gil 
Vicente. 

Em  matéria  de  poesia  épica,  não  fallando  do  curso  oral 
das  canções  de  gesta  popularizadas,  restam-nos  um  fragmento 
e  uma  recordação:  o  poema  em  latim  de  Soeiro  Gosuino,  do 
século  xiv,  sobre  a  tomada  de  Alcácer  do  Sal,  acerca  de 
cujo  auctor  ainda  se  não  dissiparam  as  duvidas  respeitantes 
á  sua  nacionalidade  (');  e  a  lembrança  dum  poema  sobre  a 
batalha  do  Salado,  de  Affonso  Giraldes,  cuja  existência  foi 
referida  por  Frei  António  Brandão  (2)  e  que  parece  haver 
sido  traduzido  para  castelhano. 

Passando  a  occupar-nos  do  Cancioneiro  geral,  colligido 
por  Garcia  de  Rezende,  já  lhe  não  poderemos  attribuir  cara- 
cterização análoga  á  que  acima  proposémos  para  os  cancio- 
neiros provençaes,  pois  o  seu  conteúdo  é  muito  mais  com- 
plexo e  trahe  influencias  mais  variadas,  correntes  estheticas 
mais  dispares.  Mais  largo  é  o  fôlego  poético  dos  auctores, 
que  se  affoitam  a  composições  bem  mais  extensas,  é  mais 
comedida  a  sua  satyra,  já  accusa  pruridos  de  classicismo 
pelas,  suas  allusões  mythologicas  e  a  Ovídio;  o  elemento 
dantesco  da  descida  ao  inferno  também  no  Cancioneiro  geral 
se  revela  e  avulta  o  elemento  épico  com  elaboração  de  mo- 
tivos da  historia  nacional.  A  grossaria  sincera  e  franca  do 
provençalismo  succede  a  lisonja  cortesanesca  e  galante  da 
vida  palaciana,  artificiosamente  dissimulada.  São,  porem, 
muito  raros  os  poetas  de  elevado  mérito  dessa  galeria  nume- 
rosa, apesar  de  nella  já  figurarem  nomes  que  vieram  a  illus- 
trar-se   na  epocha  litteraria  seguinte,  como  Sá  de  Miranda, 


(';  V.  Portuçaliae  Momtmenta  Histórica,  volume  I,  fascículo  I, 
Pag.  101-104. 

('-)  Também  viram  esse  poema  Fr.  Francisco  Brandão  e  o  P.e 
Francisco  José  Freire. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  13 

Bernardim  Ribeiro  e  Gil  Vicente.  (')  O  Cancioneiro  geral  é  um 
documento  de  subida  valia  para  a  historia,  já  da  litteratura 
portuguesa,  já  da  sociedade  palaciana  de  Portugal ;  está  po- 
rem muito  longe  de  ser  uma  collectanea  de  superiores  obras 
de  arte  (*).  Têm  merecido  especial  attenção,  dentre  as  suas 
composições,  o  pleito  intitulado  Cuidar  &  Suspirar,  em  que 
muitos  fidalgos  poetas  intervieram ;  os  primeiros  ensaios  poé- 
ticos de  Gil  Vicente,  Sá  de  Miranda  e  Bernardim  Ribeiro; 
as  trovas  de  Garcia  de  Rezende  á  morte  de  Ignez  de  Castro; 
a  formosa  Cantiga  partindose  de  João  Rodrigues  Castello 
Branco;  as  traducções  de  Sabino  e  Ovidio  por  João  Rodri- 
gues de  Lucena;  o  inferno  dos  namorados  de  Duarte  de 
Brito,  imitação  dantesca;  as  composições  epo-historicas  de 
Luiz  Henriques  (s);  e  as  coplas  do  infante  D.  Pedro,  (1420- 
1466)  condestavel  de  Portugal,  filho  do  infeliz  vencido  de 
Alfarrobeira  e  elle  mesmo  vencido  por  D.  João  11  de  Aragão. 
D.  Pedro  teve  relações  litterarias  com  Juan  de  Mena,  o  poeta 
castelhano  mais  estimado  no  seu  tempo ;  a  elle  dirigiu  versos 
de  louvor,  a  que  o  poeta  respondeu,  e  sob  a  sua  influencia 
escreveu   o   poemeto  moralista  De  contempto  dei  mundo  e  a 


(')  V.  na  edição  Kaussler,  Stuttgart,  1852,  3  vols.,  pag.  316, 
a.°  vol.,  pag.  389  e  539,  3.0  vol.  O  sr.  Braamcamp  Freire  data  a  colla- 
boração  de  Gil  Vicente  de  1509. 

(â)  Como  fonte  da  documentação  histórica  o  tem  considerado  pre- 
dominantemente o  sr.  A.  Braamcamp  Freire.  Recommendamos  princi- 
palmente os  seus  estudos  sobre  o  Cancioneiro  geral  e  sobre  Garcia  de 
Rezende  publicados  no  vol.  Critica  e  Historia,  Lisboa,  1910;  e  o  seu. 
indice  de  nomes  próprios  organizado  de  collaboração  com  o  sr.  Júlio  de 
Castilho,  Índice  do  Cancioneiro  de  Resende  c  das  Obras  de  Gil  Vicente, 
Lisboa,  1900.  V.  também  A  Corte  em  Setúbal  e  os  Porquês  anonymos, 
no  vol.  Gente  dalgo,  sr.  Conde  de  Sabugosa,  Lisboa,  1915,  pag.  169-195. 

(3)  Sobre  uma  composição  erótica  deste  poeta,  veja-se  o  artigo  do 
sr.  F.  M.  Esteves  Pereira,  Trovas  de  Luiz  Ànrriquez  a  l/iia  moça,  publi- 
cado no  Boletim  da  Segunda  Classe  da  Acad,  das  Sc.  de  Lisboa,  Lisboa, 
1914,  vol.  VII. 


11  Historia  da  Litieratura  Clássica 

Sátira  da  felice  c  infelice  vida,  (*)  Erudição  vasta,  elevação  de 
pensamentos,  a  nobre  e  serena  melancholia  da  sua  inspiração 
poética  e  o  perfeito  conhecimento  da  lingua  castelhana  deram 
a  este  escriptor  português  um  distincto  lugar  na  historia  iit- 
teraria  hespanhola  e  fizeram-no  um  dos  espíritos  mais  curio- 
sos desse  período  de  transição.  A  este  illustre  filho  do  aus- 
tero regente  do  reino  dirigiu  o  Marquês  de  Santilhana  uma 
celebre  epistola  sobre  matéria  litteraria.  (2) 


No  género  romance,  a  nossa  litteratura  medieval  iegou- 
nos  uma  discutível  tradição,  a  noticia  duma  versão  portu- 
guesa do  Amadis  de  Gaula,  cuja  forma  castelhana  de  Garcia 
Rodriguez  de  Montai vo,  apparecida  em  1508,  se  tornou  ini- 
cio duma  corrente   de   favor  enthusiastico   que   produziu   o 


(*)  Os  principaes  estudos  sobre  o  condestavel  D.  Pedro  são  :  }.  M. 
Octávio  Toledo,  El  Duque  de  Coimbra  y  su  hijo  El  Condestabre  D.  Pedro, 
na  Revista  Occidental,  Lisboa,  1875,  pags.  295-313;  J.  Coroleu  é  Inglada, 
El  Condestable  de  Portugal,  rey  intruso  de  Cataltnla,  na  Revista  de  Ge- 
rona,  Gerona,  1878,  vol.  2.0. ;  A.  Balaguer  y  Merino,  Don  Pedro,  el  Con- 
destable de  Portugal,  considerado  como  escritor,  erudito  y  anticuario 
(1420-1466)  —  Estúdio  histárico-bibliográfico,  Barcelona,  1881,  69  pags., 
separata  do  vol.  2.0  da  Revista  de  ciências  históricas;  D.  Carolina  Mi- 
chaèlis  de  Vasconcellos,  Uma  obra  inédita  do  Condestavel  D.  Pedro  de 
Portugal,  em  Homenaje  à  Mcncndez  y  Pelayo,  vol.  i.°,  Madrid,  1899. 

(2)  O  texto  desta  carta  foi  publicado  por  auetor  anonymo  no  vol  11 
dos  Annaes  de  Sciencias  e  Letras  da  Academia  Real  das  Sciencias  de 
Lisboa,  Lisboa  1858,  pags.  284-305,  sob  o  titulo  de  Carta  do  Marques  de 
Santilhana,  Don  Inigo  Lopes  de  Mendoza,  a  D.  Pedro,  Condestavel  de 
Portugal.  O  texto  é  precedido  de  uma  introducção  explicativa  e  de 
alguns  dados  biographicos  de  Santilhana. 


Historia  da  Litiefatura  Clássica  15 

cyclo  dos  Amadises  (l),  tão  abundante  e  persistente  que  só 
no  cyclo  dos  Palmeirins  teve  um  rival.  Se  bem  que  a  ori- 
gem desta  novella  de  cavallaria  seja  ainda  hoje  um  myste- 
rio,  que  as  mais  pacientes  e  methodicas  investigações  ainda 
não  conseguiram  devassar,  sobre  a  instável  base  de  areia  do 
que  chamámos  uma  discutível  tradição,  construiu  um  auctor  (3) 
a  sua  certeza  de  ser  essa  obra  originariamente  portuguesa 
e  redigida  successivamente  por  toda  uma  família,  João  de 
Lobeira,  Vasco  de  Lobeira  e  Pedro  de  Lobeira.  (*)  Tal  hypo- 
these  é  dum  subtil  e  imaginoso  lavor,  mas  carece  de  funda- 
ções que  a  sustentem  contra  o  mais  pequeno  embate  da  ar- 
gumentação. 

Vejamos,  muito  summariamente,  quaes  as  bases  de  cré- 
dito, em  que  se  funda  a  tradição  da  auctoria  portuguesa. 
Essa  auctoria  só  pretende  attingir  os  três  primeiros  livros, 
porque  o  quarto  está  hoje  geralmente  assente  que  foi  addi- 
tado  por  Montalvo,  que  é  talvez  seu  redactor  original  (4). . 


(*)  Do  cyclo  dos  Amadises  se  occupou  o  sr.  Henry  Thomas  no  tra- 
balho intitulado  The  Romance  of  Amadis  of  Gani,  cuja  primeira  edição 
se  publicou  em  Londres,  1912,  e  a  segunda  em  Lisboa,  a  pag.  1-33  do 
5.0  vol.  ca  Revista  de  Historia,  1916. 

(2)  E  este  auctor  o  sr.  Theophilo  Braga,  que  varias  vezes  se  tem 
occupado  do  Amadis  de  Gaula.  O  trabalho  que  representa  mais  comple- 
tamente a  sua  opinião  é  o  vol.  intitulado  Recapitulação  da  Historia  da 
Literatura  —  1.  Edadc  Média,  Porto,  1909,  pag.  299-346. 

(3)  Sobre  a  familia  Lobeira,  que  assistiu  em  Elvas,  colleccionou 
alguns  documentos  o  fallecido  erudito  elvense,  António  Thomaz  Pire3. 
V.  Vasco  de  Lobeira,  Elvas,  1905,  63  pags.  A  peça  mais  importante  é 
o  testamento  dum  João  de  Lobeira,  feito  em  1386. 

(4)  V.  Menéndez  y  Pelayo,  Ori genes  de  la  novela,  Tomo  1,  Ma- 
drid, 1905,  pag.  ccxMii. 

Uma  das  causas  do  interesse  pelas  origens  do  Amadis  de  Ga/da  foi 
a  convicção,  em  que  por  muito  tempo  se  esteve,  de  ser  essa  obra  a  no- 
vella de  cavallaria  mais  antiga.  Tal  presumpção  não  é  exacta,  pois  é 
conhecida  outra  novella,  El  Caballero  Ciíar,  da  primeira  metade  do 
sec.°  xiv. 


16  Historia  da  Litter  atura  Clássica 

i.°  Argumento  — É  este  mais  antigo  testemunho  também 
um  dos  mais  poderosos.  No  Cancioneiro  Colocci'Brancuii,  sob 
os  n.'4  230  e  232,  figuram  duas  peças  poéticas  attribuidas  a 
João  de  Lobeira,  (')  poeta  da  corte  de  D.  Diniz,  da  segunda 
metade  do  século  xm,  nas  quaes  se  usa  o  estribilho  empre- 
gado na  canção  de  Oriana,  contida  na  versão  castelhana  do 
Am  adis  de  Gania,  publicada  em  1508.  Esse  estribilho  é  o  se- 
guinte : 

Le  [o]  noreta  sin  roseta, 
bella  sobre  toda  fror, 
sin  Roseta  nome  metta 
en  tal  coi  [ta]  uosso  amor. 

2.0  —  O  segundo  vestigio  contem-se  na  seguinte  passa- 
gem da  Chronica  do  Conde  Dom  Pedro  de  Menezes :  «  Estas  cou- 
sas diz  o  Commentador,  que  primeiramente  esta  Istoria  ajun- 
tou e  escrepveo,  vão  assy  escriptas  pela  mais  chã  maneira 
que  elle  pôde,  ainda  que  muitas  leixou,  de  que  se  outros 
feitos  menores,  que  aquestes  poderam  fornecer:  jaa  seja 
que  muitos  auctores  cubiçosos  de  alargar  suas  obras,  for- 
neciam seus  livros  recontando  tempos,  que  os  Príncipes 
passavam  em  convites,  e  assy  de  festas  e  jogos,  e  tempos 
alegres  de  que  se  nom  seguia  outra  cousa  se  nom  a  deieita- 
çam  d'elles  mesmos,  assy  como  som  os  primeiros  feitos  de 
Ingraterra,  que  se  chamava  Gram  Bretanha,  e  assi  o  Livro 
d'Amadis,  como  quer  que  soomente  este  fosse  feito  a  prazer 
de  hum  homem,  que  se  chamava  Vasco  Lobeira,  em  tempo 
d'El  Rey  Dom  Fernando,  sendo  todas-las  cousas  do  dito  Li- 
vro fingidas  do  Autor. . .  »  (2).  Este  testemunho  de  Azurara 


(')  É  evidente  que  este  João  de  Lobeira,  já  em  1258  e  1285  refe- 
rido como  fidalgo  da  corte  de  D.  Diniz  e  depois  de  D.  Afibnso  iv,  não 
c  o  pae  de  Vasco  de  Lobeira,  que  também  se  chamou  João  de  Lobeira 
e  que  fez  testamento  em  Elvas,  em  1386,  já  no  reinado  de  D.  João  1. 

í2j  Collecção  de  livros  inéditos  de  historia  portuguesa.  Lisboa,  1792, 
Edição  da  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa,  tomo  2.0,  pag.  422. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  17 

remonta  a  algum  dos  annos,  que  decorrem  de  1458  a  1463, 
epocha  em  que  deve  ter  sido  escripta  a  Chronica  donde  o 
extractamos.  Como,  porem,  esta  obra  esteve  inédita  até  1792, 
quando  o  famoso  P.°  Corrêa  da  Serra  a  fez  publicar,  o  tes- 
temunho de  Azurara  terá  participado  muito  escassamente  na 
formação  da  tradição  do  original  português;  pelo  menos  os 
testemunhos,  que  se  lhe  seguiram,  são  tão  diversos  que  nelle 
se  não  podem  filiar.  Esta  circunstancia  antes  augmenta  do 
que  diminue  o  seu  valor. 

3-e  —  No  Cancioneiro  Geral,  colligido  por  Garcia  de  Re- 
zende e  publicado  em  15 16,  figuram  algumas  estancias  com- 
postas por  Nuno  Pereira  e  Jorge  da  Silveira  para  o  certamen 
do  Cuidar  cf  Suspirar  em  1483,  ou  seja  com  uma  anterioridade 
de  vinte  e  cinco  annos  sobre  Montalvo,  nas  quaes  ha  refe- 
rencias a  Oriana,  a  amada  do  lealdoso  Amadis: 

S;  o  disesse  Oryana 
&  Iseu  allegar  posso. . . 

Alegays-me  vos  Iseu 
&  Oriana  com  el!a  .".  . 

4.0 — O  doutor  João  de  Barros,  que  se  não  deve  confun- 
dir com  o  homonymo  historiador  da  Ásia,  na  sua  obra,  ainda 
ha  pouco  inédita,  Libro  das  Antiguidades  e  cousas  notáveis  de 
Antre  Douro  e  Minho  ('),  provavelmente  escripta  em  1549, 
refere-se  a  Vasco  de  Lobeira,  como  portuense  illustre,  nos 
termos  seguintes:  « E  daqui  (Porto)  foi  natural  vasco  lo- 
beira, que  fez  os  primeiros  4  libros  de  amadis,  obra  certo 
mui  subtil,  e  graciosa  e  aprovada  dos  gallantes;  mas  como 
estas  cousas  se  seção  em  nossas  mãos,  os  castelhanos  lhe 
mudaram  a  linguagem,  e  atribuirão  a  obra  a  si». 


0)     V.  esta  obra  manuscripta  na  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa, 
folhas  32  verso,  ras   n.°  216. 

H.  da  L.  Cr^seiCA,  vol.  1.»  2 


13  Historia  da  IÀUe  << 

5.0  —  António  Ferreira,  em  dois  sonetos  de  sabor  ar- 
chaico,  propositalmente  imitado,  refere-se  ao  assumpto  do 
Amadis:  num  claramente  faz  a  attribuição  da  alteração  do 
episodio  de  Briolanja  a  Vasco  de  Lobeira;  noutro  apenas  ha 
o  nome  de  Briolanja,  a  amada  de  Galaor,  mãe  de  Perião  e 
Garinter.  A  estes  sonetos  se  referiu  o  filho  do  poeta,  Miguel 
Leite  Ferreira,  organizador  da  edição  dos  Poemas  Lusitanos ; 
na  seguinte  nota:  «Os  dous  sonetos  que  vão  ao  foi.  24  fez 
meu  pay  na  lingoagem  que  se  costumava  neste  Reyno  em 
tempo  dei  Rey  Don  Dinis,  que  he  a  mesma  em  que  foi  com- 
posta a  historia  de  Amadis  de  Gaula  por  Vasco  de  Lobeira, 
natural  da  cidade  do  Porto,  cujo  original  anda  na  casa  de 
Aveiro.  Divulgarão-se  em  nome  do  Infante  Don  Affonso, 
filho  primogénito  dei  Rey  Don  Dinis,  por  quão  mal  este 
princepe  recebera  (como  se  vê  da  mesma  historia)  ser  a 
fermosa  Briolanja  em  seus  amores  maltratada»'. 

Estes  sonetos  estão  incluídos  na  edição  posthuma  dos 
Poemas  Lusitanos.  Lisboa.  1598,  e  são  do  theor  seguinte: 

«NA  ANTIGA  L1NGOA  PORTUGUESA 

SONETO  XXXIIII 

Bom  Vasco  de  Lobeira,  e  de  grã  sen, 
De  prão  que  vos  avedes  bem  contado 
O  feito  d'Amadis  o  namorado, 
Sem  quedar  ende  por  contar  hi  ren. 

E  tanto  nos  aprougue,  e  a  também, 
Que  vós  seredes  sempre  ende  loado, 
E  entre  os  homes  bôs  por  bom  mentado, 
Que  vos  lerão  adeante,  e  hora  lem. 

Mais  porque  vós  fizestes  a  fremosa 
Brioranja  amar  endoado  hu  nom  amarom 
Esto  cambade,  e  compra  sa  vontade. 

Ca  eu  hei  grã  dó  de  aver  queixosa 

Por  sa  gram  fermosura,  e  sa  bondade. 

E  er  porque  ó  fim  amor  nom  lhe  pagarom. 


a   IJtUmrura  Clássica  19 


SONETO   -\K\V. 

Vinha  amor  pelo  campo  trebelhando 
Com  sa  fremosa  madre,  e  sas  donzellas, 
El  rindo,  e  cheo  de  ledice  entre  ellas, 
}ã  de  arco,  e  de  sas  setas  non  curando. 

Brioranja  hi  a  sazom  sia  pensando 
Na  grã  coita,  que  ella  ha,  e  vendo  aquellas 
Setas  de  Amor,  filha  em  sa  mão  húa  dJellas, 
E  mette-a  no  arco,  e  vay-se  andando. 

Deshi  volveo  o  rostro  hu  Amor  sia, 

Er,  disse,  ay  traydor,  que  me  has  fallido, 

Eu  prenderey  de  ti  una  vendita. 

Largou  a  mão,  quedou  Amor  ferido, 
E  catando  a  sa  sestra,  endoado  grita : 
Ay  mercê,  a  Brioranja,  que  fugia. > 

(Ed.  Rollandiana,  2.0  vol.,  pngs.  94  e  95,  Lisboa,  1829). 

6.° — Jorge  Cardoso  aliudiu  também  ao  Amadis  de  Gaula 
do  modo  seguinte,  no  seu  Agiologio  Lusitano:  «E  por  seu 
mandado  trasladou  de  francês  em  a  nossa  língua  Pêro  Lo- 
beiro,  Tabalião  d'Eluas,  o  liuro  de  Amadis  (que  a  parecer 
de  vários  doctos)  he  o  melhor,  que  saio  á  luz  de  fabulosas 
historias»  (}).  Este  mandado  é  do  Infante  D.  Pedro. 

7.0  —  Outro  argumento,  extrahido  do  próprio  Amadis,  da 
edição  castelhana  de  1508,  a  mais  antiga  conhecida,  é  a  de- 
claração inserta  no  texto  de  se  haver  alterado  o  desfecho  do 
episodio  de  Briolanja,  por  exigência  do  infante  D.  Affonso, 
que  outro  não  era  senão  o  futuro  rei  Affonso  iv,  o  heroe  do 
Salado  :  «...aunque  el  senor  infante  D.  Alfonso  de  Portu- 
gal, habiendo  piedad  desta  formosa  doncella,  de  otra  guisa 


^ij    Lisboa,  1652,  pag.  410,  tomo 


20  Historia  da  Litter atura  Clássica 

lo  mandase  poner.  En  esto  hizo  lo  que  su  merced  fue,  mas 
no  aquello  que  en  efecto  de  sus  amores  se  escribia.» 

8.°  —  Finalmente  apontaremos  uma  adducção  recente  do 
sr.  Th.  Braga,  auctor  que  numerosas  vezes  se  tem  occupado 
deste  difficil  problema  (l).  Consiste  ella  nas  seguintes  alle- 
gações : 

O  sr.  Th.  Braga  chegou  ao  conhecimento  duma  edição 
hebraica,  sem  data,  do  primeiro  livro  do  Âmadis,  de  que  exis- 
tem exemplares  completos  no  Museu  Britannico  e  no  Semi- 
nário Judaico,  de  Breslau,  e  um  breve  fragmento  em  posse 
dum  particular,  de  Londres.  Esta  versão,  muito  mais  resu- 
mida que  os  textos  conhecidos  em  outras  línguas,  teria  sido 
anterior  a  Montalvo  e  feita  sobre  a  lição  portuguesa,  cujos 
vestígios  idiomáticos  ainda  se  trahiriam  nessa  traducção 
hebraica.  Montalvo  teria  feito  uma  amplificação,  a  qual  seria 
a  fonte  commum  das  traducções  para  francês,  italiano  e  in- 
glês, o 

Se  se  interpretarem  estes  argumentos  com  são  critério, 
desannuviado  de  nacionalismo  parcial,  reconhecer-se-ha  que 
elles  são  insufncientes  para  fundamentar  em  solida  base  a 
certeza  da  auctoria  portuguesa,  e  que  nem  sequer  são  con- 
cordes; mas  reconhecer-se-ha  que  delles  se  tiram  conclusões 
várias,  que  não  são  para  desprezar.  Uns  têm  de  ser  comple- 
tamente postergados,  outros  diversamente  interpretados  —  o 
que  tudo  se  pôde  conciliar  com  a  conclusão  geral  que  a  este 
respeito  é  hoje  mais  acceita:  que  o  Amadis  tem  por  fontes 
principaes  as  novellas  bretonicas  do  Tristão  e  do  Laçarote  e 
que  por  completo  se  ignora  em  que  língua  foi  primitiva- 
mente redigida  essa  obra,  hoje  só  conhecida  em  castelhano, 


(>)  V.  a  lista  dos  seus  escriptos  sobre  esta  matéria  em  Critica 
Litter  ária  como  Sciencia,  3.*  ed.,  1920,  pags.  168-175. 

(2)  V.  Versão  hebraica  do  «  Amadis  de  Caída  »,  nos  Trabalhos  da 
Academia  de  Scicncias  de  Portugal,  i.a  Serie,  tomo  2.0  e  3.0,  Coim- 
bra, 1915-1916. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  21 

mas  que  pelo  seu  assumpto  é  completamente  estranha  á 
península  e  a  qualquer  outro  lugar  concretamente  identifi- 
cável. 

E  como  se  faz  então  a  conciliação  daquelles  testemu- 
nhos, por  nós  acima  resumidos,  com  que  se  pretende  justifi- 
car a  auctoria  portuguesa,  e  desta  opinião?  É  ao  que  nós, 
em  seguida,  vamos  responder.  O  primeiro  argumento,  o  do 
estribilho  das  canções  do  poeta  trobadoresco  João  de  Lo- 
beira,  indica  que  este  é  pelo  menos  o  auctor  da  canção  con- 
tida na  edição  de  Montalvo ;  que  neste  tempo  já  era  conhe- 
cido o  texto  do  Amadis  e  que  foi  elle  talvez  o  recenseador 
do  episodio  de  Briolanja,  por  ordem  do  sensivel  infante 
D.  Affonso.  Este  mesmo  argumento,  combinado  com  o  ultimo 
—  declaração  sobre  este  episodio  de  Briolanja  por  Mon- 
talvo —  faz  crer  que  já  antes  correria  algum  texto  mais  an- 
tigo, em  que  doutro  modo  se  contassem  os  amores  de  Brio- 
lanja. Assim  temos  o  Amadis  de  Gania  já  lido  na  corte  de 
D.  Diniz,  ou  seja  antes  de  1325,  em  que  Affonso  iv  occupou 
o  throno. 

O  testemunho  de  Azurara  fica  implicitamente  rebatido. 
Tardia  é  a  epocha  do  rei  D.  Fernando  I  para  se  lhe  attri- 
buir  a  origem  desta  obra,  que  já  em  tempo  de  D.  Diniz  era 
estimada.  Azurara  poderia  ter  feito  este  conhecimento  de 
leviana  outiva  e  fazer  confusão  de  nomes,  visto  que  vários 
Lobeiras  houve. 

O  dr.  Henry  Thomas,  que  com  mestria  tem  estudado  a 
novellistica  peninsular,  lembra  que  poderia  occorrer  uma 
confusão :  Vasco,  com  sua  nomeada  de  guerreiro,  poderia 
offuscar  o  mal  conhecido  escriptor  João  e  usurpar-lhe,  no 
conceito  publico  e  sem  o  querer,  a  auctoria  da  novella.  Deste 
modo,  attribuindo-a  a  João  de  Lobeira  e  já  não  a  Vasco,  não 
ha  incompatibilidade  chronologica  com  a  referencia  feita  a 
Amadis  na  obra  De  regimine  principum,  de  Egidio  Colonna, 
traduzida  para  castelhano  por  João  Garcia  de  Castrogeriz,  á 
volta  de  1350.  Tara  ser  auctor  da  novella,  Vasco  teria  de  ser 


22  Historia  da  Litteratura  Clássica 

um  escriptor  excessivamente  precoce  ou  um  guerreiro  exces- 
sivamente serôdio.  (*) 

As  referencias  no  Cancioneiro  de  Rezende — terceiro  argu- 
mento—  confirmam  a  voga  da  novella;  esses  poetas  conhe- 
ciam, de  os  lerem,  os  amores  de  Amadis,  e  nas  suas  compo- 
sições deixaram  passar  reminiscências  dessa  dilecta  leitura. 

O  quarto  argumento,  testemunho  do  auctor  do  Espelho 
de  Casados,  Dr.  João  de  Barros,  foi  recentemente  muito  aba- 
lado na  sua  solidez.  Em  1919  a  Bibliotheca  Publica  do  Porto 
publicou  o  seu  manuscripto  inédito  intitulado  Geograpkia 
d' entre  Douro  e  Minho  e  Traz  os  Montes,  pelo  Doutor  João  de 
Barros.  Naquella  bibliotheca  ha  cinco  copias  da  obra,  mas 
todas  incompletas.  O  sr.  J.  M.  Augusto  da  Costa,  que  diri- 
giu a  edição,  escolheu  a  n.°  1109,  que  é  a  mais  antiga  e  que 
tem  na  catalogação  do  estabelecimento  a  nota,  certamente 
não  infallivel,  de  «  que  é  o  original  do  auctor  <>,  que  viveu  no 
século  xvi ;  e  em  casos  de  incerteza  recorreu  ás  outras.  Neste 
manuscripto  agora  publicado  não  ha  tal  passagem  sobre  o 
Amadis.  Comparando-o  com  o  da  Bibliotheca  Nacional,  a 
nosso  pedido,  o  sr.  Pedro  de  Azevedo  verificou  que  elle 
conferia  em  muitos  passos,  mas  que  também  divergia  em 
muitos  completamente,  e  que  era  escripto  em  calligraphia 
do  século  xvii.  Que  valor  poderá  ter,  em  vista  disto,  esse 
testemunho  attribuido  a  João  de  Barros,  se  no  mais  antigo 
dos  seus  manuscriptos  e  único  que  ao  seu  punho  ou  á  sua 
epocha  se  attribue,  não  existe?  Possível  é  que  seja  uma 
interpolação  de  copista  que,  ao  reproduzir  a  obra,  a  ia  com- 
pletando com  novas  informações.  O  próprio  caracter  pole- 
mico do  passo  faz  crer  que  elle  foi  redigido,  quando  já 
corria  mundo  a  reivindicação  dos  hespanhoes. 

O  quinto  testemunho,  os  dois  sonetos  de  António  Fer- 


(l)     V.  Spanish  and Portitgnese  Romances  0/ Chiialry,  Cambridge, 
1920. 


Historia  da  Lit  ter  atura  Ghssí    .  23 

reira,  deve  ser  a  forma  já  adulterada  da  tradição;  houve 
effecrivamente  uma  modificação  no  texto  por  um  Lobeira, 
mas  não  foi  Vasco,  que  viveu  muito  depois  de  D.  Affonso  IV. 
E  indica  também  leitura  da  obra  num  texto  antigo,  em  for- 
mas linguisticas  que  já  não  eram  as  usadas  pelo  poeta  refor- 
mador. Esse  texto,  porem,  mesmo  o  alterado  por  João  de 
Lobeira,  poderia  ser  uma  versão  portuguesa,  mas  não  o 
texto  primitivo.  A  própria  liberdade  com  que  se  fez  a  alte- 
ração está  a  indicar  o  papel  irresponsável  do  traduetor,  que 
na  edade  media  gozava  do  mais  amplo  e  discricionário 
poder  de  alterar,  corrigir  e  ampliar. 

A  hypothese  engenhosa  do  sr.  Th.  Braga  foi  plena- 
mente invalidada,  com  razões  de  peso,  pelo  sr.  H.  Thomas, 
que  examinou  com  minúcia  o  exemplar  do  Museu  Britan- 
nico.  Apesar  de  não  ter  data,  é  possivel  attribuir  uma  com 
segurança  a  essa  edição  hebraica.  A  traducção  é  do  phvsico 
Jacob  ben  Moses  ot  Algaba  e  a  edição  é  de  Eleazar  ben 
Gershom  Soncino,  da  celebre  farnilia  de  impressores,  sobre 
a  qua!  ha  estudos  especiaes,  biographicos  e  bibliographicos. 
Este  Eleazar  exerceu,  bem  como  seu  pae,  a  sua  arte  em 
Constantinopla  e  editou  muitos  livros,  de  aspecto  typogra- 
phico  muito  semelhante  ao  Amadis,  entre  1534  e  1547. 
De  Constantinopla  e  desse  lapso  de  tempo  deve  ser  a  edição 
do  fragmento  hebraico,  feita  sobre  o  texto  hespanhol  como 
abreviação,  em  vez  duma  traducção  do  texto  português, 
«rhetoricamente»  amplificado  por  Montaivo  \}). 

A  critica  dos  outros  testemunhos  está  comprehendida 
na  discussão  dos  precedentes,  excepto  o  de  Miguel  Leite 
Ferreira  sobre  a  existência  do  original  na  casa  de  Aveiro. 
Tal  indicação  não  é  sufficiente  prova.  Saberia  o  filho  do 
auetor  da  Castro  distinguir  entre  o  manuscripto  duma  versão 


{')     V.   Spanish  <{.hí  .'         ,  ices  <■;/  Chivahy,  Cambridge, 

1920,  pags.  59-63. 


24  II  Litterafu 

portuguesa,  anterior  á  castelhana  já  impressa  e  divulgada 
nesse  tempo,  e  o  texto  primitivo,  sem  a  alteração  de  João 
de  Lobeira  e  sem  o  quarto  livro  de  Montalvo?  Sim,  iem- 
bremo-nos  de  que  a  questão  não  consiste  em  saber  se  o 
Amadis  foi  primitivamente  escripto  em  lingua  portuguesa  ou 
em  lingua  castelhana;  consiste  em  apurar  em  que  lingua  elle 
foi  originalmente  escripto,  a  qual  pode  muito  bem  não  ser 
nem  a  de  Portugal,  nem  a  de  Castella.  Tal  problema  é  evi- 
dentemente mais  vasto  nestes1  termos,  do  que  sob  a  forma 
de  pleito  a  dirimir  entre  as  duas  principaes  litteraturas 
peninsulares.  Será  opportuno  recordar  que  uma  terceira 
parte  se  apresenta  a  reivindicar  para  si  a  paternidade:  a 
França. 

Esta  fá-lo  por  duas  formas.  A  primeira  reivindicação 
foi  feita  gratuitamente  pelo  mais  antigo  traductor  francês, 
Nicolas  d'Herberay  des  Essarts,  1540-1543,  que  afnrmou  ter 
visto  o  texto  manuscripto  da  novella  em  lingua  picarda; 
esta  afíirmação  infundada  não  é  já  considerada  pela  critica. 
François  de  la  Noue,  em  1587  ('),  mostrava  já  que  não  cria 
no  asserto  de  Herberay. 

A  outra  forma,  por  que  a  critica  francesa  reivindica  a 
paternidade  do  Amadis,  é  mais  arguta  e  mais  difíicil  de  con- 
troverter. A  novella  seria  o  desenvolvimento  de  germens 
franceses,  da  moAiere  de  Bretagne ;  e  forçoso  é  confessar  que 
muito  poucos  elementos  peninsulares  ostenta.  Esta  these 
pertence  mais  ao  domínio  da  critica  de  fontes  e,  qualquer 
que  seja  o  veredictum  final,  não  será  incompatível  com  a 
auetoria  peninsular. 

Menéndez  y  Pelayo,  analysando  cts  varias  razões  ailega- 
das  pró  e  contra  a  auetoria  portuguesa,  opinou  que  Mon- 
talvo seria  o  coordenador  de  três  versões  antigas;  que  João 
de  Lobeira,  auetor  da  canção  Lonoreia  sin  roseta,  teria  sido  o 


(i)    D\scuur<  politiques  et  militatres,  Bale,  1587,  pag.  134. 


Historia  da  Liderai m  a   Clássica  25 

recenseador  do  episodio  da  reconhecida  Briolanja;  que  no 
fim  do  século  XIII  já  existia  indiscutivelmente  um  Amadis  na 
península,  mas  que  não  é  possível,  com  os  dados  que  se  pos- 
suíam no  tempo  em  que  escrevia,  1905,  derimir  o  pleito  da 
lingua  primitiva.  A  tradição  da  novellistica  cavalheiresca  foi 
mais  viva  em  Portugal,  mas  o  desenvolvimento  da  sua  prosa 
foi  mais  tardio,  já  no  século  XV,  no  tempo  de  Fernão  Lo- 
pes, pondera  Menéndez  y  Pelayo  (l). 

Henry  Thomas,  sem  deixar  de  fazer  transparecer  um 
pouco  de  indifferença  pelo  pleito,  conclue  conciliadoramente  ; 
«  Modem  opinion  indeed  may  be  summed  up  in  a  manner 
that  distributes  the  international  honours  very  evenly.  Great 
Britain  provides  in  the  main  the  scene  and  the  actors  of  the 
story,  which  reached  the  Iberian  Península  through  the  mé- 
dium of  the  French  jongleurs.  Spain  has  the  earliest  known 
version  and  the  eariiest  mention  of  Amadis,  but  Portugal 
has  a  tradition  of  an  author  which  appears  to  justify  itself 
to  an  even  remoter  period.  Did  Spain  or  Portugal  receive 
the  story  íirst?  Its  most  natural  progress  wouid  seem  to  be 
from  French  literature  into  the  Portuguese  via  Galicia;  but 
it  must  be  remembered  that  its  route  thither  lay  through 
two  ancieut  capitais  bf  Castile,  Burgos  and  León,  both  of 
which  offered  opportunities  for  a  leakage  into  the  Castí- 
lian  >  (2). 

Hoje  só  se  conhece  o  texto  castelhano  de  150S,  revisto 
e  acerescentado  por  Montalvo,  em  cuja  lingua  ha  antigas 
referencias  também,  como  as  de  Pêro  López  de  Ayala, 
no  seu  Rimado  de  Talado,  composto  entre  1357  e  1403,  e  as 
do  Cancioneiro  de  Baena,  de  1445,  as  quaes  podem  coexistir 
a  par  da  tradição  portuguesa,  quando  a  obra  já  era  conhe- 
cida por  toda  a  península.  A  tradição  portuguesa  é  Insuffi- 


(!)    Origenes  de  te  Novela,  vol.  i.°,  Madrid,  1905.  vote 
(-')     V.  Obra  citada,  pag.  59. 


26  Historia  da  Littet -atura  Clássica 

ciente  ainda,  mas  6  a  única,  sequente  e  acatada,  que  se 
ostenta  durante  os  séculos,  e  como  tal,  resolvidas  certas  in- 
congruências chronologicas  sem  devaneios  demonstrativos, 
faz  pender  o  juizo  a  favor  de  João  de  Lobeira,  o  velho 
poeta  um  momento  offuscado  na  sua  reputação  litteraria  pela 
gloria  militar  do  seu  parente  Vasco,  como  verosimilmente 
opina  o  sr.  H.  Thomas. 

Eis  quanto  de  seguro  se  pôde  concluir  a  respeito  da 
querella  de  Amadis  de  Gaula,  a  mais  famosa  novella  de  ca- 
\  aliaria,  o  patrono  de  todo  o  género  e  uma  das  mais  influen- 
tes obras  litterarias  das  línguas  românicas. 

É  também  isto  que  a  respeito  da  novella  na  nossa  litte- 
ratura  medieval  ha  a  dizer,  talvez  só  faltando  pôr  em  relevo 
que  na  tradição  litteraria  dos  tempos  anteriores  ao  nosso 
quinhentismo,  na  atmosphera  de  idéas,  gostos  e  themas  lit- 
terarios,  no  mundo  ideal,  sobrejacente  á  vida  quotidiana, 
que  a  leitura  e  a  cultura  artistica  criam,  occupavam  proemi- 
nente lugar  as  figuras  do  Amadis  e  da  sua  plêiade  heróica 
e  amatória:  Galaor,  Florisando,  Esplandião,  Lisuarte  da  Gré- 
cia, Amadis  da  Grécia,  Florisel,  Oriana,  Briolanja  e  Sarda- 
mira. 

Não  tomando  já  como  theatro  as  peças  dialogaes  dos 
cancioneiros  provençaes,  sirventeses,  bailadas  e  tenções  sa- 
tyricas  e  amorosas,  que  não  sabemos  se  seriam  recitadas  por 
diversas  personagens,  que  juntassem  á  dicção  a  mimica,  es- 
cassos são  os  vestígios  do  theatro  medieval,  que  poderemos 
apontar.  Esses  vestígios  são  testemunhos  e  referencias,  não 
obras,  nem  fragmentos  de  obras.  Outras  litteraturas,  como  a 
francesa  e  a  hespanhola,  ostentam  ainda  hoje  abundantes 
textos  da  forma  litúrgica  do  seu  theatro  medieval.  Em  Por- 
tugal, podemos  com  perfeita  segurança  aífoitar  que  o  thea- 
tro religioso   de   Gil   Vicente,    comediographo  já  do  século 


Historia  da  Litteratura  Clássica  27 

xvi,  é  que  representa  o  theatro  medievo,  de  mysterios  e 
moralidades.  Antes  do  monologo  da  Visitação,  apenas  teria 
havido  em  Portugal,  quanto  informam  os  vestígios  débeis 
que  possuímos,  as  grandes  representações  da  Igreja,  com 
seu  cerimonial  complicado  e  imponente,  e  em  theatro  pro- 
fano os  momos  e  entremeses  referidos  em  vários  testemunhos. 

No  Elucidário  de  Fr.  Joaquim  de  Santa  Rosa  Viterbo, 
contem-se  uma  passagem,  abaixo  reproduzida,  em  que  ha 
referencias  a  dois  bobos,  do  tempo  de  D.  Sancho  I,  de  no- 
mes Bonamis  e  Acompaniado  que  faziam  arremedilhos  :  «No 
(anno)  de  1193  El-Rei  D.  Sancho  1  com  sua  mulher,  e  filhos 
fizerão  Doação  de  hum  Casal,  dos  quatro  que  a  coroa  tinha 
em  Canellas  de  Poyares  do  Douro,  ao  farçante  ou  bobo, 
chamado  Bonamis,  e  a  seu  irmão  Aconpaniado,  para  elles  e 
seus  descendentes.  E  por  Confirmação  ou  Rébora  se  diz : 
Nos  mimi  supranominati  debemus  Domino  nostro  Regi,  pro 
roboratione  unum  arremedillum».  D.  Affonso  11  confirmou 
esta  doação  de  seu  pae  nos  seguintes  termos:  «Ego  Alffon- 
sus  secundus  Dei  gratia  Portugaliae  Rex...  roboro  et  con- 
firmo vobis  Bonamis,  et  comsuprinis  vestris,  filliis  de  Acon- 
paniado, Cartam  Illam,  quam  Pater  meus  Rex  Dommus 
Sancius  boné  memorie  vobis  fecit  de  illo  casali,  quod  vobis 
dedid  in  villa,  que  vocatur  Canelas  »  (').  Havemos  de  confes- 
sar que  este  testemunho  se  refere  a  uma  forma  de  theatro 
muito  rudimentar,  já  pela  epocha  a  que  remonta,  já  pelos 
próprios  termos  em  que  está  concebido. 

No  noticioso  Cancioneiro  Geralt  de  Garcia  de  Rezende, 
ha  algumas  referencias  a  representações  de  momos  dos  tem- 
pos immediatamente  anteriores  a  Gil  Vicente,  que  já  é  no- 
meado por  Rezende  na  sua  Miscellanea.  O  poeta  Álvaro  Bar- 
reto declara  numas  trovas  a  el-rei  D.  Affonso  V : 


(']     V.  Memorias  para  a  historia  das  cotjf.nnaçõds  régias  neste  reino, 
João  Pedro  Ribeiro,  Lisboa,  1816,  Doe.  1. 


08  Historia  da  Litterafura  Clássica 


Ruy  de  Sousa,  que  bem  cabe 
nesta  terra  em  que  somos, 
por  tal  fazedor  de  momos, 
qual  ante  nós  se  nam  sabe, 
Nam  no  podemos  cheguar, 
assy  aja  eu  boa  fym !  (1) 

Duarte  de  Brito,  um  dos  mais  fecundos  e  lamentosos 
poetas  do  Cancioneiro,  refere-se  numas  trovas  endereçadas  a 
João  Gomez  da  Ylha  ás  representações  scenicas  feitas  por 
o  ocasião  do  casamento  da  infanta  D.  Leonor,  filha  de  D.  Affon- 
so  v,  com  o  imperador  da  Allemanha: 

Eram  vossos  tempos  autos 
nas  festas  da  imperatriz, 
mas  agora  calar  chj^z 
nam  he  tempo  de  crisautos.  (â| 

Duarte  da  Gama,  o  censor  das  «desordeens  que  aguora 
se  costumam  em  Portugal»,  declara  que: 

Nom  ha  hy  mays  antremeses 
no  mundo  onyversal 
do  que  ha  em  Portugal 
nos  Portugueses".  ^3) 

O  que  eram  estas  representações  facilmente  se  de- 
prehende,  combinando  os  dados  que  Garcia  de  Rezende  nos 
proporciona  na  sua  Chronica  e  no  seu  Cancioneiro,  acerca  dos 
momos  celebrados  em  Évora  para  festejar  o  casamento  do 
filho  de  D.  João  II : 

«  E  logo  a  terça  feira  seguinte  houve  na  sala  da  madeira 
muito  excellentes  e  singulares  momos  reaes,  tantos,  tão  ricos 
e  galantes,  com  tanta  novidade  e  differenças  de  entremeses, 


(J)    V.  Cancioneiro  Geral,  ed.  Kaussler,  vol.  1,  pag.  276-7. 
(-')     V.  Idem.  vol.  i,  pag.  367. 
(')     V.  Idem,  vol  II,  pag.  514-5. 


Historia  da  Lu  lera/,  ura  Clássica  29 

que  creio  que  nunca  outros  taes  foram  vistos.  Entre  os  quaes 
El-rei  entrou  primeiro  para  desafiar  a  justa  que  havia  de 
manter  com  invenção  e  nome  do  Cavalleiro  do  Cirne,  e  veio 
com  tanta  riqueza  e  galantaria  quanta  no  mundo  podia  ser. 

Entrou  pelas  portas  da  sala  com  nove  bateis  grandes, 
em  cada  um  seu  mantedor,  e  os  bateis  mettidos  em  ondas 
do  mar  feitas  de  pano  de  linho  e  pintadas  de  maneira  que 
parecia  agua ;  com  grande  estrondo  de  artelharia  que  tirava, 
e  trombetas,  atabales,  e  menestris  altos  que  tangiam,  e  com 
muitas  gritas  e  alvoroços  de  muitos  apitos  de  mestres,  con- 
tra-mestres  e  marinheiros,  vestidos  de  brocados  e  sedas  com 
trajos  de  allemães,  e  os  bateis  cheios  de  tochas,  e  muitas 
velas  douradas  accesas  com  toldos  de  brocado,  e  muitas  e 
ricas  bandeiras. 

E  assi  vinha  uma  náo  á  vela,  cousa  espantosa,  com 
muitos  homens  dentro,  e  muitas  bombardas,  sem  ninguém 
ver  o  artificio  como  andava,  que  era  cousa  maravilhosa.  O 
toldo  e  toldos  das  gáveas  de  brocado,  e  as  vellas  de  tafetá 
branco  e  roxo,  a  cordoada  d'ouro  e  seda,  e  as  ancoras  dou- 
radas. E  assi  a  náo  como  bateis  com  muitas  vellas  de  cera 
douradas  todas  accesas,  e  as  bandeiras  e  estandartes  eram 
das  armas  d'El-Rei  e  da  Princesa  todas  de  damasco,  e  dou- 
radas; e  vinham  deante  do  batel  d'El-Rei,  que  era  o  pri- 
meiro, sobre  as  ondas  um  muito  grande  e  formoso  cirne, 
com  as  pennas  brancas  e  douradas,  e  após  elle  na  proa  do 
batel  vinha  o  seu  cavalleiro,  em  pé,  armado  de  ricas  armas 
e  guiado  d'elle,  e  em  nome  d'El-Rei  sahio  com  sua  falia,  e 
em  joelhos  deu  á  Princesa  um  breve  conforme  a  sua  tenção, 
que  era  querê-la  servir  nas  festas  do  seu  casamento,  e  sobre 
conclusão  de  amores  desafiou  para  justas  d'armas  com  oito 
mantedores  a  todos  os  que  o  contrario  quizessem  combater. 
E  por  rei  d'armas,  trombetas  e  officiaes  para  isso  ordenados, 
se  publicou  em  alta  voz  o  breve  e  desafio  com  as  condições 
das  justas  e  grados  d'ellas,  assi  para  o  que  mais  galante 
viesse  á  teia,  como  para  quem  melhor  justasse. 


Historia  da  Litteraturã   Cias-:' 

E  acabado,  os  bateis  botaram  pranchas  fora,  e  sahio 
KI-Rei-  com  seus  riquíssimos  momos,  e  a  náo  e  bateis  que 
enchiam  toda  a  sala  se  sahiram  com  grandes  gritos  e  estrondo 
de  artelharia,  trombetas  e  atabales,  charamelas  e  sacabuxas, 
que  parecia  que  a  sala  tremia  e  queria  cahir  em  terra. 

El-Rei  dançou  com  a  Princesa,  e  os  seus  mantedores 
com  damas  que  tomaram ;  e  logo  veio  o  Duque  com  fidalgos 
de  sua  casa  com  outros  riquíssimos  momos. 

E  veio  outro  entremês  muito  grande  em  que  vinham 
muitos  momos  metidos  em  uma  fortaleza  entre  uma  rocha  e 
mata  de  muitas  verdes  arvores,  e  dois  grandes  selvagens  á 
porta  com  os  quaes  um  homem  d'armas  pelejou  e  desbara- 
tou, e  cortou  umas  cadeias  e  cadeados  que  tinham  cerradas 
as  portas  do  castello,  que  logo  foram  abertas,  e  por  uma 
ponte  levadiça  sahiram  muitos  e  mui  ricos  momos,  e  em 
se  abrindo  as  portas  sahiram  de  dentro  tantas  perdizes  vi- 
vas e  outras  aves,  que  toda  a  sala  foi  posta  em  revolta  e 
cheia  d'aves  que  andavam  voando  por  ella  até  que  as  to- 
mavam. 

E  sahido  este  grande  e  custoso  entremês,  veio  outro  em 
que  vinham  vinte  fidalgos  todos  em  trajo  de  peregrinos  com 
bordões  dourados  nas  mãos,  e  grandes  ramaes  de  contas 
douradas  ao  pescoço,  e  seus  chapeos  com  muitas  imagens, 
todos  com  manteos  que  os  cobriam  até  o  joelho,  de  broca- 
dos, e  por  cima  com  remendos  de  veludo  e  setim,  e  dado 
seu  breve  deitaram  os  manteos,  bordões,  contas  e  chapeos 
no  chão.  e  ficaram  ricamente  vestidos  todos  de  rica  chaparia, 
e  os  manteos  e  todo  o  mais  tomavam  moços  da  camará  e 
reposteiros  e  chocarreiros  quem  mais  podia,  e  valiam  muito, 
que  cada  manteo  tinha  muitos  covados  de  brocado.  E  assi 
vieram  outros  muitos  e  ricos  momos,  que  não  digo,  com 
singulares  entremeses,  riquezas,  galantaria,  e  muitos  com 
palavras  e  invenções  d'ardileza  acceitavam  o  desafio  com  as 
mesmas  condições,  e  dançaram  todos  até  ante-manhã,  e  foi 
tamanha    festa    que    se    não    fora    vista    de   muitos    que   ao 


Historia  da  Li  tu,,  atura  Clássica  31 

presente  são  vivos,  eu  a  não  ousara  escrever»  (l).  O 
mesmo  escriptor  nos  dá  informação  das  letras  dessas  justas, 
espécie  de  divisas  poéticas  e  galantes  que  designavam  o 
papel  attribuido  a  cada  figurante.  Assim  quem  representava 
o  sol  ostentava  a  seguinte  letra  ou  cimeira : 

Sobre  todos  rresplandece 

my  dolor, 

porque  es  el  qu*es  mayor. 

Outro  que  representava  Júpiter: 

Aqueste  suele  dar  vida 
ai  que  mas  servir  se  alha, 
y  vos  ai  vuestro  quita-lha  (*). 

Como  se  vê,  o  que  de  theatro  se  fez  em  Évora,  em  1490, 
em  tempo  de  el-rei  D.  João  11,  em  pouco  se  resume:  muito 
effeito  scenico,  vistosa  scenographia,  imprevistos  artifícios  de 
magica  e  como  únicos  elementos  litterarios  as  letras  ou 
cimeiras  e  os  breves,  isto  é,  somente  aquelles  dizeres  que  a 
galantaria  e  a  boa  intelligencia  dos  momos  tornavam  indis- 
pensáveis. De  theatro,  considerado  como  integral  represen- 
tação da  realidade  da  vida,  apenas  os  simulacros  de  comba- 
tes cavalheirescos,  que  também  já  não  eram  a  predominante 
característica  da  vida  portuguesa  de  então,  na  metrópole. 
O  elemento,  que  mais  actualidade  possuía,  era  a  lucta  com 
os  selvagens,  influencia  já  da  expansão  colonial.  E  se  nós 
quizérmos  fazer,  ainda  que  conjecturalmente  e  sob  reservas, 
uma  distincção  entre  os  significados  dessas  palavras,  tão 
confundidas  ordinariamente,  proporemos  a  seguinte:  enfrentes 
teria    um   sentido    mais    comprehensivo,    designaria    todo  o 


(1)  V.  Garcia  de  Rezende,  Chronica  de  El-rei  D.  João  II,  ed.  Mello 
de  Azevedo,  Lisboa,  1902,  2.0  vol.,  pag.  94-96. 

(2)  V.  Cancioneiro  Geral,  vol.  3.0,  pags.  333-4. 


o2  -Historia  da  Litteratura  Clássica 

conjuncto  de  representações  scenicas,  todo  o  iniermezzo  thea- 
tral  de- determinado  momento,  de  determinada  solemnidade 
festiva;  o  momo  significaria  o  episodio  particular,  a  acção 
cómica,  e  vários  eram  os  momos  que  successivamente,  numa 
mesma  noite  e  com  a  mesma  scenographia,  se  representa- 
vam. No  termo  entremês  quereria  assim  significar-se  mais  a 
parte  espectaculosa,  e  no  momo  a  parte  episódica.  Isto  con- 
firma a  combinação  das  referencias  coetâneas  dessas  exhibi- 
ções.  O  breve  era,  afora  a  cimeira  oii^  letra,  que  terá  sido  tal- 
vez uma  particularidade  occasional  dos  entremezes  de  Évora, 
de  1490,  era  toda  a  elocução  (I). 

Dos  Mysterios,  essas  longas  composições  litúrgicas  que 
chegavam  a  ter  oitenta  mil  versos  e  cuja  representação  che- 
gava a  durar  mais  dum  mês,  não  ha  noticia  entre  nós,  já  o 
dissemos;  é  Gil  Vicente  quem  nos  seus  Autos  nos  dá  os  pri- 
meiros exemplos  de  íheatro  religioso.  Somente  houve,  pois, 
durante  a  epocha  medieval  da  litteratura  portuguesa,  os 
momos  escassamente  dramáticos  e,  dentro  dos  templos,  o 
cerimonial  do  culto,  que  produzia  então  como  hoje  formosas 
e  ostentosas  representações  que,  sem  transcender  os  limites 
prefixados  pelas  normas  do  culto  e  sem  chegar  á  vida  própria 
de  género  autónomo,  nem  por  isso  deixavam  de  possuir  certo 
caracter  theatral,  com  seu  dialogo  ainda  que  numa  lingua 
morta,  com  seus  trajos,  alguma  enscenação  e  um  evidente  pro- 
pósito de  ao  vivo  reconstituir  perante  o  publico  certa  acção. 

Garcia  de  Rezende  ainda  pôde  referir-se  a  Gil  Vicente, 
mas  como  introductor  da  pastoral  dramática,  imitada  de 
Encina: 


(M  É  um  typico  exemplo  de  breve  a  peça  desse  género  reprodu- 
zida por  Garcia  de  Rezende,  a  pag.  157  do  vol.  2  °  do  seu  Cancioneiro 
('trai,  sob  o  titulo  de  Breue  do  conde  de  Vymioso  d' um  momo  que  fez 
sendo  desavyndo,  no  quall  levava  por  antrernes  kuum  anjo  &■  huitni  diabo. 
&  ho  anjo  deu  esta  contigua  a  sua  dama.  Segue-se  uma  prévia  explica- 
rão em  prosa  e  a  annunciada  cantiga. 


ia  da  Lítleraiura  Clássica  33 

E  vimos  singularmente 

fazer  representações 

de  estilo  mui  eloquente, 

de  mui  novas  invenções 

e  feitas  por  Gil  Vicente; 

elle  foi  o  que  inventou 

isto  ca,  e  o  usou 

com  mais  graça  e  mais  doutrina, 

posto  que  João  dei  Enzina 

o  pastoril  começou  (*). 


Em  matéria  de  historia,  a  nossa  litteratura  medieval  não 
foi  menos  abundante  e  substanciosa  que  em  matéria  poética, 
se  nos  reportarmos,  como  devemos,  ao  critério  histórico  da 
epocha  e  aos  meios  de  acção  disponíveis  então.  Convém 
accentuar  que  nos  queremos  referir  somente  a  trabalhos 
intencionalmente  históricos,  a  registos  de  factos  proposital- 
mente  feitos  por  seus  auctores  com  a  deliberada  intenção 
de  produzir  historia.  Com  esta  restricção,  poderemos  ainda 
distinguir  na  nossa  historiographia  medieval  quatro  formas  ou 
maneiras:  a)  a  dos  chronicons;  b)  a  das  agiographias; 
c)  a  dos  livros  de  linhagens;  d)  e  a  das  chronicas.  Fácil  é 
distribuir  a  productividade  historiographica,  que  chegou  até 
nós,  por  essas  quatro  alineas,  para  depois  determinar  as 
essenciaes  características  de  cada  uma  delias: 

a)  —Chronicons:  Chronicon  conimbricense  (fragmento  do  sec.° 
XII  ou  principio  do  sec.°  XIII),  Chronica  gothorum 
(fragmento),  Chronicon  complutense  (fragmento  do  fim 


0)     V.  Misccllanca,  appensa  á  Chronica,  vol.  3.0,  pag.  199-200,  ed. 
de  1902. 

H.  da  L.  Clássica,  vol.  :.•  8 


34  Historia  da  Litteratura  Clássica 

do  século  xm),  Chronicon  laviecense  (fragmento  do 
século  xiv),  Chronicon  lauibanénse  (fragmento  do 
principio  do  século  XIl) ;  Breve  Chronicon  Alcobacense 
(fragmento  do  século  Xlll),  Chronica  breve  do  Archivo 
Nacional  (do  século  Xiv): 

b)  —  Agiographias  e  matéria  ecclesiasíica :  S.  Rudesindi  Vi/a 
et  Miracula  (sec.°  XIl),  Vita  Sanctce  Senorincc,  Mia 
Sancii  Gcraldi,  Viia  S.  Martini  Sauríensis,  Vita  Tello- 
nis  Archidiaconis,  Vita  Sancii  Theotoni,  Exordium  Mo- 
nasterii  S.  Joannis  de  Tarouca,  Indicnlum  fundaiionis 
Monasierii  S.  Yicentii,  lianslalio  et  Miracula  S.  Vin~ 
centii,  Legenda  Mariyrum  Marochii,   Vita  Sancii  Antonii; 

c)—  Livros  de  linhagens:  Livro  velho  com  um  fragmento  de 
outro  nobiliário  de  epocha  anterior,  Nobiliário  do 
Collegio  dos  Nobres,  Livro  dos  Li7ihagens  do  Conde 
D.  Pedro; 

d)  —  Chronicas :  Chronicas  breves  e  vie?uorias  avulsas  de  Santa 
Cruz  de  Coi?nbra,  De  expugnatione  Scalabis,  De  expu- 
gnatione  Olisipo?iis  A.  D.  MCXLVJI,  Chronica  do  Con- 
destabre, Chronica  do  infante  D.  Fernando  de  D.  Frei 
João  Alvares;  Chionicas  de  D.  Pedro  L,  D.  Fernando 
e  D.  João  L,  de  Fernão  Lopes;  Chronica  de  D.João  L 
(cont.),  Chronica  do  conde  D.  Pedro  de  Menezes  e  de 
Dom  Duarte  seu  filho  e  Chronica  da  Conquista  da  Guiné, 
por  Gomes  Eannes  de  Azurara. 

Em  maioria,  os  monumentos  históricos  enumerados  na 
primeira  alinea  são  em  língua  latina,  carecem  portanto  da  essen- 
cial feição  numa  obra  de  arte  litteraria  nacional,  a  língua,  e 
não  podem  aceusar  os  desvelos  de  forma  e  de  expressão, 
que  igualmente  são  também  essenciaes;  como  composições 
históricas  reduzem-se  a  uma  tabeliã  de  ephemerides,  secca- 
mente  ordenadas  segundo  o  nexo  chronologico.  São,  quando 
muito,  uma  collecção  de  apontamentos,  em  que  se  fixou  a 
memoria   dos  acontecimentos,   um  repertório  de  factos,  tão 


Historia  da  Littcmtara   Clássica  35 

longe  da  complexidade  exigente  duma  construcção  histórica 
como  a  sua  barbara  linguagem  distava  do  dizer  clássico  dum 
Tito  Lívio.  A  arte  de  narrar  e  descrever,  a  arte  de  ordenar 
e  compor,  e  a  sciencia  de  apurar  e  criticar  fontes  não  appa- 
recem  nelles,  não  se  trahem  pelo  menor  indicio.  São,  porem, 
os  primitivos  embryões  da  nossa  historiographia  nacional, 
pois  ao  menos  a  particularidade  de  se  occupar  da  mesma 
matéria  têm- na:  e  não  foram  sem  utilidade,  como  peças  tão 
vetustas,  para  cautelosa  referencia  de  testemunho. 

As  agiographias  eram  já  um  progresso,  porque  são  uma 
exposição  seguida,  são  um  todo,  a  biographia  e  os  milagres 
dos  santos  ou  os  progressos  da  religião  christã.  A  carência 
da  lingua  nacional  permanece,  pois  é  ainda  o  latim  a  lingua 
preferida,  numas  peças  porque  a  lingua  nacional  estando 
ainda  numa  atrazada  phase  de  differenciação  não  podia  ser 
considerada  como  instrumento  litterario,  noutras  por  aberta 
preferencia  do  latim  por  parte  de  seu  auctor,  como  sendo 
uma  lingua  mais  nobre  que  o  cahotico  romance  plebeu  e 
provadamente  mais  expressiva,  até  mais  de  accordo  com  a 
matéria  religiosa  de  taes  escriptos.  Essas  agiographias  care- 
cem totalmente  de  espirito  critico,  são  apologias  do  milagre 
e  do  sobrenatural,  e  occupam-se  de  matéria  ainda  estranha 
ao  quadro  da  historia  nacional,  por  lhe  ser,  em  alguns  ca- 
sos, anterior, 

São  os  livros  de  linhagens  que  trazem  a  maior  novidade 
da  historiographia  medieval.  Foi  essa  novidade  a  de  bos- 
quejar um  quadro  genérico  da  historia  universal,  desconhe- 
cido dos  clássicos  que  não  julgavam  condigna  matéria  his- 
tórica quanto  antecedesse  ou  excedesse  as  suas  evoluções 
nacionaes.  Se  Tácito,  César  e  Sallustio  excederam  na  appa- 
rencia  esses  limites,  quando  se  occuparam  dos  bárbaros  ger- 
manos, dos  bárbaros  gauleses  e  dos  bárbaros  numidas,  foi 
para  seguir  ainda  a  expansão  do  povo  romano.  Não  trans- 
cenderam as  fronteiras  da  Itália,  levados  por  quaesquer  sen- 
timentos de  humana  sympathia  ou  por  alguma  comprehen- 


36  Historia  da  Litteratura  Clássica 

são  da  solidariedade  e  continuidade  da  civilização  humana. 
Longe  dum  romano  imperialista  ou  dum  grego  mais  res- 
trictamente  cidadão  tão  amplos  sentimentos.  Foi  a  Igreja 
que  aos  homens  trouxe  esses  sentimentos,  foi  ella  que  deu 
sentido  e  calor  á  expressão  humanidade,  foi  ella,  em  corres- 
pondência, que  creou  a  expressão  de  historia  universal  e  fo- 
ram os  seus  historiadores,  como  Eusébio  e  Orosio,  que  es- 
corçaram os  primeiros  quadros  de  historia  universal.  Em 
Portugal  foram  os  nossos  livros  de  linhagens  os  introducto- 
res  dessa  novidade,  que  não  dá  mais  valor  critico  a  esses 
trabalhos,  antes  lh'o  retira,  mas  que  lhes  attribue  mais  accen- 
tuada  intenção  histórica. 

Não  vá  suppôr-se  que  todos  os  livros  de  linhagens, 
conhecidos  entre  nós,  são  precedidos  deste  quadro.  O  Livro 
Velho  e  o  fragmento  de  um  outro  que  o  acompanha,  por  al- 
guns infundadamente  considerado  como  uma  segunda  parte 
do  mesmo,  são  apenas  listas  de  nomes,  nuas  de  qualquer 
consideração  por  parte  de  seus  auctores,  que  desse  modo 
julgavam  preencher  cabalmente  os  fins  úteis  dessas  linha- 
gens. (*)  Eram  esses  fins  habilitar  os  nobres  a  exercer  o  seu 
direito  de  padroado,  isto  é,  saber  se  era  pertença  sua  tal  ou 
tal  fundação  religiosa,  da  qual  por  isso  haviam  de  receber  dotes 
de  casamento,  prendas  de  cavallaria  e  comedorias ;  era  o 
desejo  de  se  conhecerem  todos  os  graus  de  parentesco  para 
evitar  casamentos  entre  próximos  em  graus  prohibidos  pela 
Igreja ;  o  direito  de  avoenga  que  dava  a  preferencia  aos  pa- 
rentes na  arrematação  dos  bens  em  bocca  de  venda ;  e  final- 
mente a  prosápia  nobiliarchica,  tanto  do  tempo.  O  terceiro 
nobiliário  já  é  entresachado  de  alguns  episódios,  dos  quaes  é 


(})  V.  Alexandre  Herculano,  Memoria  sobre  a  origem  provável  dos 
Livros  de  linhagens,  publ.  nas  Memorias  da  Academia  Real  das  Sciencias 
de  Lisboa,  tomo  i.°,  parte  i.a,  pag.  35,  Lisboa,  e  a  Introducçâo  que  pre- 
cede a  edição  dos  mesmos  Livros  de  Linhagens,  nos  Portugália?  Monu- 
mento Histórica,  vpl.  I,  fase.  11. 


Historia  da  Litter atura  Clássica  37 

o  principal  a  muito  desenvolvida  e  bem  movimentada  des- 
cripção  da  batalha  do  Salado  (*) ;  só  o  quarto  tem  mais  des- 
envolvimento, nelle  se  exemplificando  o  alludido  quadro  de 
historia  geral.  Logo  após  o  prologo,  em  que  o  Conde  D.  Pe- 
dro adduz  sete  utilidades  em  justificação  do  seu  trabalho, 
começa  a  «linhagem  dos  homeens  como  uem  de  padre  a  fi- 
lho des  o  começo  do  mundo  e  do  que  cada  hun  uiueo  e  de 
que  uida  foy  e  começa  em  Adam  o  primeiro  homem  que 
Deus  fez  quando  formou  o  çeeo  e  a  terra  >.  (8)  Este  quadro 
alcança  até  meio  do  titulo  vil,  em  que  principia  a  matéria 
portuguesa,  e  é  organizado  com  um  mixto  de  noções  bíbli- 
cas e  de  informações  da  historia  phantastica  da  epocha,  sal- 
titando de  paiz  em  paiz  segundo  uma  poética  geographia. 
Não  é  sem  significado  este'  quadro,  vasta  genealogia  que 
de  geração  em  geração,  de  paiz  em  paiz,  vem  ligando  os 
homens  e  os  reis,  fazendo  do  nexo  histórico  um  fio  de  paren- 
tesco;  não  é  sem  interesse  porque  traduz  as  noções  que  pos- 
suía um  estudioso  do  século  XIV —  e  até  do  século  XIII,  pois 
é  provável  que  este  nobiliário  seja  obra  de  vários  auctores, 
anteriores  e  posteriores  ao  Conde  D.  Pedro,  de  Barcellos. 
Não  se  perdera  a  memoria  de  Roma,  sob  a  forma  de  impé- 
rio. Os  seus  imperadores  perseguidores  do  christianismo  são 
lembrados  por  este  linhagista  erudito  que  citava  Aristóteles 
em  abono  duma  utopia  de  pacifica  fraternidade:  «Esto  diz 
Aristotilles  que  sse  os  homeens  ouuessem  antressy  amizade 
verdadeira  nom  averiam  mester  rreys  nem  justiças,  ca  ami- 
zade os  faria  viuer  seguramente  en  o  serviço  de  Deus. »  (') 
Ainda  que  aqui  e  acolá  o  esmalte  algum  episodio,  o  Livro 
de  Linhagens,  conhecido  pelo  do  Conde  D.  Pedro,  é  predo- 
minantemente  o   que  seu   titulo   e   objectivos  indicam :    um 


(l)  V.   Portugália'   Monumento,  Histórica,   vol.   i,  fase."  2.°,  pa£ 
185-rço. 

(*)  V.  Idem,  pag.  230. 

[9)  V.  Ibidem. 


38  Historia  da  Litteratura  Clássica 

nobiliário,  lista  de  nomes  acompanhados  da  rubrica  explica- 
tiva sobre  o  grau  de  parentesco  que  os  unem.  Tanto  dos 
livros  de  linhagens  como  dos  lacónicos  chronicons  se  servi- 
ram com  proveito  os  nossos  antigos  chronistas,  sempre  que 
se  houveram  de  occupar  dos  nossos  primeiros  reis. 

Da  quarta  alinea  e  principal  agora  diremos.  Cabe  a 
D.  Duarte  a  gloria  de  haver  creado,  em  1434,  o  cargo  de 
chronista-mór  do  Reino,  que  tradicionalmente  andou  ligado 
ao  de  guarda-mór  do  archivo  da  Torre  do  Tombo.  Foi  nelle 
provido,  como  ninguém  ignora,  Fernão  Lopes.  Este,  o  ano- 
nymo  auctor  da  Chronica  do  Condestavel  e  Fr.  João  Alvares, 
auctor  da  chronica  do  Infante  Santo,  é  que  são  verdadeira- 
mente os  creadores  da  historiographia  nacional.  Probidade 
na  narrativa,  escrúpulo  na  escolha  dos  materiaes  a  aproveitar, 
methodo  na  ordenação  delles,  clareza  e  cuidados  na  compo- 
sição estructural  da  sua  obra,  concentração  da  attenção  num 
único  assumpto,  e  esse  sabiamente  escolhido;  isso  fizeram 
estes  auctores  em  suas  obras,  primeiros  monumentos  da  nossa 
historiographia.  Evidentemente  é  muito  grande  a  distancia 
entre  um  chronicon  e  a  vida  do  condestavel,  tal  como  a 
conta  o  seu  anonymo  auctor  (1).  A  probidade  em  Azurara 
chegou  ao  ponto  deste  historiador  passar  ás  partes  de  Africa, 
onde  haviam  decorrido  os  feitos  que  se  propunha  narrar; 
Fernão  Lopes  inquiria  testemunhas    e    enjeitava  por  impro- 


(')  Aproveitamos  o  ensejo  para  lembrar  que  a  expressão  anonymo 
auctor  começa  a  perder  o  significado  de  desconhecido  auctor,  pois  apesar 
de  se  não  haver  declarado,  ha  sólidos  fundamentos  para  crer  que  o 
auctor  da  Chronica  do  Condestavel  seja  Fernão  Lopes  e  que  essa  obra 
tenha  sido  composta  entre  os  annos  de  1431  e  1443.  Sobre  esta  muito 
plausível  conjectura  veja-se  a  introducção  do  sr.  A.  Braamcamp  Freire 
á  sua  edição  da  Chronica  de  D.  João  I,  i.a  parte,  Lisboa,  1915,  e  a  nota 
lida  em  sessão  de  4  de  Março  de  1915,  da  Academia  das  Sciencias,  pelo 
sr.  Francisco  Maria  Esteves  Pereira,  e  publicada  a  pags.  380-389  do 
vol.  ix  do  Boletiy.i  da  Segunda  Classe  da  Academia  das  Sciencias  de 
Lisboa,  Lisboa,  1915. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  39 

vados  os  acontecimentos  mal  testemunhados.  A  documenta- 
ção começa  a  ter  papel  na  construcção  histórica,  atj  então 
reduzida  ao  registo  das  tradições  de  memoria;  e  a  linguagem, 
a  principio  o  latim  bárbaro,  torna-se  instrumento  litterario, 
estylo,  mais  simples  e  pittoresco  em  Fernão  Lopes,  mais 
pretensioso  em  Azurara,  que  se  comprazia  em  ostentar  eru- 
dição. O  estylo  do  chronista  dos  Condes  de  Vianna  mantem- 
se  sempre  a  uma  altura  de  digna  gravidade,  esmaltada  de 
citações  e  ás  vezes  prejudicada  peia  tendência  para  o  que 
Herculano  chamou  «philosophar  trivialidades».  O  que,  po- 
rem, cumpre  fixar  é  que  biographar  circunstanciadamente 
uma  grande  figura  nacional,  ou  fosse  rei,  ou  fosse  o  Condes- 
tavel,  o  Infante  Santo  ou  os  Condes  de  Vianna,  expondo  os 
acontecimentos  com  lógica,  fazendo-os  depender  necessaria- 
mente de  antecedentes  próximos  ou  remotos  e  mostrando- 
no-los  a  desenrolar- se  com  sequencia  quanto  possível  exhaus- 
tiva,  já  era  fazer  historia.  Um  senão  possue  essa  historiogra- 
phia :  um  amor  dos  pormenores  ás  vezes  tão  vivo  —  forma 
extrema  da  probidade  litteraria  —  que  faz  perder  a  noção  de 
valor  para  a  escolha  desses  pormenores.  Esse  defeito  não 
impedirá  de  se  reconhecer  que  a  historiographia  seja,  como 
o  lyrismo  provençal,  um  género  litterario  copioso,  e  que  a 
sua  parte  do  século  xv,  pelo  escrúpulo  de  verdade  da  nar- 
ração, pela  linguagem  já  acurada  em  estylo,  pelos  assumptos, 
pela  personalidade  litteraria  de  seus  auctores  e  até  pela  prio- 
ridade  de   alguns   assumptos  (T)   seja  a   principal  actividade 


(1)  O  Visconde  de  Santarém  lembrou  no  seu  prefacio  á  edição  da 
C/ircnica  da  Conquista  da  Guiné,  de  Paris,  1841,  que  esta  obra  é  «o  pri- 
meiro livro  escripto  por  auctor  europeu  sobre  os  paizes  situados  na  costa 
occidental  d'Africa  além  do  Cabo  Bojador,  e  no  qual  se  coordenarão 
pela  primeira  vez  as  relações  de  testemunhas  contemporâneas  dos  es- 
forços dos  mais  intrépidos  navegantes  portugueses  que  penetrarão  no 
famoso  mar  Tenebroso  dos  Árabes  n  .  . .  V.  Opuscidos  e  Esparsos,  Lis- 
boa, 1910,  voi.  2.0,  pag.  350. 


40  Historia  da  iÃUêratura  Clássica 

litteraria  da  nossa  edade  média  e  mesmo  o  único  quinhão  da 
cultura  medieval  que  o  quinhentismo  herdará  com  proveito. 
Esse  gérmen  —  que,  convém  não  desconhecer,  representa  já 
uma  tendência  precursora  do  renascimento  do  classicismo  — 
fecundará  e  ha-de  preparar  no  século  dezaseis  a  magnifica 
galena  de  chronistas  da  metrópole  e  do  ultramar. 

A  Virtuosa  Bemfeitoria  do  Infante  D.  Pedro,  Duque  de 
Coimbra,  é  uma  das  obras  mais  demonstrativas  da  edade 
média.  Ella  revela  que  seu  auctor  recebera,  por  estudo  e  lei- 
tura, a  profunda  influencia  das  letras  e  da  philosophia  clás- 
sica e  a  encorporára  em  seu  espirito  tão  intimamente  que  o 
mecanismo  da  sua  intelligencia  faz-se  de  modo  differente  do 
dum  pensador  caracteristicamente  medieval.  Alimentado  de 
Aristóteles,  de  Plutarcho,  de  Cícero  e  sobre  todos  de  Séneca, 
•«que  antre  os  moraes  philosophos  tem  o  principado»,  compôs 
o  martyr  de  Alfarrobeira  o  seu  curioso  tratado  de  ethica. 
De  Aristóteles  recebeu  a  concepção  metaphysica,  dos  mora- 
listas clássicos  a  disposição  de  austeridade  severa  e  da  sua 
fé  christã  o  finalismo  e  a  estimação  de  valores,  que  a  philo- 
sophia aristotélica  lhe  explicava  e  que  a  moral  estóica  lhe 
ensinava  como  se  alcançavam.  O  seu  livro  é  um  modelo  de 
boa  composição,  da  mais  lógica  estructura,  dum  equilíbrio 
perfeito  e  sem  igual  em  toda  a  productividade  medieva. 
Denuncia  carinhos  de  auctor  que  o  pensamento  português  e 
a  prosa  portuguesa  antes  delle  n£o  conheceram.  Fácil  seria, 
se  a  outra  matéria  se  não  destinasse  o  presente  volume,  re- 
duzir a  Virtuosa  Bemfeitoria  a  um  eschema,  que  comprehen- 
deria  toda  a  sua  matéria.  O  infante  D.  Pedro,  serenamente 
e  firmemente,  sem  se  perder  em  divagações  nem  accumular 
citações,  diz-nos  qual  o  objectivo  da  sua  obra,  justifica  com 
três  razões  a  sua  utilidade,  explica-nos  philosophicamente  e 
até  etymologicamente  o  seu  titulo;  estabelece  a  differença 
entre  beneficio  e  bemfeitoria;  prevê  as  objecções  e  rebate-as 
uma  por  uma;  classifica  as  varias  categorias  de  bemfeitorias, 
e  a  todas  analysa  detidamente.  Dentro  de  cada  um  dos  seis 


Historia  da  Líder  atura   Clássica  41 

livros,  a  mesma  orgânica  estructura.  Foi  o  infante  uma  con- 
sciência já  transformada  por  influencias  extra-medievaes;  foi 
bem  um  precursor  da  cultura  clássica,  como  moralista  e  es- 
criptor.  (') 

O  Leal  Co7iseUieiro,  do  rei  D.  Duarte,  que  elle  mesmo 
chamou  o  «abe  da  lealdade»,  é  um  monumento  linguistico  e 
um  elucidativo  escripto  moralista,  mas  não  é  uma  obra  de 
arte.  Filia-se  nas  mesmas  correntes  de  pensamento  e  com  o 
mesmo  propósito  da  Virtuosa  bemfeitoria  se  justifica;  tem  o 
mesmo  equilíbrio  de  composição,  a  mesma  ordenada  estru- 
ctura, que  aceusa  já  capacidades  de  auetor,  mas  só  por  taes 
méritos  seria  obra  de  arte  (2).  Iguaes  observações  se  pode- 
rão fazer  á  cerca  do  seu  Livro  da  Ensynança  de  bem  cavalgar 
ioda  sella,  cujo  assumpto  D.  Duarte  soube  tornar  digno  da 
sua  penna  philosophica,  vendo  nelle  lições  moraes. 

Ha  noticia  de  numerosas  obras  perdidas,  redacções  ori- 
ginaes  e  traducções  livres,  como  na  epocha  se  faziam.  O  sr. 
Th.   Braga  deu- nos  um  quantioso  elencho  dessas  perdas  ('). 


O  conspecto,  que  acabamos  de  descrever  e  que  melhor 
se  completará  com  as  lembranças  que  cada  um  conserva  da 
nossa  litteratura  medieval,  pois  não  podemos  descer  a  ana- 


(!)  Não  assim  como  doutrinário  politico.  V.  As  theorias  politicas 
medievaes  no  «  Tratado  da  Virtuosa  Bemfeitoria»,  sr.  Prof.  Manuel  Paulo 
Merca,  na  Rnista  de  Historia,  vol.  8.°,  Lisboa,  1919,  pags.  5-21. 

(2)  V.  a  edição  de  F.  I.  Roquete,  prefaciada  pelo  2.c  Visconde  de 
Santarém,  Paris,  1842.  No  mesmo  volume  se  comprehende  a  Ensynança 
de  bem  cavalgar  toda  sella. 

(3)  V.  Edade  Media,  Porto,  1909,  pags.  507-8.  —  A  Academia  das 
Sciencias  publicou  em  1918  um  monumento  medievo,  até  então  inédito, 
o  Luro  da  Montaria,  de  D.  João  f,  sob  a  direcção  do  sr.  F.  M.  Esteves 
Pereira. 


42  Historia  da  Litteratura  Clássica 

lyses  minuciosas  e  a  exemplificações,  mostrará  que  esta 
esthetica  era  em  extremo  rudimentar,  barbara  e  grosseira, 
hesitante  e  imperfeita  e  mais  do  que  insufficiente  para  tra- 
duzir as  novas  aspirações  e  os  altos  ideaes,  o  delicado  gosto 
e  abundante  cabedal  de  ideas  geraes,  que  enchiam  a  alma  e 
a  intelligencia  dum  homem  do  século  XVI.  A  esta  parca 
litteratura  succedeu  a  litteratura  clássica,  designação  com  que 
se  pretende  genericamente  designar  toda  a  creação  litteraria 
que  decorre  do  século  XVI  ao  romantismo,  por  se  inspirar 
da  imitação  das  velhas  litteraturas  hellenica  e  latina  —  em 
Portugal  desde  Gil  Vicente  a  Garrett,  ou  episodicamente 
desde  a  representação  do  Monologo  do  Vaqueiro  á  publicação 
do  Camões.  Tomamos  Gil  Vicente  como  pioneiro  do  gosto 
clássico,  apesar  do  muito  de  medievalismo  que  na  sua  dra- 
maturgia se  contém,  porque  é  um  imitador  do  classicismo, 
Juan  dei  Encina,  quem  lhe  dá  a  suggestão  inicial.  Esta 
litteratura  apparentemente,  quando  executada  inintelligente- 
mente  ou  desacompanhada  de  outros  phenomenos,  veio 
transportar  para  outra  parte  longínqua  e  muito  fora  da  tra- 
dição litteraria  dos  paizes,  o  centro  de  attenção  dos  espí- 
ritos, a  base  esthetica  das  litteraturas  novo-latinas,  mas 
verdadeiramente  o  que  essa  imitação  de  gregos  e  romanos 
veio  trazer  foi  a  expressão  ampla  ás  novas  aspirações  do 
espirito  humano,  que  já  não  podiam  caber  na  exhausta  litte- 
ratura medieval.  Ã.  confusa  indifferenciação  de  géneros  da 
edade  media  vinha  ella  oppôr  uma  extrema  variedade  de 
géneros  bem  extremamente  caracterizados,  já  exemplificados 
por  uma  vasta  galeria  de  obras  que  iam  do  talento  ao  génio, 
todos  com  sua  theoria  regulada;  á  forma  inculta  e  perplexa 
cppunha  o  estylo  fixado  por  essas  mesmas  obras  primas  de 
modelo,  e  o  amor  da  forma,  como  essencial  condição  da 
obra  de  arte;  á  monótona  versificação  medieval  oppunha 
essa  variedade  grande  de  metros  que  nos  clássicos  se 
admira.  Não  se  poderia,  sem  as  mais  amplas  consequências, 
fazer   o   paralello    entre    as    canções   de    gesta  e  os  poemas 


Historia  da  Litteratura  Clássica  43 

homéricos  e  a  Eneida,  entre  os  chronicons  e  Heródoto,  Thu- 
cydides  ou  Tácito,  entre  Horácio  e  os  trovadores  medievaes. 
A  maior  dessas  consequências  foi  a  imitação  e  a  entrada 
das  litteraturas  românicas,  mal  desembaraçadas  das  vestes 
confusas  e  pobres  do  medievalismo,  numa  éra  em  que  segui- 
ram por  novos  trilhos. 

Essa  entrada  em  novo  trilho,  na  historia  litteraria  por- 
tuguesa, deveu-se  á  causa  próxima  da  suggestão  de  Juan  dei 
Encina  sobre  Gil  Vicente  e  dos  italianos  e  castelhanos  sobre 
Sá  de  Miranda.  O  movimento  reformador  de  Castella  é  já 
um  movimento  de  repercussão,  que  só  na  Itália  fora  origi- 
nal, porque  só  na  Itália  algumas  causas  se  verificaram. 
A  importação  do  novo  mundo  de  idéas  e  sentimentos  —  que 
em  Itália,  Sá  de  Miranda  assimilara — e  o  avultar  do  raro 
veio  de  cultura  clássica,  que  já  entre  nós  anteriormente 
corria,  produziram  o  fácil  triumpho  do  novo  ideal  litterario. 
Não  será,  por  isso,  inopportuno  desenhar  rapidamente  a 
génese  dessa  intensa  renovação  operada  na  Itália  e  apontar 
o  leito  desse  fino  veio  nacional. 

A  evolução  politica  da  península  itálica  fizéra-se  em 
sentido  inverso  do  que  observamos  nas  outras  principaes 
unidades  politicas  da  Europa.  Nestas  triumphou  a  realeza 
absoluta,  em  meio  do  antagonismo  das  classes.  Pela  pri- 
meira vez  depois  da  ruina  do  império  romano  apparece, 
expressa  e  realizada,  a  idéa  de  Estado,  com  seu  próprio 
machinismo  administrativo,  para  si  reservando  todas  as  pre- 
rogativas  soberanas  e  igualando  perante  si,  sob  a  mesma 
dependência,  todas  as  classes  sociaes.  É  claro  que  não  foi 
sem  grande  resistência  das  classes  prejudicadas  que  os  reis 
conseguiram  fundar  a  sua  realeza  absoluta.  Para  unificar  em 
suas  mãos  o  território  e  também  nellas  centralizar  todos  os 
poderes,  tiveram  de  vencer  os  obstáculos  das  immunidades 
da  nobreza  feudal  e  do  clero,  ajudando-se  do  desconten- 
tamento do  terceiro  estado.  Restringindo  privilégios  e 
appoiando-se    no    povo — cujas    liberdades    provisoriamente 


44  Historia  da  Litteratura  Clássica 

fomentavam  por  meio  da  concessão  de  foraes  ou  da  liberta- 
ção das  communas  e  da  convocação  repetida  das  cortes 
geraes — os  reis  crearam  uma  forma  intermédia  para  passa- 
rem da  máxima  descentralização  feudal  da  edade  média  ao 
absolutismo  a  que  aspiravam :  a  monarchia  representativa. 
Mas  as  immunidades  foram  postergadas,  as  próprias  liber- 
dades populares  foram  coarctadas  por  já  desnecessárias  e 
o  monarchismo  absoluto  pôde  emfim  triumphar:  na  França 
com  Luiz  xi;  na  Hespanba  com  Fernando  de  Aragão  e 
Tzabel  de  Castella;  na  Inglaterra  com  os  Tudores,  desde 
Henrique  vil;  na  Allemanha  com  Maximiliano  i;  em  Portu- 
gal com  D.  João  li.  Só  em  Itália  se  não  effectuou  essa  cen- 
tralização, já  porque  era  muito  fragmentaria  a  divisão  poli- 
tica daquella  península,  já  porque  a  sua  evolução  histórica 
foi  sempre  muito  perturbada  pela  invasão  estrangeira,  que 
tem  feito  da  península  itálica,  como  da  Bélgica,  um  campo 
de  batalha  da  Europa. 

Dominava  então  na  Itália  um  sentimento  que  a  antigui- 
dade não  conhecera,  o  culto  egotista  da  individualidade. 
Pretendeu  Guizot  que  fora  esse  sentimento  da  livre  perso- 
nalidade uma  novidade  moral  trazida  pelos  bárbaros  invaso- 
res (*).  Assim  poderá  ter  sido,  pois  em  ser  muito  dominada 
pelo  individual  egoísmo  infrene  dos  nobres  se  caracteriza  a 
edade  média  em  opposição  ao  mundo  romano,  que  disso  só 
conheceu  umas  rápidas  manifestações  na  passagem  da  repu- 
blica para  o  império  por  meio  dos  triumviratos  e  ainda  sob 
a  ordinária  forma  de  ambição  politica,  que  é  de  todos  os 
tempos.  Poderá  ser:  mas  o  que  para  uma  bôa  intelligencia 
cumpre  distinguir  é  o  conteúdo  de  cada  palavra:  individua- 
lismo e  culto  da  individualidade.  Individualismo  é  a  dispo- 
sição moral  que  consiste  em  não  reconhecer  ainda  a  solida- 
riedade dos  laços  sociaes  e  só  cuidar  de  exercer  o  interesseiro 


[})     V.  Historia  da  civilização  na  Europa,  2.a  lição. 


Historia  da  Littcratura  Clássica  45 

egoísmo  pessoal;  cabe  em  muitas  almas  ao  mesmo  tempo, 
das  mais  vulgares,  e  todas  o  podem  exercer  de  semelhante 
modo,  como  o  exercem  os  rudes  camponeses  que  só  das 
suas  immediatas  necessidades  e  conveniências  se  preoccupam. 
Culto  da  individualidade  é  o  desejo  de  desenvolver  ampla- 
mente, em  todas  as  suas  zonas,  uma  alma  e  de  lhe  imprimir 
um  sentido  original,  prepondo  aos  interesses  collectivos  esse 
desvelo  de  ser  soberanamente  e  originalmente  uma  alma 
bem  individualizada,  differencialmente  bem  característica. 
Esta  forma  de  egoísmo,  que  consiste  em  procurar  oppôr  ás 
acções  do  mundo  externo  reacções  volitivas,  affectivas  e  in- 
tellectuaes  muito  pessoaes,  de  modo  nenhum  vulgares,  de 
modo  nenhum  resignadas  aos  baixos  interesses  quotidianos, 
e  em  seu  desvelado  cultivo  e  livre  expansão  se  acurar,  já 
não  é  um  estádio  psychologico  inferior,  antes  implica  deli- 
cadeza e  cultura  espirituaes  não  triviaes.  Ella  existiu  princi- 
palmente em  Itália,  fomentada  pelo  seu  estado  social,  com 
suas  luctas  intestinas,  com  as  ambições  despertadas  pelo  re- 
gimen de  tyrannia  aberto  ao  primeiro  audacioso  e  com  a 
defeza  astuciosa  a  que  obrigava  os  indivíduos  não  favoreci- 
dos do  poder,  mas  por  elle  perseguidos.  Q)  Tal  feição  dos 
caracteres,  se  foi  um  óbice  poderoso  á  centralização  monar- 
chica,  foi  muito  determinante  factor  no  grande  phenomeno 
da  renascença.  (2)  Esse  culto  da  individualidade  produziu 
umas  vezes  o  amoralismo  e  o  cynismo  (a),  outras  o  cosmopo- 


(!)  V.  De  Dante  à  VAreiin,  Lefebvre  de  Saint  Ogan,  Paris,  e  Lo~ 
renzino  de'  Mediei  e  il  Hrannicidio  nel  Rinascimento,  F.  Martini,  Floren- 
ça, 1882. 

(2)  Tão  poderoso  factor  elle  foi,  que  desde  que  Burckhardí  o  pôs 
em  relevo  na  sua  celebre  obra  La  civilisation  en  ltalie  au  temps  de  la 
Renaissance,  trad.  fr.  em  2  vols.,  a  interpretação  deste  grande  movi- 
mento soífreu  um  impulso  considerável. 

(3)  V.  Esquisse  Psychologique  des  Peuples  europiens,  A.  Fouillée. 
«  Gráce  ao  culte  renaissant  de  la  Nature,  au  culte  naissant  de  la  Science, 
au  développement  parallèle  de  Tindividualisme,  la  faculte  de  raisonner 


46  Historia  da  LitUr  atura  Clássica 

litismo  (l),  outras  o  amor  apaixonado  da  belleza,  da  belleza 
formal'  sobretudo,  (2)  outras  essa  vasta  receptividade  que 
tornava  os  espíritos  genericamente  curiosos  de  todos  os  ra- 
mos do  saber  e  para  muitos  delles  genialmente  dotados. 
O  amor  da  natureza,  a  ambição  da  gloria,  o  exercício  do 
sarcasmo  cáustico  como  profissão  e  força  social,  perante  o 
qual  a  satyra  antiga  e  medieval  é  uma  innocente  maledicên- 
cia, tiveram  um  pujante  desenvolvimento  no  espirito  italiano 
dessa  epocha.  A  grande  obra  da  Renascença  italiana  deve-se 
mais  a  uma  plêiade  de  homens  de  génio,  de  espirito  pluri- 
lateral,  excepcionalmente  e  multimodamente  comprehensivo 
do  que  ao  esforço  collectivo  dum  povo.  (*)  Ás  pessoas  tam- 
bém, individualmente,  se  tributaram  as  maiores  honras,  até 
se  lhes  relevando  o  seu  amoralismo.  Era  o  que  o  papa  Paulo 
III  exprimia,  affirmando  que  os  homens  do  mérito  de  Cellini 
estavam  acima  das  leis. 

Uma  das  primeiras  consequências  deste  cultivo  da  indi- 
vidualidade foi  o  vivo  interesse  por  quanto  respeitava  ao 
homem,  o  qual  fora  da  theologia  e  da  litteratura  christã  en- 
contrava uma  nova  via  a  trilhar:  a  observação  de  si  próprio. 
Tal  descoberta,  apparentemente  tão  banal  mas  de  tão  largo 
alcance,  estivera  o  mysticismo  a  ponto  de  a  fazer,  mas  disso 
o  impedira  o  propósito  escravizante  que  o  dominava,  de  vi- 
giar que  o  espirito  não  sahisse  da  única  matéria  que  se  lhe 


sur  les  causes  et  les  effets  remplaça  celle  de  juger  la  valeur  cie  Ia  con- 
duite»,  pag.  77. 

(')  V.  The  Renaissance  in  Italy,  Symonds,  Londres,  principalmente 
02o  vol.,  The  Revirai  of  The  Leaming. 

(-;  V.  Burchkardt,  ob.  cit.  V.  também  as  vivas  descripçôes  de  H. 
Taine  na  sua  Philosophie  de  Vart. 

(3)  V.  «  The  work  achieved  by  Italy  for  the  world  in  that  age  was 
less  the  work  of  a  nation  than  that  of  men  of  power,  less  the  collective 
and  spontaneous  triumph  of  a  puissant  people  than  the  aggregate  of  in- 
dividual efiorts  animated  by  an  soul  of  the  íree  activity,  a  common  =tri- 
ving  after  name,  »  V.  Symonds,  ob.  cit.,  tomo  2.0 


Historia  da  Litteratura  Clássica  47 

permittia  para  meditação.  Foi  essa  descoberta  que  constituiu 
o  humanismo,  que  é  assim  não  uma  simples  tendência  litte- 
raria,  mas  o  súbito  rasg'ar  de  horizontes  novos  ao  espirito 
soffrego,  horizontes  não  menos  vastos  que  os  novos  conti- 
nentes e  novos  céus  que  á  humanidade  deslumbrada  revela- 
vam os  navegadores  portugueses  e  hespanhoes.  (*)  Era  uma 
nova  concepção  da  vida  e  do  mundo  que  surgia :  o  homem 
no  novo  systema  geral  do  mundo  subalternizavase,  mas  pela 
razão  outra  soberania  adquiria;  e  o  mundo,  agora  mais  largo, 
era  explicável  de  outro  modo,  organizando-se  em  systemas 
as  conclusões  dcs  descobrimentos  marítimos  e  os  progressos 
das  sciencias.  Os  portugueses,  dirigidos  sempre  por  um  so- 
lido critério  scientiíico  por  elles  mesmos  creado,  (s)  revela- 
ram as  ilhas  do  Atlântico  central  e  meridional  e  toda  a  costa 
occidental  do  continente  africano;  Bartholomeu  Dias  desco- 
bre o  limite  austral  desse  continente ;  Vasco  da  Gama  des- 
cobre o  caminho  marítimo  para  a  índia ;  Colombo  e  Alvares 
Cabral  descobrem  o  novo  mundo;  ainda  portugueses  desco- 
brem territórios  da  America  do  Norte  e  penetram  pela  pri- 
meira vez  na  christa  Abyssinia,  na  China  e  no  Japão ;  Ma- 
galhães emprehende  a  sua  viagem  de  circumnavegação.  Aluia 
de  vez  o  systema  das  espheras  de  Aristóteles  e  a  restricta 
geographia  hellenica.  Tycho  Brahé  propõe  o  seu  systema  do 
sol  como  centro  das  orbitas  planetárias,  excepto  a  da  terra, 
em  torno  da  qual  ainda  o  mesmo  sol  subalternamente  girava. 
Era  comtudo  um  passo  considerável  para  o  radical  heliocen- 
trismo  de  Copérnico.  (3)  Kepler  descobre  a  forma  das  orbitas 
dos    planetas    e    formula    as    leis    do    seu    movimento  (4),   e 


(')     V.  Histoirc  de  la  philosophie  moderne,  Harald  Hõffding,  i."  vol., 
trad.  franc.  Paris,  1908,  2.a  ed. 

(4)  V.  L ' Astronomie  naulique  au  Portugal  à  Vcpoque  des  dccouver- 
tes,  Joaquim  Bensaude,  Berna,  1912. 

(5)  V.   De  orbium  coelesliiim  rcvolutionibiis  libri  zr,  Nuremberg, 
1543 

(4)     V.  Astronomia  Nova,  Praga,  1609. 


48  Historia  da  Litteratura  Clássica 

mais  tarde  Galileo  revela  o  duplo  movimento  da  terra 
por  meio  de  telescópio  de  sua  invenção,  descobre  os  satel- 
lites  de  Júpiter  e  determina  a  lei  das  revoluções  desses  sa- 
tellites.  Leonardo  de  Vinci  e  Frascator  fazem  notáveis  pro- 
gressos em  physica,  óptica  e  mecânica ;  Viète  applica  a 
álgebra  á  geometria  ;  Napier  inventa  os  logarithmos;  Vésale 
funda  a  anatomia  humana;  Miguel  Servedo,  Realdo  Co- 
lombo e  André  Cisalpino  descobrem  a  circulação  do  sangue; 
Pietro  Pomponazzi  e  Xicolo  Machiavel  encetam  a  philosophia 
psychologica. 

Outras  causas,  de  diverso  alcance,  operaram  também  de 
modo  determinante.  Mais  viva  que  noutra  parte  era  em  Itá- 
lia a  tradição  clássica,  em  Itália,  que  fora  berço  da  civiliza- 
ção romana,  ainda  muito  povoada  de  ruinas  evocadoras,  e 
onde,  sob  o  nome  de  grande  Grécia,  florescera  um  impor- 
tante foco  da  cultura  hellenica.  Para  Itália  também  emigra- 
ram os  grammaticos  e  eruditos  do  império  romano  do  Oriente, 
quando  os  turcos  definitivamente  o  conquistaram  (*).  Deve-se 
a  Barlaam,  Leôncio  Pilatos,  a  Dante,  Petrarcha  e  Boccacio, 
o  impulso  inicial  em  favor  do  gosto  das  letras  clássicas,  para 
o  qual  no  século  xv  grandemente  contribuiu  o  ensino  de 
Jorge  Gemistho,  deputado  ao  concilio  de  Florença,  que  ahi 
se  estabeleceu,  attrahido  pela  munificência  de  Cosme  de  Me- 
dicis,  e  fundou  a  Academia  Platónica.  Bessarionte,  também 
grego,  continua  a  sua  iniciativa,  oppondo  o  seu  ensino  do 
platonismo  ao  do  aristotelismo  doutros  gregos,  como  Gen- 
nadio,  Theodoro  de  Gaza,  conquistando  grande  numero  de 
adeptos.  Marsilio  Ficino  traduz  Platão  e  ensina-o  do  púlpito, 
prégando-o  como  doutrina  religiosa.  Eruditos  como  Aurispa^ 


(')  Faz  falta  uma  monographia  em  que  pormenorizadamente  se  es- 
tude este  movimento  migratório  dos  eruditos,  grammaticos  e  philosophos 
de  Constantinopla  para  o  interior  da  Europa  no  fim  do  século  xv.  De  or- 
dinário esta  causa  do  renascimento  da  cultura  clássica  é  mais  apontada 
do  que  exemplificada  e  demonstrada. 


Historia  da  Litleratura   Clássica  49 

Guarini  e  Filelfo,  que  na  propaganda  e  ensino  das  letras 
clássicas  vivamente  se  haviam  empenhado,  tornam-se  credores 
de  summa  gratidão,  pois  foram  elles,  no  dizer  de  Francesco 
De  Sanctis,  os  Colornbos  deste  mundo  novo  (').  Fundam-se 
academias  e  os  homens  de  letras  reunem-se  em  verdadeiras 
cortes  litterarias,  sob  o  generoso  patrocínio  de  Nicolau  v, 
Pio  ii,  Júlio  ii,  Leão  x,  Paulo  m,  Afronso  o  Magnânimo, 
Cosme  de  Medicis,  Lourenço  o  Magnifico  e  os  duques  de 
Este  (*).  A  imprensa,  recemdeseoberta,  é  posta  ao  serviço 
deste  renascimento  e  começam  a  apparecer  edições  dos  clás- 
sicos gregos  e  latinos.  Os  effeitos  deste  facto  nunca  serão 
demasiado  encarecidos;  por  um  lado  a  fácil  e  larga  divul- 
gação, por  outro  lado  o  apparecimento  de  novas  formas  de 
actividade  intellectual,  restituição  de  textos,  commentarios 
o  exegeses,  e  o  ávido  alvoroço  com  que  os  estudiosos  se  lan- 
çaram á  busca  de  manuscriptos,  pois  cada  achado  era  uma 
nova  porta  de  entrada  que  se  abria  para  esse  novo  mundo. 
«O  mundo  greco-latino  apresenta-se  ás  imaginações  como 
uma  espécie  de  Pompeia,  que  todos  querem  visitar  e  estu- 
dar." (*)  Desse  movimento  de  restauração  nasce  a  nobre  cri- 
tica literária,  a  principio  no  secundário  papel  de  cotejo  tex- 
tual e  de  exegese  explicativa,  logo  se  erguendo  a  uma 
autonomia  condigna,  com  Th.  Morus,  Erasmo,  Lipsio  e  Boc- 
calini,  Machiavelli,  Vasari  e  Sassetti.  A  funcção  de  tradu- 
ctor  transforma-se,  restringindo-se  a  licenciosa  liberdade  de 
adulterar  de  que  na  edade  média  gozara,  mas  ganhando  em 


(')  V.  Storia  delia  Lettcratitra  Italiana,  De  Sanctis,  i.°  vol.,  Mi- 
lão, 1912,  pag.  289. 

(2)  Como  já  observámos  a  respeito  da  emigração  dos  eruditos  by- 
zantinos,  também  é  para  estranhar  que  ainda  não  haja  uma  obra  bem 
documentada,  em  que  se  evidenciasse  e  medisse  a  parte  que  cabe  á  pro- 
tecção dos  papas  e  dos  nobres  no  renascimento  intellectual  do  século  xvi. 

(3)  V.  Storia  delia  Letteratura  Italiana,  Francesco  De  Sanctis, 
pag.  289,  1.0  vol. 

H.  da  L.  Clássica,  vol.  l.«  * 


50  Historia  da  Ldtteratura  Clássica 

escrúpulos  e  rigor;  assim  fizeram  traducções  de  Virgílio, 
Ovidio'e  Tácito,  os  italianos  Annibal  Caro,  Giovanni  Andrea 
deH'Anguillara  e  Bernardo  Davanzati.  E  os  primeiros  en- 
saios de  obras  originaes  que  tentam  renovar  esse  ideal  clás- 
sico apparecem  com  Vittoria  Colonna,  Gaspara  Stampa,  An- 
gelo Poliziano,  Mateo  Maria  Boiardo,  Ariosto,  Pulei,  Alberti, 
Bembo  e  Sannazaro.  Estava  fundada  uma  Htteratura,  que 
achara  a  complexa  e  eloquente  expressão  que  o  espirito  en- 
riquecido de  ideaes  novos  em  vão  procuraria  exercer  nos 
moldes,  já  nesse  tempo  obsoletos,  da  Htteratura  medieval.  (*) 
Vê-se,  pois,  que  humanismo  e  renascimento  das  lettras 
clássicas  foram  phenomenos  diversos,  antes  de  se  haverem 
conjugado.  Grande  era  já  o  passo  dado  pelo  humanismo,  que 
ao   homem   interior  descobrira  e  sobre  elle  fizera  convergir 


(1)  Mais  duma  vez  tem  sido  defendida  a  opinião  de  que  a  renas- 
cença litteraria  veio  fazer  abortar  a  Htteratura  medieval  quando  esta  se 
mostrava  ainda  vigorosa  e  de  que  esse  movimento  humanístico  viera 
desnacionalizar  a  cultura  dos  paizes.  Esta  these  tem  sido  vigorosamente 
rebatida  por  toda  a  parte  com  a  eloquência  dos  factos  e  sua  justa  inter- 
pretação. Veio  depois  a  opinião  de  na  litteratura  medieval  termos  maio- 
res bellezas  que  admirar  ou  pelo  menos  iguaes  ás  que  nos  proporciona 
a  epocha  dominada  pela  imitação  dos  clássicos,  opinião  que  é  verdadei- 
ramente um  prejuízo.  O  sr.  Th.  Braga  em  todas  as  suas  obras  de  histo- 
ria litteraria  e  o  sr.  H.  Raposo  na  sua  these  Sentido  do  Humanismo, 
Coimbra,  1914,  mostram  perfilhar  tal  opinião  que  já  hoje  cremos  pouco 
defensável.  Geralmente  é  essa  opinião  determinada  por  sentimentos  po- 
líticos, que  fazem  da  idade  média  a  epocha  do  puro  nacionalismo,  e  ainda 
por  influencia  dos  philologos.  Em  França  foi  ella  vivamente  impugnada 
por  Brunetière,  o  critico  mais  denodamente  paladino  do  classicismo  que 
alli  houve.  Por  essa  impugnação  começou  aquelle  escriptor  a  sua  carreira 
de  critico  em  1879,  por  meio  do  artigo  Uêrudition  contentporaine  et  la 
Httêrature  francaise  dti  tnoyen  âge,  que  grandes  protestos  suscitou  da 
parte  dos  philologos.  Brunetière  apenas  respondeu  no  anno  seguinte  a 
Auguste  Boucherie,  director  da  Revue  des  Langues  Romanes.  Bom  seria 
que  as  razões  adduzidas  pelo  grande  critico  fossem  divulgadas  e  ipre- 
ciadas  também  em  Portugal. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  51 

as  attenções  e  que  aos  espíritos  enriquecera  de  concepções 
novas,  que  transformavam  por  completo  a  sua  visão  moral 
e  metaphysica,  quando  a  Renascença  surgiu,  só  vindo  dar 
expressão  artística  ao  mundo  revolto  de  novos  sentimentos 
e  concepções  que  combatiam  a  intelligencia  dos  séculos  XV 
e  xvi.  Duas  ricas  litteraturas,  até  então  muito  mal  conheci- 
das, e  toda  uma  philosophia  grandemente  ignorada  surgiam 
de  repente  complexas  e  opulentas.  Logo  começou  a  imita- 
ção. Mas,  convém  desde  já  esclarecer  com  vigor,  esta  imita- 
ção não  foi  mais  do  que  uma  pbase  de  iniciação.  Como  o 
espirito  do  humanismo  tinha  movimento  próprio,  seu  pro- 
gressivo evoluir,  cumpria  insuflar  vida  e  movimento  a  essas 
imitações  de  mortas  litteraturas,  com  que  se  propunham 
dar- lhe  expressão.  Era  também  necessário  que  essas  littera- 
turas neo-classicas  evoluíssem  de  vida  própria,  de  si  tomas- 
sem consciente  posse,  de  forma  que  os  modelos  de  Grécia  e 
Roma  exercessem  não  uma  esmag"adora  tyrannia,  mas  só  a 
permanente  suggestão  do  seu  equillibrio,  da  sua  consciente 
e  experiente  perfeição.  Dentro  da  conformação  —  bem  ampla, 
mas  bem  definida  também  —  que  o  Renascimento  dava  ás 
litteraturas,  urgia  achar  a  autonomia,  crear  uma  critica,  con- 
tinuar uma  tradição,  e  a  seguir  á  tragedia,  á  comedia,  ao 
lyrismo,  á  epopêa.  de  gregos  e  romanos,  fazer  accrescer  de 
inventiva  própria  uma  nova  tragedia,  uma  nova  comedia, 
um  novo  lyrismo,  uma  nova  epopêa,  que  aproveitassem  da 
lição  dos  clássicos,  mas  que  com  originalidade  os  conti- 
nuassem. 

Só  as  litteraturas,  que  tal  conseguiram,  chegaram  real- 
mente a  executar  cabalmente  o  novo  ideal  clássico  e  a  crear 
nova  belleza,  sua  própria.  Na  conclusão  desta  obra  diligen- 
ciamos apurar  em  que  medida  attingiu  a  nossa  litteratura  o 
cumprimento  deste  programma  —  se  alguma  vez  cm  língua 
portuguesa  se  objectivou  esse  programma. 


CAPITULO  I 


GIL    VICENTE 


Quando  na  noite  de  7  de  Junho  de  1502  Gil  Vicente, 
caracterizado  de  pastor,  aos  repellões,  irrompeu  pela  camará 
da  rainha  D.  Maria,  doente  do  nascimento  de  D.  João,  futuro 
rei,  terceiro  do  nome,  para  lhe  recitar  o  monologo  da  Visi- 
tação, o  poeta  quinhentista  lançou  a  base  de  uma  instituição 
nova:  o  theatro  português.  Com  o  seguimento  da  sua  obra 
fecunda  veio  a  merecer  dos  seus  pósteros  o  nome  de  creador 
do  theatro  português.  Neste  primeiro  capitulo  do  nosso  tra- 
balho vamos,  antes  de  segundo  o  nosso  processo  critico 
historiar  a  evolução  artistica  do  comediographo,  diligenciar 
discernir  os  elementos  próprios  e  alheios  da  construcção  vi- 
centina, limitando  assim,  mas  precisando  e  aclarando  a  crea- 
ção,  que  ao  notável  lyrico  se  attribue. 

O  género  dramático  é  um  género,  de  tom  variado  como 
todos  os  outros  géneros  litterarios,  grave  ou  serio,  trágico, 
cómico  e  mixto,  em  que  ainda  como  em  todos  se  busca  re- 
constituir uma  parcella  da  vida,  porem  por  meio  duma  repre- 
sentação quanto  possivel  integral,  como  em  nenhum  outro 
género.  O  dramaturgo  tem  ao  seu  dispor  muitos  meios  re- 
presentativos para  o  seu  objectivo:  personagens,  seu  dialogo, 
seus  trajos,  movimentos  e  gestos,  sua  expressão  physiono- 
mica,  scenario  adequado,  ao  vivo  tudo  visto  e  ouvido  para 
attingir  a  resurreição  duma  parcela  de  vida  moral.  Mas  pode 


54  Historia  da  híiteraíura   Clássica 

dizer-se  que  a  característica  differencial  e  typica  do  theatro 
é  o  dialogo  vivo  e  que  o  theatro  nasceu,  quando  se  empregou 
o  dialogo  vivo  como  meio  de  resurreição  artística  perante 
espectadores.  Todo  o  restante  aperfeiçoamento  technico  nada 
mais  é  que  consequência  da  evolução  do  próprio  meio  litte- 
rario  do  dialogo.  Assim  considerando  a  expressão  theatro, 
perguntaremos  que  havia  de  theatro  em  Portugal  e  no  es- 
trangeiro, principalmente  em  Hespanha,  ao  tempo  da  entrada 
graciosa  e  ao  mesmo  tempo  genial  dum  poeta  cómico  pela 
carnara  da  rainha  D.  Maria,  segunda  esposa  de  D.  Manuel  I? 
Ou,  tornando  mais  explicita  a  nossa  curiosidade:  em  que  medida 
continuava  Gil  Vicente  uma  tradição  nacional,  antiga  ou  recen- 
te, e  em- que  medida  obedecia  a  uma   estranha  suggestão? 

Quaes  são  os  muito  ténues  vestígios  de  actividade  dra- 
mática em  Portugal  durante  a  edade  média,  que  de  segu- 
rança hoje  conhecemos  —  já  na  Introdacção  dissemos.  Se  mais 
não  foram  realmente,  pois  é  justo  estabelecer  differença  entre 
a  realidade  que  vivamente  decorreu  e  a  imagem  que  delia 
creámos  com  as  incompletas  informações  proporcionadas 
pela  historia,  se  mais  não  foram,  havemos  de  confessar  que 
muito  pequena  base  tinha,  dentro  de  fronteiras,  o  nosso  poeta 
para  assentar  a  sua  obra.  De  além  fronteiras  lhe  veio  a  prin- 
cipal suggestão,  da  vizinha  Hespanha,  que  viria  a  ser  uma 
das  grandes  pátrias  do  génio  dramático. 

Já  no  século  xv  a  Hespanha  tinha  algum  theatro. 
Na  Catalunha,  mesmo  no  século  xiv,  se  representavam  algu- 
mas obras  de  caracter  litúrgico ;  mas  estas  de  certo  não 
chegaram  ao  conhecimento  de  Gil  Vicente  —  e  o  nosso 
objectivo  é  reconstituir  as  influencias  que  provavelmente  se 
hajam  exercido  no  espirito  do  auctor  da  Ignez  Pereira  e  não 
esboçar  um  quadro  geral  do  primitivo  theatro  hespanhol.  Do 
drama  litúrgico  de  Castella  também  ha  vestígios,  mas  menores. 

É  Gomez  Manrique  (141 2-149 1?)  que  ensaia  o  theatro 
profano  para  festejar  o  nascimento  dum  irmão  do  rei  Henri- 
que IV,  com  uma  peça  na  qual  é  attribuido  á  infanta  Izabel 


Hisi  i     Litteratura  Clássica  55 

o  papel  duma  das  musas,  particularidade  que  accusa  já  certa 
tendência  clássica.  Torres  Naharro  e  Juan  dei  Enciha  é  que 
são  verdadeiramente  os  fundadores  do  theatro  hespanhol. 
O  primeiro,  cujas  datas  de  nascimento  e  morte  se  ignoram, 
representou  em  Itália  as  suas  peças.  Publicadas  sob  o  titulo 
geral  de  Propaladia,  em  15 17,  quando  já  ia  adiantada  a  car- 
reira litteraria  de  Gil  Vicente  e  não  havendo  probabilidade 
de  antes  dessa  data  chegarem  ao  conhecimento  do  nosso 
dramaturgo,  não  é  legitimo  attribuir  lhe  qualquer  influencia 
sobre  o  auctor  de  Ignez  Pereira.  Vém-nos  confirmar  nesta 
opinião,  a  que  somos  levados  por  considerações  externas  de 
chronologia,  os  dados  da  própria  analyse  intrínseca  das 
obras  contidas  na  Propaladia.  Torres  Naharro  divide  as  suas 
peças  em  cinco  actos,  que  denomina  jornadas;  fixa  o  numero 
das  suas  personagens  entre  seis  e  doze,  ainda  que  ira  Tinel- 
laria  fizesse  grupar  vinte  figurantes:  classifica  o  drama  em 
duas  categorias,  a  comedia  de  noticia  e  a  comedia  de  phaniasia; 
cada  peça  sua  abre  com  um  intróito,  em  que*  se  pede  ao 
publico  attenção  e  indulgência  e  se  apresenta  um  pequeno 
resumo  da  intriga  —  caracteres  estes  que  se  não  verificam 
no    theatro   vicentino  (').   Ao   segundo   dramaturgo  alludido, 


(')  Fallando  de  Torres  Naharro  occorre-nos  dizer  que  eile  é  auctor 
dum  drama  allegorico  intitulado  Comedia  Trofea,  que  tem  por  assumpto 
os  feitos  da  epocha  do  nosso  rei,  D.  Manuel  r.  Menéndez  y  Pelayo  no 
seu  estudo  sobre  Bartolomê  de  Torres  Naharro  y  su  Propaladia,  repro- 
duzido na  3-a  serie  dos  Estúdios  de  Critica  Literária,  Madrid,  1900,  ver- 
sou este  problema  da  influencia  de  Naharro  sobre  Gil  Vicente,  apontando 
dois  pontos  concretos :  um  artificio  métrico,  combinação  dos  versos  da 
arte  maior  com  o  seu  hemistichio,  que  o  poeta  português  empregou  no 
Breve  Summario  da  Historiei  de  Deus  e  no  Auto  da  Feira;  e  uma  sug- 
gestão  da  Aquilara  de  Naharro  sobre  a  Comedia  do  viuvo,  de  Gil  Vicente. 
Versaremos  em  artigo  especial  esta  matéria,  bem  discutível  ainda,  para 
a  qual  nos  chamou  a  attenção  o  sr.  Prof.  Georges  Cirot  no  artigo  gen- 
tilissimo  e  profundo  que  dedicou  á  i.a  edição  desta  obra  na  Revuc  Criti- 
que, Paris,  i.°  de  agosto  de  192T,  pags.  288-292. 


56  Historia  da  LU 'ler atura   Clássica 

Juan  dei  Encina  (1469-1533?;  é  que  Gil  Vicente  deveu  indis- 
cutivelmente as  primeiras  suggestões. 

Do  theatro  de  Encina,  hoje  reduzido  a  quatorze  peças, 
presume-se  que  as  éclogas  representadas  perante  os  duques 
de  Alba,  em  Alba  de  Tormes,  o  fossem  em  1492,  e  a  sétima 
e  oitava,  que  Ticknor  pretendia  fossem  partes  da  mesma 
obra,  sabe-se  que  foram  representadas  respectivamente  em 
1494  e  1495.  E  portanto  a  maioria  do  theatro  conhecido  de 
Encina  anterior  á  estreia  litteraria  de  Gil  Vicente.  Essas 
quatorze  peças,  posto  que  constituam  um  espolio  muito 
reduzido,  bastam  para  attestar  uma  evolução  artistica  e 
para  muito  lucidamente  caracterizar  uma  physioncmia  litte- 
raria. Começou  Encina  por  autos  religiosos,  celebrados  pelo 
Natal  ou  outras  datas  religiosas,  nas  quaes  se  discorria 
apologeticamente  sobre  certos  mysterios  da  religião,  Natal, 
Paixão,  Resurreição  e  em  que  as  personagens,  ordinaria- 
mente pastores,  concluem  por  entoar  um  vilancico  de  edifi- 
cação religiosa  umas  vezes,  de  lisonja  cortezã  para  com  os 
duques  de  Alba,  outras  vezes.  Nessas  éclogas  de  devoção  ha 
o  elemento  sobrenatural,  representado  pela  apparição  dum 
anjo,  que  dialoga  com  as  personagens  humanas.  A  sexta 
écloga  é  já,  embryonariamente,  uma  écloga  de  costumes, 
porque  ao  mesmo  tempo  que  nos  reproduz  o  discorrer  dos 
pastores  sobre  a  Quaresma  no-los  apresenta  ceando  e  fol- 
gando confraternalmente. 

O  mesmo  se  poderá  dizer  da  seguinte,  que  Ticknor 
dizia  ser  sua  continuação.  Mais  pronunciadamente  se  faz 
pintura  de  costumes  na  écloga  oitava,  em  que  quatro  pasto- 
res despreoccupadamente  conversam  do  tempo  e  das  chuvas 
grossas  que  cahern  e  da  morte  dum  sachristão,  quando  um 
anjo  —  persistência  do  maravilhoso  christão  —  lhes  vem 
annunciar  o  nascimento  do  Salvador,  que  todos  vão  visitar 
e  adorar;  ha  portanto  uma  mistura  de  elementos  profanos  e 
religiosos.  Desde  então  o  vilancico  final,  nas  primeiras  obri- 
gado,  quasi  desapparece.  Da  nona  em  diante  accentua-se  o 


Historia  do  Litteratura  Clássica  57 

predomínio  dos  elementos  profanos.  Esta  nona  écloga,  a 
mais  estimada  dentre  o  theatro  de  Encina,  é  a  narração  dum 
caso  de  amor  desgraçado,  pois  termina  por  um  suicídio. 
O  lyrismo  toma  azas  e  sobe  de  inspiração,  o  desenvolvi- 
mento da  peça  proporciona-se  ás  necessidades  do  assumpto, 
os  metros  variam.  A  écloga  undécima  narra  um  episodio 
entre  pastores  que  vendiam  no  mercado  e  uns  estudantes 
que  os  molestam;  é  um  caso  do  tempo,  que  se  narra,  em 
plena  independência,  e  que  assim  afiirma  a  adolescência  do 
espirito  de  Encina,  já  alforriado  da  tutela  religiosa,  sob  que 
nascera  a  sua  inspiração  dramática. 

Na  écloga  de  Plácida  y  Vitoriano,  em  que  já  figuram 
nove  personagens,  narra-se  outro  caso  de  amor,  que  seria 
fatalmente  desgraçado  —  se  não  fosse  a  benéfica  intervenção 
de  Vénus  e  Mercúrio  que  rcsuscitam  e  restituem  a  Victo- 
riano  a  sua  bem  amada  Plácida;  portanto  já  não  ha  simples 
autonomia  do  maravilhoso  christão,  ha  preferencia  pelo  ma- 
ravilhoso pagão  e  até  reducção  do  recato.  Em  Christino  e 
Phebva  o  passo  é  mais  ousado:  é  o  Deus  do  amor,  por  me- 
diação duma  nympba  sua  mensageira,  quem  vence  as  almas 
de  dois  ermitães,  que,  havendo-se  consagrado  ao  serviço  de 
Deus,  o  abandonam  para  regressarem  á  vida  solta  do  século 
e  do  amor. 

Estavam,  pois,  já  dados  por  Juan  dei  Encina  os  passos 
mais  ousados  na  creação  do  theatro  peninsular,  quando  Gi! 
Vicente  fez  a  sua  estreia  em  1502:  nascera  o  género  dra- 
mático de  envolta  com  a  liturgia  catholica,  sob  os  auspícios 
do  mecenatismo  dos  Duques  de  Alba  e  depois  do  príncipe 
D.  João;  das  suas  faixas  infantis  se  fora  desprendendo  para 
ser  um  pouco  theatro  de  costumes  —  simples  conversas  de 
pastores  por  emquanto  — ;  já  lançara  mão  do  maravilhoso 
mythologico  e  até  ousara  tratar  themas  de  amor  com  liber- 
dade, não  só  livremente  os  narrando,  mas  affoitamente  lhes 
pospondo  as  coisas  divinaes.  Estes  mesmos  passos  rapida- 
mente percorre  Gil  Vicente,  com  a  firmeza  e  decisão  rápida 


58  Historia  da  Liitcralura   Clássica 

de  quem  segue  trilho  já  conhecido,  e  chegado  á  phase 
ultima,  "creada  por  Juan  dei  Encina,  alarga-se  não  só  em 
comprehsnsão  de  limites,  mas  também  em  expressão,  se- 
guindo o  próprio  movimento  do  género  e  as  próprias  sollici- 
tações  do  seu  talento  litterario. 

Historiando  a  evolução  do  theatro  vicentino  melhor  se 
destacará  a  parte  que  nesse  theatro  ultrapassou  os  prodro- 
mos  lançados  por  esse  Encina  que,  convém  não  esquecer,  os 
próprios  contemporâneos  de  Gil  Vicente  tiveram  como  seu 
antecessor : 

«  E  vimos  singularmente 

fazer  representações 

de  estilo  mui  eloquente, 

de  mui  novas  invenções 

e  feitas  por  Gil  Vicente  ; 

eile  foi  o  que  inventou 

isto  cá,  e  o  usou 

com  mais  graça  e  mais  doutrina, 

posto  que  João  dei  Enzina 

o  pastoril  começou»  ('). 


('}  V.  Miscellaneaj  Garcia  de  Rezende  no  3.0  vol.  da  Chronica  de 
D.  João  Ilj  pag.  199-200,  ed.  de  1902. 

Muito  pouco  se  sabe  da  vida  de  Gil  Vicente.  Poderia  ter  nascido 
nos  annos  de  1470  e  1475,  data  que  arbitrariamente  lhe  foi  fixada  pela 
sua  declaração  de  ser  velho,  vizinho  da  morte,  em  1531,  numa  carta  a 
D.  João  ih;  o  sr.  Braamcamp  Freire,  num  estudo  notável  publicado  no 
6.°  volume  da  Revista  de  Historia,  propõe  sob  reserva  o  anno  de  1460 
para  data  do  nascimento.  Também  se  não  sabe  a  sua  naturalidade:  das 
suas  obras  apenas  se  conclue  que  muito  bem  conhecia  e  prezava  a  pro- 
víncia da  Beira,  como  primeiramente  notou  o  sr.  Anbrey  Bell.  Gil  Vi- 
cente foi  pessoa  muito  acceita  na  corte,  acceitação  que  terá  tido  bòa 
parte  nos  seus  triumphos  dramáticos  e  que  derivaria  dos  cargos  de 
ourives  da  rainha  D.  Leonor,  viuva  do  rei  D.  João  11,  e  de  mestre  da 
balança  da  Casa  da  Moeda,  de  Lisboa.  Ignora-se  como  e  quando  entrou 
para  o  serviço  da  rainha  velha;  para  a  Casa  da  Moeda  entrou  em  1513, 
segundo  carta  regia   ainda  existente,  cujo  apparecimento  veio  de  vez 


Historia  da  Litteratura  Clássica  59 

i.a  PHASE 

(1502-1508) 

Começou  Gil  Vicente  em  1502  a  sua  carreira  dramática 
peio  monologo  da  Visitação.  Trajado  e  caracterizado  de  pas- 
tor, entrou  de  surpresa  na  camará  da  rainha  D.  Maria,  doente 
do  parto  do  príncipe  D.  João,  futuro  rei,  terceiro  do  nome — 
liberdade  em  parte  explicável  pelo  seu  cargo  de  ourives  da 
rainha  velha.  Ahi  saudou  a  rainha  graciosamente,  fiagindo-se 
deslumbrado  da  opulência  da  camará  e,  chamando  uns  com- 
panheiros, offereceu  uns  presentes  que  elles  traziam.  No 
Natal  seguinte,  em  língua  castelhana  como  o  primeiro  mo- 
nologo, fez  representar  o  Auto  Pastoril  Castelhano,  muito  no 
gosto  de  Encina,  em  que  ainda  se  reconhecem  as  hesitações 
de  quem  tenta  um  género  novo.  Já  tem  dialogo,  mas  ainda 


confirmar  a  identificação  do  poeta  e  do  ourives,  por  ter  no  alto  a  cota 
seguinte  lançada  por  mão  contemporânea :  Gil  Vicente  trovador,  mestre 
da  balança. 

São  poucas  as  datas  positivas  conhecidas  na  sua  biographia.  Em 
1509  é  nomeado  vedor  dos  trabalhos  de  ourivesaria  para  o  Convento  de 
Thomar  e  mosteiro  de  Nossa  Senhora  de  Belém.  Em  1512  é  eleito  para 
a  Casa  dos  Vinte  e  Quatro  e  delegado  dos  mesteiraes  junto  da  vereação 
de  Lisboa.  Em  1513  é  nomeado  mestre  da  balança  da  Casa  da  Moeda, 
de  Lisboa. 

A  sua  estreia  litteraria  fez -se  em  1502,  pelo  Monologo  do  Vaqueiro, 
provado  como  está  pelo  sr.  Braamcamp  Freire  que  a  sua  collaboração 
no  Cancioneiro  Geral,  de  Rezende,  é  de  1509,  por  ter  occorrido  nesse 
anno  o  Processo  de  Vasco  Abul,  em  que  Gil  Vicente  também  deu  o  seu 
parecer.  Em  1506  concluiu  o  poeta-ourives  a  famosa  Custodia  de  Belém, 
lavrada  com  o  ouro  das  primeiras  páreas  trazidas  do  Oriente  por  Vasco 
da  Gama.  Foi  casado  com  Branca  Bezerra,  de  quem  houve  um  filho 
também  Gil,  que  militou  na  índia;  o  sr.  Braamcamp  Freire  fixa  este 
casamento  entre  os  annos  de  1490  a  1492,  mas  sob  reserva.  Em  1520  foi 


60  Historia  da  Litteratura  Clássica 

pouco  mais  é  alem  duma  narrativa.  Havendo  começado  por 
propoT  dois  assumptos,  um  moral,  o  caracter  contemplativo 
do  pastor  Gil,  outro  material,  a  perda  dos  gados  do  pastor 
Lucas,  ambos  esses  assumptos  são  bruscamente  abandona- 
dos; um  anjo  annuncia  o  nascimento  do  Redemptor  e  todos 
partem,  cantando,  para  o  adorar.  Logo  nessa  segunda  peça, 
Gil  Vicente  inclue  o  elemento  coral,  que  é  um  dos  typicos 
componentes  do  seu  theatro  e  que  não  pouco  teria  contri- 
buido  para  a  sua  boa  fortuna.  O  Atito  dos  Reis  Magos,  con- 
servando a  feição  religiosa,  já  comprehende  elementos  novos, 
pois  já  admitte  personagens  não  pastoris,  como  um  ermitão 
e  um  cavalleiro,  mas  ainda  a  todos  reúne  no  mesmo  pro- 
pósito religioso,  que  neste  auto  é  também  a  adoração  do 
Redemptor.  O  Auio  de  S.  Martinho,  incompleto,  contaria  o 
milagre  da  capa  do  santo,  dada  ao  mendigo  da  estrada. 

Estas   quatro  peças,   de  caracter  religioso   e  de  perso- 
nagens pastoris,   constituem   a  primeira  phase  da  evolução 


por  D.  Manuel  i  encarregado  de  dirigir  os  festejes  com  que  o  Município 
de  Lisboa  celebrava  a  chegada  da  rainha  D.  Leonor,  irmã  de  Carlos  v 
e  sua  terceira  mulher,  e  em  1531  intervém  inteligentemente  junto  do 
clero  santareno  que  attribuia  um  recente  tremor  de  terra  ao  desconten- 
tamento com  que  Deus  via  os  christãos-novos  ainda  em  Portugal;  o 
poeta  esclareceu  sensatamente  o  caso  e  conseguiu  apaziguar  os  ânimos. 
Morreu  em  Évora,  provavelmente  em  fins  de  1536.  Têm  controvertido 
os  problemas  da  biographia  de  Gil  Vicente  principalmente  Camillo  Cas- 
♦  ello  Branco,  Sanches  de  Baena,  Sousa  Viterbo  e  os  srs.  Braamcamp 
Freire,  Th.  Braga,  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcellos,  Brito  Rebello 
e  Aubrey  Bell.  Pòde-se'ver  uma  rememoração  das  varias  phases  dessas 
investigações  nas  Notas  Vicentinas  I,  da  sr.a  D.  Carolina  Michaêlis,  Coim- 
bra, 1912,  nas  notas  á  conferencia  CU  Vicente  e  a  sua  obra,  Lisboa,  1914, 
do  sr.  Queiroz  Velloso,  e  na  introducção  ao  artigo  do  sr.  Braamcamp  Frei- 
re, CU  Vicente,  trovador,  mestre  da  balança,  publ.  nos  6.0  e  7.0  vols.  da 
Revista  de  Historia,  Lisboa,  1917  e  1918.  Para  a  bibliographia  destes 
estudos  póde-se  consultar  o  appendice  bibliographico  do  nosso  trabalho 
Critica  Lit  ler  ária  como  Sciencia,  3.*  ed.,  Lisboa,  1920,   pags.   176-180. 


Historia  da  Litteratura   Clássica  61 

dramática  de  Gil  Vicente,  então  ainda  adstricto  á  imitação 
das  éclogas  de  Encina  e  reduzido  a  themas  religiosos,  só  de 
propósitos  apologéticos.  O  caracter  pessimista  e  lyrico  da 
sua  poesia  também  já  se  confessa  nessa  primeira  phase  e 
principalmente  no  inacabado  S.  Martinho. 

A  chronologia  das  rubricas  de  suas  peças,  taes  como  se 
exaram  na  edição  de  1562,  remette  para  este  periodo  inicial 
outras  obras  como  a  Sibylla  Cassandra,  o  Auto  da  Fé  e  o  dos 
Quatro  Tempos,  mas  as  investigações  do  sr.  Braamcamp 
Freire  organizaram  outra  chronologia  mais  de  harmonia 
com  os  successos  coevos.  Ha  que  acatá-la,  ainda  que  nem 
sempre  se  accorde  plenamente  com  a  lógica  evolução  artís- 
tica do  poeta.  Os  argumentos  de  ordem  intrínseca  e  esthe- 
tica  são  muito  contingentes,  mas  para  os  que  sentem  as 
differenças  subtis  da  technica  artística  são  tão  imperiosos 
como  os  da  concreta  historia  episódica.  Estas  perplexidades 
derivam  por  certo  de  que,  se  muitas  vezes  é  possível  fixar  a 
data  da  representação  das  peças,  outras  tantas  é  impossível 
fixar-lhes  a  da  composição,  muito  mais  importante  para  o 
seu  desenvolvimento  artístico. 

Nãp  deixou  também  a  nova  chronologia  de  tornar  mais 
verosímil  a  evolução  espiritual  do  escriptor,  em  alguns  ca- 
sos, e  um  delies  foi  a  deslocação  do  Auto  da  Alma,  de  150S 
para  15 18,  mais  próximo  da  phase  madura  e  quando  elle  re- 
volvia com  inspirada  mão  a  matéria  religiosa  para  compor 
as  suas  Barcas. 

Alliviando-se  de  producção  litteraria  esta  primeira 
phase.  torna- se  também  mais  viável  a  execução  de  numero- 
sas e  complicadas  obras  de  ourivesaria,  que  haverá  que 
attribuir-lhe,  uma  vez  que  se  assente  na  identidade  do  poeta 
com  o  ourives,  a  qual  tem  feito  progressos  importantes. 


02  Historia  da  Litt  era  tara  Clássica 

2.a  PHASE 

(1508-1516) 

A  farsa  de  Quem  tem  farelos?,  representada  em  1508,  ao 
vulgo  e  em  15 n,  no  paço  da  Ribeira,  perante  D.  Manuel  1, 
inaugura  o  seu  theatro  de  critica  social,  que  é  já  um  passo 
muito  além  do  theatro  de  Encina,  exclusivamente  religioso 
ou  lyrico.  Essa  farsa  ainda  não  contem  um  thema  tratado 
completamente,  com  intenção  artística,  intima  e  mais  profunda 
que  a  que  logo  se  apresenta,  não  é  obra  do  moralista  ou  do 
pensador,  que  adiante  se  revelará  Gil  Vicente,  nem  sequer 
do  dramaturgo ;  é  apenas  um  episodio,  um  quadro  do  viver 
commum  da  sociedade  do  tempo.  Dois  creados  conversam; 
através  da  sua  maledicência  sabemos  do  theor  de  vida  do 
escudeiro,  que  um  delles  serve,  o  qual  occulta  sob  a  mais 
blasonante  apparencia  miséria  extrema.  Entretanto  chega 
o  mesmo  escudeiro,  que  debaixo  da  janella  duma  burguesi- 
nha  lança  um  descante  namorado.  Surprehende-os  a  mãe 
desta,  que  esconjura  o  escudeiro  e  reprehende  a  filha.  É  tudo 
—  e  tudo  isto  não  chega  a  ser  theatro.  É  um  estudo  de  typos 
da  epocha.  habilmente  caricaturados,  que  veremos  repeti- 
rem-se  na  obra  de  Gil  Vicente,  e  de  futuro  figurando  já 
como  comparsas  numa  acção,  não  em  ensaios  soltos,- como 
aqui.  São  esses  typos :  os  creados  descontentes  e  maldizen- 
tes, o  fidalgo  pobre,  fanfarrão  e  ocioso,  a  donzella  burguesa 
agastada  da  sua  humilde  condição,  que  muito  presume  das 
suas  prendas,  dada  á  phantasia,  propensa  aos  amores  roma- 
nescos e  enjeitando  o  trabalho,  como  indicio  servil,  e  final- 
mente a  velha  plebêa,  rabujenta,  quasi  bruxa.  A  partir  deste 
feliz  ensaio  —  feliz  pela  mestria  com  que  foi  executado  e 
mais  feliz  pela  popularidade  de  que  veio  a  gozar  —  Gil  Vi- 
cente nunca  mais  abandona  o  theatro  de  satyra  social  e  de 
caricaturas  moraes  e,  segundo  a  lei  do  progresso,  a  da  diffe- 


Historia,  da  Li  l  ler  atura  Clássica  6Í5 

renciação,  diligenciará  discriminar  o  que  é  theatro  litúrgico 
do  que  é  theatro  contemporâneo,  só  mais  tarde  pela  tragico- 
media  vindo  a  crear  um  género  mixto. 

Mais  completo  quadro  é  o  Auto  da  índia,  do  anno  imme- 
diato  ('),  em  que  com  vivos  diálogos  nos  descreve  a  levian- 
dade e  hypocrisia  duma  mulher  que,  alegrando-se  com  a 
ausência  do  marido  numa  armada  na  índia  e  delia  aprovei- 
tando, recebe  amantes  e  se  entrega  á  esperança  de  que  elle 
não  volte.  Mas  elle  regressa  e  a  esposa  infiel  alvoroçada- 
mente finge  júbilos  e  protesta  recatos  e  penas.  Este  typo  de 
mulher  do  povo,  ligeira  e  fácil  nos  amores,  que  perseguia 
com  afan  os  prazeres,  é  muito  vicentino  e  por  todo  o  thea- 
tro se  repetirá  bastas  vezes. 

É  neste  Auto  da  índia  que  se  encontram  aquelles  versos 
muito  citados  pelos  detractores  da  nossa  expansão  maritima 
e  commercial  no  Oriente : 


Fomos  ao  rio  de  Meca, 
Pelejámos  e  roubámos, 
E  muitos  riscos  passámos, 
ÀJ  vela,  e  arvore  sêcca. 

Abarcando  agora  um  vasto  lapso  de  tempo,  o  que  de- 
corria da  partida  do  marido  até  ao  seu  regresso,  ou  sejam 
três  annos,  Gil  Vicente  começava  a  usar  um  expediente  que 
era  na  sua  technica  um  importante  elemento,  mas  que  6 
sempre  um  vicio  contra  a  verosimilhança,  lei  imprescindível 
da  obra  de  arte :  a  dilação  do  tempo  da  acção  com  a  con- 
sequente   precipitação    dos  acontecimentos.    O   Auto  da   Fé, 


(1)  E'  também  de  1509  o  parecer  de  Gil  Vicente  no  Processo  de 
Vasco  Abul.  V.  o  texto  no  Cancioneiro  Geral  de  Garcia  de  Rezende,  e  a 
demonstração  dessa  data  na  obra  fundamental  do  sr.  A.  Braamcamp 
Freire,  Gil  Vicente-trovador,  mestre  da  balança,  Lisboa,  1919,  pag. 
42-44. 


(14  Historia  da  Lit  ter  atura   Clássica 

de  15 io,  decorrido  ainda  entre  pastores,  tem  de  novo  a  in- 
troducção,  como  figurante,  da  personificação  da  Fé,  primeira 
personagem  abstracta  do  theatro  vicentino,  que,  falando  em 
português,  quando  as  outras  personagens  só  falam  em  cas- 
telhano, fcos  pastores  explica  os  mysterios  da  religião. 

No  Auto  das  Fadas  occupa-se  Gil  Vicente  duma  pratica 
muito  divulgada  no  tempo  e  a  um  tempo  receada  e  desejada, 
a  feitiçaria.  Tida  em  desdém  e  perseguida  pelas  justiças,  a 
feitiçaria  quando  se  reduzia  a  certos  limites,  á  previsão  de 
males  e  á  sua  explicação,  era  uma  pratica  inoffensiva  e  até 
pittoresca.  Isso  mostra  Gil  Vicente  audaciosamente,  fazendo 
dessa  matéria  de  desdém  um  objecto  de  gracioso  entreteni- 
mento para  a  corte.  A  feiticeira,  com  sua  barbara  liturgia  e 
mais  bárbaros  exorcismos,  chama  um  frade,  que  discursa 
sobre  o  thema  suggestivo  Amor  omnia  vincit,  thema  de  que 
o  clérigo,  apesar  da  sua  qualidade,  se  mostra  miudamente 
conhecedor.  Nesse  sermão  fervilham  as  allusões  aos  amores 
dos  circunstantes,  tácitos  entendimentos  que  alli  se  denun- 
ciam ou  simples  inclinações  silenciosas  e  discretas,  que  o 
poeta  malevolamente  expõe.  Vêm  depois  as  fadas  marinhas 
que  aos  reis  e  infantes  e  a  alguns  cortesãos  dizem  as  sortes, 
sessenta  e  quatro  sortes  que  indicam  o  limite  minimo  da 
assistência  dessa  representação.  Esta  peça,  que  é  simulta- 
neamente uma  peça  de  costumes,  de  lisonja  cortesã,  senti- 
mento inicial  do  theatro  de  Encina,  pelo  assoalhar  da  intriga 
amorosa  do  paço,  revela  que  Gil  Vicente  alli  occupava 
situação  tal  que  lhe  permittia  a  miúda  observação  dos  mais 
íntimos  segredos  e  a  livre  satyra,  sem  se  temer  de  inimiza- 
des. Um  poeta  cómico,  espécie  de  jogral  medievo,  que  fosse 
chamado  ao  paço  para  dar  as  suas  representações  scenicas 
espaçadas,  não  se  julgaria  em  situação  segura  para  o  fazer; 
seria  sempre  um  dependente  e  receoso  subalterno. 

Os  clérigos  continuaram  e  os  médicos  começaram  a 
experimentar  a  satyra  de  Gil  Vicente  na  Farsa  dos  Pkysicos, 
de   15 12.  Um  clérigo,  contra  as  prudentes  advertências  dum 


Historia  <ht  ÍÂUemtum  Clássica '  65 


creado  desabusado,  deixase  tomar  de  peccaminosa  paixão 
por  uma  moça,  que  o  desdenha.  Adoece  e  vêm  physicos, 
cada  qual  com  seu  diagnostico  e  sua  therapeutica,  e  até  com 
seu  estribilho.  Um  confessor,  que  ouve  o  doente  de  paixão 
e  que  parece  mais  versado  nesses  mysterios  do  amor,  escla- 
rece-o  da  natureza  do  mal  e  dá-lhe  indulgências  generosas. 
Pelo  prazo  de  duração  da  doença,  que  declara  a  cada  um 
dos  quatro  médicos,  e  que  é  cada  vez  maior,  se  reconhece  o 
propósito  do  poeta  representar  um  longo  percurso  de  tempo, 
que  no  caso  presente  é  de  dez  dias.  Lembremonos  de  que 
no  Auto  da  índia  era  de  dez  annos. 

No  Velho  da  Horta  é  ainda  um  episodio,  que  se  narra, 
um  quadro  da  epocha,  em  torno  das  tontarias  dum  velho, 
serôdio  apaixonado  duma  moça,  que  o  auctor  faz  casar  com 
noivo  digno;  nelle  nos  descreve  um  typo  novo,  a  alcoviteira, 
ihteresseira,  perseguida  pela  justiça.  Mais  ainda  que  nos 
antecedentes,  o  dialogo  desta  peça  é  de  grande  naturalidade, 
graciosamente  encadeado,  denotando  uma  grande  observa- 
ção do  fallar  popular,  das  reacções  de  certos  espíritos  vul- 
gares ao  que  lhes  diz  o  interlocutor.  A  Exhortação  da  guerra, 
de  15 13,  retocada  em  1534,  é  a  primeira  tragi-comedia  vicen- 
tina, género- mixto  de  assumpto  grave,  tratado  em  grande 
liberdade,  que  admítte  a  satyra  cómica,  soltura  de  linguagem, 
a  heteróclita  promiscuidade  de  personagens.  Não  se  pode 
fixar  a  data  do  apparecimento  desta  nova  maneira  do  theatro 
de  Gil  Vicente,  porque  a  obra  contem  allusões  a  aconteci- 
mentos posteriores  á  data  consignada  na  rubrica  ;  ou  soffreu 
retoques  ou  essa  data  não  é  exacta,  como  acontece  a  outras 
semelhantes.  A  tragi-comedia  vicentina,  pela  liberdade  de 
composição,  \  da  heterogeneidade  das  personagens,  corres- 
ponde á  moderna  magica.  O  elemento  grave  da  Exhortação 
da  guerra  é  o  quadro  final,  apotheose  patriótica,  a-proposito 
glorificador  do  rei  D.  Manuel  I,  que  então  mandava  uma 
expedição  ao  norte  da  Africa. 

Na  Sybilla  Cassandra  reapparece  o  velho  thema  religioso 

j{.    1M    L.    ClArfltCA,    VOl.    1."  5 


6K  Historio,  da  Litterctfura  Cia 

da  adoração  do  Redemptcr,  apenas  retardado  pelos  diálo- 
gos, naturaes  e  graciosos,,  em  torno  da  presumpção  de  Cas- 
sandra, que  se  não  quer  casar  por  julgar  que  delia  nasceria 
o  Senhor. 

Na  Comedia  do  Viuvo  se  narra  a  romanesca  ave 
dum  namorado,  nobre  senhor  de  grande  nascimento,  simul- 
taneamente apaixonado  por  duas  irmãs  orphãs  de  mãe,  para 
seguir  as  quaes  se  disfarça  de  pastor,  que  o  viuvo,  pae 
delias,  toma  a  seu  serviço.  O  apparecimento  dum  irmão  do 
falso  pastor,  que  o  vem  procurando,  favorece  o  desfecho,  e 
as  duas  irmãs  casam  com  os  dois  irmãos.  E  uma  passagem 
curiosa  na  peça  o  contraste  entre  a  saudade  da  mulher 
morta,  que  a  cada  momento  o  viuvo  vivamente  confessa,  e 
o  tédio  que  da  mulher  viva  inflamma  um  seu  compadre.  Esta 
peça,  ainda  que  á  primeira  vista  o  não  pareça,  também  é 
portadora  de  algum  elemento  novo  no  theatro  vicentino;  eUa 
introduz  o  maravilhoso  romanesco  ao  serviço  do  amor.  Essa 
pratica  ao  depois  tão  usada  e  abusada  nos  romances  quinhen- 
tistas, que  nas  complicações  desse  maravilhoso  romanesco 
cifrariam  o  seu  maior  interesse,  como  demonstração  das 
habilidades  e  atrevimentos  de  que  é  capaz  o  amor,  essa  pra- 
tica usa-a  sempre  Gil  Vicente,  muito  comedidamente,  não 
só  por  força  da  mesma  brevidade  do  auto,  mas  também  por 
causa  do  espirito,  que  anima  esses  disfarces  e  aventuras,  o 
amor  muito  burguês  que  pelo  casamento  conclue  e  se  satis- 
faz; não  pode  ter  as  complicações  intrincadas  do  romance, 
nem  tem  a  plangencia  de  fatalidade  irremediável. 

No  Auto  da  Fama  é  o  elemento  patriótico  da  Exhortação 
da  guerra  que  toma  corpo  e  que  constitue  o  próprio  assumpto 
da  peça.  Uma  pastora  humilde  symbollza  a  fama  portuguesa, 
rendidamente  sequestrada  e  em  vão  por  um  francos,  que 
representa  a  França,  por  um  italiano,  que  representa  a  Itália, 
e  igualmente  por  um  castelhano.  A  todos  resiste,  oppondo 
aos  próprios  louvores,  que  aquelles  desfiam,  o  elogio  calo- 
roso dos  feitos  portugueses,  os  descobrimentos  e  conquistas 


Historia  da  Lit ter 'atura  Clássica  67 

do  ultramar,  então  ainda  recentes.  Finalmente  a  Fé  e  a  For- 
taleza vêm  coroar  a  pastora  —  a  fama  portuguesa,  que  posta 
em  carro  triumpbal  ó  conduzida  entre  musicas,  depois  da  Fé 
recitar  uma  apologia.  Não  havia  para  os  meios  do  tempo, 
num  theatro  incipiente,  modo  mais  saliente,  mais  intenso  e 
eloquente  de  lisonjear  o  rei  do  que  esta  allegoria  patriótica. 
A  apotheose,  que  o  século  XIX  tanto  usaria  e  que  o  theatro 
popular  cansaria,  inventou-a  Gil  Vicente,  no  século  XVI,  no 
momento  histórico,  em  que  assistia  á  consumação  dos  gran- 
des feitos.  O  encómio  final,  recitado  pela  Fé,  é  metrificado 
noutra  medida,  em  verso  heróico,  que  se  vê  ser  já  então 
praticado,  mas  as  oitavas  vicentinas  perdem  a  naturalidade 
e  fluência  de  seus  versos  curtos,  sem  ganharem  a  grandilo- 
quencia  que  lhes  é  própria.  A  epopêa  não  era  o  pendor 
espontâneo  da  musa  vicentina.  Não  deixa  de  ser  elucidativa 
a  comparação  dos  modos  por  que  o  poeta  cómico  e  o  poeta 
épico -exprimem  o  mesmo  pensamento:  o  maior  valor  dos 
feitos  reaes  dos  portugueses  ante  os  feitos  fabulosos  da  anti- 
guidade heróica: 

«  Os  feitos  Troianos,  também  os  Romãos, 
Mui  alta  Princeza,  que  são  tão  louvados, 
E  neste  mundo  estão  collocados 
Por  façanhosos  e  por  muito  vãos, 
Em  o  regimento  de  seus  cidadãos, 
E  alguas  virtudes  e  moraes  costumes, 
Vós,  Portugueza  Fama,  não  tenhais  ciúmes, 
Que  estais  collocada  na  flor  dos  Christãos.» 

F.m  Camões: 

Cessem  do  sábio  grego,  e  do  Troiano 
As  navegações  grandes  que  fizeram, 
Calle-se  de  Alexandre  e  de  Trajano 
A  Fama  das  victorias  que  tiveram  ; 
Que  eu  canto  o  peito  illustre  Lusitano 
A  quem  Neptuno  e  Marte  obedeceram  : 
Cesse  tudo  que  a  Musa  antiga  canta ; 
Que  outro  valor  mais  alto  se  alevanta. 


68  Historia  da  Litter atura   Clássica 

Ouvi,  que  não  vereis  com  vãs  façanhas, 
Phantasticas,  fingidas,  mentirosas, 
Louvar  os  vossos,  como  nas  estranhas 
Musas,  de  engrandecer-se  desejosas : 
As  verdadeiras  vossas  são  tamanhas, 
Que  excedem  as  sonhadas,  fabulosas  ; 
Oue  excedem  Rodamonte,  e  o  vão  Rogeiro, 
E  Orlando,  inda  que  fora  verdadeiro.» 

Mesmo  depois  de  abatidas  as  circunstancias  dos  dois 
momentos  em  que  os  poetas  escreveram,  é  evidente  o  con- 
traste. A  boa  acceitação  desta  peça  de  apologia  está  implí- 
cita na  declaração  da  rubrica  de  se  haver  repetido,  declara- 
ção que  outras  peças  não  contêm. 

E'  nesta  altura  da  carreira  dramática  do  Gil  Vicente 
que  o  sr.  Braamcamp  Freire  colloca  a  representação  do 
Auto  da  Festa,  que  o  sr.  Conde  de  Sabugosa  possue  em  fo- 
lheto volante  e  que  o  mesmo  escriptor  divulgou  e  estudou 
em  1906,  Lisboa,  Auto  da  Festa,  Obra  desconhecida  com  uma 
explicação  previa.  O  sr.  Braamcamp  fundamenta  o  seu  alvitre 
do  modo  seguinte:  Gil  Vicente,  só  no  estado  de  viuvez  po- 
deria incluir  estes  versos  no  auto,  em  que  são  ditos  pela 
personagem  designada  de  Velha: 

Olhay,  filho,  eu  vos  direy, 
lá  me  a  mim  mandou  rogar 
muitas  vezes  Gil  Vicente, 
que  faz  os  autos  a  Elrey, 
porem  eu  não  vou  contente, 
antes  me  assy  estarey. 

Em  15 14  o  poeta  estava  viuvo,  em  15 17  estava  já  cas;  do 
de  novo,  segundo  o  seu  erudito  biographo,  e  neste  currículo 
só  ha  disponível  para  attribuição  da  peça  o  Natal  de  15 15. 
Porem,  como  conciliar  este  corollario  com  a  premissa  do 
mesmo  sr.  Braamcamp  Freire  que  estabelece  como  provável 
o  nascimento  do  poeta  em  1460?  Em  15 15,  havendo  nascido 


Historia  da  lÂttcr  atura  Clássica  69 

em  1460,  o  comediographo  não  poderia  passar  dos  sessenta 
annos,  como  elle  mesmo  declara,  num  passo  muito  próximo 
do  allegado  pelo  seu  insigne  biographo.  Sollicitada  a  dizer 
por  que  recusava  ao  poeta  para  marido,  a  Velha  respondeu : 

He  logo  mui  barregudo 
E  mais  passa  dos  sessenta. 

Estes  versos  não  merecerão  menos  credito  que  os  que 
indirectamente  alludem  á  sua  viuvez.  Nesta  allusão  á  sua 
idade,  se  ateve  o  sr.  Conde  de  Sabugosa  para  propor  a  data 
de  1532.  Contando  desde  1470,  anno  que  este  escriptor  toma 
para  nascimento  do  poeta,  passaria  este  dos  sessenta  em 
1470.  Percorrendo  um  a  um  os  annos  que  medeiam  de  1530 
até  1536,  ultimo  da  sua  carreira  dramática,  só  ha  dois  Nataes 
disponíveis  para  essa  attribuição,  o  de  1532  e  o  de  1535.  E' 
este  ultimo  o  adoptado  pelo  sr.  Conde  de  Sabugosa. 

Esta  segunda  hypothese  é,  em  nosso  parecer,  mais 
coherente  com  as  premissas  acceitas  pelo  demonstrador,  mas 
contraria  a  data  de  1460,  do  sr.  Braamcamp  Freire,  por  que 
optamos,  e  não  se  harmoniza  muito  com  a  evolução  artística 
do  poeta.  A  estructura  da  obra  é  vicentina  plenamente,  mas 
é  tarda,  atrazada  digamos  mesmo,  em  relação  á  maturidade 
espiritual  de  quem  já  em  1535  havia  produzido  as  suas 
obras  primas,  de  lyrismo,  de  graça,  de  satyra,  de  naturali- 
dade no  dialogo,  de  necessidade  na  composição.  Contando 
desde  1460,  Gil  Vicente  teria  em  1520  sessenta  annos  per- 
feitos; poderia  representar  no  Natal  desse  anno  de  1520  o 
Auto  da  Festa  a  um  particular,  porque  desse  Natal  não  ha 
noticia  de  representação  de  qualquer  auto  vicentino  e  porque 
a  ausência  da  corte  em  Évora  até  fim  de  dezembro  e  a  pre- 
sença do  escriptor  em  Lisboa  não  contrariam  a  hypothese. 
A  morte  de  D.  Manuel  em  Dezembro  do  anno  immediato 
já  não  permitte  que  alem  dessa  data  se  passe. 

O  auto  não  foi  incluído  na  edição  das  suas  obras  com- 


70  Historia  da  Litteratura  Clássica 

pletas,  em  1562,  mas  delle  extrahiu  o  poeta  trechos  impor- 
tantes para  o  Templo  de  Apollo,  de  1526.  Não  indicarão  estes 
factos  que  o  escriptor  enjeitara  a  obra,  depois  de  lhe  apro- 
veitar d  trecho  e  os  pensamentos  que  mais  prezava?  E  uma 
pratica  frequente  em  escriptores  d'arte,  revelada  pela  indis- 
creta publicação  dessas  obras  enjeitadas  e  pela  critica  de 
fontes. 

O  Atito  da  Festa  é  das  obras  mais  obscuras  e  descuida- 
das de  Gil  Vicente  e  o  Templo  de  Apollo  está  também  longe 
das  mais  características  ou  mais  formosas,  mas  de  modo 
geral,  o  trecho  do  primeiro,  que  passou  ao  segundo,  melhorou 
cem  a  revisão,  umas  vezes  na  clareza,  outras  na  metrificação. 
E  a  confirmar  a  posterioridade  do  Templo  de  Apollo  está  aquelle 
verso 

carpir  ninguém  no  mosteyro 

em  que  por  influencia  do  texto  primitivo  o  templo  de  Apollo 
é  chamado  christã  e  impropriamente  de  mosteiro. 

Todo  o  conteúdo  do  Auto  da  Festa  o  encontramos  disse- 
minado por  outras  obras,  com  maior  fortuna,  ainda  a  sua 
philosophia  triste  de  scepticismo  e  as  suas  mais  typicas 
personagens. 

3.a    PH  ASE 

(1516. 1536) 

Nesta  altura  da  sua  evolução  dramática,  depois  de  feita 
uma  larga  aprendizagem  da  scena  e  de  um  a  um  haver 
achado  por  sua  experiência  os  elementos  da  innovação  pro- 
gressiva, acura-se  Gil  Vicente  em  obter  a  maior  expressão, 
mais  perfeito  relevo  e  aproveitamento  artístico  dos  seus 
achados.  Então,  com  maior  fecundidade  produz  as  suas 
obras-primas  no  theatro  litúrgico  e  no  theatro  de  critica 
social;   então   se   verifica  a  differenciacão  em   algumas  das 


Historia  rfa  Litteratura  Classiea  71 


suas  poças,  que  são  por  isso  as  suas  obras-primas :  a  um 
lado  a  veia  cómica  e  o  látego  da  satyra;  a  outro  o  pensador 
cbristão,  preoccupado  do  bom  emprego  da  vida. 

É  a  famosa  trilogia  das  Barcas,  que  inaugura  este 
período.  Compõem-na  três  peças,  intituladas  respectiva- 
mente Auto  da  Barca  do  Inferno,  representada  em  1516  na 
camará  da  rainba  D.  Maria,  Auto  da  Barca  do  Purgatório, 
representada  em  1518  no  hospital  de  Todos  os  Santos 
perante  a  rainha  D.  Leonor,  e  Auto  da  Barca  da  Gloria,  em 
15 19.  em  Almeirim,  perante  o  rei  D.  Manuel  1.  O  agudo 
espirito  critico  de  Gil  Vicente,  a  sua  veia  satyrica  servindo 
aquelle,  a  sua  severa  consciência  de  cbristão,  a  sua  indepen- 
dência e  o  seu  génio  creador  deram  se  as  mãos,  e  Gil 
Vicente  pôde  reunir  os  seus  dotes  artísticos  e  os  seus  pro- 
pósitos sociaes  com  o  máximo  relevo  da  expressão  numa 
obra,  cuja  composição  elle  mesmo  creou.  Como  no  Auto  da 
Alma,  o  poeta  quinhentista  usou  na  sua  máxima  extensão 
da  liberdade  permiítida  no  theatro  litúrgico,  cujas  bases 
estão  previamente  fixadas  pela  orthodoxia  religiosa ;  fez 
mysterio  religioso,  porque  reconstituiu  factos  e  verdades 
estabelecidas  pela  religião  christã,  que  delias  mesmas  se 
não  pôde  affastar  porque  são  pedras  angulares  do  seu  edifí- 
cio, dogmas:  a  immortalidade  da  alma;  o  principio  do  bem  e 
do  mal  e  suas  tentações;  a  liberdade  de  escolha  entre  as 
tentações  dum  e  doutro;  a  responsabilidade  que  d'ahi  se 
deriva;  o  julgamento  em-pós  a  morte  e  a  distribuição  das 
almas  pelo  inferno  e  pelo  paraizo.  Um  dramaturgo  medíocre, 
em  quem  escasseasse  o  génio  inventivo,  contaria  tudo  isto, 
animaria  apenas  por  meio  do  dialogo  e  das  personagens  o 
texto  litúrgico,  conseguindo,  quando  muito,  maior  vigor  de 
expressão,  mais  intensa  suggestão,  e  os  sentimentos  que 
provocaria  não  seriam  decerto  sentimentos  estheticos  de 
belleza,  mas  comparáveis  ao  soffrimento  physico;  a  vista  do 
inferno  e  a  presença  dos  horrores  do  inferno  infundiriam 
terror:  a  descripção  da  vida  do  paraizo  ajudaria  pelo  inte" 


72  Historia  da  Látter atura   Clássica 

rcsse  do  gozo  a  doutrinação  a  conseguir  o  seu  fiai.  Eram 
assim  os  mysterios  medievos.  Mas  não  os  pratica  desse 
modo  Gil  Vicente. 

Abicadas  á  praia  estão  duas  barcas:  a  que  conduz  ao 
Céo  e  a  que  conduz  ao  Purgatório  e  Inferno.  A  primeira  é 
tripulada  por  anjos,  a  segunda  pelo  diabo  e  seus  compa- 
nheiros. A  margem  vêm  chegando  as  almas  dos  recem- 
mortos,  que,  segundo  o  seu  próprio  juizo,  julgam  haver 
merecido  por  suas  acções  embarcar  na  barca  que  conduz  á 
mansão  celeste.  Ahi  decorre  o  seu  julgamento,  em  que  são 
accusadores  o  anjo  arraes  e  o  diabo-arraes  e  elles  seus  úni- 
cos defensores.  Verdadeiramente  quem  os  julga  é  a  satyra 
vicentina  ao  serviço  das  concepções  moraes,  sociaes  e  reli- 
giosas do  poeta,  e  nesses  juizos  consiste  a  originalidade  e 
belleza  da  obra;  belleza  de  fluência  no  dialogo,  de  graça 
effusiva,  de  incisiva  e  pungente  mordacidade,  de  idéas  sãs  e 
claras;  originalidade  de  trazer  progresso  a  um  género  em 
via  de  se  extinguir,  o  mysterio,  e  de  erguer  a  critica  social 
no  theatro  a  urna  altura  de  independência  e  a  uma  extensão 
de  alcance,  naquelle  tempo  inteiramente  desconhecidas.  No 
primeiro  auto,  comparecem  e  embarcam  na  barca  do  inferno 
um  fidalgo  que  desprezou  os  pequenos;  um  onzeneiro,  a 
quem  o  próprio  orneio  condemnava;  um  parvo  salvo  pela 
própria  pobreza  de  espirito;  um  sapateiro  que  durante  bem 
trinta  annos  roubou  o  povo  com  seu  officio;  um  padre  brigão 
que  cohabitou  maritalmente;  uma  mulher,  Brígida  Vaz,  que 
exerceu  o  officio  de  proxeneta;  um  corregedor  que  prevari- 
cou: um  judeu  porque  escarnecia  dos  mysterios  da  Igreja; 
e  um  enforcado  já  condemnado  pelos  juizes  da  terra.  Apenas 
se  salvam  quatro  cavalleiros  de  Christo,  que  haviam  morrido 
em  Africa,  batalhando  pela  cruz  e  que  á  praia  acodem,  can- 
tando: 


Historia  da  Lilteratura  Chssim  73 

«  Á  barca,  á  barca  segura, 
Guardar  da  barca  perdida  ; 
Á  barca,  á  barca  da  vida. 
Senhores,  que  trabalhais 
Pola  vida  transitória, 
Memoria,  por  Deus,  memoria 
Deste  temeroso  cais. 
Á  barca,  á  barca,  mortaes ; 
Porém  na  vida  perdida 
Se  perde  a  barca  da  vida.» 

Promptamente  os  acolhe  o  anjo-arraes  no  seu  batel: 

Ó  cavalleiros  de  Deos, 
A  vós  estou  esperando  ; 
Que  m&rrestes  pelejando 
Por  Christo,  Stnhor  dos  Ceos. 
Sois  livres  de  todo  o  mal, 
Sanctos  por  certo  sem  falha; 
Que  quem  morre  em  tal  batalha 
Merece  paz  eternal». 

Neste  fecho  se  cifra  a  moralidade  da  peça;  a  canção  dos 
cavalleiros  é  um  aviso  ao  auditório;  a  fala  do  anjo,  em 
elogio  dos  cavalleiros.  é  o  contraste  moralizador  que  se 
oppõe  aos  modos  de  viver,  anteriormente  alludidos  e  con- 
demnados,  é  a  apologia  da  despreoccupação  dos  bens  terre- 
nos e  da  vida  dada  em  sacrifício  pela  Fé.  Esta  concepção 
moral,  da  forma  da  vida,  tida  como  suprema,  pôde  parecer 
um  pouco  em  contradicção  com  a  liberdade  critica  demons 
trada  por  Gil  Vicente  e  peccar  por  muito  unilateralmente 
exclusiva.  Devemo-nos,  porem,  lembrar  que  o  poeta  ensce- 
nava  as  suas  peças  na  corte  de  D.  Manuel  I,  em  pleno 
apogeu  das  empresas  ultramarinas,  ao  qual  decerto  muito 
agradaria  ver  apontar  com  tão  grande  o  bella  expressão 
artistica  um  modo  de  vida,  inteiramente  de  accordo  com  a 
sua  politica  militar  e  religiosa.  Gil  Vicente  era  uma  conscien- 


74  Historia  da  Litter -atura  Clássica 

cia  altamente  religiosa  e  aquelle  processo  de  apreciar  os 
actos  moraes  pela  sua  máxima  extensão,  só  Kant  o  ensinou 
muito  mais  tarde...  sem  ter  sido  ouvido. 

No  segundo  auto,  continua  o  julgamento  e  a  distribui- 
ção das  almas  pelas  barcas.  São  ainda  typos  de  variadas 
classes  sociaes :  o  lavrador,  que  tendo-se-lhe  em  conta  as 
suas  fadigas  e  suores  vae  para  o  purgatório  a  purificar-se; 
Martha  Gil,  lavradora  e  colareja,  que  pequenos  delictos  pra- 
ticou, pelo  que  fica  na  zona  intermédia  do  Purgatório;  o  pas- 
tor que  tem  a  mesma  sentença;  um  taful  que  é  condemnado; 
e  uma  creança  pura  de  peccados  que  é  levada  para  o  pa- 
raíso. 

No  terceiro  auto,  todo  escripto  em  iingua  castelhana, 
as  personagens  não  são  extrahida^  das  baixas  ou  medias 
classes,  como  ncs  dois  anteriores,  nem  os  delictos  para  cas- 
tigar são  tão  attenuados  como  no  segundo.  Perante  a  rea- 
leza, o  mais  alto  clero  e  a  mais  alta  nobreza,  o  dramaturgo, 
sob  o  disfarce  litterario,  permitte-se  censurar  alguns  repre- 
sentantes da  realeza,  do  alto  clero  e  da  alta  nobreza.  O  uso 
tão  amplo  da  sua  natural  independência  critica  só  se  explica 
por  segura  situação  na  corte,  como  seria  a  de  funccionario, 
ourives  da  rainha  viuva  e  mestre  da  balança  na  Casa  da 
Moeda,  qualidades  em  que  poderia  agradar  aos  reis  e  ga- 
nhar-lhes  ascendente  e  jus  á  protecção.  A  justificação  de 
que  perante  a  Morte  e  os  juizos  de  Deus  todos  são  iguaes 
—  única  litterariamente  allegavel  —  não  colheria  no  animo 
daquelles  que  se  vissem  aggredidos  na  sua  prosápia  com 
baldas  certas.  E  effecti vãmente  como  uma  justificação  da 
liberdade  irreverente  da  peça  que  se  vae  representar,  que 
nós  interpretamos  o  dialogo  preliminar  entre  a  personifica- 
ção da  Morte  e  o  Diabo,  espécie  de  prologo  em  que  o 
auctor  se  desculpa  e  visa  a  produzir  a  consciência  do  fim 
próximo,  sentimento  muito  christão: 


Historia  da  JÂtleratura  Clássica  76 


Diabo  ao  seu  companheiro :   <Patudo,  vé  muy  saltando, 
Llamame  la  Muerte  acá ; 
Dile  que  ando  navegando, 

Y  que  la  estoy  esperando, 
Que  luego  vuelverá. 

(Vem  a  Morte) 

Morte  —  Quê  me  quieres  ? 

Diabo  ~  Que  me  digas  porque  eres 
Tanto  de  los  probreeitos? 
Bajos  hombres  y  mugeres, 
Destos  matas  cuantos  quieres, 

Y  tardan  grandes  y  ricos. 
En  el  viage  primero 

Me  enviaste  oficiales : 

No  fue  más  que  un  caballero, 

Y  lo  ai,  pueblo  grosero. 
Pejaste  los  principales 

Y  villanage 

En  el  segundo  viage, 
Siendo  mi  barco  ensecado. 
A  pesar  de  mi  linage, 
Los  grandes  de  alto  estado 
Como  tárdan  en  mi  pasage ! 

Morte  —  Tienen  más  guaridas  esos, 
Que  lagartos  de  arenal. 

Diabo  —  De  carne  son  y  de  huesos, 

Vengan,  vengan,  que  son  nuesos, 
Nuestro  derecho  real. 

Morte  —  Ya  lo  hiciera, 

Su  deuda  paga  me  fuera ; 
Mas  el  tiempo  le  dá  Dios, 
E  preces  le  dan  espera, 
Pêro  deuda  es  verdadera, 

Y  los  porné  ante  vós. 
Voyme  allá  de  soticapa 
A  mi  estrada  seguida, 
Verás  como  no  me  escapa 
Desde  el  Conde  hasta  el  Papa  ». 


76  Historia  da  Litteratura  Clássica 

E  realmente,  desde  um  Conde  até  ao  Papa,  grandes 
personagens  acodem  á  praia,  a  embarcar-se  para  a  viagem 
ultima  ;  Gil  Vicente  só  mostra  excepcional  benevolência  ao 
pôr  na-bocca  do  anjo-arraes  da  Barca  do  Paraizo  uma  prece 
á  Virgem  por  todas  essas  grandes  personagens  que  vão 
apparecer  no  severo  tribunal...  da  consciência  do  mesmo 
Gil  Vicente: 

«  Ó  Virgen  nuestra  Seriora, 
Sed  vós  su  socorredora 
En  la  hora  de  la  muerte  ». 

Vem  um  conde,  confiado  no  seu  dinheiro,  que  viveu 
vida  vici  osa,  dado  a  amores  levianos,  desdenhoso  para  os 
pobres  e  despreoceupado  dos  seus  deveres  religiosos;  vem 
um  duque,  a  quem  se  não  attribue  mais  culpa  que  a  própria 
grandeza,  o  seu  castello  amarello  que  elle  suppunha  de  oiro; 
vem  um  rei  que  ouviu  lisonjas,  que  se  deixou  adorar  como 
se  não  fosse  da  terra,  que  se  encolerizou  com  os  grandes, 
desprezou  os  pequenos  e  fulminou  injusta  guerra;  um  impe- 
rador desvairado  e  cruel;  um  bispo  desde  a  juventude  des- 
posado e  com  filhes;  um  arcebispo  que  se  desfruetou  de 
dinheiros  dos  pobres  confiados  á  sua  guarda;  um  cardeal 
despeitado  porque  não  conseguira  a  tiara  pontifícia;  um 
papa  tyranno,  mundano,  luxurioso,  soberbo  e  que  praticara 
a  simonia.  Em  vão  todos  se  responsam  ansiosamente;  taes 
responsos  tardios  são,  qualifica-os  o  poeta,  como  cevada  lan- 
çada a  asno  morto.  A  todos  o  diabo-arraes  embarca  no  seu 
batel.  Para  o  papa,  é  Gil  Vicente  acintosamente  severo  : 

Papa  ao  Diabo  —  «  Sabes  tu  que  soy  sagrado 
Vicário  en  el  santo  templo  ? 
Diabo  —  Cuanto  mas  de  alto  estado, 
Tanto  mas  es  obligado 
Dar  á  todos  buen  ejemplo, 
Y  ser  Ilano, 
Á  todos  manso  y  humano. 


Historia  da  Ldtteratura  Clas*>  77 

Cuanto  más  ser  de  corona, 
Antes  muerto  que  tirano, 
Antes  pobre  que  mundano  ; 
Como  fue  vuestra  persona. 
Lujuria  os  desconsagró, 
Soberbia  os  hizo  dano  ; 

Y  lo  más  que  os  condanó, 
Simonia  con  engano. 
Venid  embarcar. 

Veis  aquellos  azotar 

Con  vergas  de  hierro  ardiendo, 

Y  despues  atanazar  ? 
Pués  alli  hábeis  de  andar 
Para  sempre  padeciendo». 

E  conde,  duque,  rei  e  imperador,  e  bispo,  arcebispo, 
cardeal  e  papa,  em  grande  desolação,  todos  vêem  partir  a 
barca  do  Paraizo,  cujos  arraes — novo  signal  da  já  referida 
benevolência  de  excepção  — ,  ainda  os  lastima: 

«  Pésanos  tales  senores 
Iren  á  aquellos  ardores 
Animas  tan  escogidas.  » 

E  é  ainda  por  excepcional  benevolência,  que  grande- 
mente contradiz  todo  o  entrecho  do  auto,  que  Gil  Vicente 
os  salva;  quando  a  barca  do  Paraizo  desfere  as  velas,  os 
pobres  condemnados  erguem  aos  céus,  em  grita,  afflictivas 
preces,  e  essas  preces,  sem  duvida  só  por  serem  de  «almas 
tão  escolhidas»  são  ouvidas.  Assim  remata  o  poeta:  «e  veio 
Christo  da  resurreição,  e  repartio  por  elles  os  remos  das 
chagas  e  os  levou  comsigo.» 

Este  termo   da  inesperada  e  injustificada  apparição  de 


78  Historia  du  Látteratura  Clássica 

Ckristo  é  um  deus  ex  machina,  artificio  pouco  feliz  com  que 
Gil  Vicente  quiz  attenuar  o  desconsolador  effeito  moral  do 
seu  auto  ou  reduzir  a  sua  liberdade  critica  ou  satisfazer 
sentimentos  aristocráticos  de  jerarchia  a  que  não  podia  ser 
estranho,  como  homem  do  século  XVI,  catholico  e  cortesão 
dum  soberano  que  engrandeceu  o  poder  real. 

Gil  Vicente  escreveu  o  seu  theatro  para  ser  immediata- 
rnente  representado,  elle  mesmo  o  ensaiava  e  enscenava, 
adaptando-o  provavelmente  aos  lugares  e  tendo  em  conside- 
ração os  actores,  com  que  contava  e  o  publico  para  que  o 
destinava.  Nós  temos  de  fazer  o  nosso  juizo  exclusivamente 
sobre  a  leitura,  leitura  dum  texto  defeituoso  e  guiando  nos 
por  uma  chronologia  ou  manifestamente  errada  ou  discutivel. 
Esta  circunstancia  adversa  limita-nos  a  justeza  da  apreciação 
do  seu  theatro.  A  magnificente  belleza  de  alguns  effeitos 
scenicos  escapa-nos,  como  nos  escapa  o  papel  sem  duvida 
muito  influente  das  suas  canções  e  coros,  da  maioria  dos 
qiu-.es  não  possuímos  mais  que  o  titulo,  nem  a  letra,  nem  a 
musica.  Vem  isto  a  propósito  porque,  mais  duma  vez,  nos 
acodem  duvidas  sobre  o  arranjo  scenico  das  personagens. 
Quando  Gil  Vicente  auetor,  levado  pelo  no  da  peça,  por 
algum  principal  dialogo,  se  esquecia  das  personagens  que 
tinha  em  scena,  certo  seria  que  Gil  Vicente  ensaiador, 
habilidosamente  remediaria  a  difficuldade  com  arranjos  de 
occasião,  entradas  e  sabidas,  pequenos  grupos,  falsos  diálo- 
gos e  outros  artifícios.  Esta  duvida  nos  occorre  acerca  da 
Barca  do  Parai zo ;  nos  autos  anteriores  as  differentes  perso- 
nagens vão  conversando  com  os  que  vêm  chegando  e  vão 
embarcando.  Mas  no  terceiro  auto,  que  fazem,  na  praia, 
grupados  até  final,  os  altos  magnates  e  soberanos?  Neste, 
como  noutros  pontos  do  theatro  vicentino,  não  ha  possibili- 
dade de  fazer  estudo  completo,  emquanto  se  não  conseguir 
representar  esse  theatro,  pelo  menos  as  principaes  peças,  as 
que  são  como  que  marcos  miliarios  de  evolução.  Referi- 
mo-nos  a  uma  representação  critica,  com  os  textos  authenti- 


Historia  da  LU  ter  atura  Clássica  79 

cos,  sem  serem  adulterados  para  facilitar  uma  mal  entendida 
vulgarização.  (') 

A  rubrica  da  edição  de  1562,  que  precede  o  Auto  da 
Alma,  fixa  a  sua  representação  em  1508,  mas  o  sr.  Braam- 
camp Freire  remette-a  para  15 18,  com  o  fundamento  de  que 
nas  Endoenças  de  1508  estava  D.  Manuel  ausente  na  Cha- 
musca, e  não  podia  portanto  assistir  nos  Paços  da  Ribeira  á 
representação. 

Artisticamente,  o  Auto  da  Alma  presuppõe  maturidade  e 
senhorio  das  faculdades   mestras   de  technica  e  inspiração, 


(!)  Nos  annos  de  1910  u  1914  operou-se  em  Portugal  utn  synipa- 
thico  movimento  de  propaganda  do  theaíro  vicentino,  em  que  coopera- 
ram principalmente  o  sr.  A.  Lopes  Vieira,  a  Escola  da  Arte  de  Repre- 
sentar, alguns  dos  nossos  melhores  actores  e  abastados  particulares  de 
gosto  elevado.  Apesar  dos  sentimentos  de  sympathia,  que  essa  propa- 
ganda nos  suscita,  não  deixaremos  de  apontar  dois  erros,  que  a  domina- 
ram e  que  não  são,  segundo  cremos,  para  desattender.  O  primeiro  foi 
um  erro  de  facto,  o  de  alterar  o  texto  dos  autos,  com  o  propósito  de  o 
modernizar  e  tornar  mais  facilmente  representavel.  Esta  pratica  é  deli- 
ctuosa,  porque  a  propriedade  litíeraria  intrínseca  é  eterna,  e  ninguém 
deve  bolir  nesse  bem  alheio  senão  para  restituir  o  que  falte  á  sua  inte- 
gridade. O  texto  das  obras  de  Gil  Vicente  está  realmente  muito  adulte- 
rado, já  porque  das.  varias  edições  e  da  revisão  da  censura  do  Santo 
Officio  sahiu  sempre  modificado,  já  em  virtude  de  nelle  haver  passado 
aquelle  fatal  irracional,  cuja  existência  até  nas  melhores  obras  de  génio 
G.  Fraccaroli  exuberantemente  proveu  ;  devo  por  isso  ser  restituído, 
mas  não  modernizado  como  tem  sido,  ao  ponto  do  próprio  sr.  Lopes 
Vieira  confessar : 

. .  .0  Auto 
Que  ora  aqui  para  vós  se  representa 
Não  é  de  Gil  Vicente  —  mas  é  quasi; 

O  outro  erro  0  de  doutrina  e  consiste  em  apreciar  com  exaggerado 
enthusiasmo  o  theatro  vicentino.  O  lado  meritório  deste  movimento  de 
propaganda  de  textos  que  são  quasi  os  de  Gil  Vicente  e  os  dois  alludidos 
erros  patenteiam-se  com  clareza  no  volume  A  Companha  Vicentino, 
Lisboa,  1914.  do  sr.  Lopes  Vieira. 


80  Historia  da  Litteraíura  Ghssica 

que  não  observamos  ainda  nos  esciiptos  vizinhos  de  1508, 
quando  o  poeta  se  iniciava  no  theatro  cómico,  Quem  tem 
farelos  e  Atito  da  índia,  e  quando  era  ainda  incaracteristica  e 
pouco  progressiva  em  relação  aos  auctores  castelhanos  a  sua 
dramática  pastoril  e  religiosa.  K  mais  consentânea  a  coexis- 
tência desse  bello  auto  junto  das  Barcas,  mas  não  deixa  de 
fazer  pensar  a  circunstancia  de  o  poeta  quebrar  a  execução 
da  sua  Trilogia,  que  o  absorveu  durante  mais  de  três  annos 
com  a  redacção  doutra  obra.  As  conjecturas  com  que  se 
supprern  as  erradas  ou  vagas  informações  consignadas  por 
seus  filhos  raramente  conseguem  dissipar  todas  as  duvidas. 
O  Auto  da  Alma  é,  na  sua  própria  phrase,  a  perfigura- 
çio  da  seguinte  idéa  :  «Assi  como  foi  cousa  muito  necessá- 
ria haver  nos  caminhos  estalagens,  pêra  repouso  e  refeição 
dos  cansados  caminhantes,  assi  foi  cousa  conveniente  que 
nesta  caminhante  vida  houvesse  húa  estalajadeira,  pêra  re- 
feição e  descanso  das  almas  que  vão  caminhantes  pêra  a 
eternal  morada  de  Deos.  Esta  estalajadeira  das  almas  he  a 
Madre  Sancta  Igreja;  a  mesa  he  o  altar,  os  manjares  as- 
insignias  da  paixão.  E  desta  perfiguração  tracta  a  obra  se- 
guinte ».  Este  Auto  da  Alma  é  uma  das  mais  bellas  allego- 
rias  do  theatro  vicentino.  Peia  carreira  da  vida,  vae  seguindo 
a  alma,  hesitando  entre  as  seducções  que  lhe  pinta  um  demó- 
nio e  os  rigores  presentes  introductórios  dum  mór  bem 
futuro,  que  lhe  descreve  um  anjo.  Qual  delles  mais  solicito 
se  esforça  junto  da  alma  fatigada  e  perplexa,  que  afinal 
consegue  arrastar  se  até  á  estalagem,  a  Santa  Madre  Igreja, 
onde  lhe  é  servida  refeição  restauradora.  Essa  refeição  é 
servida  sobre  a  verónica,  como  toalha,  e  consta  de  varias 
iguarias  taes  como  açoutes,  a  coroa  de  espinhos,  os  cravos 
c  o  crucifixo ;  a  fructa  vão  colhê-la  ao  pomar,  onde  adoram 
o  santo  sepulchro.  Á  parte  a  aliegoria  final  da  refeição, 
muito  grosseiramente  materializada,  este  auto  é  uma  verda- 
deira obra  de  arte,  onde  sobra  a  iuspiração  lyrica  e  onde 
nobremente   se   affirma   o  poder  inventivo   de    Gil   Vicente, 


Historia  da  Litteratura   Clássica  81 

como    dramaturgo   litúrgico.   Effecti vãmente,   basta    que    se 
considere   um   momento   na  qualidade  dos  recursos  de  arte 
da   Biblia,   compendio   dos   principaes  themas  litterarios  de 
inspiração  christã,  para  se  reconhecer  que  da  Biblia  se  pq- 
diam   tomar  themas  de   amplo  lyrismo,  intensa  eloquência, 
profunda    moralidade,    subtil    edificação    espiritualista,    mas 
muito  difficilmente  se  poderia  extrahir  theatro.  O  mysterio 
—  e  só  mysterios  produziu   o  theatro  bíblico — só  era  thea- 
tro por  ser  representado  ao  vivo,  dito,  dialogado,  portanto 
visto  e  ouvido  ;    na  essência  permaneceu  sempre  narrativa, 
exegese,    eloquência    apologética,    quanto    se    quizér,    mas 
muito    escassamente    theatro.    E   isto    por   algumas   razões : 
o  thema  religioso,  que  o  mysterio  desenvolve,  é  essencial- 
mente contemplativo,  e  o  verdadeiro  theatro  deve  ser  acti- 
vo; a  Sagrada  Escriptura  fixa  ao  mysterio  todo  o  plano  nos 
mais   pequenos    pormenores,    o    que    limita  a  liberdade   do 
auetor  dramático    á   dependência   de    narrador   dum    thema 
inalterável ;  a  realidade  do  mundo  objectivo,  que  ao  drama- 
turgo  deve  ser   tão   querida,   é  desdenhada  pelo   mysterio, 
pois  acima  dessa  materialidade  quotidiana  quer  elle  erguer 
as  almas;   a  única   vida,   que   condescende  em  abeirar,  é  a 
vida  christã,  a  vida  que  se  deveria  viver,  ou  a  vida  eterna, 
que  se   pretenderá   viver  alem   da  morte  terrena ;  vida  ter- 
rena commum,  só  para  a  execrar,  ou  então  para  lhe  contra- 
por a   vida  angélica  que  viveram  os  martyres  e  os  santos. 
Estes  distinctivos  fataes  do  mysterio  reduziam  muito  a  sua 
variedade  artística  e  a  autonomia  creadora  do  dramaturgo. 
E,  pois,  necessário  muito  génio  inventivo  e  grande  inspira- 
ção  lyrica  para   de   tão   limitado   campo   de   acção   extrahir 
obra  pessoal.  Isso  conseguiu  Gil  Vicente  com  a  allegoria  do 
Auto  da  Alma,  representando,  na  sua  concepção  christã,  de 
delicado  espiritualismo,  de  discreto  pessimismo  e  desapego 
das   coisas   mundanaes,  a  pobre  humanidade  seguindo  pela 
vida  fora,  sempre  perplexa  entre  as  tentações  do  bem  pre- 
sente   e   fácil    e   os    espinhos   do  bem    longínquo    e    difficil. 
H.  r>A  L.  Clássica,  vol.  l.°  8 


82  Historia  da  Litteratura  Clássica 

É  neste  auto  religioso  que  Gil  Vicente  pela  primeira  vez 
põe  á  prova  o  seu  lyrismo  de  vasta  inspiração,  um  lyrismo 
de  intensa  emoção,  que  não  exclue  eloquência,  pois  é  até 
sob  a  forma  exclamativa  e  vocativa,  que  as  mais  das  vezes 
se  expande.  Aquelles,  dentre  os  poetas  modernos  que  só  á 
força  dos  sonoros  alexandrinos,  estirados  e  pejados  de  adje- 
ctivos, conseguem  dar  largas  á  vehemencia  das  suas  emo- 
ções, muito  tem  que  aprender  em  matéria  de  expressão 
litteraria  com  o  velho  Gil  Vicente,  que  só  usou  metros  cur- 
tos, hoje  obsoletos  para  esses  poetas. 

Na  Comedia  de  Rubena  encontramos  duas  innovações:  a 
divisão  da  obra  em  três  scenas,  em  três  actos  como  hoje  se 
diz,  e  a  presença  dum  licenceado,  que  ao  publico  se  dirige 
a  explicar  o  entrecho.  Este  licenceado,  que  fala  no  prologo, 
ou  melhor  a  existência  dum  prologo,  em  que  fala  uma  per- 
sonagem estranha  ao  decurso  da  acção,  é  já  um  signal  da 
influencia  clássica,  visto  que  só  a  comedia  clássica  o  usou, 
e  rnais  a  latina  que  a  grega.  O  prologo  era  um  aviso  ao 
publico,  que  antecipadamente  conhecia  o  propósito  ou  o 
thema  da  peça,  a  que  ia  assistir,  e  que  ao  mesmo  tempo  era 
sollicitado  na  sua  attenção  e  benevolência. 

Juan  dei  Encina,  mais  sujeito  a  influencias  clássicas  que 
o  nosso  comediographo,  não  usou  prologo:  apenas  á  sua 
écloga  Pálcida  y  Victoriano  antepôs  um  argumento  extenso. 
A  divisão  da  peça  em  três  actos  tem  seu  fundamento;  os 
dois  intervallos,  que  separam  esses  três  actos,  dividem  três 
phases  da  acção,  a  vida  de  Cismena,  rilha  de  Rubena,  que 
realmente  distavam  de  muitos  annos:  seu  nascimento,  sua  vida 
na  serra  a  pastorear  até  se  transferir  para  Creta;  seu  casa- 
mento com  um  príncipe  da  Syria.  A  Comedia  de  Rubena  é 
uma  narrativa  de  extensa  acção,  é  um  romance  de  aventuras 
dialogado,  representado  em  episódios,  em  que  tudo  é  movi- 
mento, e  que  participa  do  caracter  do  romance  pastorií, 
pelos  disfarces  pastoris  de  Cismena  e  do  meio  pastoril  do 
segundo   acto,   e   pelas   aventuras   romanescas,    que   corre  o 


Historia  da  Li  (ter atara  Clássica  83 

príncipe  da  Syria,  que  vem  a  possuir  a  mão  de  Cismena.  De 
theatro  muito  pouco  ha  nesta  peça,  contaminada  pelos  dois 
maiores  inimigos  dos  géneros  dramáticos:  o  lyrismo  e  o 
maravilhoso  romanesco.  O  primeiro  ainda  produziu  a  pri- 
meira parte  do  i.°  acto,  lamentações  de  Rubena  e  seu 
dialogo  com  a  creada,  a  parte  mais  sentida  da  peça;  o 
segundo  determinou  a  sobreposição  dos  lugares  e  a  precipi- 
tação dos  acontecimentos,  ainda  os  afastados  de  muitos 
annos.  Desta  sobreposição  de  lugares  na  mesma  scena, 
lugares  que  a  realidade  separa  por  larga  jornada  e  desta 
precipitação  dos  acontecimentos  a  succederem-se  no  mesmo 
instante,  acontecimentos  que  a  realidade  separa  por  longos 
prazos,  virá  a  usar  d'ora  avante  em  seu  theatro  o  nosso 
comediographo  quinhentista.  De  si  para  si,  o  escriptor  pen- 
sará ter  realizado  um  progresso,  porque  alargou  o  alcance 
chronologico  e  espacial  do  seu  theatro,  podendo  agora  abar- 
car um  mais  vasto  e  variado  quadro,  excitando  mais  viva- 
mente a  attenção  do  seu  publico,  já  muito  habituado  a 
pequenos  quadrinhos.  E  todavia  o  theatro  clássico  e  o 
moderno,  que  o  imitava,  realizaram  a  sua  evolução  em  sen- 
tido opposto,  caminhando  cada  vez  mais  appressadamente 
para  a  reducção  dos  lugares,  para  a  limitação  do  tempo  e 
para  a  concentração  da  acção,  chegando  á  severidade  da 
regra  das  três  unidades:  uma  só  acção  decorrida  em  vinte  e 
quatro  horas  e  sobre  o  mesmo  lugar.  Nunca  se  exaggerará 
o  benéfico  papel  desta  theoria  no  desenvolvimento  do  theatro 
clássico  francês,  como  também  nunca  será  de  boa  prudência 
esquecer  o  seu  papel  coercivo  sobre  a  liberdade  dos  escripto- 
res.  Mas  o  que  é  indubitável  é  que  as  coacções  dessa  theoria 
foram  o  agente  principal  que  conduziu  o  theatro  de  enredo, 
em  que  as  personagens  eram  simples  instrumentos  do  entre- 
cho,  ao  theatro  moral,  em  que  as  personagens  moralmente 
definidas  é  que  conduziam  esse  enredo.  Bem  merecem  da 
posteridade  o  Conde  de  Cramail,  o  cardeal  de  La  Valette, 
Mairet,  Chapei  aio,  o  P.e  d'Aubignac  e  Richelieu  pelo  papel 


84  Historia  da  Litteratura   Clássica 

que  tiveram  na  adopção  da  theoria  das  unidades  no  theatro 
francês.  O  génio  inventivo  de  Gil  Vicente  e  o  conhecimento 
da  sua  própria  arte  levá-lo-hão  á  unidade  de  acção,  mas 
desconhecerá  sempre  a  de  lugar  e-ade  tempo,  como  verifi- 
caremos já  na  sua  obra  prima,  Ignez  Pereira,  de  1523. 

A  esta  peça  chegou  Gil  Vicente  logo  depois  de  duas 
obras,  sem  originalidade:  as  Cortes  de  Júpiter,  lisonjaria  cor- 
tesanesca  em  favor  da  Infanta  D.  Beatriz  de  Saboya,  onde 
uma  vez  mais  se  misturam  o  maravilhoso  christão  e  o  pagão, 
mas  este  subordinado  áquelle,  como  era  próprio  de  bom 
christão,  e  com  personificações  de  entidades  abstractas; 
e  a  Farsa  das  Ciganas,  um  quadro  descriptivo  de  costumes 
dos  ciganos.  Porem,  sob  o  estimulo  da  emulação,  o  drama- 
turgo compõe  a  Ignez  Pereira.  Na  rubrica  da  própria  peça, 
brevemente,  elle  próprio  nos  conta  a  origem  delia;  O  seu 
argumento  he  que,  porquanto  duvidavão  certos  homens  de  òotn  saber, 
se  o  Autor  fazia  de  si  mesmo  estas  obras,  ou  se  as  furtava  de 
outros  autores,  lhe  derão  este  thema  sobre  que  fizesse:  s.  hum 
exemplo  commum  que  dizem:  Mais  quero  asno  que  me  leve, 
que  cavallo  que  me  derrube.  E  sobre  este  motivo  se  fez  esta 
farça».  Com  genial  habilidade  se  sahiu  o  poeta  que  nesta 
peça  ostentou  todos  os  seus  melhores  dotes:  o  seu  cómico 
ordinariamente  grosseiro  e  licencioso  attenuou-se  em  justa 
proporção,  passando  a  ser  mais  o  necessário  effeito  das 
situações  que  um  deliberado  intento,  á  custa  do  abuso  de 
liberdade  de  linguagem  e  da  aravia  praguenta  e  extrava- 
gante do  populacho;  eliminou  dentre  os  figurantes  as  perso- 
nificações e  os  svmboios,  só  tomando  reaes  personagens ; 
excluiu  da  acção  quanto  não  fosse  em  convergência  do  effeito 
visado.  E  o  êxito  foi  completo. 

Ignez  Pereira,  filha  duma  mulher  do  povo  e  pobre, 
ansiava  por  um  casamento  que  a  libertasse  da  sua  condição, 
vivia  no  devaneio  ocioso  e  na  espectativa  dum  marido 
fidalgo,  elegante  e  prendado,  que  a  divertisse  e  a  dispensasse 
da   dura   necessidade   das   occupações   grosseiras.    Por   isso 


Historia  da  Litteratura  Clássica  85 

repudia  um  pretendente  da  sua  classe,  um  lavrador  abastado, 
mas  atoleimado,  risível.  Fazendo  a  experiência  desse  casa- 
mento, vive  vida  cruel  de  prisioneira  e  em  privações  até  ao 
momento  em  que  a  liberta  a  morte  do  fidalgo,  seu  marido, 
em  cobarde  situação.  Essa  lição  da  experiência,  como  o 
cavallo  que  derruba,  fez-lhe  ver  quanto  fora  mais  sensato 
haver  preferido  o  marido  fraco  e  rico,  o  asno  que  leva,  tão 
asno  que  ella  pôde  á  vista  delle  concertar  uma  entrevista 
com  um  seu  antigo  pretendente,  tão  asno  que  é  elle  mesmo 
que  a  essa  entrevista  a  conduz,  ao  collo.  No  tempo  de  Gil 
Vicente  ninguém  poderia  ter  feito  melhor.  Certo  é  que  se 
sente  que  os  caracteres  precisavam  de  maior  relevo,  a  pol- 
tranice  do  escudeiro  primeiro  marido  e  a  sua  prepotência 
precisavam  mais  estadeadas,  como  também  mais  documen- 
tada a  boçalidade  larvada  de  Pêro  Marques,  segundo  ma- 
rido. E  Gil  Vicente  poderia  te-lo  feito,  a  avaliar  pela  docu- 
mentação que  nos  deu  de  Leonor  Vaz,  figurante  da  mesma 
peça,  a  que  vindo  falar  a  Ignez  Pereira  e  sua  mãe  do  casa- 
mento, antes  conta  toda  offegante,  mais  lisonjeada  que 
offendida,  o  assalto  dum  clérigo  libidinoso,  no  caminho. 
O  dialogo  é  seguido  e  naturalmente  fluente,  sem  certa 
tibieza,  que  noutras  peças  notamos,  e  que  determinam  sus- 
pensões de  expressão,  e  a  acção  é  una;  o  casamento  de 
Ignez  Pereira,  sem  episódios  que  perturbem  essa  unidade, 
visto  que  o  episodio  do  clérigo  existe  só  na  narrativa  de 
Leonor  Vaz  e  serve  para  pintar  o  seu  caracter.  A  juxtapo- 
sição  de  lugares  muito  afastados  e  a  successão  rápida  de 
acontecimentos  muito  distantes  no  tempo  são  aqui  muito 
praticados,  claramente  mostrando  que  era  um  processo  novo, 
de  que  Gil  Vicente  usava  como  dum  novo  recurso,  que  lhe 
permittia  abarcar  muito  dilatados  limites.  O  processo,  poste- 
riormente muito  usado,  com  o  maior  êxito  ou  com  a  máxima 
infelicidade,  de  supprir  essa  necessidade  de  muitos  lugares 
e  grande  espaço  de  tempo  pela  narrativa  dentro  da  conversa 
entre    personagens   e   até   um   pouco  — não    muito  legitima- 


86  Historia  da  Liíteratura  Clássica 

mente — peia  aclaração  do  prologo,  não  o  conheceu  Gil 
Vicente  em  toda  a  sua  amplitude,  se  bem  que  delle  usasse 
alguma  vez.  O  theatro  vicentino  é  uma  successão  de  pre- 
sentes, è  o  desfilar  de  quadros  chronológicamente  grupados. 
Na  Ignez  Pereira,  temos  os  vários  quadros  em  successão:  — 
I:  A  vida  de  Ignez  Pereira,  em  solteira,  com  sua  mãe. 
—  II:  Conselhos  de  Leonor  Vaz  para  que  case.  —  III:  Apre- 
senta-se  Pêro  Marques. —IV:  Apresenta  se  o  escudeiro.— 
V:  Vida  de  Ignez  Pereira  casada  com  o  escudeiro. — VI:  Vida 
de  Ignez  Pereira,  viuva.  VII:  Vida  de  Ignez  Pereira  casada 
com  Pêro  Marques.  Daqui  resulta  a  obrigada  brevidade  dos 
quadros,  as  bruscas  metamorphoses  da  acção,  a  variedade 
dos  lugares  e  a  inverosimilhança.  Lembremo-nos  de  que 
Gil  Vicente,  exceptuando  as  Barcas  e  a  Comedia  de  Rubena, 
não  usou  a  divisão  em  actos,  o  que  aggravava  este  defeito. 
Assim,  num  acto  único  da  Ignez  Pereira,  temos  á  vista,  sobre 
a  mesma  scena,  a  casa  de  Ignez,  a  rua  e  um  rio;  em  rápidos 
momentos  se  casa  Ignez,  parte  o  escudeiro  para  a  Africa  e 
é  morto  próximo  de  Arzilia,  enviuva  Ignez  e  de  novo  casa. 
Mas,  como  já  dissemos,  Gil  Vicente  também  usou  o  pro- 
cesso indirecto :  é  pela  narrativa  de  Leonor  Vaz,  que  sabe- 
mos da  sua  aventura  com  o  clérigo  e  é  por  uma  carta  que 
sabemos  da  morte  do  escudeiro.  Não  nos  fez  assistir  a  estes 
dois  episódios  por  virtude  do  seu  fito  de  não  se  distrahir  da 
acção.  Doutro  modo  procederia  um  auctor  moderno,  que 
aproveitasse  a  lição  da  longa  historia  do  theatro  :  de  toda  a 
acção,  faria  presente  apenas  uma  phase,  a  ultima;  todas  as 
antecedentes  as  conheceríamos  de  modo  indirecto. 

O  Auto  Pastoril  Português,  também  de  1523,  é  a  repeti- 
ção do  seu  primeiro  theatro  religioso;  tem  a  mais  o  prologo, 
um  pequeno  thema  profano  dum  casal  de  pastores  que  se 
julga  mal  casado,  e  termina  pela  adoração  da  Virgem. 
A  Fragoa  de  Amor,  de  1524,  mistura  o  intuito  de  lisonjear  a 
futura  rainha  D.  Catharina,  com  uma  descripção  represen- 
tada do  magico  poder  transformador  do  Amor.  O  intuito  de 


Historia  da  Litteratura  Ciai  87 


um  castello,  cujas  torres,  fortalezas  e  defesas  são  as  virtudes 
moraes  e  ao  qual  conquista  o  rei  D.  João  III.  A  meio  da 
peça  opera-se  uma  metamorphose,  que  dá  começo  ao  segundo 
intuito.  Gil  Vicente  no-la  descreve  na  seguinte  rubrica: 
« Em  este  p:\sso  foi  posto  hum  muito  formoso  castello,  e 
abrio  se  a  porta  delle,  e  sahirão  de  dentro  quatro  galantes 
em  trajo  de  caldeireiros,  com,  cada  hum,  sua  Serrana  muito 
louçan  pela  mão,  e  elles  mui  ricamente  ataviados,  cubertos 
d'estrellas,  porque  figurão  quatro  Planetas,  e  ellas  os  gozos 
d'amor;  e  cada  hum  delles  traz  seu  martello  muito  faça- 
nhoso, e  todos  dourados  e  prateados,  e  huma  muito  grande 
e  formosa  fragoa,  e  o  Deos  Cupido  por  Capitão  d'elles:  e 
estas  Serranas  trazem  cada  hua  sua  tenaz  do  teor  dos  mar- 
teilcs,  para  servirem  quando  lavrar  a  fragoa  d'amor.  E  assi 
sahirão  do  dito  Castello  com  sua  musica,  e  acabando  fazem 
o  razoamento  seguinte,  para  declaração  do  significado  das 
ditas  figuras,  e  cada  Planeta  falia  com  sua  Serrana».  As  ser- 
ranas enumeram  a  seguir  os  prazeres  do  amor,  honesta  e 
christãmente  considerados,  e  trabalhando  depois  na  forja  do 
amor  demonstram  o  seu  condão  transformador  fazendo  trans- 
mudar em  gentil  homem  branco  um  negro  da  Guiné  e  endi- 
reitar e  aformosear  uma  velha  torta  que  representava  a  jus- 
tiça. A  metamorphose  da  justiça  faz-se  por  meio  duma 
depuração  moral,  symbolizada  no  apparecimento  dos  obje- 
ctos dados  em  suborno,  que  a  forja  expelle.  Esta  peça  é, 
pois,  mantendo  ainda  a  ordinária  philosophia  pessimista  e 
moralista  de  Gil  Vicente,  uma  verdadeira  magica.  E  magi- 
cas são  as  restantes  tragi-comedias,  com  suas  bruscas  meta- 
morphoses  de  personagens,  seus  inesperados  apparecimentos 
e  desapparecimentos  de  edifícios  e  objectos,  sua  mistura 
hybrida  de  personagens  sobre-naturaes,  symbolicas  e  simples 
typos  pessoaes,  e  ainda  com  a  curiosa  forma  de  compor, 
que  consiste  em  fazer  desfilar  uma  galeria  de  personagens 
ephemeras  perante  algumas  poucas,  que  permanecem.  Geral- 


88  Historia  da  Litteratura  Clássica 

mente  as  que  passam,  param  um  momento  e  desapparecem 
são  as  de  concreta  e  pessoal  representação,  e  as  que  perma- 
necem são  symbolos.  mythos  ou  personificações. 

Gil  Vicente  também  sacrificou  á  moda  dos  romances  de 
cavallarias,  extrahindo  do  Amadis  de  Gania  e  do  Palmeirim  de 
Inglaterra,  sua  continuação,  duas  tragi-comedias,  D.  Duardos, 
de  1525,  e  Amadis  de  Gaula,  de  1533.  Estas  datas  são  as  das 
representações,  taes  como  as  rubricas  consignam,  mas  de 
crer  é  que  a  segunda  não  distasse  tanto  da  primeira. 

D.  Duardos  foi  extraindo  do  segundo  livro  do  Palmeirim, 
publicado  em  i5ió  e  1524;  o  Amadis  do  romance  do  mesmo 
nome  de  que  corria  a  edição  de  1508,  de  Montalvo.  Ambas 
as  tragi-comedias  são  em  castelhano  completamente.  Seria 
curioso  ver  a  economia  delias,  na  passagem  dos  intrincados 
romances  de  aventuras  para  a  sua  dramatização.  Neste  par- 
ticular, Amadis  de  Gaula  accusa  progresso  importante  sobre 
D.  Duardos,  onde  nem  sempre  se  fez  a  eliminação  do  que 
nao  era  essencial  e  que  é  por  isso  a  obra  mais  longa  e  de 
mais  moroso  andamento  de  Gil  Vicente.  Mas  como  que  a 
resgatar  esse  vicio  contra  a  arte  dramática  possuem  a  vir- 
tude poética,  attestada  nas  formosas  peças  lyricas  que  con- 
tém, canções  pujantes  de  sentimento  c  imagens. 

O  Juiz  da  Beira  é  uma  caricatura  dum  juiz  de  paz,  das 
aldeias,  encabeçada  era  Pêro  Marques,  o  tolerante  marido 
de  Ignez  Pereira,  já  nosso  conhecido.  Assistimos  a  uma  au- 
diência, ao  ar  livre,  ern  que  Pêro  Marques  julga  vários 
casos  picarescos,  já  pelo  género  da  querella,  já  pelo  modo 
de  sentenciar.  O  escudeiro  pobre  e  fanfarrão,  em  desavença 
com  o  creado  a  quem  não  paga  e  mal  alimenta,  e  a  alcoveta 
tornam  a  appare.cer,  como  typos  dilectos  para  a  satyra  de 
Gil  Vicente.  Não  é  esta  peça  uma  continuação  da  Ignez  Pe- 
reira, como  se  tem  affirmado,  porque,  com  ella  apenas  tem 
de  commum  ser  seu  protagonista  Pêro  Marques,  marido  de 
Ignez,  já  por  nós  tido  como  um  rústico,  que  sendo  cómico 
marido,   a   caracter  o  achariamos  a  sentenciar  comicamente 


Historia  da  Litteratura  Clássica  89 

em  casos  cómicos.  O  mesmo  intuito  de  descripção  cómica 
domina  a  farsa  do  Clérigo  da  Beira,  região  a  que  se  attribuia 
toda  a  vis  cómica  do  paiz.  Mas  no  Clérigo  da  Beira,  como  no 
Auto  das  Fadas  já  anteriormente  alludido,  esse  intuito  de 
descripção  cómica  é  accrescido  de  referencias  pessoaes  que 
temperavam  a  peça  duma,  para  o  tempo,  deliciosa  curiosi- 
dade: ao  dialogo  entre  um  clérigo  da  Beira  e  seu  filho,  ás 
rezas  das  matinas  venatóriamente  commentadas,  succede-se 
o  caso  dum  roubo  de  peças  de  caça  descoberto  por  Cecilia, 
uma  possessa  «em  que  dizião  que  fallava  hum  Pedreanes>, 
segundo  a  crença  popular.  Esta  Cecilia,  que  descobre  o 
furto,  satisfaz  também  outras  curiosidades  respeitantes  a 
certos  espectadores  : 

Porque  por  astrolomia 
Conheço  os  seus  nascimentos. 
E  pola  filosomia 
Sei  todolos  pensamentos 
Que  trazem  na  fantesia. 

E  faz  em  seguida  revelações  galantes  sobre  o  Conde  de 
Penella,  «o  mór  namorado  de  Portugal  e  Castella  »,  do  em- 
baixador do  imperador  Carlos  v,  do  vedor,  do  Conde  de 
Marialva,  Vasco  de  Foes,  Affonso  de  Albuquerque,  Jorge 
de  Mello,  Gaspar  Gonçalves  e  Pedreanes.  Nesta  farsa  os 
três  episódios  são  muito  extensos  até  á  prolixidade  e  tor- 
nam a  acção  muito  arrastada ;  qualquer  dos  episódios  podia, 
de  per  si,  fornecer  assumpto  para  uma  peça  independente, 
mas  subsistindo  os  três  era  necessário  abreviá-los  e  estreitar 
o  nexo  que  os  unia.  Nesta  farsa  do  Clérigo  da  Beira  ha  uma 
passagem,  que  uma  vez  mais  evidencia  aquelle  defeito  já 
referido  da  precipitação  dos  acontecimentos :  o  filho  do  clé- 
rigo anda  uma  légua  até  á  casa,  onde  estava  guardada  uma 
furôa,  e  regressa  percorrendo  a  mesma  légua  emquanto  o 
pae  monologa  os  versos,  comprehendidos  nas  seguintes  ru- 
bricas : 


90  Historia  da  Lille? atura  Clássica 

<  (Vai  o  moço  pela  f uiva  e  fica  o  Clérigo  entre  si  dizendo:) 

Cl  cr.  —  Medraria  este  rapaz 

Na  corte  mais  que  ninguém, 
Porque  lá  não  fazem  bem 
Senão  a  quem  menos  faz. 
Outras  manhas  tem  assaz, 
Cada  húa  muito  bôa  : 

Nunca  diz  bem  de  pessoa, 
Nem  verdade  nunca  a  traz. 
Mexerica  que  por  nada 
Revolverá  San  Francisco ; 
Que  pêra  a  Corte  é  hum  visco, 
Que  caça  toda  a  manada. 
[  J  rem  o  filho  cor.i  a  furôa  e  diz :) 

Do  mesmo  armo  do  Juis  da  Beira,  1525,  deve  ser  o 
Jubileu  de  Amores,  auto  bilingue  perdido,  mas  que  se  sabe 
haver  sido  representado  em  Portugal  entre  os  annos  de 
1525  e  153 1  e  repetido  neste  ultimo  anno,  em  Dezembro, 
em  Bruxellas,  em  casa  do  Embaixador  de  Portugal,  D.  Pe- 
dro de  Mascarenhas,  nas  festas  com  que  este  solemnizou  o 
nascimento  do  príncipe  D.  Manuel.  Apenas  se  conservaram 
testemunhos  da  irreverência  do  poeta  contra  o  clero  e  dos 
applausos  hilariantes  que  suscitara.  (*) 

O  Templo  do  Apollo  é  uma  adulação  gentil  á  Infanta 
D.  Izabel,  irmã  de  João  111,  que  partia  para  se  casar  com  o 
Imperador  Carlos  V,  com  personificações  e  allegorias  a  par 
de  personagens  communs  que  praticam  o  mais  chão  rea- 
lismo, como  o  desse  romeiro  que  antes  de  entrar  no  Templo- 
do   Apollo,   cospe   para  o   lado   e   diz   o   por   que   o  faz.  É  a 


(1)  Este  episodio  da  vida  litteraria  de  Gil  Vicente  foi  illustrado 
com  muitas  noticias  novas  pela  sr.a  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcel- 
los  nas  suas  Notas  Vicentinas,  í  —  Gil  Vicente  em  Bruxellas  ou  o  Jubi- 
leu de  Amor,  publ.  na  Revista  da  Universidade  de  Coimbra,  vol.  i.-o, 
n.°  2,  Coimbra,  1912. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  91 

Apollo  que  os  romeiros  de  Carlos  v  e  sua  mulher  pedem 
auxilio  para  vencerem  os  pagãos.  A  tragi-comedia  tem  um 
prologo  pelo  auctor  que  apresenta  o  argumento,  particulari- 
dade que  daqui  em  deante  mais  se  repetirá. 

Os  annos  de  1527  e  1528  parece  terem  sido  os  mais  fe- 
cundos do  poeta,  já  porque  fossem  mais  repetidas  as  sollicita- 
ções  da  corte,  já  porque  Gil  Vicente  se  sentisse  no  seu  mo« 
mento  de  mais  prompta  e  fácil  productividade.  São  desses 
annos :  a  Serra  da  Estrella,  pittoresca  peça,  em  que  elogia  calo- 
rosamente a  serra,  onde  decorre,  em  meio  pastoril,  o  seu 
pequeno  e  simples  entrecho ;  a  Nau  de  Amores,  cuja  com- 
posição é  semelhante  á  das  Barcas  e  igualmente  de  grande 
effeito ;  o  Auto  da  Feira,  mixto  de  moralidade  e  de  peça  de 
costumes,  onde  se  contêm  algumas  invectivas  severas  con- 
tra a  cúria  romana  (*);  o  Brazão  da  cidade  de  Coimbra,  inter- 
pretação e  correcção  do  brazão  da  cidade,  provavelmente 
segundo  tradições  locaes;  e  finalmente  os  dois  mysterios 
sobre  a  Historia  de  Deus  e  a  Resurreição,  dos  quaes  o  pri- 
meiro tem  verdadeira  inspiração  lyrica,  principalmente 
nos  lamentos  de  Job.  A  primeira  parte  é  uma  descripção, 
fiel  á  narrativa  bíblica,  apenas  vivificada  peio  dialogo  e  pelo 
lyrismo  pessimista  que  lhe  communicou  Gil  Vicente :  a 
segunda,  talvez  incompleta,  reduz-se  á  conversa  de  al- 
guns judeus  incrédulos.  Possível  é  até  que  só  isso  o  poeta 
tivesse  querido  fazer,  pois  ao  menos  o  titulo  executou-o 
completamente  :  Dialogo  sobre  a  resurreição  entre  os  judeus. 


(1)  Alguns  auetores,  especialmente  o  sr.  Th.  Braga  e  a  sr.a  D.  Ca- 
rolina Michaélis  de  Vasconcellos,  têm  attribuido  a  Gil  Vicente  intuitos  de 
heterodoxia  religiosa,  fazendo-o  precursor  de  Erasmo  e  Luthero.  Con- 
tra essa  attribuição  protestou  o  sr.  Fortunato  de  Almeida  na  sua  Histo- 
ria da  Igreja  em  Portugal  tomo  8.",  parte  2.a,  Coimbra,  '1915-19 [7, 
pag.  119-126.  Affigura-se-nos  mais  razoável  a  interpretação  que  eate 
auctor  dá  ás  irreverências  do  poeta  cómico. 


02  Historia  da  Litteraiura  Clássica 

As  peças  que  se  seguem  não  trazem  progresso  apreciá- 
vel á  evolução   artistica  do  escriptor. 

Durante  trinta  e  quatro  annos,  com  fecundidade  varia, 
mas  sempre  com  seguro  êxito,  Gil  Vicente  divertiu  a  corte 
portuguesa,  em  Lisboa,  em  Coimbra,  Évora,  Santarém,  Al- 
meirim, por  toda  a  parte  aonde  os  cuidados  da  administra- 
ção, o  desejo  de  distracção  e  as  fugidas  ás  epidemias  levaram 
os  reis  a  estancear.  Comsigo  levava  Gil  Vicente,  com  seu 
génio,  não  só  a  alegria  descuidada,  mas  também  verdadeiro 
poder  de  cultura  artistica,  de  que  se  tornava  centro  e  pre- 
texto, pois  para  a  enscenação  dos  seus  autos  era  necessário 
congregar  actores,  músicos,  caracterização,  scenographia, 
posto  que  rudimentar,  e  ma.is  ainda  porque  elles  faziam 
meditar  os  seus  espectadores  no  sentido  transcendente  das 
suas  obras.  Gil  Vicente  era  um  poeta  essencialmente  christão 
e  as  suas  obras  representam  a  visão  da  vida  e  da  sociedade 
do  seu  tempo,  através  de  olhos  de  artista  christão  e  mora- 
lista, que  tem  sempre  presente  a  rápida  caducidade  das 
obras  humanas,  quanto  é  finita  a  vida  terrena,  quanto  é 
frágil  a  argilla  humana,  porque  muito  vivamente  sente  tam- 
bém a  bemaventurança  da  vida  eterna,  que  aos  justos 
aguarda,  e  a  cada  passo  vê  sobre  si  postos  e  sobre  esses 
que  descuidosos  se  abandonam  á  vida  peccadora  os  olhos 
omnividentes  de  Deus,  que  tudo  devassam  e  inquirem.  Em 
muitas  das  suas  obras,  numas  pelo  sentido,  noutras  pelas 
personagens,  noutras  pelas  estancias  lyricas  do  poeta  e  nou- 
tras ainda  pela  própria  disposição  do  tablado  —  são  estas  as 
mais  grosseiras  —  simultaneamente  se  entrevem  dois  mundos, 
o  finito  e  o  infinito,  simultaneidade  que  evidencia  a  certeza 
permanente  da  continuidade  da  vida  para  alem  da  morte. 
Nós  hoje,  homens  do  século  xx,  impregnados  de  materia- 
lismo e  naturalismo,  temos  grande  difnculdade  em  compre- 
hender  esta  convicção  da  longevidade  do  Bem,  da  vida 
transcendente  aiêm  do  seu  terreno  limite  e  todo  o  thesouro 
immenso   de   sentimentos  que  delia  brotavam.  Não  fazemos 


Historia  da  Litteratura  Clássica  93 

coisas  grandes,  porque  para  as  fazer  é  .necessário  muito 
tempo  e  a  vida  não  chega  para  as  vermos  concluídas,  temos 
sempre  ante  nós  a  consciência  do  fim  próximo,  e  se  essa 
certeza  deixa  de  ser  serena  e  calma,  é  para  ainda  se  per- 
turbar com  a  perspectiva  dum  fim  antecipado.  Não  vale 
a  pena  principiar,  porque  não  chegaremos  ao  fim  ;  por  isso 
nada  de  grande  se  principia.  O  maior  problema  da  philoso- 
phia  moral,  o  illudir  esta  certeza  do  fim,  temo-lo  nós  pen- 
dente, porque  pusemos  de  lado  todas  as  soluções  que  a 
religião  e  o  espiritualismo  nos  propuseram,  avaliando  essas 
soluções  não  pela  sua  efficacidade  determinante,  mas  por 
um  mesquinho  cotejo  com  a  fria  razão.  Por  isso  se  abriu 
esse  vácuo,  por  isso  a  vida  é  sempre  mais  curta  e  cada  vez 
mais  estéril.  Não  era  assim  no  tempo  de  Gil  Vicente,  e  essa 
certeza  da  compensação  da  brevidade  da  vida  terrena  pela 
continuidade  do  alem  é  eloquentemente  expressada  no  seu 
theatro,  todo  palpitante  dum  sopro  metaphysico.  A  outra 
vida  é-lhe  tão  familiar,  tão  certa  e  segura,  que  por  ella  já 
entram  elle  e  as  suas  personagens,  que  delia  vêm  ao  tablado 
os  que  lá  desfructam  a  eterna  paz  dos  eleitos.  E  como  o 
descanso  em  Deus  era  a  recompensa  da  fadiga  do  mundo, 
como  esta  fadiga  era  o  preço  necessário  daquelle  descanso, 
as  suas  personagens  afadigam-se  buliçosamente,  batalhando 
pela  religião  e  pelo  rei,  pela  gloria  e  pela  fama,  pelo  amor 
e  pela  formusura.  Isto  fazem  as  suas  personagens  symbolicas, 
os  cavalleiros  da  cruz,  de  seu  especial  respeito,  todos  os 
justos  e  esforçados  que  collaboram  nas  grandes  empresas 
do  grande  século  da  historia  portuguesa.  Ao  lado  delles, 
em  grande  numero  e  em  pungente  contraste,  pululam  os 
pastores  grosseiros  e  sensuais  ou  ingénuos  crentes,  os  fidal- 
gotes ostentadores,  as  raparigas  pobres  e  pretensiosas,  as 
alcouvetas,  os  poderosos  do  mundo,  orgulhosos  e  tyrannos, 
os  maus  clérigos,  os  parvos.  É  por  ser  a  sua  visão  do  mundo 
tão  amplamente  comprehensiva,  com  seus  districtos  a 
penetrarem-se  reciprocamente,  que  o  theatro  vicentino  é  tão 


94  Historia  da  Li  f  terá  fura  Clássica 

inextricavelmen te  mixto,  emmaranhadamente  confuso  dos  mais 
dispares  e  inconciliáveis  géneros  dramáticos:  ao  lado  do 
mais  alado  idealismo  religioso  ou  lyrico  o  mais  chão  rea- 
lismo, -a  par  de  figuras  transcendentes  de  pureza  os  grossei- 
ros villãos,  dialogando  com  figuras  que  são  materializações 
de  virtudes,  de  idéas  abstractas  ou  sentimentos,  Satanaz  e 
Mercúrio  e  um  parvo...  Ao  tom  alto  da  grandiloquencia, 
á  máxima  gravidade  própria  do  theatro  dum  povo  ufano  de 
tão  grandes  cinprehendimentos  levados  a  cabo,  casa-se  sem- 
pre o  baixo  tom  cómico,  o  mais  baixo  tom  cómico,  o  bur- 
lesco ;  os  dois  poios  do  sublime  e  do  ridículo  a  par. 

O  cómico  vicentino  é  como  todos  os  effeitos  cómicos 
um  contraste,  mas  um  contraste  extremamente  pictórico, 
não  é  o  das  boas  respostas,  boas  sahidas  de  difficeis  situa- 
ções—  contraste  entre  o  enigma  que  se  preparava  e  o  modo 
prompto  por  que  é  desfeito  — é  o  contraste  entre  a  mediania 
corrente  e  natural  e  a  expansão  proposital  da  ínfima 
mediocridade.  Queremos  dizer:  as  personagens  cómicas  de 
Gil  Vicente  cornprazem-se,  gozam  do  próprio  cómico,  de  se 
mostrarem  infimamente  grosseiras  e  boçaes,  voluntariamente 
se  confinando  no  seu  eu  miserável :  os  parvos  muito  parvos, 
as  bruxas  muito  disparatadas  na  sua  aravía,  Pêro  Vaz,  como 
noivo  e  juiz  estúpido,  procurando  requintar  a  sua  própria 
estupidez,  orgulhosos  da  pobreza  de  espirito,  dos  trapos 
andrajosos  e  da  situação  social  que  todos  desdenham.  A.  este 
cómico  chamamos  nós  burlesco,  um  pouco  como  o  cómico 
carnavalesco  dos  que,  de  alma  grosseira  e  medíocre  intelli- 
gencia,  comprehendem  o  Carnaval  como  um  rápido  período 
de  liberdade  e  irresponsabilidade  em  que  possam  ser  abso- 
lutamente elles,  subjectivamente  se  revelarem  como  são. 
Este  cómico  é  todo  de  effeito  externo,  não  vem  do  contraste 
entre  os  factos  e  a  significação  excessiva,  que  se  lhes  attri- 
bue  como  o  de  D.  Quixote,  este  cómico  participa  da  bobice 
medieval  e  tem  de  lançar  meio  de  toda  a  apparencia  externa 
que  o  auxilie,  a  qualidade  de  parvo,  a  situação  de  quem  tem 


Historia  da  Litteratura  Clássica  95 

medo,  os  trocadilhos  da  phrase,  a  grossaria  obscura  de  per- 
sonagens taes  corno  regateiras,  peixeiras,  negros,  ferreiros, 
mendigos,  ciganos,  creadas,  um  padeiro,  um  sapateiro  e  os 
parvos.  O  Pranto  de  Maria  Parda,  a  fala  de  Mercúrio  á  frente 
do  Auto  da  Feira,  o  medo  do  escudeiro  na  Farsa  de  quem  tem 
farelos,  o  medo  do  pastor  que  ouve  a  mulher  no  Auto  da 
Feira,  todas  as  aravías  e  exorcismos  das  bruxas  e  dos  tolos, 
a  gala  que  o  diabo  faz  da  própria  maldade  garota,  Pêro  Vaz 
na  Ig?iez  Pereira  e  no  Juiz  da  Beira,  são  exemplos  do  burlesco 
vicentino.  Ha  felizmente  outros  cómicos,  de  contrastes  mais 
suaves :  a  paixão  serôdia  do  Velho  da  Horta,  a  cólera  e  o 
desdém  irrespeitoso,  no  dialogo  entre  pae  e  filho  no  Clérigo 
da  Beira,  a  mentira  na  narrativa  do  encontro  com  o  clérigo 
curioso,  que  faz  Leonor  Vaz  na  Ignez  Pereira,  a  grossaria 
desilludida  do  creado  e  a  fanfarronada  do  escudeiro  pobre 
na  mesma  Ignez  Pereira,  e  também  cómico  triste,  de  mais 
profundo  sentido,  como  no  episodio  da  Mofina  Mendes  e  no 
dialogo  entre  Todo  o  mundo  e  Ninguém. 

Gil  Vicente  teve  continuadores  que  tomaram  a  sua 
forma  dramática  do  auto,  assim  mixta  e  confusa,  e  a  immo- 
bilizaram  (').  Em  Lisboa,  na  província  e  nas  colónias,  no 
século  XVI  e  depois,  se  representaram  os  autos  de  Affonso 
Alvares,  Ribeiro  Chiado,  António  Prestes,  o  neto  do  creador. 
Gil  Vicente  de  Almeida,  Balthazar  Dias,  Luiz  de  Camões  e 
outros  auetores.  Nenhum  gozou  o  favor,  que  na  corte  des- 
fruetou  o  auetor  da  Igncz  Pereira,  como  nenhum  teve  o 
génio  dramático  deste,  a  sua  inspiração  lyrica,  a  sua  origi- 
nalidade de  vistas  e  a  sua  capacidade  critica  social.  Outro 
foi,  pois,  o  publico  destes  seus  continuadores,  foi  o  povo 
rude   e   grosseiro,   sem    educação    esthetica,   o   qual    quando 


(')     Occupamo-ncs  deste  aspecto  do  theatro  na  Historia  da  Litte 
ratara  Clássica  [2*  Epocha:  ijXo-ijjó). 


96  Historia  da  Litteratura  Clássica 

acudia  aos  coitos  ou  pateos  de  comedias  só  procurava  a 
satisfação  da  sua  sede  de  cómico  desopilante  ou  a  enscena- 
ção  barbara  dos  mysterios  religiosos.  Alguns  fidalgos  mais 
cultos,  .que  ahi  occorressem  dissimuladamente,  nenhum  in- 
fluxo poderiam  exercer.  Tudo  isto  fez  que  o  auto  estagnasse 
na  servil  imitação  da  obra  de  Gil  Vicente,  ao  qual  só  se  ia 
pedir  suggestão  de  themas  burlescos,  o  hilariante  cómico  do 
gosto  popular,  e  os  exemplos  dos  mysterios  postos  em  scena 
—  essa  forma  de  theatro,  já  revelha,  já  caduca  perante  novas 
formas  tomadas  das  letras  clássicas.  O  que  salva  o  theatro 
vicentino  é  a  alta  individualidade  do  poeta,  porque  as  suas 
formas  dramáticas  eram,  pela  sua  própria  grossaria  e  indiffe- 
renciação,  mixto  cahotico  dos  mais  heterogéneos  elementos, 
condemnadas  a  uma  morte  immediata,  se  outros  espiritos 
creadores  lhes  não  imprimissem  movimento  e  não  continuas- 
sem a  evolução  differenciadora  indispensável  ao  progresso  dos 
géneros  litterarios  e  que  já  no  theatro  vicentino  observá- 
mos. Pastoral  dramática,  mysterio  religioso,  theatro  de  caval- 
larias  e  algum  theatro  de  costumes,  tudo  envolto  na  maravi- 
lha e  acanhado  na  sua  rudimentar  composição  não  são 
formas  de  theatro  para  perdurar,  contêm  já  em  si  o 
próprio  factor  da  morte;  são  pontos  de  partida  para  uma 
seguida  evolução,  mas  se  se  immobilizarem  em  formas  crys- 
tallizadas  morrem.  Ora  o  theatro  vicentino  não  morreu,  mas 
seguiu  destino  que  para  a  nossa  interpretação  é  equiva- 
lente: exaggerou  os  seus  próprios  defeitos  e  assim  mais 
grosseiro  sumiu-se  para  a  litteratura  popular,  onde  tem 
vivido   da  própria  grossaria    e   insignificância    esthetica  (% 


(l)  Este  phenomeno,  que  é  tão  plenamente  explicável  e  cuja  in- 
terpretação justa  não  pôde  deixar  de  ser  a  que  tem  caracter  condemna- 
tório,  foi  descripto  e  julgado  do  modo  seguinte  pelo  sr.  Th.  Braga.  «Os 
elementos  tradicionaes  e  populares  do  theatro  português  a  que  Gil 
Vicente  deu  forma  litteraria  foram  a  primeira  condição  para  a  estabili- 
dade da  sua  obra;  porém,  como  um  génio  synthetico,  comprehendendo 


Historia  da  IAtter atura  Clássica  97 

No  final  desta  obra,  na  conclusão  apresentaremos  das  causas 
deste  phenomeno  a  parte  social,  mais  concreta  e  provável. 
Como  exemplificação  da  doutrina,  que  acabamos  de 
expor,  bastará  a  leitura  de  algumas  peças  dos  dois  princi- 
paes  continuadores  de  Gil  Vicente  ;  António  Prestes  Q)  e 
António  rlibeiro  Chiado  (2).  Dos  autos  de  Camões  fallaremos 
no  capitulo  a  elle  consagrado.  A  analyse  da  estructura 
interna  das  obras  dos  continuadores  mostrar- nos-ha  matéria 
vicentina  sem  as  boas  qualidades  do  auctor  da  trilogia  das 
Barcas.  O  progresso  da  forma  dramática  do  auto  havia  de 
fazer-se  fora  da  lingua  portuguesa,  em  Hespanha,  no  século 
immediato. 


a  transição  da  Edade  média  para  a  Renascença,  amando  e  servindo  o 
futuro  sem  renegar  o  passado,  essa  obra  tornou-se  a  expressão  das  ne- 
cessidades moraes  da  sociedade  portuguesa,  encantou  os  espíritos  pela 
sua  belleza  artística,  exerceu  uma  influencia  profunda  no  successivo 
desenvolvimento  da  Litteratura  dramática  ».  (V.  Escola  de  Gil  Vicente 
e  o  desenvolvimento  do  thcatro  nacional,  pag.  5). 

(')  V.  O  Auto  da  Ave  Maria,  Lisboa,  1889,  edição  da  Bibliotheca 
Universal  Antiga  e  Moderna,  131  pags. ;  comprehende  também  o  Auto 
dos  Cantar inhos. 

(*)  V.  Obras  do  Poeta  Chiado,  colligidas,  annotadas  e  prefaciadas 
por  Alberto  Pimentel,  Lisboa,  1889,  248  pags. 

H.  da  L.  Clássica,  vol.  I.«  7 


CAPITULO  II 

SA  DE  MIRANDA 
A  VIDA 

Francisco  de  Sá  de  Miranda  nasceu  em  1485  (l)  na 
cidade  de  Coimbra,  a  «antiga  e  nobre  cidade  >  no  seu  dizer, 
fiiho  do  cónego  Gonçalo  Mendes  de  Sá,  que  mais  tarde 
cbteve  a  sua  legitimarão.  A  família  dos  Sás  pertencia  á 
antiga  nebreza  do  reino  e  assignalára-se  já  por  alguns  mem- 
bros illustres  e  também  por  outros  de  ingrata  recordação. 
A  larga  e  emmaranhada  copa  da  sua  arvore  genealógica 
attribuia-lhe  parentes  também  em  Hespanha  e  em  Itália. 
Dos  seus  parentes  castelhanos  seria  o  poeta  Garcilaso  de  la 
Vega  o  que  mais  desvaneceria  o  nosso  reformador,  como 
parece  confirmar-se  por  suas  próprias  palavras,  na  peça  de 
dedicatória  da  écloga  Nemoroso.  commemorativa  da  morte 
daquelle  poeta  castelhano.  E  dos  seus  parentes  italianos 
seria  a  escriptora  Vittoria  Colonna,  igualmente,  quem  mais 
o  lisonjearia  com  sua  consaguinidade  e  amistosa  disposição 
—  que  o  próprio  poeta  frequentou  e  cultivou,  quando  fez  a 
sua  famosa  e  fecunda  viagem  á  Itália. 


(')  V.  D.  Carolina  Michaêlis  de  Vasconcellos,  magistral  estudo 
biograpH:o  de  Sá  de  Miranda,  que  acompanha  a  edição  critica  das 
Poesias,  e  Sousa  Viterbo,  Estudos  sobre  Sá  de  Miranda,  vols.  42.0  e 
43.0  do  Instituto,  Coimbra,  1895  e  1896. 

* 


100  Historia  da  Idtter atura  Clássica 

Ignora-se  todo  o  período  da  sua  vida  que  decorre  até  á 
adolescência,  qual  fosse  a  sua  educação,  a  sua  convivência  e 
se  alguns  acontecimentos  notórios  haveriam  imprimido  em 
seu  espirito  dessas  impressões  indeléveis,  de  tão  determi- 
nante influencia  na  formação  da  consciência  dum  artista. 
Julga-se  que  em  Buarcos  passara  a  sua  primeira  infância, 
junto  do  seu  avô  paterno  João  Gonçalves  de  Miranda.  Se  o 
exemplar  das  epopêas  homéricas  annotado  por  Sá  de  Mi- 
randa, que  o  anonymo  auctor  da  Vida,  que  precede  a  i.a  edi- 
ção de  suas  obras,  disse  existir  ainda  em  15 84  em  poder 
dum  fidalgo  da  Beira  Alta,  Gonçalo  da  Fonseca  de  Castro 
—  se  tal  exemplar  pudesse  ser  referido  á  adolescência  do 
poe.a,  affbitariamos  a  conjectura  de  que  o  poeta  se  familiari- 
zara com  as  letras  clássicas,  muito  antes  da  sua  viagem. 
Demais,  esse  elemento  de  informação  apenas  viria  confirmar 
o  que  é  uma  muito  verosímil  hypothese.  A  esse  tempo  eram 
bem  conhecidos  os  nomes  primaciaes  das  boas  letras  da 
antiguidade;  encontramo-los  citados  pelos  auctores  e  descri- 
ptos  nos  inventários  das  bibliothecas.  E  de  facto,  só  por 
esse  prévio  conhecimento  e  pela  noticia  da  effervescencia 
litteraria,  que  em  Itália  occorria,  se  comprehenderia  que  o 
poeta  se  aventurasse  a  essa  viagem. 

Em  Lisboa  frequentou  a  Universidade,  concluindo  a  sua 
formatura  de  leis  e  ingressando  naquella  escola  como  pro- 
fessor. Isto  deve  ter  occorrido  depois  de  15 16,  data  em  que 
apparece  nomeado  com  o  titulo  de  doutor.  Não  quiz,  porém, 
seguir  a  carreira  das  leis,  abandonou  o  ensino  e  recusou 
lugares  ofRciaes  para  se  retirar  e  devotar  ao  «estudo  da 
Philosophia  Moral  e  Estoyca  a  que  sua  natureza  o  incli- 
nava» —  diz  o  seu  anonymo  e  sempre  útil  biographo. 

A  Universidade,  então  com  sede  em  Lisboa  desde  que 
em  1384  para  aqui  fora  transferida  por  D.  João  1,  recebera 
de  D.  Manuel  I  importantes  elementos  de  progresso  :  casas 
novas,  augmento  dos  vencimentos  do  seu  pessoal  e  um  novo 
estatuto,    outorgado    em    1504,    cujo   plano   de  estudos    era 


Historia  da  Litteratura  Clássica  101 

mais  vasto  que  o  anterior.  Nelle  se  consignava  o  ensino  de 
theologia,  de  cânones,  de  philosophia  natural,  de  philoso- 
phia  moral,  de  leis,  de  medicina,  de  lógica  e  de  grammatica, 
distribuído  por  cadeiras  de  prima,  de  terça  e  de  véspera  — 
designações  estas  tomadas  das  horas  canónicas,  em  que  as 
aulas  se  realizavam.  Estes  estudos,  tão  summariamente  co- 
nhecidos hoje,  seguiu-os  Sá  de  Miranda,  mas  não  nos  é 
possível  saber  o  que  de  litterario  e  clássico  se  contivesse 
nesse  quadro,  para  presumir  a  parte  que  na  sua  deliberação 
de  ir  a  Itália  pudesse  ter  tido  a  aprendizagem  escolar. 

Por  esse  tempo  frequentou  o  poeta  a  corte  de  D.  Ma- 
nuel I.  onde  se  realizavam  serões,  que  pela  sua  opulência 
e  elegância  se  tornaram  famosos.  A  elles  assistiam  os  poe- 
tas do  tempo,  nelles  exhibia  Gil  Vicente  os  seus  autos.  No 
Cancioneiro  Geral,  colleccionado  por  Garcia  de  Rezende  e 
publicado  em  151 6,  figura  o  nome  de  Sá  de  Miranda  entre 
os  muitos  que  preenchem  aquella  obra.  Alguns  destes  aucto- 
res  teriam  ainda  sido  do  conhecimento  do  poeta,  que  che- 
gava á  corte  quando  alguns  delles  se  retiravam  pela  velhice 
ou  arrebatados  pela  morte.  De  taes  serões  no  paço  da  Ri- 
beira e  em  outros  muitos  lugares,  por  onde  a  corte  transi- 
tou e  estanceou,  conservou  Sá  de  Miranda  uma  grata  recor- 
dação, que  confessou  quando  a  mais  larga  e  mais  intelligente 
comprehensão  da  belleza  e  do  ideal  clássico  o  faziam  lasti- 
mar o  desapparecimento  dessa  atmosphera  de  elegância,  de 
luxo  e  bom  gosto  tão  idónea  para  fazer  desenvolver  e  fru- 
ctificar  os  ambiciosos  sonhos  litterarios,  que  lhe  enchiam  o 
espirito : 

Os  momos,  os  serãos  de  Portugal, 

Tam  falados  no  mundo,  onde  são  idos? 

E  as  graças  temperadas  do  seu  sal? 

Dos  motes  o  primor,  e  altos  sentidos? 

Uns  ditos  delicados  cortesãos. 

Que  é  delles?  Quem  lhes  dá  somente  ouvidos? 


102  Historia  da  Litter atura  Clássica 

Não  era  a  taciturna  corte  de  D.  João  iii  o  meio  mais 
propicio  para  fecundar  planos  litterarios,  dessa  mundana 
arte  litteraria  do  renascimento  que  elevou  o  amor  a  primeiro 
thema  e  á  mulher  dignificou  como  suprema  inspiradora. 
O  mercantilismo,  que  para  as  empresas  ultramarinas  impel- 
lia  a  nobreza,  e  os  sustos  e  cautelas,  que  o  estabelecimento 
do  tribunal  do  Santo  Ofíicio  originava,  faziam  crear  sauda- 
des da  corte  de  D.  Manuel  I,  de  quando  a  índia  era  ainda 
um  ideal  heróico  e  christão. 

Desse  lapso  de  tempo,  que  alcança  até  á  sua  partida 
para  o  estrangeiro,  restam  as  composições  de  gosto  medie- 
va1, cantigas  e  vilancetes,  de  que  adiante  se  falará. 

Em  152 1  sahiu  de  Portugal,  levado  pela  curiosidade  de 
observar  de  perto  a  actividade  litteraria  da  Itália  e  talvez, 
como  c  verosímil,  pelo  desejo  de  melhor  conhecer  o  mundo 
e  os  homens,  para  mais  sabiamente  se  erguer  acima  da  sua 
ordinária  estimação  de  valores  com  aquelle  philosophico 
scepticismo,  a  que  seu  espirito  parece  haver  sido  de  natural 
tão  propenso.  Diz  o  seu  primeiro  biographo  que  elle  per- 
correu os  mais  celebres  lugares  de  Hespanha,  e  com  vagar 
e  curiosidade  Roma,  Areneza,  Nápoles,  Milão,  Florença  e  o 
melhor  da  Sicília.  Este  depoimento  é,  mais  ou  menos,  confir- 
mado pela  confissão  do  próprio  poeta: 

Vi  Roma,  vi  Veneza,  vi  Milão 

Em  tempo  de  Espanhoes  e  de  Franceses, 

Os  jardins  de  Valença  de  Aragão 

Em  que  o  amor  vive  e  reina,  onde  ílorece, 

Por  onde  tantas  rebuçadas  vão. 

Este  « tempo  de  hespanhoes  e  franceses  »  é  o  da  guerra 
entre  Carlos  v  e  Francisco  1,  que  se  feria  na  Itália,  onde 
também  teve  termo  pela  decisiva  batalha  de  Pavia. 

Qual  era  a  direcção  do  intenso  movimento  litterario,  de 
que  então  palpitava  o  génio  italiano,  qual  o  espirito  que  o 
dominava,  já  o  dissemos  quando  na  Introducção  do  presente 


Historia  da  Ldtteratura  Clássica  103 

livro  desenhámos  a  physionomia  do  renascimento  em  Itália. 
Foi  essa  febre  de  belleza,  que  Sá  de  Miranda  em  flagrante 
surprcíiendeu,  e  na  sua  intimidade  pôde  penetrar  graças  ás 
facilidades  que  certo  lhe  proporcionaria  o  seu  parentesco 
com  um  dos  corypheus  desse  movimento,  Vittoria  Colonna. 
Se  se  relembrarem  as  predominantes  feições  do  movimento 
litterario  da  Itália  de  então  e  se  se  lhes  accrescentarem  as 
do  quadro  social  e  as  do  magnifico  esplendor  das  artes  plás- 
ticas, em  que  culminavam  Leonardo  de  Vinci,  Raphael, 
Miguel  Angelo,  Cellini,  teremos  reconstituido  as  impressões 
colhidas  por  Sá  de  Miranda  —  em  cujo  espirito  ellas  se  or- 
ganizaram -em  toda  uma  esthetica  :  nova  concepção  da  vida, 
novas  aspirações  de  belleza  e  novas  formas  de  arte  para  lhes 
dar  expressão,  aquelle  ideal  que  delineámos  na  hitroducção. 

Portador  dum  ambicioso  programma,  regressou  a  Portu- 
gal em  1526,  indo  acolher-se  a  uma  sua  quinta  dos  arredores 
de  Coimbra,  donde  só  sahiu  para  saudar  os  reis  que  áquella 
cidade  se  abrigavam,  fugindo  duma  peste,  que  em  Lisboa 
grassava.  Esse  encontro  com  D.  João  111  em  Coimbra  foi  o 
inicio  das  suas  novas  relações  com  a  corte,  de  que  ia  ser  um 
severo  censor,  que  desassombradamente  adverte  o  rei  dos 
perigos  que  antevê.  Relacionado  com  os  mais  cultos  fidalgos 
e  os  mais  talentosos  espiritos  desse  tempo,  começa  então  a 
serena  execução  do  seu  programma  triplice:  acclimar  o  novo 
gosto  litterario,  orientar  os  ensaios  dos  outros  poetas  que 
queriam  seguir  os  seus  ensinamentos  e  fazer  o  que  hoje 
chamaríamos  critica  social.  Este  triplice  programma  não 
excluía  benévola  syrnpathia  pelas  formas  poéticas  tradicio- 
naes  que  já  cultivara  e  que  continuaria  a  exercitar. 

Foi  durante  a  curta  estada  de  D.  João  111  em  Coimbra, 
em  1527,  que  Sá  de  Miranda  compôs  a  sua  primeira  tenta- 
tiva de  theatro  clássico,  a  comedia  Os  Estrangeiros. 

Entre  1533  e  1534,  ou  fcsse  pelo  pendor  do  seu  espirito 
para  a  tranquilla  solidão  e  porque  lhe  desagradasse  o  theor 
de  vida  que  na  corte  se  vivia,  tão  opposto  ao  seu  modo  de 


10  A  Historia  da  Lditi  atura   Cias  m  ca 

sentir  e  ás  suas  opiniões,  ou  fosse  porque  a  reacção  provo- 
cada no  animo  dos  cortesãos  pelas  suas  censuras  se  aziumasse 
com  as  allusões  da  écloga  Aleixo,  o  poeta  retira-se  para  a 
Commenda  das  Duas  Igrejas,  que  acabava  de  receber  de 
D.  João  iii.  Essas  terras,  em  que  se  ia  isolar,  convizinham 
com  o  Pico  dos  Regalados,  sobre  a  margem  esquerda  do 
rio  Neiva,  na  província  do  Minho.  A  belleza  da  paizagem, 
luxuriante  e  variada  de  aspectos,  ajustava-se  com  o  estado 
de  espirito  meditativo  do  poeta,  em  cujos  sentimentos  litte- 
rarios  figurava  o  amor  da  natureza  e  em  cujo  programma  se 
incluía  o  cultivo  do  bucolismo.  Com  António  Pereira  Marra- 
maque,  senhor  de  Basto,  nas  cercanias  das  Duas  Igrejas, 
lavrador  e  poeta  também  curioso  do  novo  movimento  de  idéas, 
estreitou  o  poeta  relações  e  permutou  trabalhos  poéticos. 
E  este  senhor  de  Basto  um  dos  destinatários  das  suas  famo- 
sas Cartas.  Na  leitura,  no  exercício  da  musica,  na  caça  e  na 
conversa,  na  qual  segundo  o  seu  anonymo  biographo  foi  de 
raro  e  suggestivo  encanto,  passou  Sá  de  Miranda  esse 
tempo,  até  que  a  partida  de  António  Basto  para  a  corte  ou 
para  Coimbra,  com  toda  sua  família,  pôs  rim  a  esse  fraternal 
convívio.  Depois  da  partida  de  Basto,  o  poeta  transferiu-se 
para  a  Quinta  da  Tapada,  que  alli  possuía  talvez  já  ante- 
riormente á  Commenda  das  Duas  Igrejas  e  que  talvez  hou- 
vesse sido  a  causa  de  haver  sollicitado  do  rei  D.  João  iii  a 
doação  dessa  Commenda,  tão  distante  da  sua  terra  natal. 
Pouco  depois,  em  1536,  casou  com  D.  Briolanj a  de  Aze- 
vedo, senhora  da  nobreza  local,  com  que  o  poeta  iniciara 
convivência.  Era  D.  Briolanja  irmã  de  Manuel  Machado, 
senhor  das  terras  de  Entre-Homem  e  Cavado  e  opulento  de 
haveres.  Desde  então,  sem  descontinuar  os  seus  fervorosos 
estudos  litterarios,  Sá  de  Miranda  attrahe  a  sua  casa  amigos 
e  admiradores  que  generosamente  acolhe,  formando  no  seu 
retiro  já  pela  afBuencia  dos  visitantes,  já  pela  correspondên- 
cia que  mantinha,  uma  pequena  corte  litteraria.  Vêm 
depois    os    filhos    e  os    cuidados    da  sua  educação,  em  que 


Historia  da  Litteratura   Clássica  105 

desveladamente  se  esmera.  De  1538,  segundo  se  julga,  é  o 
seu  segundo  ensaio  dramático,  Vilhalpandcs ,  que  o  Cardeal 
Infante  D.  Henrique  honrou  com  a  sua  estima.  Em  155 1,  o 
principe  D.  João,  mallogrado  herdeiro  do  throno,  pae  de 
D.  Sebastião,  mandou-lhe  pedir  os  seus  versos  —  o  que  era  en- 
tão um  supremo  signalde  apreço.  Em  1553»  soffreu  o  desgosto 
de  perder  em  Ceuta  seu  filho  mais  velho,  Gonçalo  Mendes; 
dois  annos  depois  morreu  D.  Briolanja.  Estas  dores  causa- 
ram-lhe  profundo  abalo.  Desde  então,  refere  o  seu  utilissimo 
e  benemérito  biographo,  «nunca  mais  sahio'  de  sua  casa, 
senão  pêra  ovir  os  officios  Divinos,  nem  apparou  a  barba, 
nem  cortou  as  unhas,  nem  respondeu  a  carta  que  lhe  alguém 
escrevesse  até  que  acabou  de  todo».  E  de  todo  acabou  em 
155S,  tendo  ainda  assistido  ás  mortes  consecutivas  do  infante 
D.  Luiz,  do  Principe  D.  João  e  do  rei  D.  João  III.  Tinha 
então  setenta  e  três  annos  de  edade,  bem  providos  de  saber 
e  de  experiência,  e  bem  tranquillos  de  rectamente  haverem 
sido  vividos.  Foi  sepultado  em  S.  Martinho  de  Carrezedo, 
ao  lado  do  tumulo  de  sua  mulher. 

O  HOMEM 

O  biographo  anonymo,  que  coiligiu  as  suas  informações 
«de  pessoas  fidedignas  que  o  conhecerão  e  tratarão»,  des- 
creve do  modo  seguinte  o  retrato  physico  do  poeta,  ao 
mesmo  tempo  que  presta  alguns  dados  sobre  o  seu  caracter. 
«Foy  homem  grosso  de  corpo,  de  meãa  estatura,  muito  aluo 
de  mãos,  e  rostro,  com  pouca  cor  nelle,  o  cabello  preto  e 
corredio,  a  barba  muito  povoada,  c  de  seu  natural  crecida, 
os  olhos  verdes  bem  assombrados,  mas  com  alguma  demasia 
grandes,  o  naris  comprido,  e  com  cavallo,  graue  na  pessoa, 
melancólico  na  apparencia,  mais  fácil  e  humano  na  conver- 
sação, engraçado  nella  com  bom  tom  de  falia,  e  menos  parco 
em  fallar  que  em  rir...»-  Estas  breves  informações,  os  sen- 
timentos que  dominam  as  suas  obras  e  o  alto  conceito  que 


106  Historia  da  Litteratura  Clássica 

delle  fizeram  os  seus  discípulos  e  continuadores,  não  menos 
solicitos  em  lhe  louvar  a  austeridade  que  as  obras,  fazem- 
nos  crer  que  foi  Sá  de  Miranda  um  destes  caracteres  auste- 
ros, graves,  de  firme  vontade  e  sombrio  aspecto,  mas  que 
occultam  sob  essa  severa  apparencia  uma  sensibilidade  ex- 
trema e  uma  affabilidade  acolhedora.  Essa  sensibilidade  te- 
ria dois  principaes  aspectos :  a  bonhornia  amável  e  hospita- 
leira, communicativa  e  jovial,  quando  o  rodeavam  amigos 
na  intimidade,  e  uma  viva  sympathia  social,  que  o  levava  a 
commover-se  a  lagrimas  perante  os  prenúncios  dos  graves 
infortúnios  que  Portugal  haveria  de  correr :  « se  suspendia 
alguas  vezes,  e  muy  de  ordinário  derramava  lagrimas  sem  o 
sentir.»  A  jovialidade  ruidosa  da  conversação  era  nelle  um 
meio  de  distrahir  essa  viva  preoccupação  dos  destinos  do 
seu  paiz,  era  uma  maneira  de  se  livrar  de  si,  das  consequên- 
cias pungentes  dessa  viva  solidariedade  de  sentimentos  com 
a  sociedade  em  que  vivia.  A  dedicada  ansiedade  e  a  fran- 
queza leal  com  que  a  D.  João  III  e  aos  seus  amigos  confes- 
sava os  seus  juizos  e  opiniões,  fazem  crer  que  foi  Sá  de  Mi- 
randa uma  destas  excepcionaes  organizações  moraes  que 
tratam  do  interesse  social  como  dum  interesse  seu  próprio  e 
que  no  que  é  pessoalmente  seu  buscam  um  valor  e  um  al- 
cance social.  Essa  solicitude  faria  delle,  nos  tempos  moder- 
nos, um  bom  cidadão,  sempre  prompto  a  intervir  com  o  seu 
voto  e  a  sua  opinião  em  todos  os  momentosos  assumptos. 
Em  vez  de  cartas  poéticas  ao  soberano  e  a  um  pequeno  cir- 
culo de  amigos,  teria  então  escripto  manifestos  e  pamphletos 
dirigidos  á  nação.  Não  faz  esta  consciência  social,  esta  cora- 
gem lembrar  o  papel  de  Alexandre  Herculano,  sahindo  dos 
seus  estudos  históricos  e  do  seu  retiro  para  se  pronunciar 
sobre  algumas  importantes  questões  publicas  do  seu  tempo? 
Não  é  este  o  único  ponto  de  semelhança  entre  os  caracteres 
dos  dois  escriptores:  Embora  seja  melindroso  estabelecer 
approximações  entre  naturezas  moraes  tão  distantes  no 
tempo  e  que  se  alimentaram  de  emoções  e  pensamentos  tão 


Historia  da  Lit  ter  atura  Clássica  107 

diversos  e  de  certo  modo  tão  oppostos,  não  temos  outro  pro- 
cesso de  esclarecer  e  completar  a  synthese  que  cremos  fazer 
da  constituição  moral  do  introductor  do  gosto  clássico  em 
Portugal.  Como  Herculano,  soffreu  uma  influencia  profunda 
no  seu  systema  de  idéas,  no  estrangeiro;  como  elle  foi  tam- 
bém um  reformador;  viveu  retirado  e  mais  se  retirou  em 
certa  altura  da  sua  vida ;  tarde  casou,  mais  preoccupado  de 
bem-estar  e  bôa-ordem  caseira  que  impellido  por  um  vivo 
sentimento  de  amor.  A  razão  serena  e  sensata  predominava 
sobre  a  exalçada  imaginação  poética;  escasso  era  o  seu  sen- 
timento da  natureza,  que  cedia  todo  o  lugar  á  melancholia 
pessimista  e  desilludida.  Desdenhoso  das  grandezas  do  mun- 
do, da  riqueza  e  do  poder,  parecia  comprazer-se  em  exerci- 
tar pelo  isolamento,  pela  meditação  e  pelo  estudo  a  sua  vida 
interior.  Para  nesse  seu  gosto  se  concentrar  abondonou  o 
magistério,  recusou  cargos  públicos  e  affastou  se  da  corte. 
A  sinceridade  terá  sido  sempre  sua  inspiradora,  sinceridade 
exigente  que  á  sua  própria  consciência  fiscalizava.  Por  ter 
sido  uma  consciência  recta,  que  se  não  deslumbrou  com  a 
miragem  do  Oriente  e  com  as  retumbantes  glorias  e  prodi- 
giosos esplendores  do  seu  tempo,  e  porque  sempre  fallou  a 
verdade  dos  seus  sentimentos,  foi  venerado  não  menos  como 
reformador  litterario  que  como  philosopho  —  quando  philo- 
sopho  tinha  um  significado  principalmente  moral,  mixto  de 
integridade,  de  rude  simpleza,  de  sinceridade  e  de  sobrance- 
ria para  com  as  enganosas  apparencias  do  mundo. 

O  POETA 

A  acção  de  Sá  de  Miranda  na  nossa  historia  litteraria  é 
a  dum  reformador ;  foi  elle  que  primeiro  ensaiou  alguns  no- 
vos géneros  poéticos:  o  soneto  e  a  canção  de  Petrarcha,  os 
tercetos  de  Dante,  a  oitava  rima  de  Policiano,  Boccacio  e 
Ariosto,  as  éclogas  de  Sannazaro  e  seus  versos  encadeados, 
e  o  hendecassylabo  jainbico.  Como  a  lingua  ainda  não  adqui- 


108  Historia  da  Litter atura  Clássica 

rira  por  um  longo  exercício  de  culta  arte  malleabilidade  e 
expressão  flexível  para  os  novos  ideaes  do  renascimento  e 
como  Sá  de  Miranda,  espirito  viril  e  austero,  não  era  uma 
alta  organização  poética,  grandemente  carecem  de  inspira- 
ção as  suas  obras,  pela  maior  parte.  Menos  analysar  o  fundo 
individual,  que  ás  novas  formas  incutiu,  do  que  verificar  em 
que  termos  fez  as  suas  exemplificações,  terá  de  ser  o  nosso 
processo. 

Posta  completamente  de  parte  a  hrypotese  de  haver  sido 
o  soneto  cultivado  antes  de  Sá  de  Miranda,  (*)  a  este  cabe  a 
gloria  de  ter  feito  o  seu  primeiro  ensaio  com  as  vinte  e 
nove  peças  desse  género,  que  andam  nas  suas  obras.  Não 
foi  da  antiguidade,  que  Sá  de  Miranda  tomou  esta  sua  inno- 
vação,  porque  a  antiguidade  o  desconheceu;  o  soneto  é  um 
género  poético  moderno. 

O  seu  nome  proveio  da  lyrica  provençal,  mas  nella  com 
o  significado  genérico  de  qualquer  peça  poética  acompa- 
nhada de  musica.  Com  a  estructura,  com  que  hoje  o  conhe- 
cemos, tornada  inalterável  pela  consagração  dos  séculos,  foi 
a  Sicília,  no  século  xill,  que  o  produziu  e  foi  Petrarcha  que 
o  pôs  triumphalmente  em  moda.  Dois  quartetos  e  dois  ter- 
cetos de  dez  syllabas  com  as  rimas  encadeadas  segundo  as 
formulas  ABBA  —  ABBA  —  CCD  —  EDE  —  ouABBA 

—  ABBA  —  CDE— CDE  —  ou  ainda  ABAB  —  BABA 

—  CDC  —  DCD  —  tal   é   a  organização  do   soneto   que  se 


(1)  V.  Poesias  de  Sá  de  Mirando,  ed.  de  D.  Carolina  Michaêlis  de 
Vasconcellos.  As  obras  poéticas  de  Sá  de  Miranda  correm  impressas  nos 
seguintes  volumes:  Poesias,  edição  critica  da  sr.a  D.  Carolina  Michaêlis 
de  Vasconcellos,  Halle,  1886 :  Arcvos  estudos  sobre  Sá  de  Miranda,  da 
mesma  senhora,  publicados  no  vol.  V  do  Boletim  da  Segunda  Classe  da 
Academia  das  Sciencias  de  Lisbca,  Lisboa,  1912,  pag.  9-230,  os  quaes 
comprehendem  uma  écloga  Aleixo,  duas  trovas,  oito  vilancetes,  cinco 
cantigas  e  um  fragmento  minúsculo  da  tragedia  perdida  Cleópatra;  o 
poema  de  Santa  Maria  Egypciaca,  editado  pelo  sr.  Th.  Braga,  Porto, 
1913- 


Historia  da  Litteratura  Clássica  109 

fixou,  na  qual  raramente  com  êxito  mão  profana  ousou  intro- 
duzir modificações  de  sua  lavra.  (l)  Com  o  largo  cultivo  que 
deste  género  poético  fez,  Petrarcha  não  só  lhe  fixou  tal 
estructura,  mas  nelle  embutiu  um  ideal  litterario  novo.  Pelo 
soneto  petrarcheano  entrou  na  litteratura  o  amor,  não  já 
como  accessorio  ou  baixamente  interpretado,  mas  expressão 
suprema  de  todas  as  delicadezas  da  alma  humana,  como  vida 
interior,  como  sacrifício  de  todos  os  sentimentos  e  de  toda  a 
meditação  a  um  modelo  de  belleza  perfeito  até  ao  ideal  e, 
como  ideal,  inattingivel.  Exhumando-o  da  multidão  confusa 
de  mythos,  allegorias,  concepções  metaphysicas  e  materiaes 
perfigurações  que  sobre  elle  tinham  accumulado  Dante  e  a 
escholastica  medieva,  Petrarcha  purificou  o  amor  e  revelou-o. 
Esse  amor,  assim  largamente  comprehendido,  é  todo  um 
vasto  mundo  de  emoções  novas,  toda  uma  fecunda  seara  de 
novos  themas  para  a  imaginação  artística  e  para  a  meditação 
subjectiva;  esse  amor  é  mesmo  uma  completa  concepção 
moral,  uma  interpretação  da  vida,  á  qual  dava  causa  e  obje- 
ctivo ;  segundo  elle,  só  se  vivia  porque  se  amava  e  só  se 
vivia  para  amar,  pois  era  o  amor,  com  seu  conteúdo 
inexhaurivel,  que  revelava  ás  almas  a  sua  vida  interna  e  as 
fazia  vibrar.  Este  alto  ideal  já  não  era  o  realizado  pela 
Beatriz  do  Dante,  symbolo  da  Belleza  e  da  Perfeição,  voz  e 
consciência  do  Universo,  caminho  do  céu,  representação 
esthetica  da  construcção  lógica  da  escholatisca,  essa  Beatriz 
feita  de  transcendencias  subtis  menos  representada  nas 
expressões  do  poeta  que  na  imaginação  ansiosa  de  a  com- 
pletar, essa  luce  intelleíual  e  incoercível.  Agora  a  Laura  do 
Petrarcha  é  um  ideal  mais  humano,  é  a  mulher  formosa,  que 


(1)  Ao  soneto  de  typo  italiano  oppõe-se  o  soneto  de  typo  de  inglês. 
Ha  muitas  noticias  sobre  o  soneto  inglês  e  suas  características  no  estudo 
do  académico  J.  Fernandes  Costa,  Camões,  exemplar  e  modelo  dos  moder- 
nos sonetistas  ingleses  —  Elisabeth  Browning  e  Catharina  de  At/iaydc, 
pub.  no  vol.  ii.°  do  Boletim  da  2."  Classe  da  Academia. 


110  Historia  da  lÁtteraivra  Clássica 

ardentemente  se  ama,  é  um  corpo  esculpturalmente  bello, 
que  irradia  belleza  que  á  natureza  se  communica  a  adoçá-la 
por  sympathia  e  desejo  de  concordância  entre  as  formas 
bellas.  Tem  mesmo  um  modelo,  alvo  como  a  neve,  olhos 
serenos  e  castamente  modestos,  cabellos  de  ouro,  fallar 
discreto  em  voz  duma  harmonia  musical,  movimentos  lentos 
de  graciosa  suavidade.  Amar  esse  modelo,  ansiosamente 
lhe  implorar  a  graça  dum  sorriso,  o  favor  sem  par  dalguma 
benévola  palavra,  reproduzir  na  harmonia  do  verso  e  na 
expressão  da  linguagem  poética  esse  modelo,  desesperar  de 
o  fazer  e  sempre  recomeçar,  num  continuo  esforço  de  arte, 
logo  seguido  de  desfallecimento,  será  o  objecto  deliberada- 
mente preferido  dos  poetas  do  quinhentismo.  Nem  sombra  de 
desejo  carnal  transparece  nos  seus  ardores  de  amor;  a  tal 
matéria  fecharam-se  as  portas  da  poesia  e  da  imaginação 
dos  poetas  quinhentistas,  impregnados  do  puro  idealismo 
platónico,  que  no  amor  via  também  uma  idéa  pura  daquellas 
de  que  o  philosopho  atheniense  tecia  e  povoava  o  mundo, 
delias  fazendo  a  própria  essência  deste.  O  amor  de  Petrarcha 
e  dos  que  no  exercicio  do  soneto  o  seguiram  é  também  uma 
idéa  pura,  que  por  si  mesma  actua  sobre  a  matéria,  o  corpo 
e  a  natureza,  e  por  si  conduz  ao  soberano  bem.  Largos  hori- 
zontes se  estendiam  á  imaginação  poética :  reproduzir  a 
mulher  amada,  esse  modelo  sempre  imitado  em  esboços 
parciaes  do  grande  quadro  ideal  que  cada  alma  trazia  em 
si  ;  inquirir  dos  movimentos  do  coração,  devassar  todos  os 
escaninhos  da  própria  alma  e  trazer  ao  relevo  da  arte,  da 
expressão  poética  todas  as  descobertas  dessa  intuspecção 
assídua  e  attenta ;  gozar  o  soffrimento  de  amar  e  exprimir  as 
contradicções  desse  sentimento ;  em  meio  de  tentativas  sem 
fim  de  desenhar  o  seu  ideal  modelo,  explicar  em  que  con- 
siste a  sua  almejada  belieza  e  localizá-la  na  mais  adequada 
paizagem,  ridente  e  meiga,  eram  themas  de  infinitas  variantes. 
Pelo  soneto  petrarcheano  entra  na  nossa  litteratura  o  amor, 
como   primeiro   grau  na  hierarchia  dos  themas  litterarios,  e 


Historia  da  Litteratura  Clássica  111 

revela-se  essa  disposição  de  espirito,  extremamente  artística 
e  mais  que  nenhuma  outra  fecunda  para  o  bem  e  para  a 
belleza,  que  é  muitas  vezes  a  disposição  de  quem  ama,  mas' 
que  é  sempre  a  disposição  de  quem  soffre.  Pelo  soffrimento 
se  sente  a  vida,  pcis  é  elle  o  mais  solido  ponto  de  referencia 
e  de  relação,  por  elle  se  adquire  esse  poder  de  sympathia, 
de  perspicácia  psychologica,  de  desillusão,  de  sensibilidade 
e  de  bondade,  por  elle  se  aprendem  os  verdadeiros  valores 
do  mundo.  Abundante  inspiração  poética  communicou  á 
nossa  litteratura  o  soneto  petrarcheano,  o  qual  com  as  trans- 
formações das  idéas  estheticas  foi  também  transformando  o 
seu  fundo.  A  aprendizagem  do  soneto,  que  os  nossos  poetas 
quinhentistas  vão  fazer,  será  longa,  laboriosa  e  mais  duma 
vez  frustrada  peles  defeitos  inherentes  á  estruetura  severa 
desse  género  poético :  comprimir  num  exiguo  quadro  a 
inspiração  iyrica,  quebrando  o  impulso  do  sentimento  ou  a 
sequencia  da  idéa,  mutilando  portanto  a  expressão  dum  ou 
doutro ;  recahir  em  virtude  do  cunho  conceituoso,  que  a 
mesma  brevidade  do  soneto  lhe  imprime,  na  insignificância 
ou  na  complicação  especiosa.  Este  ultimo  defeito  tornará 
mais  tarde  o  soneto  pábulo  predilecto  do  gongorismo. 

Não  foi  o  soneto  amoroso,  tal  como  Petrarcha  o  interpre- 
tara, e  como  o  gosto  da  philosophia  platónica  o  confirmara, 
que  Sá  de  Miranda  cultivou;  essa  maneira  coube  a  António 
Ferreira  adoptá-la.  O  soneto  de  Miranda  tem  como  thema  pre- 
dominante o  desengano  da  vida  terrena,  com  seu  scepticismo 
que  tudo  mostra  ser  vão,  «he  tudo  híí  vento  »,  com  o  descon- 
solo de  que  após  uma  desillusão  outra  illusão  vem  ludibriar  o 
sapiente  bom- senso,  com  a  ânsia  de  encontrar  para  tão  fundo 
tédio  alguma  consolação.  Este  mal  da  inadaptação  ao  seu 
tempo  não  o  curaria  o  amor,  que  tão  pequeno  papel  parece 
ter  desempenhado  na  vida  do  poeta,  esse  «desarrezoado  amor» 
de  que  o  próprio  poeta  se  teme,  pois  bem  conhece  as  suas 
fataes  contradicções  e  cruéis  cegueiras.  O  thema  da  summa 
desesperança  inspirou-lhe  o  seu  mais  bello  soneto : 


112  Historia  da  Litteratura  Clássica 

O  sol  he  grande,  caem  co  a  calma  as  aves 
Do  tempo  em  tal  sazão  que  soe  ser  fria  : 
Esta  agoa  que  dJalto  cae  accordar-me-hia, 
Do  sono  não,  mas  de  cuidados  graves. 

O  coisas  todas  vãs,  todas  mudaves, 
Qual  he  o  coração  que  em  vós  confia? 
Passando  hum  dia  vae,  passa  outro  dia 
Incertos  todos  mais  que  ao  vento  as  naves. 

Eu  vi  já  por  aqui  sombras  e  flores, 
Vi  agoas  e  fontes,  vi  verdura, 
As  aves  vi  cantar  todas  dJamores. 

Mudo  e  seco  he  já  tudo,  e  de  mistura, 
Também  fazendo-me  eu  fuy  dJoutras  cores, 
E  tudo  o  mais  renova,  isto  he  sem  cura. 

Envolvendo  o  sentimento  da  desesperança,  tão  commum 
na  sua  poesia,  no  conceito  da  caducidade  da  vida  humana, 
que  cumpre  seu  cyclo  previsto  e  desapparece,  em  contraste 
com  a  natureza  que  indefinidamente  envelhece  e  se  renova, 
Sá  de  Miranda  conseguiu  dar-lhe  expressão,  salientando 
esse  contraste.  Raramente,  como  neste  soneto,  conseguiu  o 
poeta  obter  expressão,  pois  na  maior  parte  dos  seus  sonetos 
a  execução  é  tão  defeituosa  ou  tão  inesthetica  que  dessa 
laboriosa  e  inacabada  execução  não  passou.  Os  conceitos 
são  grandemente  vulgares;  chegou  mesmo  a  dar  ao  soneto 
assumptos  que  lhe  repugnavam  e  que  só  nas  cartas  teriam 
cabida:  como  agradecer  e  elogiar  versos,  como  desculpar-se 
das  suas  perplexidades  artísticas.  Então  o  soneto  ainda 
não  tinha  a  franca  liberdade,  que  hoje  lhe  attribuem  os 
innovadores  audaciosos;  era  sempre  uma  nobre  peça  poética, 
que  para  themas  de  amor  nascera  ou,  pelo  menos,  para 
expandir  uma  intensa  vida  interior  e  que  sempre  conservara 
um  caracter  conceituoso.  Era  esse  conceito  que,  segundo 
mais  tarde  diria  Boileau,  deveria  fechar  o  soneto  com  chave 
d'ouro.    Assim    praticou    Miranda    nos    seus    mais    felizes 


Historia  da  IÀtter atura   Clássica  113 

sonetos,  o  que  já  reproduzimos,  e  o  da  morte  de  Lean- 
dro. No  gosto  petrarcheano  —  e  quando  nos  occuparmos  de 
António  Ferreira,  delinearemos  em  que  consistia  esse  gosto 
—  Sá  de  Miranda  apenas  compôs  um  soneto,  o  que  começa 
Este  retrato  vosso...  que  exprime  o  desespero  de  pintar  um 
modelo  de  suprema  formosura,  para  o  qual  são  escassos  os 
recursos  da  sua  poesia.  E  escassos  eram  de  facto. 

As  éclogas,  inspiradas  na  imitação  de  Boscan  e  Garcilaso 
e  em  grande  parte  escriptas  em  lingua  castelhana,  são 
mediocres  exercidos  de  versificação  em  que  pastores  lon- 
gamente discorrem  banalidades  fúteis.  Só  merece  excepcional 
menção  a  écloga  Basto,  em  que  Sá  de  Miranda  especialmente 
se  desvelou  porque  muito  a  reviu  e  a  emendou,  como  provam 
as  numerosas  variantes  delia,  conhecidas.  Essa  écloga  tem 
espontaneidade  de  estylo,  mais  correcção  métrica,  mais 
variado  conteúdo;  é  menos  frouxo  o  seu  dialogo,  sobretudo 
na  parte  em  que  calorosamente  faz  o  elogio  da  vida 
campesina,  menos  perra  e  tortuosa  a  narrativa,  principal- 
mente nas  duas  fabulas  nella  engastadas,  Gil  Ratinho  e 
Bácoro  Ove  lhe  iro. 

As  Cartas,  que  tão  repetidamente  têm  sido  invocadas 
pelos  panegyristas  (')  de  Sá  de  Miranda  como  obras  primas, 
são  o  seu  principal  titulo  de  gloria.  Ora  essas  Carias,  sendo 
muito  curiosas,  estão  longe  de  ser  a  obra  de  arte  superior 
que  se  pretende,  porque  lhes  falta  um  conteúdo  original  e 
profundo  e  uma  forma  perfeita  que  dê  expressão  a  esse 
conteúdo  de  idcas,  formando  com  elle  o  conjuncto  harmó- 
nico de  que  nasce  a  belleza.  Taes  críticos  confundem  a 
belleza  e  a  valia  artística  corn  o  sentimento  de  jubilo,  que 
se  experimenta  quando  após  longa  travessia  por  uma  floresta 


0\  Parece-nos  que  Pinheiro  Chagas,  a  sr.a  D.  Carolina  Michaelis, 
o  sr.  Thcophilo  Braga  e  o  sr.  Décio  Carneiro  mais  duma  vez  se  excede- 
ram nas  expressões  encomiásticas  que  empregaram  ao  fazerem  a  apre- 
ciação das  obras  de  Sá  de  Miranda. 

H.  da  L.  Clássica,  vol.  l.°  * 


114  Historia  da  Litteratura  Clássica 

de  versos  abstrusos  e  aborridos  se  nos  deparam  clareiras, 
em  que  o  sentido  é  facilmente  intelligivel  pelo  exprimir 
uma  forma  correntia.  Então,  em  vez  de  exprimirem  esse 
sentimento  com  exclamações  de  triumpho,  saúdam  esse 
achado  com  expressões  da  mais  intensa  e  apaixonada  admi- 
ração. Assim  succede  com  Sá  de  Miranda;  porque  as  suas 
cartas  são  mais  inteliigiveis  e  pelos  sentimentos  e  opiniões, 
que  declaram,  mais  dignas  de  interesse,  logo  se  proclama  a 
sua  quintilha  «admirável  de  vivacidade,  sublime  de  causti- 
cidade  sentenciosa»  (').  Grande  seria,  por  certo,  o  embaraço 
destes  auctores  se  se  lhes  pedisse  que  nos  demonstrassem 
essa  vivacidade  e  essa  sublimidade.  A  sr.a  D.  Carolina 
Michaêlis,  ao  apreciar  a  carta  a  D.  João  III,  fundamenta  a 
sua  admiração  em  merecimentos  taes  como  a  nobreza  da 
linguagem  e  a  ironia  aguda  do  moralista,  méritos  muito 
discutíveis  ou  pelo  menos  ampliados,  o  patriotismo  e  e 
fidalguia  de  caracter  que  tal  carta  revela  —  os  quaes  não 
são  méritos  por  que  se  aquilatem  valores  litterarios. 

Essas  cartas  demonstram  effectivamente  desassombro 
de  caracter,  independência  de  opinião,  revelam  os  juízos  do 
poeta  sobre  a  sociedade  do  seu  tempo,  opulenta  de  riquezas 
e  cubiçosa  de  glorias,  denotam  uma  perspicácia  prophetica, 
uma  alta  sympathia  social,  consciência  cívica  como  agora  se 
usa  dizer,  inteiramente  vasadas  nas  doutrinas  do  tempo,  do 
absolutismo  real,  de  que  Ferreira  na  sua  Castro  também 
se  tornaria  echo.  O  desdém  pelas  dissimulações  e  ociosida- 
des  cortesanescas,  o  elogio  da  rectidão  de  caracter,  o  amor 
da  vida  modesta  mas  tranquilla,  perfigurado  na  fabula  dos 
dois  ratos,  a  confissão  das  suas  leituras  dos  modernos  poetas 
italianos  e  hespanhoes  e  dos  seus  gostos  litterarios,  a 
recordação  da  sua  viagem  são  títulos  que  reclamam  curiosi- 


(')     Sã  de  Miranda  e  a  sua  obra,  Décio  Carneiro,  Lisbca,  1895, 
pag.  58. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  115 

dade  e  sympathia  para  as  Cartas,  mas  nunca  a  admiração 
commovida  que  só  ás  obras  de  génio  ou  de  superior  talento 
se  deve.  A  carta  a  D.  João  m,  dir-se-ha,  foi  uma  advertência 
corajosa  e  sincera  que  utilíssima  seria,  se  o  rei  a  ouvisse; 
accrescentaremos  que  muito  útil  poderia  ter  sido  se  houvesse 
sido  escripta  em  livre  prosa,  que  permitisse  a  máxima 
explanação  no  adduzir  das  razões.  A  forma  poética  só 
prejudicou  a  obra  moral,  que  é  essa  carta,  compromettendo 
o  seu  effeito. 

Mais  correntia  é  a  forma  e  mais  gracioso  o  jogo  de 
sentimento  das  peças  de  gosto  medieval,  vilancicos,  voltas  e 
esparsas,  porque  a  simplicidade  de  conceitos  mais  se  coadu- 
nava com  a  imaginação  pouco  rica  do  poeta,  e  porque  a 
forma,  menos  exigente,  era  ha  muito  longamente  praticada, 
até  mesmo  pelo  poeta. 

A  sua  peça  poética  mais  inspirada  é  a  Ca?ição  a  Nossa 
Senhora,  na  qual  expressa  a  aspiração  vehemente  duma  alma 
afflicta  que  em  seu  soffrer  appeila  para  a  infinita  bondade  e 
generosa  intercessão  da  Virgem.  Em  nenhuma  outra  sua 
poesia  o  lyrismo  lhe  brota  tão  espontâneo  e  tão  vivo.  Já 
porque  essa  situação  afflictiva  é  para  uma  imaginação  sen- 
sivel  intensamente  inspiradora,  já  porque  o  modelo  da 
canção  viu  de  Petrarcha  era  um  guia  seguro,  Sá  de  Miranda 
soube  tirar  da  sua  lyra  tarda  e  hesitante  os  accentos  vibran- 
tes e  ansiosos  de  quem  no  naufrágio  angustioso  duma  situa- 
ção afflictiva  á  fé  na  misericórdia  da  Virgem  abandonada- 
mente  se  confia.  Na  canção,  que  a  de  Sá  de  Miranda  imita, 
Petrarcha  pede  á  Virgem  que  o  liberte  do  amor  de  Laura, 
de  que  tão  pungitivamente  soffria;  na  sua,  Sá  de  Miranda 
confessa-se  culpado  e  pede  a  mediação  da  Mãe  de  Deus 
para  que  o  liberte  dum  captiveiro.  Qual  fosse  esse  captiveiro 
não  apuraram  os  seus  biographos  modernos  e  não  o  refere 
o  seu  primeiro  panegyrista,  mas  nós  cremos  que  essa  idéa 
do  captiveiro  lhe  veio  também  imitada  da  canção  de  Petrar- 
cha e  que  no  nosso  poeta  reformador  significará  um  estado 


116  Historia  da  Litteratura  Clássica 

indefinido  de  descontentamento,  a  prisão  no  tempo  presente, 
o  desagrado  de  viver  num  ambiente  a  que  seu  animo  se 
não  adaptara. 

A 'situação  de  Petrarcha  é  muito  mais  poética,  por  isso 
mais  eloquentemente  arrebatado  o  seu  ardente  implorar.  Na 
estructura  métrica  a  semelhança  é  completa. 

O  poema  Santa  Maria  Egypciaca,  que  só  recentemente 
foi  publicado,  (*)  como  o  seu  próprio  titulo  indica,  narra  a 
vida  e  conversão  religiosa  da  cortesã  dissoluta  de  Alexan- 
dria que,  por  seu  arrependimento  e  seu  penar  no  deserto 
durante  cerca  de  cincoenta  annos,  veio  a  ser  Santa  Maria 
Egypciaca  venerada  pela  Igreja.  Já  existia  uma  narrativa 
agiographica  com  tal  objecto,  de  auctor  anonymo  do  sé- 
culo XIV,  (2)  mas  Sá  de  Miranda  amplificou  consideravel- 
mente a  matéria,  reconstituindo  chronologicamente  toda  a 
vida  da  protagonista,  principalmente  nos  seus  primórdios, 
em  casa  de  seus  pães,  entresachando  a  narração  de  muitas 
reflexões  e  conselhos  moraes,  e  desenvolvendo  os  seus  diá- 
logos com  o  frade  Zozimas  e  os  monólogos  da  santa.  São 
em  extremo  surprehendentes  a  fluência  correntia  das  redon- 
dilhas  —  de  que  exclusivamente  se  compõe  o  poema  —  e  a 
delicada  discreção  com  que  o  poeta  trata  pormenores  me- 
lindrosos. 

Dominando  a  execução  métrica,  pôde  cuidar  da  expres- 
são, que  mais  duma  vez  conseguiu  tornar  vibrante  de  inspi- 
ração christã.  Bem  sabemos  que,  no  conjuncto  das  suas 
obras,  sempre  Sá  de  Miranda  se  mostrou  mais  propenso  ao 
cultivo  do  metro  popular  que  ao  dos  metros  italianos;  é, 
porem,  tão  g.ande  a  flexibilidade  do  verso  deste  poema,  é 
tão  sequente  e  lógica  a  sua  ordenação  estructural  que  este 


(')  V.  A  Egypciaca  Santa  Maria,  poema  de  Francisco  de  Sá  e 
Miranda,  pela  primeira  vez  publicado  por  Theophilo  Braga,  Porto,  1913. 

(*j  Publicada  pela  primeira  vez  pelo  sr.  Júlio  Cornu  na  Romania 
e  reproduzida  pelo  sr.  Th.  Braga  na  sua  recente  edição. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  117 

poema  forma  um  flagrante  contraste  com  todas  as  outras 
obras  do  escriptor.  Certo  é  que,  como  pretende  o  seu  editor, 
este  poema  poderia  ser  obra  do  fim  da  sua  carreira  litteraria 
e  por  isso  aproveitar  não  só  da  sua  sabia  aprendizagem 
poética,  mas  também  da  sua  esclarecida  experiência  do 
mundo. 

Mas  se  Sá  de  Miranda  para  produzir  a  sua  mais  inspi- 
rada poesia  lyrica  imitou  juxtalinearmente  a  Petrarcha,  se 
sempre  a  sua  musa  tarda  e  hesitante  revelou  dispor  de  curto 
fôlego,  não  é  para  surprehender  que  tão  inesperado  êxito 
conseguisse  no  poema  de  Sa?ita  Maria  Egypciacaf  Se  a  liber- 
dade, que  a  redondilha  lhe  proporcionava,  era  grande,  maior 
era  a  que  lhe  offertava  a  prosa,  e  nella  escreveu  as  suas 
comedias  pouco  felizes.  Pouco  independente  no  lyrismo  e 
no  theatro,  veio  a  ser  original  na  composição  dum  poema 
agiographico,  de  assumpto  prefixado,  que  não  permittia 
grandes  liberdades  artísticas.  As  reflexões  moraes  das  suas 
muito  louvadas  Cartas  são  completamente  offuscadas  pelas 
que  se  acham  engastadas  neste  poema,  com  a  restricção  de 
principalmente  se  referirem  á  educação  dos  filhos  e  ás  nor- 
mas moraes  das  mulheres,  considerações  que  Sá  de  Miranda 
não  fez  nas  comedias,  onde  poderiam  ter  opportuna  cabida. 
Ha  sobre  todos  um  pormenor  muito  humano  e  esthetica- 
mente  muito  bello  que  denuncia  uma  constituição  poética 
muito  diversa  da  que  pelas  outras  obras  se  trahe :  a  conver- 
são de  Maria  Egypciaca  faz-se  quando  a  sua  alma  se  achava 
já  idoneamente  preparada  pelo  desconsolo  e  pelas  apprehen- 
sões  de  ver  a  sua  belleza  fenecer.  Os  primeiros  indícios  de 
fadiga  ou  velhice  nas  cortesãs  deram  aos  romancistas  do 
romantismo  e  do  realismo  algumas  das  suas  mais  emocio- 
nantes paginas,  quando  a  ampla  liberdade,  quasi  licença,  da 
arte  moderna  fez  entrar  a  vida  das  meretrizes  no  quadro  dos 
themas  litterarios.  Pois  o  auctor  deste  velho  poema,  condu- 
zido pelo  pensamento  religioso  e  pelo  seu  conhecimento  das 
realidades  achou  esse  thema: 


118  Historia  da  Litteratura   Clássica 


Mas  se  nos  primeiros  annos 
mundanos  a  perseguiam, 
depois  que  os  annos  corriam 
ella  seguia  aos  mundanos, 
por  que  elles  a  não  seguiam. 

Como  o  viver  de  estragado 
estraga  o  corpo  mortal, 
este  fermoso  animal 
já  não  era  tão  presado 
por  se  presar  de  sensual . 


Passa  o  tempo  brevemente 
com  muita  velocidade 
e  quando  está  mais  contente 
que  te  parece  que  mente 
em  ti  se  encherga  a  verdade. 

Por  esta  o  tempo  passou, 

mas  vingou- se  o  tempo  d'ella, 
que  como  quem  acordou, 
olhou  para  si  e  achou 
que  já  não  era  tão  bella. 


Concertando  um  dia  o  rosto 
e  vendo  que  a  côr  perdia, 
triste  o  concerta  outro  dia 
e  vê  que  quanto  tem  posto 
que  no  rosto  lhe  morria. 

Sente  notável  tormento 

na  côr  que  perdida  traz, 
porém  cega-a  Satanaz, 
que  não  tenha  sentimento 
de  quantos  peccados  faz. 


Affligem-na  mil  receos, 

dJesta  negra  côr  perdida, 
e  perdida  e  esquecida 
de  seos  peccados  tão  feos 
não  vive  nada  affligida. 


Histoiia  da  Litteratura  Clássica  119 


Pêra  a  falsa  formosura 

com  que  Deus  hade  offender, 
faz  uma  e  outra  postura, 
mas  para  se  converter 
nenhum  remédio  procura  !  '}) 

E  verdadeiramente  para  surprehender  que  a  imaginação 
hirta  e  secca  das  outras  obras  neste  poema  se  tornasse  tão 
fecunda  e  fiexuosa  e  que  a  forma  hesitante,  já  na  expressão, 
já  nas  próprias  formas  linguisticas,  se  convertesse  em  estylo 
fluente,  espontâneo,  perfeitamente  accommodado  ás  necessi- 
dades da  matéria.  E'  também  para  surprehender  que  o  ano- 
nymo  biographo  de  Sá  de  Miranda,  que  prefaciou  as  suas 
Obras,  não  fizesse  referencia  a  obra  de  tanta  monta,  pelo  mé- 
rito e  até  pela  extensão  como  a  Santa  Maria  Egypáaca,  —  (!) 
e  ainda  que  de  todas  as  obras  fosse  justamente  a  principal 
que  durante  séculos  houvesse  permanecido  inédita.  Estas 
considerações  servem  para  indicar  que  será  conveniente 
rever  os  títulos  com  que  se  attribue  este  poema  a  Sá  de 
Miranda. 

O  COMEDIOGRAPHO 

•  O  anno  de  1527  foi  talvez  o  anno  de  maior  fecundidade 
de  toda  a  carreira  litteraria  de  Gil  Vicente.  Nesse  anno, 
quando  a  corte  se  encontrava  em  Coimbra,  representou  elle 
nessa  cidade  a  Divisa  da  cidade  de  Coimbra  e  a  Serra  da  Esirella. 
Como  nesse  mesmo  anno  e  na  mesma  cidade  de  Coimbra  se 
diz   ter  sido  representada  a  comedia  Estrangeiros,  de  Sá  de 


0)     V.  as  quintilhas  de  pag.  34  a  41  da  ed.  cit. 

(s)  Leonel  da  Costa,  (1570-1640),  o  erudito  traductor  de  Vergilio 
e  exegeta  de  Terêncio,  publicou  em  Lisboa,  1627,  um  poema  sobre  o 
mesmo  assumpto,  do  seguinte  titulo :  A  conversão  miraculosa  da  felice 
egypcia  penitente  Santa  Maria,  sua  vida  c  morte,  composta  em  redondi- 
lhas.  Foi  reeditado  em  1674  e  1771.  O  sr.  Th.  Braga  na  sua  já  citada 
edição  reproduz  algumas  quintilhas  da  obra  de  Leonel  da  Costa. 


120  Ri  aio  ria  da  Liiteratura   Clássica 

Miranda,  os  biographos  deste  escriptor  attribuiram  tal  repre- 
sentação a  um  acintoso  propósito  de  oppôr  ao  gosto  do  thea- 
tro  vicentino,  em  voga,  os  modelos  clássicos  exemplificados 
no  primeiro  ensaio  de  comedia  clássica  entre  nós  tentado. 
Ignoramos  os  fundamentos  cem  que  se  assevera  que  tal 
comedia  tivesse  sido  representada  em  Coimbra,  em  1527,  e 
não  reconhecemos  também  as  razões  por  que  ella  haja  de 
ser  considerada  como  um  repto  endereçado  a  Gil  Vicente. 
Para  nós  ella  será  somente  a  primeira  comedia  clássica. 

A  comedia  clássica,  a  que  se  fundava  na  imitação  dos 
comediographos  da  antiga  Grécia  e  da  antiga  Roma,  surgia 
de  súbito  já  tão  bem  apetrechada,  tão  perfeita  na  sua  com- 
posição, tão  senhora  dos  seus  meios  de  arte  que  estabelecia 
efectivamente  um  vigoroso  contraste  com  o  auto  vicentino. 
A'  indifferenciação  daquelle  oppunha  uma  discriminação  de 
partes,  tons  e  géneros;  á  sua  massiça  unidade  oppunha  uma 
muito  nitida  e  lógica  divisão  em  actos  e  scenas,  que  muito 
e  muito  reduzia  os  graves  defeitos  do  auto  vicentino  —  a  pre- 
cipitação dos  acontecimentos  e  a  forçada  adjacência  de  lu- 
gares remotos,  que  conduziam  á  inverosimilhança  e  ac  des- 
agrado. Emquanto  a  comedia  neo-classica,  quanto  mais 
os  escriptores  fossem  apprehendendo  o  espirito  das  littera- 
turas  modelos,  ia  tendendo  para  a  concentração  de  meios  e 
de  effeitos,  formulada  pela  theoria  das  três  unidades,  o  thea- 
tro  vicentino  iria,  inversamente,  aproveitar  a  dispersão  no 
tempo  e  nos  lugares,  como  uma  nova  e  produetiva  acquisi- 
ção.  Gil  Vicente  apenas  cultivara  e  fizera  crescer  e  desen- 
volver-se  a  semente  lançada  por  Juan  dei  Encina,  mas  estra- 
nho a  influencias  e  a  suggestões  pelo  exemplo  de  quem  ante- 
riormente houvesse  pisado  o  mesmo  caminho,  vae  descobrindo 
coisas  já  descobertas  e  postas  de  lado.  Nessa  forma  disper- 
siva foi  o  seu  iheatro  tomado  pelos  seus  continuadores  e 
nessa  forma  para  sempre  se  deteve,  por  causas  em  lugar 
próprio  já  por  nós  apontadas.  Ha  ainda  que  a  comedia  clás- 
sica não  vae  buscar  assumpto  na  sociedade  que  rodeia  o  seu 


Historia  da  Litteratura  Clássica  121 

auctor,  nem  vae  perscrutar  desvãos  sociaes  ainda  não  devas- 
sados, mas  com  os  olhos  postos  fora  do  seu  tempo  e  dos 
seus  lugares,  como  os  auctores  de  attenções  fixas  na  idade 
clássica,  apenas  abeira  longínquas  matérias,  que  pelo  affasta- 
mento  e  por  já  haverem  fornecido  assumpto  aos  seus  mode- 
los, tinham  ganho  dignidade  e  idoneidade  litterarias,  que 
não  desdouravam  a  austeridade  do  género.  Se  de  creados 
trata,  não  o  faz  com  a  fiel  observação,  sem  prejuízos,  como 
Gil  Vicente,  que  lhes  reproduz  as  palavras  e  as  opiniões  e  o 
em  que  se  occupam ;  a  comedia  clássica  preferirá  os  escravos 
das  antigas  sociedades,  perfeitos  e  argutos  conversadores, 
amos  de  filhos-familias,  e  a  gaiatice  que  lhes  reproduzirá  será 
a  de  se  bandearem  ás  vezes  com  os  seus  pupillos  contra  seus 
pães.  O  cómico  burlesco,  que  encontramos  em  Gil  Vicente, 
e  a  comedia  inaugurada  por  Sá  de  Miranda  serão  inconci- 
liáveis; só  a  comedia  tabernaria  acceitaria  o  burlesco.  Os 
nossos  comediographos  pretenderão  rir  de  modo  muito  com- 
posto das  mesmas  situações  que  fizeram  rir  os  seus  muito 
admirados  gregos  e  romanos.  O  monologo,  espécie  de  medi- 
tação em  voz  alta,  que  Gil  Vicente  não  usa,  será  largamente 
usado  pelos  comediographos  quinhentistas,  o  aparte  sabia- 
mente aproveitado,  o  reconhecimento  inesperado  das  perso- 
nagens, a  agniçãOy  como  diziam  os  críticos,  será  episódio 
obrigado. 

A  comedia  apparecerá,  portanto,  executada  com  maior 
ou  menor  mestria,  mas  dispondo  logo  de  todos  os  progres- 
sos e  de  excellentes  modelos.  Fazer  desses  progressos 
uma  sensata  adaptação  aos  tempos  modernos  e  desses  mo- 
delos receber  apenas  prudentes  e  fecundas  inspirações,  era 
o  que  cumpria  aos  nossos  comediographos  quinhentistas, 
mas  tal  empresa  demandava  o  génio  dum  Molière  ou  a  per- 
sistência de  diligentes  esforços  duma  longa  tradição  do  gé- 
nero. Continuar  o  desenvolvimento  do  theatro  vicentino, 
extrahir  da  sua  própria  irregularidade  mixta  os  elementos 
utilizáveis  e  integrar-lhe   novos  elementos,  poderia  ter  sido 


122  Historia  da  Litteratura  Clássica 

também  tarefa  dos  nossos  quinhentistas,  se  não  se  tivessem 
absorvido  tão  exclusivamente  na  admiração  dos  clássicos  e 
se  houvessem  possuído  o  génio  de  Lope  de  Vega  e  Cal- 
deron.- 

A  comedia  de  Sá  de  Miranda,  Estrangeiros,  em  prosa,  é 
precedida  dum  prologo,  parte  obrigada  da  composição,  dito 
por  uma  personificação  da  própria  comedia,  «hua  pobre  ve- 
lha estrangeira » ,  que  nasceu  na  Grécia,  donde  passou  a 
Roma,  chegando  numa  e  noutra  parte  a  gozar  de  tanto  fa- 
vor que  pouco  lhe  faltou  para  ser  Deusa.  Depois,  com  o 
império  romano,  todas  as  artes  —  com  ellas  a  comedia  —  se 
arruinaram  e  jazeram  em  esquecimento  longo  tempo  até  que 
o  renascimento  dos  estudos  as  accordou.  Em  Itália  princi- 
piava com  o  melhor  êxito  esse  renascimento  quando  a  guerra 
entre  Francisco  I  e  Carlos  A'  de  momento  perturbou  esse 
despertar.  A  Portugal,  «neste  cabo  de  mundo»,  se  veio 
acolher  a  comedia,  em  busca  de  sossego.  É,  como  se  vê, 
este  prologo,  uma  declaração  do  seu  papel  de  introductor 
dum  género  novo,  que  não  é  o  auto  vicentino,  nem  com  elle 
se  quer  confundir:  «Ia  sois  no  cabo,  &  dizeis  ora  não  mais, 
isto  he  auto,  &  desfazeis  as  carrancas,  mas  eu  o  que  não  fiz 
atégora,  não  queria  fazer  no  cabo  de  meus  dias,  que  he  mu- 
dar o  nome.  » 

A  acção  dos  Estrangeiros  é  também  estrangeira,  pois  em 
Palermo  decorre  totalmente.  A  esta  cidade  tinham  chegado 
alguns  foragidos  á  guerra  entre  papistas  e  hespanhoes  dum 
lado  e  franceses  do  outro.  Lucrécia,  filha  de  Reynaldo,  de 
quem  não  havia  noticias  depois  da  destruição  de  Pisa,  estava 
na  cidade  confiada  a  Betrando  e  a  sua  mulher.  Nem  seus 
tios  Guido  e  Petronio,  nem  seu  próprio  pae  Reynaldo  haviam 
conseguido  novas  delia.  Apenas  se  sabia  que  quando  a  peste 
se  declarara  em  Roma,  um  abbade,  irmão  do  mercador  flo- 
rentino, em  casa  de  quem  se  achava,  a  trouxera  a  Palermo. 
Sem  ser  reconhecida,  Lucrécia  está.  na  cidade,  pouco  visível, 
pois  nem  appareceu  em  scena,  e  desperta  vehementes  amo- 


Historia  da  Liticratura  Clássica  123 

res  em  Amente,  filho  de  Galbano,  natural  de  Valença  de 
Aragão,  que  em  Palermo  dissipa  os  seus  bens,  sob  a  branda 
vigilância  de  seu  aio  Cassiano;  em  Briobris,  soldado  bebe- 
dor e  fanfarrão,  que  se  orgulha  das  suas  inventadas  proezas 
de  amor  e  de  guerra;  e  no  velho  doutor  Petronio,  que  não 
sabe  que  é  tio  da  sua  pretendida.  A  chegada  de  Galbano, 
pae  de  Amente,  de  Guido,  irmão  de  Petronio,  e  de  Rey- 
naldo,  pae  de  Lucrécia,  também  irmão  de  Petronio  e  Guido, 
provoca  uma  serie  de  reconhecimentos,  que  desfazem  a  trama 
de  intrigas  e  combinações,  com  que  cada  um  dos  pretenden- 
tes procura  levar  a  cabo  o  seu  capricho  amoroso.  E  a 
Amente  que  Lucrécia  prefere,  e  é  Petronio  o  único  rival  que 
Amente  teme,  porque  os  depositários  de  Lucrécia  favorecem 
esse  pretendido  enlace.  Quando,  portanto,  se  sabe  que  a 
Lucrécia,  que  vive  em  Palermo,  é  a  perdida  sobrinha  e  afi- 
lhada de  Petronio,  fica  este  casamento  prejudicado  e  em  be- 
neficio de  Amente.  Cassiano,  num  monologo,  resume  as 
consequências  da  chegada  inesperada  de  Galbano,  Guido  e 
Reynaldo  e  dos  reconhecimentos,  que  determina:  «Venho 
pasmado  dos  acontecimentos;  andando  em  busca  de  nosso 
amo  fuy  dar  com  Reynaldo  nosso  natural,  que  também  che- 
gou. A  hum  trouxe  cá  hum  filho  perdido,  ao  outro  húa  filha 
que  perdera  muito  ha.  Ó  filhos  desejados,  &  estes  são  os 
vossos  descansos?  D'outra  parte  tendo  o  Doctor  concertado 
seu  casamento,  chega  Reynaldo,  e  acha  neste  próprio  dia, 
nesta  hora,  neste  ponto,  que  Lucrécia,  aquella  que  a  todos 
nos  tem  dado  tanto  trabalho,  he  a  sua  própria  filha,  que  an- 
dava buscando  por  mar,  &  por  terra,  e  sobre  tudo  que  he  a 
filhada  do  mesmo  Doctor,  assi  lhe  poderá  ser  inda  mais. 
E  não  se  saber  a  tempo.  O  coitado  que  não  via  já  o  dia, 
nem  a  hora,  &  que  estava  co'a  boca  aberta  pêra  papar  a 
moça,  ficará  assi  co'ella  ás  moscas.  E  pollo  contrario  meu 
criado  Amente  que  lhe  era  lá  posto  o  cutello  na  garganta, 
esperando  só  pollo  pregão,  vem  a  fortuna  melhor  casamen- 
teira   muito    que    Dorio,    &   negocealho    tudo    a   pedir    de 


124  Hútoria  da  Litter atura  Clássica 

boca. »  (')  Facilmente  perdoou  Galbano  ao  pródigo  filho  e 
com  igual  facilidade  se  consolaram  em  outros  amores  o  sol- 
dado Briobris  e  o  Doutor  Petronio,  informa  no  fim  o  repre- 
sentador,  figura  estranha  ao  elenco  das  personagens  e  que 
significa  uma  adaptação  por  Sá  de  Miranda  do  corypheu, 
que  nas  comedias  antigas  despedia  o  publico  com  desejos 
de  boa- saúde  e  pedindo  applausos :    Vos,  valete  et  piaudite. 

Como  promptamente  se  reconhece  este  primeiro  ensaio 
de  Sá  de  Miranda  é  uma  imitação  demasiado  fiel  do  theatro 
de  Terêncio,  principalmente  da  comedia  Phormio  ;  demasiado 
fiel  em  se  apropriar  dalguns  caracteres  da  comedia  teren- 
riana,  mas  sem  lhe  reproduzir  os  méritos.  A  acção  passa-se 
principalmente  num  meio  servil,  não  já  entre  escravos,  — 
pois  aos  escravos  do  século  XVI  inverosímil  seria  attribuir 
os  papeis  de  intimidade  e  influencia  que  os  escravos  roma- 
nos desempenhavam  muitas  vezes — mas  entre  creadagem  : 
Alda,  «moça  de  servir»;  Dorio,  casamenteiro;  Devorante, 
«truhão»;  Vidal,  «servidor»;  Cassiano,  «ayo»;  Ambrósia 
velha  ;  Briobris,  soldado  ;  Callidio  «  mancebo  de  serviço  »  ; 
Sarjanta,  « molher  de  serviço».  Escusado  será  accentuar 
que  nenhum  destes  servidores  tem  a  argúcia  enredadora  e 
desenvincilhadora  de  difficuldades  do  celebre  Geta,  de  Te- 
rêncio, antecessor  de  Scapin  e  Figaro.  Como  em  Terêncio  é 
a  chegada  inopinada  de  personagens,  que  se  crêem  longe, 
que  modifica  todo  o  desenvolvimento  da  acção.  Briobris, 
soldado  gabarola  de  aventuras  amorosas  e  bellicas,  é  uma 
reproducção  do  Miles  Gloriosus,  de  Plauto.  E  de  Terêncio  o 
abuso  do  processo  de  fazer  falar  algumas  personagens,  com- 
prometedoramente,  deante  de  outras  próximas  de  que  não 
vêem  logo  a  presença. 

Mas  é  de  Sá  de  Miranda  a  lentidão  de  desenvolvimento, 
a  falta  de  vigor  das  personagens,  exceptuando  apenas  Brio- 


(')     V.  Obras,  7.a  ed.,  Lisboa,  1784,  2.0  vol.  pag.  149. 


Historia  da  Litter 'atura   Clássica  125 

bris,  desenhado  com  mais  algum  relevo ;  a  falta  de  evidencia 
da  própria  intriga ;  a  indifferente  divisão  da  mesma  pelos 
obrigados  cinco  actos,  tão  injustificada  do  modo  que  decorre 
o  entrecho,  que  fácil  era  condensá-la  num  só  acto.  Como  os 
tratados  theoricos  exigiam  e  era  do  próprio  temperamento 
de  Sá  de  Miranda,  Estrangeiros  têm  sua  moralidade.  A  con- 
clusão geral  da  peça  dá-no-la  o  próprio  Cassiano,  no  seu  já 
citado  monologo :  «Que  diremos  ás  cousas  deste  mundo  ? 
híias  parece  que  se  alcanção  a  poder  de  negociação,  e  viva 
diligencia,  outras  por  só  dita,  &  bom  acerto>.  O  cunho  pes- 
soal do  caracter  moralista  de  Sá  de  Miranda,  pessimista  do 
presente,  laudator  temporis  adi,  expressa-se  principalmente 
noutro  monologo,  que  começa :  «Hi  lá  tomar  cuidado  de 
filhos  alheos.  Onde  há  isto  de  ir  ter?  Que  se  fez  do  acata- 
mento que  estes  moços  sohião  de  ter  a  seus  avós  ?  que  não 
somente  lhe  ousavão  de  levantar  os  olhos.  Agora  vedes  em 
que  mundo  somos  »  . .  .  (l) 

A  segunda  comedia,  dos  Vilhalpandos,  escripta  prova- 
velmente em  1538,  decorre  em  Roma  e  tem  por  principal 
intriga  as  diligencias  e  manejos  que  os  pães  dum  filho  dissi- 
pador fazem  para  o  libertar  da  infeliz  naixão  que  o  prende 
a  uma  cortesã.  Quer  na  mecânica  interna,  quer  na  acção 
e  nas  personagens,  é  ainda  uma  imitação  nada  livre  do  thea- 
tro  de  Plauto  e  Terêncio :  filhos  pródigos  e  pães  avaros, 
cortesãs,  servos  e  parasitas.  Os  melhores  effeitos  cómicos, 
as  situações  para  elles  mais  adequadas  são  abandonadas, 
esquecidas  só  porque,  de  olhos  postos  nos  modelos  antigos, 
estes  comediographos  do  quinhentismo  nada  viam  em  volta, 
pois  reproduzir  queriam  e  não  crear.  Em  compensação  são 
repetidas  abusadamente  as  situações  mais  características  da 
comedia  antiga,  como  por  exemplo,  o  encontro  fortuito  mas 
muito  a  propósito  para  o  effeito  que  o  auetor  tem  em  vista, 


(x)    V.  Idem,  pag.  77-79. 


12G  Historia  da  Litteratura  Clássica 

o  monologo  em  voz  alta  que  os  interessados  sempre  ouvem 
indiscretamente.  Mas  estes  ensaios  não  mantêm  o  interesse, 
nem  conseguem  mesmo  salientar,  como  querem,  os  seus 
effeitos  cómicos,  porque  são  já  descoloridas  imitações  sem 
talento  do  que  era  uma  real  imitação  da  vida  de  extinctas 
sociedades.  A  natureza  deste  cómico,  já  de  si  um  pouco 
delicada,  é  ainda  mais  adoçada  e  attenuada  através  da  imi- 
tação e  torna-se  um  frio  architectar  de  situações  acreditadas 
como  cómicas  mas  não  soffridas  como  taes,  architectar  lento 
e  laborioso  que  muito  escassos  resultados  obtinha. 

Sá  de  Miranda  também  fez  sua  tentativa  de  theatro 
trágico,  revelação  só  conhecida  recentemente,  após  a  publi- 
cação dum  manuscripto  de  poesias  suas.  (J)  Sabemos  hoje 
haver  composto  uma  tragedia,  Cleópatra,  perdida,  da  qual  só 
restam  os  doze  versos  seguintes,  no  manuscripto  precedidos 
da  rubrica  que  também  reproduzimos: 


Estanca 


tirada  dJú"a  sua  Tragedia, 
intitulada  Cleópatra 
que  anda  assi  por  fora. 


Amor  e  Fortuna  são 

doces  deoses  que  os  antigos 
ambos  os  pintaram  çégos. 
Ambos  nam  seguem  rezão, 
ambos  hos  mores  amjgos 
põem  em  mais  desassessegos. 


(')  V.  Novos  Estudos  sobre  Sá  de  Miranda,  sr.a  D.  Carolina 
Michaêlis  de  Vasconcellos,  publ.  no  Boletim  da  Segunda  Classe  da  Aca- 
demia das  Sciencias  de  Lisboa,  vol.  v,  Lisboa,  1912,  pag.  9-230.  Sobre 
o  vestigio  da  tragedia  Cleópatra,  vejam-se  pag.  47,  73,  81,  90  e  185.   O 


Historia  da  Litteratura  Clássica  127 

Ambos  sam  sem  piedade 
ambos  se  passam,  sem  tino, 
do  querer  ôo  nam-querer. 
Ambos  nam  tratam  verdade: 
Amor  he  cego  e  mjnjno 
Fortuna,  cega  e  molher. 

Perante  tão  pequeno  vestígio,  inteiramente  desacompa- 
nhado de  quaesquer  informações  externas,  nada  ha  que 
comrnentar;  regista-se  a  noticia  e  depiora-se  a  perda. 


nome  insigne  da  sr.a  D.  Carolina  Michaèlis  de  Vasconcellos  é  insepará- 
vel da  gloria  de  Sá  de  Miranda,  porque  se  lhe  devem  uma  primorosa 
edição  critica  das  poesias,  a  revelação  de  novos  textos  e  o  apuramento 
de  novos  factos  biographicos.  Também  á  sua  influencia  se  devem  as 
novas  investigações  de  Sousa  Viterbo  sobre  a  vida  e  de  Xavier  da  Cunha 
sobre  o  retrato  do  nosso  reformador  quinhentista. 


CAPITULO  líí 

O    fHEATRO    CLÁSSICO 
A  -  TRAGEDIA 

Na  renovação  litteraria  que  se  deu  nos  séculos  XV  e 
xvi,  o  estudo  e  a  imitação  do  nobre  género  da  tragedia 
mereceram  attenções  proporcionaes  ao  vasto  lugar  que 
esse  género  occupava  nas  velhas  litteraturas.  Eschylo, 
Sophocles,  Eu-ipides,  dentre  os  gregos,  e  Séneca,  dentre 
os  romanos,  foram  modelos  muito  assiduamente  estudados. 
O  primeiro  trabalho  consistiu  em  pôr  ao  serviço  das  novas 
predilecções  litterarias  o  novo  meio  de  vulgarização,  recen- 
temente descoberto,  a  imprensa.  Effectivamente,  das  edições 
«príncipes»  dos  trágicos  da  antiguidade  algumas  se  contam 
entre  os  mais  preciosos  incunabulos.  Em  1496  foram  im- 
pressas em  Veneza  quatro  tragedias  de  Euripides,  e  a 
edição  das  suas  peças  proseguiu  em  1503  e  concluiu-se  em 
1545.  O  theatro  de  Sophocles  appareceu  em  1502,  ainda 
em  Veneza,  e  o  de  Eschylo  em  15 18  e  1557,  respectiva- 
mente em  Veneza  e  Paris.  As  obras  de  .Séneca  foram 
impressas  em  Ferrara,  no  anno  de  1484,  e  em  Paris,  em 
15 14.  Também  muito  cedo  começou  o  trabalho  de  os  imitar 
e  traduzir. 

Foi  a  litteratura  italiana  que  se  antecipou  a  todas  as 
litteraturas  neo-iatinas,  suas  irmãs,  com  apresentar  os  pri- 
meiros exemplares  de  tragedias  originaes;  deixamos  de  lado 

H.  DA  L.  CLABBICA,  vol.  1.»  « 


130  Historia,  da  Litteratura   Clássica 

as  traducções  declaradas.  Albertino  Mussato,  de  Pádua 
(1261-1329),  um  dos  precursores  do  humanismo  italiano, 
deveu  boa  parte  do  seu  renome  á  circunstancia  de  haver 
composto  um  ensaio  dramático  intitulado  Eccerinh,  tentativa 
de  tragedia  ao  gosto  de  Séneca,  que  apresenta  ainda  a 
particularidade  muito  para  registar  de  tratar  dum  assumpto 
nacional,  a  sinistra  figura  do  tyranno  Ezzelino  111 ;  Leon 
Battista  Alberti,  morto  em  1472,  escreve  o  seu  Philodoxeus, 
e  Leonardo  Bruni  Aretino  (1369- 1444)  a  sua  PoIisse?ia;  Gian 
Giorgio  Trissino  ^1478-1550)  conclue  a  sua  Sofonisba  em 
1515,  logo  muito  imitada,  principalmente  por  Rucellai 
(1475-1525?)  auctor  da  Rosmunda,  por  Sperone  Speroni  (1500- 
1588),  auctor  de  Canace,  e  por  Torquato  Tasso  (1544-1595^ 
que  se  não  desdourou  de  ser  auctor  de  Torrismondo  i1). 

Em  Hespanha,  Fernando  Perez  de  Oliva  (1492-1530) 
deu  em  1528  uma  traducção  da  Hecuba  de  Euripides  e  da 
Electra  de  Sophocles  e  Juan  de  Malara  (1525-157 1)  publicou 
em  1548  o  seu  Absaloyi  e  a  sua  Loatsia.  Só  mais  tarde  com 
Bermudez  (1533  r-1589),  imitador  do  nosso  António  Ferreira, 
com  Christobal  de  Virués  (1550-16 10)  que  considerou  o 
terror  trágico  como  exhibição  de  carnagens  em  scena,  com 
Juan  de  La  Cueva  (i55o?-i6o9?),  propugnador  da  tragedia 
de  assumptos  nacionaes,  com  Lupercio  Leonardo  Argensola, 
(1562-163 1),  só  já  em  mais  de  meado  do  século  xyi  a  tra- 
gedia entra  em  favor  no  vizinho  paiz  {-  . 

Em  França  o  movimento  de  introducção  do  género  trá- 
gico (s),  por  meio  de  ensaios  originais,  começou  com  Jodelle, 


(1)  Acerca  das  origens  da  tragedia  italiana  pódem-se  consultar 
com  vantagem  as  seguintes  obras:  La  Tragedia,  E.  Bertana,  Milão,  1904 
e  La  Tragedia  italiana  dei  Cinqucceiíto,  F.  Neri,  Florença,  1904. 

(2)  V.  Teatro  espafiol  dei  Sig/o  XVI,  Manuel  Cariete,  Madrid,  1885 
e  Littératitre  Espagnole,  J.  Fitzmaurice-Kelly,  trad.  fr.,  Paris;  1904. 

(9)  Sobre  as  origens  da  tragedia  francesa,  hoje  já  muito  estudada, 
consultem-se  as  seguintes  obras:  La  Tragedie  frauçaise  au  XVIe  siccle, 


Historia  da  Litteratura  Clássica  131 

(1532-1573).  que  Ronsard  reconhecia  ter  sido  o  primeiro  que 
«françoisement  sonna  la  grecque  tragedie».  Abriu  a  histo- 
ria do  género  a  representação  da  sua  Clêopâtre  Captive  dada 
em  1552.  Continuaram  os  esforços  de  Jodelle  outros  aucto- 
res,  principalmente  Jacques  Grévin  (1538-1570)  que  fez 
representar  a  sua  Mort  de  César,  em  1560;  Robert  Garnier 
(1 545-1 601),  auctor  de  Por  cie,  de  1568,  de  Comélie,  de  1574, 
de  Marc  Antoine,  de  1578.  Logo  em  1572  teve  a  França,  o 
paiz  da  critica  litteraria,  o  seu  tratado  da  tragedia,  o  de 
Jean  de  la  Taille,  Art  de  la  Tragedie. 

Em  Portugal,  dos  trágicos  foi  mais  conhecido  Séneca, 
se  bem  que  muito  menos  que  o  seu  homonymo  philo- 
sopho,  pois  emquanto  este  apparece  repetidamente  citado 
nos  catálogos  das  livrarias  manuscriptas  de  D.  Duarte, 
D.  Affonso  V,  do  condestavel  de  Portugal,  D.  Manuel  I, 
D.  João  III  e  da  rainha  D.  Catharina,  o  trágico  só  é  nomeado 
por  Gomes  Eannes  de  Azurara,  nas  seguintes  passagens  da 
sua  Chromca  da  Conquista  da  Guiné:  «Deste  labarinto  falia 
Séneca  na  tragedia,  onde  põem  a-  causa  de  Ypollito  com 
Fedra»  (*).  E  algumas  paginas  adfante:  «Oo  quam  poucos 
som,  segundo  diz  Senneca  na  primeira  tragedya,  os  que 
husem  bem  do  tempo  de  sua  vida,  nem  que  pensem  a  sua 
brevidade»  (2).  Parece,  pois,  provável  que  algumas  trage- 
dias de  Séneca  existissem  na  livraria  de  D.  Affonso  v,  de 
que  Gomes  Eannes  de  Azurara  foi  bibliothecario.  Deste 
rápido  enumerar  de  factos  antecedentes  e  coetâneos  do 
alvorecer  da  era  clássica  da  nossa  litteratura  se  poderá 
concluir  que  Sá  de  Miranda  e  os  seus  sequazes  já  tinham 


E.  Faguet,  Paris,  1883;  Étude  sur  Robert  Garnier,  Bernage,  Paris,  1880. 
Estes  livros  indicam  muitos  outros  trabalhos  dos  primeiros  críticos  de 
França  sobre  esta  matéria. 

(')  V.  Edição  de  I.  Roquete  e  Visconde  de  Santarém,  Paris,  pag. 
12,  nota. 

(*)     Idem,  pag.  43. 


132  Historia  da  LitUr  atura  Clássica 

presenceado  exemplos  suficientemente  suggestivos  de  imita- 
ções das  velhas  tragedias. 

O  auctor  dos  Estrangeiros  e  dos  Vilhalpandos  quiz  tam- 
bém introduzir  o  género  trágico  e  fez  aquella  tentativa  de 
Cleópatra,  cujo  único  fragmento  restante  já  reproduzimos  em 
seu  próprio  lugar. 

A  segunda  tragedia  portuguesa,  de  que  ha  noticia  se- 
gura, é  a  Vingança  de  Agamenon,  por  Henrique  Ayres  Victo- 
ria.  Sabe-se  por  confissão  do  próprio  auctor  que  foi  con- 
cluida  no  anno  de  1536;  elle  o  diz  no  fim  da  obra,  numa 
Exortaram  do  autor  aos  leetores : 


A  presente  obra  foi  acabada 

de  em  nossa  lingoagem  se  traduzir 

a  quinze  de  março  sem  nada  mentir, 

na  era  do  parto  da  virgem  sagrada, 

de  mil  e  quinhentos  sem  errar  nada 

e  trinta  e  seis  falando  verdade 

no  Porto,  que  he  muy  nobre  cidade 

e  por  Anrrique  Ayres  foy  trasladada. 


A  primeira  edição  perdeu-se  totalmente,  e  da  segunda, 
feita  em  Lisboa,  no  anno  de  1555,  ha  noticia  de  dois  exem- 
plares, um  perdido  no  fim  do  século  xvin,  outro  em  1858, 
de  maneira  que  depois  desta  data  apenas  se  conheceu  da 
obra  a  descripção  extrínseca  feita  pelos  bibliographos  com 
as  oito  primeiras  estancias  de  cinco  versos,  transcriptas  por 
Innocencio. 

Desse  pequeno  fragmento  pouco  se  podia  concluir  com 
segurança  acerca  da  tragedia  de  Ayres  Victoria.  Como  não 
foi  estudada  criticamente  emquanto  foi  conhecida,  antes  de 
aventurar  qualquer  hypothese  critica  haveria  que  resolver  o 
problema  bibliographico,  descobrir  o  paradeiro  dos  últimos 
exemplares  da  segunda  edição.  Todavia  alguns  auctores  ti- 
nham   chegado    a  affoitar  hypotheses  criticas:    o    sr.    Men- 


Historia  da  Litteratura  Clássica  13>3 

des  dos  Remédios  (')  considerava  a  perdida  obra  de  Ayres 
de  Victoria,  como  traducção  de  alguma  peça  de  Eschylo,  e 
o  sr.  Esteves  Pereira  (2)  como  imitação  da  imitação  caste- 
lhana, La  Venganza  de  Agamcnon,  de  Perez  de  Oliva,  publi- 
cada em  1528. 

Foi  o  segundo  auctor  quem  teve  a  boa  fortuna  de  ver 
documentadamente  confirmado  o 'seu  juízo.  Havendo  noticia 
da  existência  dum  exemplar  da  edição  de  1555,  em  poder 
do  Conde  de  Samodães,  o  sr.  Esteves  Pereira  obteve  per- 
missão para  o  reimprimir,  o  que  effectivamente  realizou  na 
collecção  Monumentos  da  Litteratura  Dramática  Portuguesa, 
que  por  sua  iniciativa  a  Academia  das  Sciencias  vem  publi- 
cando (*)< 

Examinando  e  comparando  o  texto  de  Victoria  com  o 
de  La  Venganza  de  Agamenon,  de  Fernando  Perez  Oliva,  tra- 
ducção livre,  em  prosa,  da  Electra  de  Sophocles,  o  sr.  Este- 
ves Pereira  conjectura  com  plena  verosimilhança  que  a  obra 
portugueza  era  traducção  também  livre,  mas  em  verso,  da 
traducção  castelhana  do  texto  grego.  O  metro  adoptado  é 
popular,  a  redondilha  maior  em  quintilhas,  mas  o  estylo 
mantem-se  grave  e  austero  como  convinha  á  acção  e  ás  per- 
sonagens. 

Traducção  directa  ou  traducção  de  traducção,  como  se 
afigura  mais  crivei,  a  tragedia  de  Victoria  é  um  dos  passos 
primordiaes  do  hellenismo  litterario  em  Portugal. 


(*)  V.  A  Castro  de  António  Ferreira  conforme  a  edição  de  ijç8, 
Coimbra,  1915. 

(2)  V.  A  Vingança  de  Agamcnon,  Tragedia  de  Anrrique  Ayres  Vi- 
ctoria, nota  de  historia  lideraria,  publicada  no  vol.  x  do  Boletim  da  Se- 
gunda Classe  da  Academia  das  Sciencias  de  Lisboa,  Lisboa,  1916,  pag. 
226-237. 

í3)  V.  A  Vingança  de  Agamenon — Tragedia  de  Anrrique  Ayres 
Victoria,  conforme  a  impressão  de  ijjj,  publicada  por  ordem  da  Acade- 
mia das  Sciencias  de  Lisboa  por  F  rancisco  Maria  Esteves  Pereira,  Lisboa, 
1918,  118  pags. 


1'34  Historia  da  Litter -atura  Clássica 

Só  António  Ferreira  (')  nos  haveria  de  legar  a  nossa  única 
tragedia  do  século  xvi,  notável  por  essa  circunstancia,  pela 
sua  belleza  artística  e  pela  particularidade  de  tratar  já,  em 
pleno  inicio  do  classicismo,  um  assumpto  de  historia  pátria. 
É  em  haver  tomado  um  assumpto  de  historia  pátria  para  a 
sua  tragedia  que  os  historiadores  da  nossa  litteratura  cifram 
a  originalidade  de  António  Ferreira;  nós  permitimo-nos 
alargar  um  pouco  mais  esse  mérito  da  originalidade  e  redu- 
zir apreciavelmente  outro,  que  com  maior  insistência  se  lhe 
attribue,  o  da  belleza  perfeita  da  execução. 

Quando  os  poetas  quinhentistas,  por  toda  a  parte,  onde 
o  conhecimento  e  gosto  dos  trágicos  gregos  e  de  Séneca 
accordavam,  começaram  as  suas  imitações,  não  se  aperce- 
beram de  que  para  esse  género,  nobre  entre  os  mais  nobres, 
não  bastaria  uma  imitação  fiel  e  inspirada  dos  bons  modelos, 
segundo  os  caracteres  geraes  que  haviam  delles  extrahido 
Aristóteles  na  sua  Poética  e  Horácio  na  sua  Epistola  aos 
Pisões.  Não.  A  tragedia  era  um  género  official;  á  medida 
que  fora  perdendo  o  seu  cunho  litúrgico  e  se  fora  depurando 
de  todos  os  elementos  anti- trágicos — já  diremos  quaes — ■ 
fora  se  tornando  o  género  mais  nobre  da  litteratura  grega, 
pela  grandeza  da  matéria  e  pela  sua  funeção  civica.  Os  trá- 
gicos gregos  não  escreveram  para  ser  lidos.  De  olhos  postos 
nas  lendas  homéricas,  fonte  e  alimento  da  matéria  trágica 
por  excellencia,  animados  pela  emulação  de  vencer  compe- 
tidores, escreveram  para  que  as  suas  peças  fossem  represen- 
tadas perante  uma  multidão  de  dezenas  de  milhares  de 
espectadores,   em   amplos   theatros   ao    ar  livre,  cujos  senti- 


(')  António  Ferreira  nasceu  em  Lisboa,  em  1528,  e  doutorou-se  na 
Universidade  de  Coimbra  em  direito  civil,  e  alli  foi  também  professor. 
Morreu  de  peste  em  1569,  deixando  inéditas  todas  as  suas  obras,  só  em 
1598  editadas  por  seu  filho  Miguel  Leite  Ferreira,  sob  o  titulo  de  Poemas 
Lusitanos,  mas  ainda  sem  comprender  as  comedias,  que  corriam  juntas 
com  as  de  Sá  de  Miranda. 


Hii  •    LitteratUra  Clássica  135 

mentos  ora  preciso  não  oífer.der,  antes  lisonjear  c  manter. 
Nunca  houve  tal  alliança,  tão  estreita  e  tão  fecunda,  entre  o 
individual,  livremente  creador,  e  a  arte  official,  com 
suas  coacções  moraes  e  legaes!  Para  que  as  figuras  dos 
actores  se  não  apoucassem  perante  tão  vasta  multidão,  era 
necessário  alteá-las  de  modo  artificial,  calçando-lhes  altos 
cothurnos;  para  que  a  expressão  physionomica  não  deixasse 
de  ser  percebida  ao  longe,  adoptava-se  o  uso  das  mascaras, 
que  accentuavam,  exaggeravam  mesmo  essa  expressão  da 
physionomia.  E  para  que  a  voz  se  não  perdesse  no  espaço 
e  chegasse  aos  mais  longínquos  espectadores,  as  mascaras 
tinham  a  bocca  desmesuradamente  aberta  e  com  uma  dispo- 
sição especial  para  fazer  reboar  a  voz.  Feita  em  taes  condi- 
ções a  representação  material  das  tragedias,  comprehende-se 
que  cunhos  profundos  imprimiria  a  esse  género.  E  eram 
elles  principalmente:  ser  assumpto  obrigado  a  matéria  dos 
poemas  homéricos,  sem  variantes  nem  innovações,  sempre 
os  mesmos  deuses,  os  mesmos  heroes  e  os  mesmos  episó- 
dios fataes ;  portanto  a  prompta  exhaustão  dessa  matéria 
trágica,  única  officialmente  reconhecida,  desde  que  a  esgo- 
taram os  génios  de  Eschylo,  F.ophocles  e  Euripides,  que 
ainda  se  repetiram ;  a  psychologia  de  generalidades,  cara- 
cteres extremos,  expressões  physionomicas  extremas,  só 
aquelles  estados  de  alma  e  modos  de  ser,  que  todos  ao 
longe  comprehendiam  e  sentiam,  só  as  expressões  que  as 
mascaras,  por  todos  vistas,  podiam  traduzir.  A  arte  mo- 
derna, impregnada  de  espirito  scientifico,  engeitará  a  in- 
verosimilhança  e  quanto  respire  um  ar  sobre-humano;  a 
tragedia  antiga  deliberadamente  organizava  um  mundo  su- 
periormente inverosímil,  acima  das  contingências  humanas. 
Ora  os  poetas  do  humanismo,  trabalhando  no  recolhi- 
mento dos  seus  gabinetes,  não  iam  compor  tragedias  por 
solicitação  publica  e  com  o  destino  complexo  e  previsto  que 
aguardava  uma  tetraiogia  de  Sopholes;  iam  fazer  uma  ten- 
tativa cheia  de  incertezas   para  restaurar  um  género  morto, 


136  Historia  da  Ldtteratura   Clássica 

cuja  recordação  só  fora  alimentada  por  Séneca,  cuja  obra 
era  já  uma  extrema  decadência  da  tragedia  grega.  E  por 
melhor  que  fosse  o  êxito  que  esses  ensaios  dos  imitadores 
da  renascença  alcançassem,  nunca  seria  outro  além  da  lei- 
tura por  alguns  amigos  das  boas  letras,  quando  muito  a 
representação  por  esses  mesmos  eruditos  em  sua  casa.  A 
vida  larga  do  grande  publico  ao  ar  livre,  o  auctor  e  o  pu- 
blico vibrando  em  unisono,  o  cothurno,  a  mascara,  a  inve- 
rosimilhança  ideal  e  todas  as  suas  consequências  haviam 
desapparecido,  e  os  novos  trágicos,  ao  abalançarem-se  ao 
seu  emprehendimento  de  restaurar  a  tragedia,  haviam  de 
introduzir  na  sua  estructura  e  no  seu  espirito  modificações 
taes  que  por  ellas  se  abria  uma  nova  phase  da  historia  desse 
género.  A  outra  parte,  fora  do  mundo  homérico,  havia  que 
ir  buscar  a  matéria  trágica;  desmascarando  e  descalçando 
os  actores,  cobrindo  a  representação  com  o  tecto  constran- 
gedor duma  breve  sala,  frequentada  dalguns  selectos  espe- 
ctadores, havia  que  humanizar  as  personagens  e  a  acção,  e 
podia-se  já  dar  expressão  a  estados  intermédios  da  alma, 
quantos  podiam  perceber  esses  selectos  espectadores,  quan- 
tos podiam  traduzir  no  rosto  sem  mascara  os  actores.  O 
coro,  simultaneamente  vestígio  da  origem  religiosa  e  ele- 
mento de  lyrismo,  tenderia  a  desapparecer  para  que  a  acção 
decorresse  lógica  e  natural,  espontaneamente  tendendo  para 
o  seu  desfecho  trágico,  sem  a  intrusa  interferência  dos  com- 
mentarios  e  aclarações  dos  coristas.  Mesmo  para  que  a 
tragedia  fosse  cada  vez  mais  trágica  era  preciso  que  fosse 
cada  vez  menos  lyrica,  sem  deixar  de  ser  essencialmente 
dramática.  Por  lyrismo  nós  entendemos  expansão  subjectiva; 
por  drama  nós  entendemos  acção  objectiva,  susceptível  de 
representação  scenica.  O  trágico  é  uma  categoria  superior 
do  dramático,  mais  pura  e  mais  nobre. 

A  differenciação,  que  havia  a  fazer  no  espirito  e  na  estru- 
ctura da  tragedia  moderna,  mal  a  comprehenderam  os  aueto- 
res   que   nesse   género  se   ensaiaram  nos  séculos  XV  e  xvi. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  187 

Por  intelligentemente  a  haver  comprehendido  e  sabiamente 
a  haver  praticado,  deve  a  litteratura  francesa  o  possuir  em 
si  a  segunda  grande  epocha  da  tragedia.  E  porque  no  século 
XVI,  o  nosso  António  Ferreira  alguma  coisa  comprehendeu 
e  praticou  dessa  differenciação  é  que  nós  dissemos  que 
devíamos  alargar  o  mérito  de  originalidade  á  Castro  attri- 
buido ;  como  também  por  não  haver  purificado  a  tragedia 
de  alguns  elementos  anti-tragicos,  nós  limitamos  o  mérito 
da  belleza  esthetica. 

António  Ferreira,  tomando  para  assumpto  da  sua  trage- 
dia a  paixão  de  Ignez  e  D.  Pedro  l,  ia  buscar  a  matéria 
trágica  a  um  domínio  —  paixão  amorosa  —  que  viria  a  fazer 
toda  a  originalidade  e  belleza  da  moderna  tragedia  francesa. 
E  que  Ferreira  muito  bem  presentira  qual  o  ponto  de  vista 
por  que  devia  considerar  essa  paixão,  rnostra-o  o  haver 
tomado  da  longa  duração  desse  amor,  apenas  o  desfecho 
desgraçado,  a  brusca  reviravolta  da  fortuna,  como  recom- 
mendavam  os  theoricos.  Nada  havia  de  trágico  no  decurso 
feliz  desses  molles  amores,  quando  felizes.  Seria  effectiva- 
mente  a  paixão  amorosa  que  forneceria  a  matéria  trágica  a 
quantos  não  quizessem  ir  de  novo  buscá-la  ao  mundo  homé- 
rico—  o  qual  já  dera  quanto  podia  dar  á  tragedia  grega. 
Mas  havia  que  saber  tomar  essa  paixão  amorosa,  escolher 
o  que  ella  contem  de  trágico,  sem  o  confundir  com  o  muito 
de  romanesco  e  heróico,  que  pôde  comportar.  Brunetière, 
num  estudo  breve,  mas  notável  pela  argúcia  ('),  apontou  o 
meio  por  que  os  auctores  trágicos  tornaram  a  paixão  amo- 
rosa em  matéria  trágica:  reparando  na  universalidade  da 
paixão  amorosa,  que  a  todos  attinge  e  que  por  isso  poderia 
dirigir-se  a  um  largo  publico,  como  o  das  festas  Dyonisia- 
cas ;  na  sua  particularidade  ou  seja  no  modo  particular  por 


(!)     V.   L' Evolution  d'im  genro  -    La    Tragedie.   1901.  Incluído  na 
7.»  serie  dos  Études  Critiques. 


138  Historia  da  Litteratura   Clássica 

que  cada  um  a  experimenta;  na  sua  fatalidade  caprichosa; 
na  sua  condição  contradictória  de  existência  doce  e  sempre 
inquieta.  Trazer  a  um  relevo  de  primeiro  plano,  eloquente 
e  emocional,  estas  características  da  paixão  amorosa  e,  em 
episódios  históricos  e  lendários,  delia  fazer  depender  grandes 
interesses  e  grandes  causas,  e  eis  achada  nova  matéria  trá- 
gica, onde  não  faltariam  o  horror  e  a  piedade,  a  violência 
dos  sentimentos,  a  magestade  digna  e  nobre  das  pessoas, 
a  fatalidade,  a  lucta  e  a  lição  histórica  —  de  certo  género  de 
historia,  que  os  antigos  chamavam  «a  mestra  da  vida>. 

Como  se  vê,  disto  alguma  coisa  fez  o  nosso  António 
Ferreira.  Poderemos,  pois,  tirar  a  conclusão  de  que  Ferreira 
teve  mérito  de  originalidade,  não  por  ter  extrahido  da  sua 
historia  pátria  o  thema  da  sua  tragedia  —  o  que  Mussato  já 
fizera  —  mas  sim  por  ter  tomado  para  ella  a  paixão  vibrante 
e  desgraçada  de  Ignez  de  Castro.  Se  o  nome  pouco  conhe-. 
eido  de  Mussato  se  não  pôde  apagar  da  historia  geral  da 
tragedia,  muito  menos  é  legitimo  esquecer  o  de  Ferreira, 
que  entre  tantas  e  tão  infelizes  tentativas  de  restauração  da 
tragedia  francesa  soube  apontar  o  domínio  de  que  se  ali- 
mentaria a  futura  tragedia  francesa  —  a  qual  só  chegou  a 
essa  conclusão  após  uma  longa  e  lenta  historia,  desde  Jodelle 
e  Hardy.  Este  mérito  não  é  pequeno. 

Expliquemos  agora  por  que  julgamos,  em  contrario, 
que  deve  ser  restringido  o  conceito  de  summa  belleza  que  da 
Castro  commummente  se  faz.  Os  nossos  historiadores  littera- 
rios  chamam-lhe  mesmo  obra  prima. 

O  coro  tem  um  grande  papel  na  Castro :  intervém  no 
primeiro  acto  estimulando  o  secretario  do  infante  D.  Pedro 
a  proseguir  nos  seus  conselhos;  ainda  no  mesmo  acto  inter- 
vém a  commentar  a  cegueira  amorosa  do  infante ;  e  no  fim 
do  mesmo  desempenha  a  sua  fuucção  de  commentario  e 
explicação  da  fatalidade  do  amor;  no  fim  do  segundo  acto 
do  mesmo  modo  ;  no  terceiro  trava  dialogo  com  Ignez  e  a 
ama,   a   quem    presagia  cruéis  novas,  mistura- se,  portanto, 


Historia  da  Litter -atura  Clássica  139 

á  acção  ;  no  fim  deste  desempenha  o  seu  legitimo  papel :  no 
quarto  acto  dialoga  com  Ignez  e  depois  com  D.  Affonso  iv ; 
no  fim  outra  vez  desempenha  o  seu  legitimo  papel ;  no 
quinto  acto  desapparece.  A  regra  clássica  era  que  os  cinco 
actos  da  tragedia  deviam  ser  separados  por  quatro  cantos 
do  coro,  dos  quacs  o  primeiro  era  quasi  sempre  uma  canção 
lyrica  genérica  e  estranha  ao  entrecho  ;  nos  seguintes  é  que 
tinham  cabimento  os  commentarios  á  acção.  A  parsistencia 
do  coro  era  um  obstáculo  ao  progresso  da  tragedia,  porque 
representava  um  elemento  de  subjectivismo,  o  lyrismo  do 
auctor,  e  maior  obstáculo  seria  intervindo  na  acção,  appa- 
recendo  como  causa  externa  que  influe  no  movimento  lógico 
da  intriga;  por  um  lado  imprime-lhe  lyrismo,  por  outro 
retira  á  tragedia  aquelle  caracter  de  necessidade,  de  exacta- 
mente bem  determinada  que  lhe  é  próprio  e  que  conduziria 
á  famosa  theoria  das  três  unidades.  — 

A  lucta,  principio  indispensável  no  sentimento  trágico, 
soube  muito  bem  aproveitá-la  António  Ferreira ;  ella  consiste 
no  antagonismo  entre  a  paixão  de  Ignez  e  D.  Pedro  e  os 
altos  interesses  do  estado ;  ella  trava-se  principalmente  no 
animo  de  Affonso  iv.  E  se  se  attender  bem  neste  facto  — 
quaes  os  elementos  da  lucta  e  em  que  espirito  é  que  a  lucta 
se  trava  —  teremos  muito  bem  explicada  a  falta  que  se 
assaca  tão  frequentemente  a  António  Ferreira:  de  não  haver 
feito  encontrarem-se  em  scena  Ignez  e  D.  Pedro.  Nós  expli- 
caremos que  esse  encontro  não  traria  belleza,  nem  emoção 
trágica  á  peça,  apenas  lhe  acrescentaria  um  episodio  dispen- 
sável. Os  dois  amantes  não  estavam  em  opposição  de  sen- 
timentos, nenhuma  lucta  trágica  os  poria  em  conflicto  ;  vê- 
los-hiamos  cahir  nos  braços  um  do  outro.  Mais  tarde  Cor- 
neille  faria  encontrar-se  Cid  com  Chiména  porque  era  entre 
elles  a  lucta ;  Cid  era  o  namorado  de  Chiména,  mas  era  tam- 
bém o  assassino  de  seu  pai,  e  Chiména,  ao  mesmo  tempo 
que  loucamente  o  amava,  pertinazmente  pedia  vingança 
desse  assassínio.  Na  Castro  os  dois  amantes  estão  de  accordo, 


140  Historia  da  Litter  atura  Clássica 

perdidamente  amorosos  como  são  —  sabemo-lo  bem  :  era 
necessário  que  ambos  apparecessem  em  scena,  Ignez  para 
revelar  a  sua  alma  apaixonada  e  os  seus  angustiosos  receios 
e  previsões,  D.  Pedro  para  nos  mostrar  a  sua  obstinação 
em  pospor  os  interesses  do  estado  ao  do  seu  coração.  Isso 
faz  Ferreira.  Mas  havia  que  os  separar  e  dar  o  infante  por 
ausente,  porque  só  na  ausência  estaria  Ignez  indefesa  e  po- 
deria consumar-se  o  assassínio.  É  no  animo  do  rei  que  a 
lucta  se  trava  ;  é  por  isso  que  com  elle  se  encontra  Ignez 
a  exacerbar  essa  lucta.  Não  se  pôde  dizer  que  António  Fer- 
reira não    houvesse  sabido   tomar  o   lado  trágico  do  thema. 

Discretamente,  Ferreira  não  nos  faz  assistir  ao  assassí- 
nio de  Ignez;  sabemos  no  fim  do  quarto  acto  que  se  vae 
perpetrar,  e  sabêmo-lo  já  perpetrado  no  5.0  acto,  quando  o 
mensageiro  leva  essa  noticia  ao  infante.  Esta  delicadeza  do 
gosto  de  Ferreira  não  é  para  deixar  de  mencionar,  visto  que 
já  então  em  Itália  os  continuadores  de  Trissino,  principal- 
mente Rucellai,  Speroni  e  Giraldi,  haviam  posto  em  moda 
a  tragedia  de  carnificinas,  mostradas  em  scena.  Depois,  com 
o  tempo,  dividir- se-hiam  as  opiniões:  os  partidários  do  der- 
ramamento do  sangue  em  scena  e  os  partidários  do  modo 
de  proceder,  entre  nós  inaugurado  por  Ferreira  ('). 

Na  lucta,  apresentada  na  Castro,  dissemos  nós  que  era 
novo  o  elemento  paixão  amorosa;  accrescentaremos  agora 
que  novo  é  também  e  muito  do  tempo  de  Ferreira,  o  outro, 
razão  de  estado.  Nas  allegações  dos  conselheiros  do  rei  e  na 


C1)  Este  problema  do  derramamento  do  sangue  em  scena  foi  pos- 
teriormente discutido  em  Portugal  por  Francisco  José  Freire  na  sua 
Arte  Poética,  Lisboa,  1748,  e  por  Corrêa  Garção,  que  em  sessão  da  Arcá- 
dia Lusitana  leu  uma  dissertação  a  tal  respeito.  O  primeiro,  como  eru- 
dito, acatava  as  duas  praticas  —  fazer  presencear  mortes  e  só  as  narrar 
—  de  ambas  as  quaes  conhecia  exemplos;  o  segundo,  menos  erudito, 
mas  de  mais  delicado  gosto,  opinava  pela  narração.  V.  a  este  respeito  a 
nossa  Historia  da  Critica  Litter  ária  em  Portugal,  Lisboa,  1916,  2.a  ed., 
pags.  76,  88  e  91. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  141 

final  deliberação  deste  ha  sempre  presente  o  espirito  da 
politica  machiavelica,  a  tyrannia  esclarecida  que  de  todos  os 
meios  usa,  quando  a  superior  razão  os  justifica,  a  omnipo- 
tência e  sciencia  certa  dos  reis,  repetidamente  expressas : 

CONSELHEIROS 

O  bem  commum,  Senhor,  tem  taes  larguezas 
Com  que  justifica  obras  duvidosas. 


Deos  o  faça, 
Cuja  vontade  he  ley,  e  a  minha  não 


Essa  licença  têm  também  os  Reys, 
Que  em  seu  lugar  estão. 


CONSELHEIROS 

Inda  que  houvesse  excessos,  todavia 
Mais  males  atalharam  do  que  deram. 


REY 

Mal  parece 
Matar  húa  innocente. 

PACHECO 

Não  he  mal : 
Que  a  causa  o  justifica. 

Os  sentimentos  pessoaes  de  António  Ferreira  trahiram- 
se  na  disposição  moral  que  attribue  a  D.  Affonso  iv,  can- 
sado da  sua   realeza,   desilludido  e  sedento  da  tranquilla  e 


142  Historia  da  Litteralura  Clássica 

descuidada  humildade  dos  que  não  têm  a  seu  cargo  reger 
os  destinos  dos  homens.  E'  o  gosto  da  áurea  mediocritas,  nas 
suas  hi iças  confessado  por  António  Ferreira,  poeta  horacia- 
no  e.  discípulo  do  estóico  solitário  da  Quinta  da  Tapada,  de 
Sá  de  Miranda. 

Na  Castro  apparece  já  um  artificio  litterario,  ao  depois 
muito  usado  no  theatro  trágico,  o  sonho,  e  não  só  no  theatro 
trágico.  Devemos  esclarecer  que  o  sonho  terrífico,  que  Ignez 
de  Castro  narra  á  ama,  como  sempre  que  os  trágicos  usaram 
desse  artificio,  tinha  por  fim  augmentar  o  effeito  de  terror, 
annunciar  através  duma  consciência  desassossegada  a  fatali- 
dade próxima  a  desencadear-se.  Veremos,  depois,  no  realis- 
mo, o  sonho  completamente  livre  da  acção  ser  apenas  ele- 
mento psychologico  a  documentar  uma  consciência  a  si  mes- 
ma entregue,  durante  o  somno,  sem  as  coacções  que  sobre 
ella  desperta  ordinariamente  se  exercem  (l). 


(!)  Como  a  Castro  só  foi  publicada  em  1587  e  como  anteriormente, 
em  1577,  appareceu  a  Alse  lastimosa  do  dominicano  gallego  Jeronymo 
Bermudez,  traducção  livre  da  peça  portuguesa,  formou-se  a  opinião  de 
ser  a  obra  hespanhola  a  original.  Sobre  este  assumpto  pleitearam  vários 
auetores  portugueses  e  hespanhoes,  sendo  hoje  unanimemente  acceita  a 
certeza  da  auetoria  portuguesa.  V.  principalmente  Martinez  de  la  Rosa, 
Arte  Poética,  1827 ;  as  muitas  obras  que  tratam  das  origens  do  theatro 
hespanhol,  indicadas  na  Bibliographie  de  VHistoire  de  la  Litlér ature  Es- 
pagnole,  do  sr.  Fitzmaurice-Kelly,  Paris,  ed.  Colin ;  Costa  e  Silva,  En- 
saio bio  gr  aphico- critico  ;  Visconde  de  Castilho,  Livraria  Clássica;  Th. 
Braga,  Historia  do  Theatro;  e  o  prologo  do  sr.  Mendes  dos  Remédios  á 
sua  edição  da  Castro.  É  um  episodio  curioso  deste  pleito  o  estranho 
modo  por  que  a  tal  respeito  se  pronunciou  o  critico  hespanhol,  Menéndez 
y  Pelayo  :  «Resueltamente  no  puede  afirmarse  nada.  Por  lo  demás,  no 
tengo  inconveniente  en  dejar  a  nuestros  vecinos,  tan  pobres  de  teatro, 
la  pieza  objeto  de  esta  rencilla  provincial.  Una  tragedia  clásica  más  o 
menos,  sin  acción  ni  movimiento  apenas,  bien  escrita,  aunque  falta  de 
color,  y  adornada  de  lindos  coros,  en  nada  acrece  ni  amengua  el  tesoro 
de  la  literatura  dramática  castellana,  con  cuyos  despojos  hubo  siempre 
bastante  para  enriquecer  a  extrahas  gentes.  No  vale  a  pena  reriir  por 


Historia  da  Litteratura  Clássica  143 

E  nada  mais  nos  apresenta  no  género  trágico  a  nossa 
litteratura  quinhentista.  A  razão  ó  obvia.  Portugal  não  offe- 
recia  a  idónea  atmosphera  de  sentimento  trágico  para  a  crea- 
ção  de  obras  desse  género.  Houvera  matéria  trágica  no  rei- 
nado de  D.  João  II,  quando  este  monarcha  e  a  nobreza 
andaram  empenhados  numa  iucta  de  extermínio,  mas  depois 
com  D.  Manuel  I  e  D.  João  III  a  vida  da  metrópole,  o  meio 
da  corte  estavelmente  se  amodorrou  numa  serena  quietação 
de  luxo  e  conforto.  Vasta  matéria  offerecia  decerto  á  ideali- 
zação litteraria  a  dissolução  das  famílias,  os  soffrimentos 
indizíveis  de  que  a  Inquisição,  estabelecida  em  1547,  foi 
portadora :  os  receios  angustiosos,  as  devassas,  as  prisões, 
os  soffrimentos  pb/ysicos  e  moraes  dos  interrogatórios,  a 
dispersão  das  familias,  a  morte,  a  miséria  e  a  forçada  per- 
versão dos  caracteres.  Mas  este  theor  de  vida,  eminente- 
mente trágico,  ninguém  ousou  expressá-lo  em  arte,  nem  se- 
ria possível  tê-lo  feito  de  modo  fructifero,  tantas  e  tão 
severas  eram  as  defezas  e  cautellas  do  tribunal  inquisitorial, 
obediente  instrumento  da  igreja  e  do  rei.  A  vida  guerreira 
dos  domínios  ultramarinos  e  as  tradições  das  viagens  de 
descoberta  anteriormente  realizadas  creavam  um  intenso 
espirito  heróico,  mais  tarde  soberanamente  expresso  nos 
Lusíadas.  Os  naufrágios  e  soffrimentos  atrozes  das  armadas 
determinaram  o  apparecimento  dum  género  próprio,  as  nar- 
rativas dos  naufrágios,  onde  o  sentimento  trágico  se  expressa 


tan  poço.  De  todas  suertes,  la  Castro  es  espariola,  y  no  és  cuestión  de 
vida  ó  muerte  el  que  fuese  un  galego  ó  un  português  su  primitivo  autor». 
V.  Horácio  en  Espana,  Madrid,  1885,  2.0  vol.,  pag.  303-4.  O  eminente 
critico  esqueceu-se  de  emendar  esta  passagem  tão  contraria  ao  seu  me- 
thodo  ordinário. 

Ainda  a  propósito  da  Castro  se  discute  o  conhecimento  directo  que 
dos  trágicos  gregos  teria  tido  Ferreira.  É  partidário  da  opinião  da  imita- 
ção directa,  e  não  de  Séneca,  o  sr.  Prof.  Adolpho  Coelho  que  a  expôs 
no  artigo  A  Castro,  de  Ferreira,  na  revista  Theatralia,  n.cs  1  e  2,  Lis- 
boa, 1913.  Infelizmente  não  se  concluiu  a  publicação  desse  artigo. 


144  Historia  da  Liitcr  atura   Clássica 

por    vezes    com    a   intensidade   possível    com    tão   ingénuos 
meios  de  arte. 

B  -  COMEDIA 

António  Ferreira,  o  auctor  innovador  da  nossa  primeira 
tragedia  regular,  Castro,  deixou-nos  também  duas  comedias, 
que  se  contam  entre  os  primeiros  ensaios  de  theatro  cómico 
no  gosto  clássico.  São  essas  comedias  Bruto  e  Cioso,  compos- 
tas em  Coimbra,  quando  Ferreira  frequentava  os  estudos 
universitários.  Das  duas  comedias,  só  a  primeira  tem  pro- 
logo, mas  como  peça  estranha  á  obra,  uma  espécie  de  pre- 
facio do  auctor.  Nesse  prefacio,  allude  Ferreira  a  alguns 
seus  predecessores  nacionaes  no  cultivo  desse  género,  refe- 
rindo-se  sem  duvida  a  Sá  de  Miranda,  também  auctor  dos 
Estrangeiros  e  dos  Vilhalpandos,  e  —  particularidade  curiosa 
num  espirito  tão  erudito  —  cita  o  nome  de  Livio  Andronico, 
esquecendo  Terêncio  e  Plauto,  para  só  falar  dos  latinos : 
«E  pola  qual  (a  grande  fama  da  comedia  antiga)  aquelle 
Livio  Andronico  Romam  antiquíssimo,  alcançou  famoso 
nome  pêra  sempre;  não  falo  nos  que  o  seguiram  desde  en- 
tão até  agora  em  Itália,  pois  em  nossos  dias  vemos  neste 
Reyno  a  honra,  e  o  louvor  de  quem  novamente  a  trouxe  a 
elle,  com  tanta  differença  de  todos  os  Antigos,  quanta  he  a 
dos  mesmos  tempos.  Porque  quem  negará,  que  na  pureza 
de  sua  lingoagem,  na  arte  da  composição,  naquelle  estilo 
tão  cómico,  no  decoro  das  pessoas,  na  invenção,  na  gravi- 
dade, na  graça,  no  artificio,  não  possa  triumphar  de  to- 
dos?» (')  Tem  esta  comedia  por  assumpto  um  thema  tão 
repetido  nos  comedicgraphos  clássicos  e  nos  seus  imitadores 
da  Renascença  que  bem  se  pode  considerar  um  thema 
cyclico,   de    escola  :  as  assiduidades  de  vários  pretendentes 


[!)     V.  BristOj  pag.  2,  ed.  de  1771,  2.0  vol. 


Historia  da  Litteralurà  Clássica  145 

em  voka  da  mesma  donzella,  cada  um  dos  quaes  envida  os 
seus  melhores  esforços  e  utiliza  o  melhor  que  pôde  a  media- 
ção de  terceiros.  O  mediador  geralmente  aproveitado  nesta 
comedia  é  Bristo,  alcoviteiro  sem  escrúpulos,  que  vive  de 
embair  os  namorados  e  os  libidinosos,  eniretendo-os  com  fal- 
sas promessas  e  generosamente  se  fazendo  pagar.  Na  scena 
2.a  do  2.°  acto,  num  monologo,  Bristo  faz  como  que  o  seu 
perfil  e  expõe  os  meios  de  acção  da  sua  arte,  como  opera  e 
como  lucra.  Todavia  Bristo  não  é  uma  personagem  tão  sem 
escrúpulos  que  se  negue  a  auxiliar  os  honestos  amores  de 
Camillia,  a  donzella  por  todos  pretendida,  e  Leonardo,  o  pre- 
ferido dentre  esses  pretendentes.  A  fanfarronada  prepotente, 
domjoanesca  e  bellica  do  Miles  Ghriosus  acha-se  em  Bristo 
distribuída  por  duas  personagens,  Annibal,  cavalleiro  de 
Rhodes,  e  Montalvão,  o  primeiro  dos  quaes  inteiramente  se 
entrega  ás  machinações  de  Bristo.  A  comedia,  muito  á  ma- 
neira de  Terêncio,  termina  pela  chegada  inesperada  de  Pin- 
daro  e  Arnclío,  respectivamente  pae  e  irmão  de  Camillia, 
que  havia  dois  anhos  eram  julgados  como  perdidos  por 
«essa  índia,  que  he  peor  que  as  covas  de  Salamanca,  por 
.  n  ;~cão  sete»  (J). 

Pindaro  e  Arnolfo  chegam  ricos  e  prósperos,  e  patroci- 
nam o  casamento  de  Camillia  com  Arnaldo.  Ainda  outros 
casamentos  se  realizam  e  põem  feliz  remate  á  serie  muito 
confusa  de  machinações  e  habilidades  de  Bristo.  Também 
á  maneira  clássica,  ha  na  peça  um  filho  dissipador  e  enamo- 
rado, que  o  pae  colérico  persegue.  Em  Ferreira  o  dialogo  é 
mais  natural,  mais  humanas  as  reflexões,  mais  logicamente 
encadeadas  e  mais  coherentes  com  os  papeis  das.  persona- 
gens. Dizemos  assim  —  papeis  das  personagens  —  e  não  ca- 
racteres, porque  essas  comedias  não  agitam  nem  põem  em 
lueta  caracteres;  todos  os  figurantes  se  animam  exclusiva- 
mente da  vaga   psychologia   de  Terêncio,  recortadas  como 


(>)     Pag.  21,  ed.  cií. 
V    dí  L.  Clássica,  vol.  ).• 


140  Historia  da  Liíteraiura  Clássica 

são  do  seu  theatro.  Um  processo  muito  usado  por  Terêncio 
é  abusivamente  praticado  por  Ferreira,  e  também  por  Sá  de 
Miranda:  todas  as  personagens,  a  quem  outra  quer  fallar, 
logo  apparecem  inesperadamente  e  vem  fallando  em  voz  alta, 
sem  notarem  que  são  ouvidas,  a  dizer  precisamente  o  que 
as  outras  querem  saber.  A  acção  decorre  assim  como  uma 
serie  de  episódios  ligados  por  outra  serie  de  coincidências 
e  acasos,  os  quac-s  acasos  —  encontros,  chegadas  imprevistas 
e  monólogos  que  ouvidos  interessados  e  indiscretos  escutam 
—  tcdos  se  realizam  no  praça  publica.  Para  esta  praça  abrem 
as  portas  das  casas  dos  figurantes. 

A  comedia  do  Cioso  narra  o  caso  dum  marido  extrema- 
mente ciumento,  que  do  mesmo  passo  que  encerra  a  esposa 
em  casa,  sob  a  mais  severa  vigilância,  para  si  reserva  plena 
liberdade  para  correr  em  busca  de  novos  prazeres  d'amôr, 
em  casa  duma  cortesã.  Essa  severidade  determina  da  parte 
da  esposa  uma  represália.  Disso  informado  só  parcialmente, 
o  marido  ciumento,  receoso  das  ultimas  consequências  do 
seu  proceder,  põe  de  lado  taes  clausuras  e  passa  a  ser  um 
mando  razoável.  Tem  o  desenvolvimento  desta  acção,  prin- 
cipio, meio  e  fim,  tem  lógica,  pois  se  visa  a  um  effeito,  des- 
crevem-se  as  causas  que  influem  até  á  realização  desse  fimJ( 
mas  não  tem  brilho  de  execução  e  o  desenvolvimento  da 
acção  passa-se  no  abstracto  espaço,  reduzido  a  uma  serie  de 
acontecimentos,  nunca  elaborados  em  phencmenos  mcraes, 
em  acções  e  reacções  de  caracteres. 


Jorge  Ferreira  de  Vasconcellos  (*)  legou-nos  três  come- 
dias:  Euphrosina,  que  se  julga  composta  por  1537,  mas  que 
só  foi  publicada  em   1561;    Ulyssipo,  de  1547;  e  Aulegraphia, 


(1)     Ignora-se  quasi  por  completo  a  biographia  de  Jorge  Ferreira 
de   Vasconcellos.  O  pouco  que  delia  se  conhece  está  compendiado  no 


Historia  da  Litter atura  Clássica  147 

que  parece  ter  sido  escripta  em  1554,  mas  que"só  foi  im- 
pressa em  1619,  por  diligencias  de  D.  António  de  Noronha, 
genro  do  escriptor. 

Nas  comedias  de  Jorge  Ferreira,  bem  como  nas  de  Sá 
de  Miranda  e  António  Ferreira  e  ainda  nos  autos  de  Gil  Vi- 
cente, é  muito  frequente  a  presença  duma  proxeneta  de  illi- 
citos  amores,  como  personagem  quasi  obrigada.  Em  Gil  Vi- 
cente queremos  crer  que  uma  causa  desse  pormenor  de  com- 
posição seja  a  observação  dos  costumes  do  seu  tempo,  mas 
outra  causa  haverá  também  influído  quer  em  Gil  Vicente, 
quer  nos  outros  comediographos  de  gosto  clássico,  nestes 
com  mais  directa  suggestão :  a  imitação  da  Celestina,  de  Fer- 
nando de  Rojas,  publicada  em  1499.  A  Euphrosina  de  Jorge 
Ferreira  é  disso  um  documento  e  dos  mais  antigos,  Sá  de 
Miranda  e  Gil  Vicente  dérám  representações  de  suas  peças 
em  Coimbra,  onde  também  Jorge  Ferreira  redigiu  a  sua  Eu- 
phrosina, em  Coimbra,  no  dizer  do  próprio  escriptor,  «coroa 
destes  Reynos,  á  sombra  dos  verdes  sinceiraes  do  Mon- 
dego. ■» 

As  comedias  de  Jorge  Ferreira  foram"  publicadas  sem 
nome  de  auctor,  mas  a  attribuição  delias  a  este  escriptor  é 


tomo  3.0  de  Origenes  de  la  Novela,  de  Menéndez  y  Pelayo,  Madrid,  1910, 
pags.  ccxxvm-ccxLiii  e  na  Introducção  da  edição  académica  da  Comedia 
Euphrosina,  do  sr.  Aubrey  Bell,  Lisboa,  1913  O  critico  hespanhol  apro- 
veitou informes,  que  lhe  ministrou  a  sr.a  D.  Carolina  Michaelis,  como 
declara. 

Attribuem-se  a  Jorge  Ferreira  três  naturalidades  :  Lisboa,  segundo 
uma  nota  manuscripta  lançada  por  mão  anonyma  sobre  um  exemplar 
da  Euphrosina,  na  edição  de  1561,  e  revelada  por  J.  J.  da  Costa  e  Sá; 
Coimbra,  que  mostrou  bem  conhecer,  ou  Montemór-o- Velho,  ambas 
apontadas  por  Barbosa  Machado.  Fez  parte  da  casa  do  infante  D.  Duarte 
e,  por  morte  deste,  da  do  rei  D.  João  111.  Foi  escrivão  do  thesouro, 
como  consta  dum  documento  sobre  a  sua  substituição  por  Luiz  Vicente, 
em  1563.  Barbosa  Machado  regista  que  (Ora  escrivão  da  casa  da  índia. 
Morreu  em  1585. 


148  Historia  da  Litteratara  Glassim 

de  plena  segurança,  segundo  testemunhos  de  escriptores  coe- 
vos e  posteriores.  A  Euphrosina  foi  reproduzida  por  Rodri- 
drigues  Lobo,  em  1616,  mas  com  o  texto  emendado  e  inter- 
pretado arbitrariamente;  em  1787,  por  diligencias  de  Bento 
José  de  Sousa  Farinha,  mas  sem  progresso  sensível  quanto 
á  melhoria  do  texto;  e  em  19 19  pelo  sr.  Aubrey  Bell,  con- 
forme a  edição  de  1561,  sem  deixar  de  em  passos  numero- 
sos estabelecer  a  sua  lição  própria.  O  sr.  Aubrey  Bell  acre- 
dita na  existência  duma  edição  mais  antiga,  de  1554,  por 
inferências. 

Os  primeiros  trabalhos  que  ha  a  fazer,  como  bases  essen- 
ciaes  do  estudo  da  comedia  de  Ferreira,  são  tornar  os  textos 
accessiveis  por  meio  de  edições  de  confiança  e  depois,  sobre 
ellas,  diligenciar  restituir  o  texto  e  interpretá-lo.  A  Euphro* 
sina  é  uma  das  obras  mais  obscuras  da  nossa  litteratura, 
tanto  por  deliberado  propósito  do  auctor  como  por  desfigura- 
ção do  texto.  A  edição  do  sr.  Aubrey  Bell  é  um  passo  impor- 
tante nesse  caminho,  embora  não  possam  ser  sanccionadas 
todas  as  suas  interpretações.  Sobre  ella  fez  um  estudo  tex- 
tual o  sr.  Dr.  José  Maria  Rodrigues,  o  fundador  entre  nós 
da  critica  de  fontes.  Quando  os  seus  commentarios  e  emen- 
das se  imprimam,  tornarse-ha  mais  intelligivei  esta  come- 
dia. Comedia  lhe  chama  o  seu  auctor  e  assim  foi  designada 
pelos  seus  fervorosos  leitores,  mas  ella  é  na  verdade  uma 
novella  dialogada,  para  ser  lida,  pacientemente,  saborean- 
do-se  na  analyse  e  na  meditação  as  suas  longas  divagações 
moraes,  os  seus  arrazoados,  ainda  que  essa  leitura  fosse  para 
um  publico,  como  pode  inferir-se  do  prologo  de  João  de  Es- 
pera em  Deus.  Mas  uma  leitura  publica  é  coisa  muito  di- 
versa duma  representação  scenica.  Para  ser  lida  também 
parece  haver  sido ;  composta  a  Celestina,  directo  modelo  de 
Jorge  Ferreira,  «  o  novo^autor  em  nova  invençam  ». 

A  Euphrosina  narra  os  amores  de  dois  mancebos  presos 
dos  encantos  duma  jovcn  nobre,  de  cujo  nome  se  intitulou 
a    comedia.    Zelotipo    e    Cariofilo    oppõem  se    em    contraste 


Historia  da  Litteralura  Clássica  149 

vivíssimo  pela  sua  concepção  do  amor,  absorvente,  submisso 
e  cavalheiresco  no  primeiro;  leviano,  voluptuoso  e  gabarola 
até  á  libertinagem  no  segundo.  Quando  este  exprime  as  suas 
opiniões  e  processos  de  amor,  com  o  mais  cru  cynismo,  Me- 
néndez  y  Pelayo  vê  nelle  um  verdadeiro  antecessor  de  D.  Juan. 
A  medianeira  dos  amores  deshonestos  é  Filtria,  correspon- 
dente á  Celestina,  e  a  dos  amores  castos  é  Silvia  de  Sousa, 
correspondente  á  Poncia,  da  Segunda  Celestina. 

Kscripta  em  prosa,  dividida  em  cinco  actos  e  em  scenas, 
de  grande  numero  de  personages,  mas  de  que  raro  se  jun- 
tam mais  de  três  em  cada  scena,  imitada  da  Celestina,  com 
matéria  local  e  popular,  como  são  os  episódios  da  vida 
coimbrã  e  a  farta  ostentação  de  provérbios  e  annexins  ('),  com- 
pletos uns,  apenas  enunciados  outros,  a  Euphrosina  não  é  bem 
para  ser  considerada  uma  comedia  do  typo  clássico,  como  das 
de  Sá  de  Miranda  e  Ferreira,  mas  antes  como  uma  novella 
dialogada  do  typo  castelhano  (2). 

Á  Euphrosina,  «invenção  nova  nesta  terra >,  seguiu-se 
Ulyssipo  onde  se  encontram  as  peripécias  cccorridas  num 
lar,  cujo  chefe,  Ulyssipo,  apesar  de  ser  um  libidinoso  dissi- 
pador, exerce  sobre  suas  duas  filhas,  Tenoluia  e  Gliceria,  e 
sobre  seu  filho  Hippolyto  uma  severa  tyrannia.  Todavia 
esses  rigores  não  impedem  que  o  filho  se  dê  a  excessos  e 
aventuras  e  que  as  filhas  casem  de  modo  muito  contrario  á 
vontade  desse  severo  mas  pouco  auctorizado  pae. 

Tem  a  peça  um  prologo,  em  que  Mercúrio  lembra  a 
estimação  que  os  antigos  davam  á  comedia,  sua  origem,  o 
argumento  da  peça  que  introduz  e  o  seu  objectivo:   «com 


(')  V.  o  appendice  III,  Lista  dos  adágios,  na  edição  do  sr.  Aubrey 
Bell  e  Sr.  Cândido  de  Figueiredo,  A  «  Euphrosina  »  c  a  sabedoria  das 
nações,  na  Revista  de  Língua  Portuguesa,  n.°  3,  Rio  de  Janeiro,  1920. 

(8j  Fernando  de  Ballesteros  y  Saabedra  fez  uma  traducçâo  caste- 
lhana, que  se  publicou  em  Madrid,  1631.  Foi  reproduzida  no  tomo  3.0  de 
Origenes  de  Ia  novela,  de  Menéndez  y  Pelayo,  Madrid,  1910,  pags.  61-156. 


150  Historia  da  JAtter atura  Clássica 

seu  exemplo  anisar  ao  pouo  de  seus  vicies,  e  incitar  ás 
virtudes.»  Os  cinco  actos  são  muito  prolixamente  preenchi- 
dos pelo  decurso  dos  episódios  lentos  6  complicados,  mas 
necessários  para  demonstrarem  a  these  moral  da  obra,  que 
Deus  escreve  direito  por  linhas  tortas,  pois  com  as  estou- 
vanices  de  Hippolyto  e  com  os  casamentos  das  filhas,  puniu 
a  Ulyssipo.  Das  personagens,  é  a  alcoviteira  Macarena  a 
melhor  desenhada,  sem  duvida  porque  a  sua  moral  e  o  seu 
caracter  constituíam  já  o  que  nós  chamamos  lugarescom- 
muns  de  escola.  Estes  comediographos  do  século  xvi  usavam 
muito  fazer  que  essas  mesmas  personagens  confessassem  o 
seu  cynismo.  Macarena  não  foge  a  essa  pratica.  Dá  um  indi- 
cio do  theor  dessa  confissão  de  processos  a  seguinte  norma 
a  respeito  de  promessas:  «Não  sei  disso  nada,  mas  dir- 
vos-ey  a  minha  regra  nessa  parte.  As  promessas  não  devem 
cumprirse  quando  são  danosas  áquelle  a  que  forão  pro- 
mettidas;  nem  também  quando  danão  mais  a  quem  as  pro- 
mette  do  que  aproveitarão  a  quem  se  prometterão.  E  por 
tanto  cumpro  sempre  o  que  digo  se  me  convém ;  e  se  não 
a  ninguém  sou  mais  obrigada  que  a  mim.»  Tem  esta  comedia 
a  particularidade  de  conter  cantigas  intercaladas  no  texto 
e  de  usar,  como  a  Euphrosina,  do  expediente  da  leitura  de 
cartas. 

Apesar  de  Jorge  Ferreira  ter  os  olhos  tão  absorvida- 
mente  fitos  na  antiguidade  que  a  exemplos  antigos  recorre 
para  demonstrar  conceitos  muito  communs,  é  grande  o  valor 
documental  das  suas  comedias,  sob  esse  ponto  de  vista  já 
utilizadas  por  um  auetor.  (')  Para  mostrar  que  «nunca  outra 
cousa  vemos  cada  dia  senão  baratarem  filhos  os  fundamentos 
dos  pays  por  leve  gosto  próprio»,  vae  buscar  a  opinião  de 


(l)  V.  Memorias  históricas  do  Ministério  do  Púlpito  por  um  reli- 
gioso da  Ordem  terceira  de  S.  Francisco,  Fr.  Manuel  do  Cenáculo, 
Lisboa,  1776.  Cenáculo  no  appendice  á  3  a  parte  das  suas  Memorias 
recorreu  ás  comedias  de  Jorge  Ferreira  repetidamente. 


Historia  da  LU  Ur  atura  Clássica  151 

Ménandro,  o  caso  de  Acrisio  e  Medêa,  de  Niso  e  sua  filha, 
e  de  Astiages  e  sua  filha.  É  cora  Argos  dos  cem  olhos  que 
Ulyssipo  argumenta  a  sua  mulher  para  a  advertir  de  que  de 
nada  servem  cautellas.  Sobre  a  educação  das  mulheres,  o 
mesmo  Ulyssipo  opina  com  os  casos  de  Tanquenil,  mulher 
de  Tarquinio,  Andromaca,  mulher  de  Heitor  e  outros  lon- 
gínquos exemplos. 

A  Aulegraphia,  como  as  precedentes,  é  em  prosa  e  divi- 
de-se  em  cinco  actos.  Faz  o  prologo  o  deus  Momo,  que  ao 
publico  —  publico  de  leitores,  não  de  espectadores  —  expõe 
o  assumpto  da  comedia,  a  costumada  intriga  amorosa,  pela 
qual  «pretende  mostrar-nos  no  olho  o  rascunho  da  vida  cor- 
tesão, em  que  vereis  hua  pentura  que  fala  Sc  vos  fará  vente 
Sc  palpável  a  vaydade  de  certa  relê.»  É  ainda  o  deus  Momo 
que  nos  elucida  acerca  da  prudente  discrição  e  delicadeza, 
com  que  na  comedia  se  pratica  a  imitação  da  realidade 
ambiente : 

«Nesta  selada  Portuguesa  vereys  varias  difierenças,  & 
certeza  que  passão  em  uso,  &  costume  por  estes  bairros. 
Donde  deve  notar-se,  &  advertir-se  que  as  calidades,  Sc  epí- 
tetos atribuídos  em  singular  a  toda  a  especia  de  pessoa  aqui 
introduzida,  compete  geralmente  ao  género  de  taes  especias, 
convém  saber  declarandome :  Quando  se  pinta  hua  especia 
de  cortesão,  ou  cortesãa  que  dizemos  especiaes,  ao  natural 
de  suas  artes  &  modos  principal  Sc  singularmente:  entende- 
se  em  geral  por  o  género  das  taes  pessoas.  Ca  de  particular 
nada  se  trata,  por  quanto  seria  odioso,  cS:  alheyo  do  estilo 
cómico  moderno.» 

O  assumpto  da  comedia  é  constituído  pelos  leves  amores 
de  Grasidel  de  Abreu  e  Philomela,  cuja  leveza  com  leveza 
se  cura.  Os  mesmos  creados  das  outras  comedias,  de  imita- 
ção de  Terêncio,  sempre  descontentes  de  sua  condição  e 
ainda  mais  de  seus  amos,  a  quem  não  obstante  grandes  ser- 
viços prestam,  como  correios  de  recados  amorosos  e  como 
conselheiros.  Os  mesmos  encontros  a  propósito,  as  mesmas 


152  Historia  da  Li 

divagações  longas  e  difficeis  a  entorpecerem  o  dialogo  o  a 
complicarem  inutilmente  a  acção,  os  mesmos  característicos 
das  outras  obras  já  alludidas. 

O  gosto  dos  jogos  de  palavras,  que  já  vimos,  sob  forma 
de  annexins  se  ostenta  na  Aulegraphia,  mas  com  mais  recato 
e  por  meio  da  confusão  de  homophonas  ou  quasihomophonas, 
como  no  pequeno  exemplo  que  recortamos:  «Rocha:  Suas 
mãos  beijo. —  Cardoso:  O  senhor,  grão  saber  vir. —  Rocha: 
Donde  buens? — Cardoso:  Estava  naquella  travessa  sobre 
ver  hua  rapariga  que  me  atravessa.  —  Rocha:  E  ella  he  tra- 
vessa ?  —  Cardoso:  Mas  travessa  d'alma.  — Rocha  :  Dessa  ma- 
neira fazeis  d 'amor  kila  cancella?  Rocha:  Essa  alcàcella  de 
mim  a  seu  salvo. — Rocha:  E  a  esse  alvo  pretendeis  vós 
fazer  tiro?  —  Cardoso :  Mas  tiro  pouco  mays  de  nada  em  pen- 
samentos altivos.» 

As  três  comedias  de  Jorge  Ferreira  têm  um  valor  exclu- 
sivamente documental  sobre  os  costumes  sociaes,  sobre  a 
língua  e  sobre  o  gosto  da  sua  época,  portanto  valor  histo 
rico  e  muito  limitadamente  esíhetico. 


CAPÍTULO  Vi 


O  LVR1SMO 


Agrupámos  neste  capitulo  os  dois  iniciadores  do  buco- 
lismo e  os  continuadores  directos  de  Sá  de  Miranda,  porque 
sendo  nosso  propósito  estudar  nesta  parte  do  nosso  livro  as 
principaes  manifestações  da  poesia  subjectiva  do  século  xví, 
pouco  era  para  considerar  a  conjectura  de  que  o  bucolismo 
em  redondilhas  seja  anterior  a  Sá  de  Miranda  e  delle  inde- 
pendente. Certo  é  que  se  suppõe  ordinariamente  que  a  vaga 
viagem  de  Bernardim  Ribeiro  á  Itália  se  realizou  entre  os 
annos  de  1520  e  1524,  datas  estas  um  pouco  anteriores  ás 
que  limitam  a  famosa  viagem  de  Sá  de  Miranda ;  mais  certo 
é  ainda  que  Bernardim  Ribeiro  nasceu  alguns  annos  antes 
de  Miranda.  Mas  estes  elementos  não  são  sufficientes  para 
estabelecer  que  Bernardim  Ribeiro  é  um  precursor  de  Sá  de 
Miranda,  (l)  portanto  formado  em  plena  independência  da 
acção  deste  reformador,  porque  falta  a  base  essencial  duma 
chronologia  authentica  e  incontroversa  de  suas  obras.  Têm  se, 


(')  Recentemente,  repetiu  esta  opinião  o  sr.  Achille  Pellizzari  no 
seu  livro  Portogallo  e  Itália  nel  seco/o  xri,  Nápoles,  1914,  onde  a  pag.  27 
escreve :  «Onde  non  esito  a  ritenerlo  precursore,  sebbene  a  piccola 
distanza  d'anni,  di  Sá  de  Miranda  e  a  riconoscere  in  Iui  e  nella  sua  poesia 
1'anello  dj  congiunzione,  o,  meglio,  Tatto  di  passaggio  dalla  vecchia 
lírica  cortigiana  di  Portogallo  alia  scuoja  italiana  di  Sá  e  di  Camoens.» 


154  Historia  eh  IAtieratura  Clássica 

é  facto,  datado  suas  obras,  mas  taes  hypotheses  deixam  quasi 
sempre  grande  campo  á  duvida.  Tanto  Bernardim  Ribeiro 
como  9  seu  immediato  imitador  íormaram-se  na  atmosphera 
de  idéas  estheticas  e  gosto  litterario,  a  que  a  Itália  dava 
expressão,  e  que  Sá  de  Miranda  com  mais  affoiteza  pro- 
pugnou. Tanto  basta  para  que  os  reunamos  neste  capitulo, 
e  para  que  a  Miranda  déssemos  o  lugar  de  relevo,  que  lhe 
arbitrámos. 

BERNARDIM  RIBEIRO 

Como  na  arte  litteraria  do  nosso  quínkentismo  se  deu 
forma  á  concepção  da  vida  trágica,  da  vida  heróica  e  da 
vida  lyrica,  assim  também  a  vida  privada,  medíocre  de  aspi- 
rações e  na  sua  mediocridade  satisfeita,  encontrou  a  sua 
expressão  litteraria  na  écloga. 

A  concepção  trágica  exprimem-na  os  ensaios  trágicos 
e,  parcialmente,  as  narrativas  dos  naufrágios;  a  concepção 
heróica  os  romances  de  cavallaria,  os  roteiros  das  peregri- 
nações terrestres,  a  epopea  camoneana  e  boa  parte  da  histo- 
riographia ;  a  concepção  lyrica  reproduzerr.-na  os  sonetos 
platónicos. 

Os  amores  terrenos,  em  que  a  alma  já  não  aspira  a  um 
ceu  de  idealidades  puras,  mas  para  a  terra  mui  gostosamente 
propende  e  alliada  ao  corpo  se  estreita,  formam  o  fundo  da 
écloga  pastoril  e  piscatória,  com  largueza  cultivada  no  sé- 
culo xvi.  Como  a  paisagem,  os  costumes  pastoris  e  piscató- 
rios e  a  confissão  do  viver  tranquillo  se  tornariam  monóto- 
nos, porque  não  comportavam  variantes  de  maior,  pois  para 
ver  a  paisagem  de  modo  original  seriam  necessários  outros 
olhos,  menos  obcecados  pela  visão  clássica,  a  écloga  foi  bus- 
car para  esse  fundo  permanente  e  uniforme  um  elemento- 
variável  e  mais  emotivo,  o  drama  amoroso.  Este  elemento 
predomina  exclusivamente  na  nossa  écloga  que  é  muito 
uni-lateral,  por  não  haver  admittido  os  elementos  cómicos 


Historia  da  Litteratura  Cias  sim  155 

que  em  Itália  continha  e  que  davam  ao  género  um  maior 
poder  de  comprehensão.  A  écloga  portuguesa  é  exclusiva- 
mente lyrica,  de  tom  lamentoso,  e  tem  por  obrigada  compo- 
sição o  fundo  permanente  da  paisagem  com  seus  adornos 
pastoris  ou  piscatórios  —  mais  daquelles  que  destes  —  e  dum 
primeiro  plano  em  que  o  protagonista  ou  protagonistas  se 
lamentam  de  seus  infelizes  amores.  São  sempre  infelizes 
esses  amores  e  é  essa  sua  infelicidade  que  os  torna  matéria 
litteraria.  Consiste  a  causa  dessa  infelicidade  no  abandono 
dum  dos  amantes,  que  parte  para  «longes  terras  > . 

Bernardim  Ribeiro  (*)  é  que  fixa  estes  caracteres  á  écloga, 
que  cultiva  com  brilho,  não  comparável  ao  pequeno  êxito 
dos  ensaios  de  Sá  de  Miranda  nesse  género.  Fixa-lhe  tam- 
bém Ribeiro  uma  forma  métrica  própria,  a  redondilha  me- 
nor, depura-a  de  elementos  mythicos,  dá  mais  alguma  natu- 
ralidade e  sequencia  lógica  ao  dialogo  e  introduz  o  gosto 
dos  jogos  de  palavras  homonymas  e  as  repetições  parallelis- 
ticas.  O  jogo  de  palavras  será  largamente  praticado  por 
Christovam  Falcão,  seu  principal  discipulo. 

Das  cinco  éclogas  de  Bernardim  Ribeiro  é,  sem  duvida, 
a  primeira  a  mais  bella,  porque  é  a  única  que  transcende  os 
limites  do  medíocre  interesse  ordinariamente  despertado 
pelo  assumpto  duma  écloga.  Pérsio  pastor,  ama  Catharina  e 
como    esta   para  sempre  se  affastasse   para   outros   lugares 


(')  Bernardim  Ribeiro  nasceu  na  villa  de  Torrão  (Alemtejo)  em 
1482.  Como  seu  pae,  creado  do  duque  de  Vizeu,  se  refugiasse  em  Ca?- 
tella  após  o  assassínio  deste  nobre  por  D  João  ix,  Bernardim  com  a 
mãe  e  uma  irmã  recolheram-se  a  Cintra,  á  quinta  dos  Lobos,  duns  seus 
parentes.  Em  1505  recebeu  por  doação  regia  as  terras  e  azenha  dos 
Ferreiros,  em  Extremoz.  De  1507  a  15 12  frequentou  a  Universidade  de 
Lisboa,  tomando  o  grau  de  bacharel  em  leis.  Em  1524  recebeu  a  nomea- 
ção de  escrivão  da  camará  de  D.João  111,  cargo  que  exerceu  até  que,, 
enlouquecendo,  se  recolheu  ao  Hospital  de  Todos  os  Santos,  onde  mor- 
reu em  1552.  Ha  uma  vaga  noticia  duma  sua  viagem  á  Itália  entre  m 
annos  1520  a  1524. 


150  Historia  da  Liite?  atura  Clássica 

grande  é  a  sua  tristeza  e  saudade.  Expandir  essas  saudosas 
tristezas  passou  a  ser  toda  a  razão  da  existência  de  Pérsio, 
que  dessas  lamentações  só  sahe  para  pedir  e  ardentemente 
desejai*  a  morte.  Outro  pastor,  o  seu  amigo  Fauno,  procura 
consola-lo,  oppondo  á  obstinação  de  Pérsio  razões  sensatas 
e  seguras,  respondendo  ao  conceito  amoroso  e  fraco  que  da 
vida  Pérsio  exterioriza,  com  outro  conceito  forte,  sereno, 
inacessível  ao  desanimo. 

Este  dialogo,  em  especial  na  parte  em  que  falia  Fauno, 
é  a  principal  belleza  das  éclogas  de  Bernardim  Ribeiro,  por- 
que é  o  único  lugar  em  que  o  poeta,  por  si  ou  por  outra 
personagem  de  sua  creação,  mostra  ser  superior  ao  mundo 
infantil  e  ingénuo  das  éclogas.  Effectivamente,  é  sempre 
infantil  e  ingénuo  fazer  cifrar  todo  o  interesse  da  vida,  toda 
a  sua  razão  nos  medíocres  amores  das  éclogas.  A  écloga 
segunda  exemplifica  de  modo  muito  frizante  esta  concepção 
de  pueris  bagatellas  porque  é  a  mais  movimentada,  a  que 
maior  acção  tem.  Jano,  pastor,  vem  para  margem  do  Tejo 
fugindo  ás  seccas  e  fomes  do  Alemtejo;  —  no  bucolismo  as 
deslocações  migratórias  são  um  elemento  importante  na  cau- 
salidade dos  acontecimentos  e  são  também  um  dos  mais 
característicos  adornos  pastoris,  por  exprimirem  vestigios 
do  antigo  viver  nómada  das  populações  pastoris.  Chegado 
ás  margens  do  Tejo,  onde  apascentava  o  seu  gado,  vê  dum 
esconderijo  Joanna,  guardadora  de  patas  e  filha  dum  vizinho, 
colher  flores  para  tecer  uma  grinalda  com  que,  soltos  os 
cabellos,  se  enfeita.  Joanna,  para  ver  o  effeito  dessa  grinalda, 
vae  mirar- se  ás  aguas  do  rio  e,  deslumbrada  da  própria  for- 
mosura, lamenta  a  sua  soledade  de  guardadora  de  patas. 
Acode  Jano,  promptamente  enamorado,  mas  Joanna,  assus- 
tada da  surpresa,  foge  para  casa  e  deixa  com  a  pressa  cahir 
uma  das  sapatas.  Jano  guarda  essa  sapata,  a  esquerda,  e 
lamentoso  e  apaixonado  sobre  ella  desmaia  de  amor.  For- 
tuitamente passa  por  elle  Franco  de  Sandovir,  que  acatando 
muito  respeitosamente  aquella  grande  dor,  busca  consolá-lo. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  1.". « 

Essa  desgraça,  retorque  Jano,  não  é  mais  do  que  a  confir- 
mação duma  prophecia  que  lhe  fizera  Pierio.  E  como  o  cão 
de  Franco  de  Sandovir  lhe  trouxesse  a  sua  flauta,  que  sup- 
punha  perdida,  canta  uma  cantiga.  A  écloga  terceira  é  uma 
permuta  de  razões  entre  Silvestre  e  Amador,  cada  um  dos 
quaes  se  suppõe  mais  infeliz  por  mais  apaixonado.  A  quarta 
é  uma  variante  do  episodio  nodal  da  primeira:  é  o  pastor  que 
é  affaslado;  e  a  quinta  narra  um  encontro  do  pastor  Ribeiro, 
desterrado  «bem  contra  sua  vontade>,  com  Agrestes  que  lhe 
aconselha  o  regresso  e  a  esperança  nalgum  bem  futuro. 

Recuar  a  este  mundo  pueril  para  encontrar  a  idade  de 
ouro  da  vida  era  muito  recuar,  porque  se  creava  um  mundo 
igualmente  artificioso  e  ainda  sob  a  dura  condição  do  soífri- 
mento  e  porque  não  se  fazia,  como  a  écloga  clássica  ensi- 
nava, a  reconstituição  quanto  possível  integral  dum  mundo 
tranquillo,  grave  e  cómico,  e  bem  caracteristico.  Na  écloga 
de  Bernardim  desapparece  essa  tranquillidade,  a  gravidade 
reduz-se  ao  excessivo  acatamento  dado  a  amores  medíocres, 
o  cómico  desapparece  e  a  parte  pinturesca  é  muito  reduzida. 

CHRISTOVAM  FALCÃO 

E  pequena  a  obra  poética  de  Falcão,  que  como  Bernar- 
dim Ribeiro  manteve  as  formas  métricas  medievaes  ada- 
ptando-as  á  expressão  dos  novos  géneros  do  Renascimento. 
Por  meio  do  verso  de  sete  syllabas  das  suas  cantigas,  soltas 
e  esparsas,  formas  já  nossas  conhecidas  do  Cancioneiro  Geral, 
de  Garcia  de  Rezende,  cantou  Falcão  (*)  o  amor,  sempre  e 


(1)  Christovam  Falcão  de  Sousa  nasceu  provavelmente  no  segundo 
decennio  do  século  xvi,  em  Portalegre.  Em  1542  esteve  em  Roma,  na 
embaixada  portuguesa,  donde  escreveu  a  bem  conhecida  carta  a  D.João  11. 
Em  1545  recebeu  a  nomeação,  por  três  annos,  de  feitor  e  capitão  da  for- 
taleza de  Arguim.  Ignora-se  a  data  da  sua  morte. 

Recentemente  o  sr.  Delphim  Guimarães  defendeu  a  these  de  ser 


158  Historia  da  Liiteratura  Clássica 

só  o  amor ;  narrando  o  drama  da  sua  vida,  sob  disfarces  pas- 
toris, mas  ainda  em  redondiihas  menores,  compôs  esse  arre- 
medo de  écloga,  que  é  a  sua  principal  peça.  O  exclusivismo 
do  thema  amoroso  que  assim  denuncia  uma  intensa  vida 
psychològica,  um  intimo  isolamento,  os  escassos  adornos 
pastoris  da  narrativa  do  seu  drama  amoroso  e  o  gosto  das 
subtilezas  engenhosas,  dos  ditos  agudos,  dos  jogos  de  pala- 
vras e  o  registar  por  elles  as  contradicções  do  senti- 
mento do  amor  são  caracteres  litterarios  typicamente  qui- 
nhentistas. A  estes  só  falta  juntar  o  carinho  esthetico  da 
própria  obra,  o  desenvolvimento  amplo  dos  themas  de  quem 
se  não  contenta  com  a  simples  enunciação,  mas  quer  extra- 
hir-lhes  todo  o  conteúdo,  para  se  ver  o  que  recebeu  Falcão 
da  atmosphera  de  idéas  estheticas  e  gosto  litterario  que  em 
torno  de  si  se  formara  desde  que  Sá  de  Miranda  iniciara  a 
■sua  reforma.  Ha  porém  que  notar  que  a  interpretação  do 
sentimento  do  amor,  expressa  por  Falcão,  não  6  a  que  o  pla- 
tonismo e  o  petrarchismo  haviam  creado  e  posto  em  voga, 
sentimento  idealissimo  de  adoração,  mas  uma  muito  terrena 
paixão  de  que  é  objecto  muito  real  determinada  mulher  que 


a  obra  attribuida  a  Falcão  pertença  de  Bernardim  Ribeiro,  não  tendo  por- 
tanto fundamento  a  existência  dum  poeta  de  nome  Christovam  Falcão. 
Em  seu  livro  Bernardim  Ribeiro  (O  Poeta  Crisfal),  Lisboa,  1908,  apre- 
senta os  seguintes  fundamentos  para  essa  these :  i.° —  O  nome  de  Cris- 
fal  é  formado  pelas  syllabas  iniciaes  de  crisma  falso  e  de  crismas  falsos 
somente  teria  Bernardim  usado  nessa  écloga  de  Crisfal  que  o  sr.  D.  G. 
ihe  attribue  ;  2.0  —  A  carta  que  Christovam  Falcão  escreveu  de  Roma  a 
D.  João  11  revela  uma  instrucção  rudimentar  pelo  que  julga  o  sr.  D.  G. 
cque  não  podia  ter  sido  o  gentil-homem  Falcão,  que  tão  incorrectamente 
escrevia,  o  delicado  auctor  da  formosíssima  écloga  que  lhe  era  attribuida» 
(Pag.  183) ;  3.0  —  As  coincidências  de  forma  nas  obras  dos  dois  poetas. 
—  Esta  these  insubsistente  foi  sabiamente  rebatida  pelo  escriptor  brasi- 
leiro, sr.  Raul  Soares,  na  obra  O  Pceta  Crisfal,  Campinas,  1909.  Ainda 
do  Brasil  surgiu  outro  estudo  sobre  este  assumpto,  mas  em  appoio  do  sr. 
D.  G.;  A  Mascara  dum  Poeta  (Bernardim  Ribeiro),  Lisboa,  1913,  peio  sr. 
Silvio  de  Almeida.  Estes  dois  trabalhos  brasileiros  appareceram  primeiro 


Historia  da  Litleratura  Clássica  150 

o  poeta  quer  possuir.  Se  na  escala  dos  delicados  valores 
litterarios,  esta  concepção  desce,  torna-se  não  obstante  mais 
humana  e  real,  pois  a  foi  buscar  não  a  um  amalgama  de 
pensamentos,  aspirações  e  gostos  que  formava  a  essência  das 
almas  de  escol  do  seu  tempo,  mas  ao  próprio  fundo  do  seu 
ser.  Com  a  sensibilidade  aguçada  pelo  seu  temperamento  e 
com  alguns  dos  meios  litterarios  em  voga  no  seu  tempo,  já 
neo  clássicos,  contou  as  dores  da  sua  alma. 

Essa  narrativa,  que  alguns  auetores  têm  querido  consi- 
derar menos  como  obra  de  arte  do  que  como  enigma  ardiloso 
offerecido  ás  suas  conjecturas  biographicas,  é  summariamente 
a  seguinte: 

Num  lugar,  de  extravagante  situação  geographica,  entre 
Cintra  e  a  serra  da  Arrábida,  dois  pastores,  vivamente  se 
amaram,  Maria  e  Chrisfal,  dum  amor  tranquillo,  a  que  só  as 
saudades  da  ausência  perturbavam.  Outra  pastora,  Joanna, 
delatou  esses  amores  á  família  de  Maria,  o  que  junto  á  cir- 
cunstancia de  ser  Chrisfal  pobre  de  bens,  determinou  o 
sequestro  de  Maria  para  muito  longe.  Doridos  da  separação, 
ambos  choram  as  suas  saudades.  Para  exemplificar  a  dor  do 
pastor  apaixonado,   faz  o  poeta   que  elle  exponha  as  suas 


no  jornal  Estado  de  S.  Paulo.  Para  contrapor  ás  razões  do  sr.  D.  G.  ha 
os  seguintes  argumentos :  i.°  —  O  testemunho  de  Gaspar  Fructuoso  (1522- 
1591)  que  nas  suas  Saudades  da  Terra,  claramente  allude  a  Christovam 
Falcão  como  auetor  da  écloga  Crisfal;  2.0—  Testemunho  semelhante  de 
Diogo  do  Couto  (1542-1616;  na  sua  Década  vm,  Cap.°  34.,  ed.  de  1673; 
3.0  —  O  de  Faria  e  Sousa  (1590-1649)  no  seu  Commentario  ás  Rimas  de 
Camões,  tomo  iv,  pag.  266;  4.0  —  O  de  António  dos  Reis  (1690-1738)  no 
seu  Enthusiasmas  Poeticus  ;  5.0  —  O  de  Diogo  Barbosa  Machado  (1682- 
1772)  na  sua  Bibliotlieca  Lusitana;  6.°  —  O  do  manuscripto  genealógico 
da  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa,  C.-1-18 ;  7.0—  A  carta  de  Roma,  depois 
de  bem  ortographada  e  bem  pontuada,  é  um  documento  de  prosa  regu- 
lar, que  de  modo  nenhum  impossibilita  o  séu  auetor  de  ser  bom  poeta ; 
8.°  —  A  par  de  semelhanças  e  coincidências  de  versos,  ha  uma  grande 
abundância  de  differenças  estylisticas  sufíiciente  para  comprovar  serem 
as  éclogas  de  auetores  diversos. 


100.  Historia  da  Littèratura  Clássica 

lamentações.  EíFectivamente  Chrisfal,  afundado  em  melan- 
cholica  saudade,  lastima  a  sua  separação  do  ente  amado  e 
pede  ao  pensamento  e  ás  illusões  delle  alguma  consolação. 
Narra-nos  depois  ainda  o  pastor  em  seu  monologo  um  sonho 
que  tivera. 

Um  forte  vento  do  mar  o  erguera  muito  alto,  donde 
podia  contemplar  larga  extensão.  Paisagem  e  pastores  que 
cantam  de  amor  e  pastoras  suspirosas  é  quanto  vê:  António, 
Guiomar  e  outros  companheiros.  Vê  também  Maria,  que  para 
o  mesmo  cume,  onde  Chrisfal  se  ficara,  se  vae  dirigindo  a 
cantar  as  suas  saudades,  íastimando-sc  de  que  a  houvessem 
feito  trocar  o  amor  de  Chrisfal  pela  riqueza  daquelle  com 
quem  a  haviam  casado.  Encontrando- se,  Chrisfal  vê  com 
surpresa  que  Maria  o  aceusava  de  só  ter  amado  a  riqueza* 
delia,  o  que  provoca  profunda  decepção,  mas  como  a  voz. 
do  coração  é  sempre  eloquente  para  fallar  ao  ouvido  doutro 
coração  prompto  a  escutá-la,  desíaz-se  o  engano  de  Maria. 
Mas  ao  desfazer-se  esse  engano,  dissipase  também  a  illusão 
do  pastor,  que  do  seu  sonho  accorda  para  o  tormento  da 
realidade. 

Como.se  vê,  o  assumpto  deste  pequeno  couto  em  verso 
é  muito  commummente  humano,  dum  realismo  quotidiana». 
em  franco  contraste  com  o  alto  idealismo  da  matéria  dos 
sonetos  e  éclogas  dos  outros  poetas  contemporâneos.  Esta 
interpretação  tão  commum,  tão  burguesa  do  amor  que  pelo 
casamento  se  satisfaz,  não  caberia  no  quadro  dos  themas 
litterarios  dum  Camões.  É  porém  muito  do  seu  tempo,  como 
já  referimos,  o  lugar  dominante  na  vida  dado  ao  amor.  Como 
enche  o  coração  de  Chrisfal,  clle  só  também  enche  a  vasta 
paisagem  que  do  alto,  aonde  o  transporta  o  seu  sonho,  pôde 
contemplar: 


ia  da  I  Altera  fura  Clássica  161 


Já  o  sol  se  encobria 
A  este  tempo,  e,  mais 
Ficando  a  terra  sombria, 
O  gado  aos  curraes 
Já  então  se  recolhia. 
Ouvi  cães  longe  ladrar, 
E  os  chocalhos  do  gado 
Com  um  tom  tam  concertado 
Que  me  fizeram  lembrar 
De  quanto  tinha  passado. 

Por  serem  as  queixas  vans, 
Vi  berrar  o  gado  mocho 
Coberto  das  finas  lans, 
E  assuviava  o  moncho, 
E  o  triste  cantar  dJarrans. 
Já  serranas  ao  abrigo 
Se  iam,  prados  leixando, 
As  mais  d^ellas  sospirando  ; 
Uma  dezia  :  Ay,  Rodrigo  ! 
Outra  dezia  :  Ay,  Fernando. 

Uma  ciúmes  temia, 
Outra  de  si  tem  receio  : 
Uma  ouvi  que  dezia  : 
«  Quam  asinha  a  noite  veo  !  » 
Outra :  «Já  tarda  o  dia  !  » 
E  por  este  experimento 
Foy  amor  de  mim  julgado 
Por  nam  menos  occupado 
Do  que  é  o  pensamento, 
Que  nunca  está  descansado. 

Alli  triste,  soo,  saudosa, 
Vi.  antre  duas  ribeiras, 
Uma  serrana  queyxosa 
Carreando  umas  cordeiras, 
Sendo  cordeira  fermosa. 
E,  como  alli  tem  por  uso, 
Em  uma  roca  fiando, 
Mas,  com  o  que  ia  cuydando 
Caía-se-ihe  o  fuso 
Da  mão  de  quando  em  quando. 
IT.  da  L.  0!.assica    vsl.  1.» 


162  Historia  da  Litteratura  Clássica 

É  no  lyrismo  que  consiste  o  principal  dom  poético  de 
Falcão,  isto  é,  no  poder  de  exprimir  em  forma  fluente  os 
momentos  vários  e  os  escaninhos  Íntimos  da  dôr,  da  saudade 
e  da  paixão,  da  tristeza  sem  consolação,  que  os  annos  não 
attenuam : 


Não  mudam  dias  nem  annos 
Ao  triste  a  tristeza, 
Antes  tenho  por  certeza 
Que  o  longo  uso  dos  damnos 
Se  converte  em  natureza. 


É  á  tristeza  intima  e  permanente,  tornada  já  em  habite 
da  alma,  que  Falcão  sabe  ver  aspectos  variados  e  dar-ibes 
traducção  litteraria  já  em  forma  fluente  de  simplicidade,  já 
recorrendo  ao  jogo  da  palavras,  ás  formas  de  conceitos 
parallelos  para  fazer  sobresahir  contrastes.  E  é  mais  nessa 
expressão  sempre  clara  e  de  sentido  prompto  do  que  na 
profundeza  do  pensamento  e  do  sentimento  que  reside  a 
valia  da  obra  de  Falcão. 

Do  gosto  daquelle  jogo  com  o  significado  das  palavras 
anton}-mas  é  um  exemplo  muito  írizante  a  cantiga  seguinte: 


Vi  o  cabo  no  começo, 
Vejo  o  começo  no  cabo, 
De  feição  que  não  conheço 
Se  começo  nem  se  acabo. 

Quando  meu  mal  comecei, 
Com  muito  bem  começou, 
Mas  o  fim  que  lhe  esperei 
No  começo  se  acabou  ; 
Acabou-se  no  começo, 
Pois  se  começa  no  cabo, 
De  modo  que  não  conheço 
Se  começo  nem  se  acabo. 


Historia  da  Liiteratura  Clássica  163 


No  começo  de  meu  mal 
Vi  cabos  de  muito  bem, 
Mas  este  bem  saiu  tal 
Que  nenhum  bom  cabo  tem  ; 
Faço  no  cabo  começo, 
Sendo  no  começo  cabo. 
De  feição  que  não  conheço 
Se  começo  nem  se  acabo. 

Dizer  de  formas  sempre  bellas  de  simplicidade  ou  de 
engenhosa  agudeza  a  dor  da  sua  paixão  frustrada,  a  lem- 
brança pungente  do  casamento  da  sua  amada  com  outro  e  a 
absorpção  da  sua  alma  inteira  nessa  infelicidade  é  o  fundo 
de  toda  a  obra  poética  de  Falcão,  que  assim  define  o  seu 
estado  moral : 

Os  meus  cuidados  cresceram, 
As  esperanças  minguaram ; 
Prazeres  adormeceram, 
Os  pesares  accordaram  ; 
Ao  bem  os  olhos  cegaram, 
Ao  mal  os  foram  abrir: 
Nunca  mais  pude  dormir. 

Não  vá  porem  suppôr-se  que  Falcão  tira  da  sua  dor 
gritos  d'alma  vehementes,  que  traduzam  a  violência  deses- 
perada dos  grandes  soffrimentos,  as  horas  agudas  e  trágicas 
da  dor ;  não.  Christovam  Falcão  não  descreve  e  não  diz  poe- 
ticamente as  suas  horas  arrebatadas,  dia  a  dia,  com  pontua- 
lidade, ainda  que  sem  consolação,  vae-nos  dizendo  a  perma- 
nência do  seu  soffrimento  que  «se  converte  em  natureza». 
É  por  isso  o  seu  lyrismo  enternecido,  viva  e  delicadamente 
sensível,  mas  de  emoção  comedida,  quasi  resignada,  duma 
passividade  sofFredora,  sem  revoltas,  sem  imprecações,  todo 
de  lagrimas  silenciosas  ('). 


'!)     Tem- se  querido  reconstituir  inteiramente   até  nos  seus  mais 
particulares  pormenores  o  drama  amoroso,  que  Christovam  Falcão  conta 


164  Historia  da  Litter 'atura  Clássica 

Em  157  i  (*)  appareceu  a  Silvia  de  Lisardo,  obra  anonyma 
attribuida  a  Frei  Bernardo  de  Brito,  o  famoso  historiador 
alcobacense,  ainda  que  sem  grande  probabilidade.  (?)  Na 
Silvia  de  Lisardo  se  contem  uma  peça  poética  intitulada 
Sonho  de  Lisardo  que  é  quasi  como  a  segunda  parte  de  Chrisfal. 
Nesse  poemeto  se  figura  que  Lisardo  conta  a  Silvia  o  sonho 
que  tivera,  durante  o  qual  a  phantasia  o  transporta  ao  valle 
de  Lorvão,  umbroso  e  florido,  onde  Maria,  a  amada  de  Chris- 
fal, vivera.  Ahi  surprehende  a  cantar  ao  próprio  Chrisfal, 
que  a  Lisardo  canta  as  suas  maguas  e  lhe  dá  conselhos  tira- 
dos da  sua  cruel  experiência. 


e  idealiza  em  suas  obras.  Essa  reconstituição  tomou  como  protagonista, 
além  cio  poeta,  a  D.  Maria  Brandão,  que  seria  quem  desdenhou  os  affe- 
ctos  de  Chrisfal.  V.  Bernardim  Ribeiro  e  o  Bucolismo,  snr.  Th.  Braga, 
Porto,  1897,  pags.  324-37 l,  capitulo  intitulado  Os  amores  de  Chrisfal  e 
Maria.  Destruiu  essa  imaginosa  construcção  de  interpretações  o  sr.  An- 
selmo Braamcamp  Freire  com  seus  eruditos  e  severamente  lógicos  arti- 
gos Maria  Brandão,  a  do  Chrisfal,  publicados  no  Archivo  Histórico  Por- 
tuguês,  volumes  7.0  e  8.°,  Lisboa,  1909  e  1910,  e  na  Atlântida,  revista 
de  Lisboa,  1916.  O  sr.  Braga  insiste  nas  suas  hypotheses  no  seu  escri- 
pto  Maria  Brandão,  a  do  Chrisfal,  não  foi  apeada,  na  Atlântida,  1916. 

(!)  Desta  edição  de  1571  apenas  se  conhece  a  referencia  a  um 
exemplar  feita  por  Innocencio.  V.  Diccionario  Bibliographico  Português, 
vol.  1,  pag.  374-375- 

(2j  Foi  Faria  e  Sousa  quem  primeiro  fez  essa  attribuiçâq,  perfi- 
lhada e  desenvolvida  pelo  sr.  Th.  Braga  no  ser.  vol.  Bernardim  Ribeiro 
e  o  Bucolismo,  pag.  377.  Numa  nota  inserta  a  pag.  155  das  Obras  de 
Christovam  Falcão,  Porto,  1915,  o  sr.  Braga  declara  abandonar  essa  hy- 
pothese  de  ser  Fr.  Bernardo  de  Brito  o  auctor  da  Silvia  de  Lisardo.  Tal 
hypothese  fora  já  refutada  por  Fr.  Fortunato  de  S.  Boaventura. 

D.  Francisco  Manuel  de  Mello  não  repetiu  essa  attribuição,  como 
affirma  o  sr.  Th.  Braga,  pois  apenas  allude  á  qualidade  religiosa  de  seu 
auctor  presumptivo :  «  Lipsio.—  Que  sylvia,  ou  silva  ou  selva  é  essa,  que 
não  está  no  meu  mappa,  nem  nas  taboas  de  Cláudio  Ptolomeu  ?  Boca- 
iino.  —  São  certas  obrasinhas  de  um  poeta  nosso,  cousa  do  mundo  muito 
escusada.  Auctor.  —  Comtudo  se  affirma  que  era  homem  douto  e  reli- 
gioso. Bocalino.  —  Jurava-o  eu,  porque  nunca  vi  frade  bom  poeta.  »  V. 
Hospital  das  Letras,  pag.  16,  ed.  de  1900. 


Historia  da  Lit  ter  atura  Clássica  165 

Lisardo  achava- se  perante  Silvia  numa  situação  análoga 
á  de  Chrisfal  perante  Maria.  A  despeito  dos  conselhos  de 
Chrisfal,  quer  perseverar  na  sua  paixão,  que  vehementemente 
crê  maior  que  a  que  victimou  o  namorado  de  Maria  e  declara 
que  a  sua  Silvia  vence  a  formosura  de  Maria : 


Em  fim,  que  sigo  esta  via 
De  te  vencer  em  tristura, 
Como  Silvia  em  formosura 
Excede  lua  Maria 
E  toda  mais  creatura. 


A  esta  obstinação,  responde  Chrisfal  prophetizando-lhe 
os  soffrimentos  que  de  tal  desatino  resultarão.  Fenecendo  a 
descripção  do  sonho,  o  poeta  conta  o  modo  por  que  se  des- 
pediram e  os  protestos  e  prendas  de  amor  que  trocaram 
Silvia  e  Lisardo  no  momento  de  se  apartarem,  quando  o 
pastor  enamorado  partia  para  uma  dessas  súbitas  e  inexpli- 
cadas  ausências,  obrigadas  nas  éclogas  e  fonte  principal  de 
.seu  lyrismo,  sobretudo  quando  combinadas  com  o  prompto 
esquecimento  da  pastora. 

Ainda  que  o  auctor  da  Silvia  de  Lisardo  se  revele  mais 
litterato,  mais  preoccupado  dos  effeitos  poéticos  que  da  es- 
pontânea sinceridade  que  em  Christovam  Falcão,  poeta  da 
própria  dor,  se  surprehende,  e  ainda  que  seja  uma  peça  de 
imitação,  justo  é  considerar  a  fluência  elegante  dos  versos  e 
limpida  forma.  • 

Como  adeante,  ao  estudarmos  o  soneto,  nos  referiremos 
a  themas  e  processos  poéticos  muito  generalizados  entre 
todos  os  lyricos  quinhentistas,  é  opportuno  referirmos  um 
exemplo  dum  desses  processos  poéticos,  a  enumeração  de 
impossíveis  e  paradoxos  para  dar  idéa  da  vehemencia  duma 
paixão  ou  dos  illogismos  contradictórios  do  amor: 


166  Historia  da  Litter atura  Clássica 


E  vêr-se-hão  mais  facilmente 
Andar  os  peixes  na  serra, 
E  o  céo  não  cobrir  a  terra 
Que  engeitar  vivendo  ausente, 
As  leis  de  tão  justa  guerra. 

O  sol  poderá  perder 
A  claridade  que  tem, 
O  mar  seccar-se  também 
Sem  que  deixe  de  querer 
Quem  na  vida  me  sustem. 

Fugirá  o  cordeirinho 
Da  própria  mãe  que  o  cria, 
Trocar-se-ha  a  noite  em  dia 
E  o  falcão  e  passarinho 
Viverão  em  companhia. 

Convém  lembrar  que  esta  passagem,  acima  transcripta, 
é  posterior  já  a  uma  larga  exemplificação  desse  processo 
poético  no  soneto. 

ANTÓNIO  FERREIRA 

Dos  dois  livros  de  sonetos,  que  António  Ferreira  nos 
legou,  é  no  primeiro  que  mais  sobe  a  sua  inspiração.  Só 
d'amor  trata  o  poeta  neste  primeiro  livro  e  disso  se  louva. 
Ora  esboçando  o  retrato  da  que  com  seu  amor  ou  seu  desdém 
o  inspirava,  não  segundo  a  realidade,  que  não  era  chamada 
a  concurso,  mas  segundo  modelo  que  todos  criam  a  summa 
belleza,  ora  notando  as  impressões  subjectivas  desse  amor, 
Ferreira  impelle  esta  forma  poética  para  uma  vereda  mais 
conforme  ao  forte  cunho  petrarcheano,  que  trazia,  e  versa 
com  felicidade  variável  alguns  motivos  que  hão-de  circular 
de  poeta  em  poeta  até  que  Camões  lhes  encontre  a  expressão 
suprema,  da  máxima  simplicidade  e  do  máximo  relevo. 
Ferreira  forma  assim  aquella  matéria  poética  cyclica  que 
gravitará  incerta  até  se  fixar  nalguns  sonetos  camoneanos: 


Historia  da  Ldtteraiura  Clássica  107 

os  retratos,  a  fatalidade  do  amor,  as  suas  contradicções, 
o  prazer  de  soffrer  de  amor,  a  aspiração  á  alma  pura  e  imma- 
culada  de  todo  o  vestígio  terreno,  sentimento  do  mais 
extremo  espiritualismo.  São  esboços  de  retratos,  ou  melhor 
tentativa  do  retrato  único,  a  que  todos  visavam  os  sonetos 
ou  partes  dos  sonetos  v,  XV,  xvm,  xix,  xxin  e  xxv,  prin- 
cipalmente o  antepenúltimo  delles,  o  qual  a  seguir  repro- 
duzimos: 

-Donde  lomou  Amor,  e  de  qual  vea 
O  ouro  tam  fino  e  puro  para  aquellas 
Tranças  louras?  de  que  esphera,  ou  estrellas 
A  luz,  e  o  fogo  que  assi  em  mim  se  atea? 

Donde  as  perlas?  a  voz  de  que  serea  ? 
Os  brancos  lyrios  donde,  e  as  rosas  bellas, 
Aquelle  vivo  sprito  pondo  nellas, 
De  que  formou  húa  nova  ao  Mundo  idéa? 

Antes  a  neve,  a  alvura,  a  cor  as  rosas 
Do  seu  rosto  tomaram,  e  a  harmonia 
As  aves  da  voz  doce,  suave  e  branda. 

Não  são  ante  ella  as  estrellas  mais  fermosas, 

Nem  mais  sereno  o  Ceo,  ou  claro  dia, 

Nem  mais  formoso  o  Sol  na  sua  esphera  anda. 

Também  um  só  pormenor  desse  retrato,  os  cabellos  dou- 
rados, inspira  outro  soneto,  todo  de  amplificações  poéticas, 
o  XXV,  mas  propriamente  sem  um  conceito  próprio.  A  natu- 
reza abrandada,  colorida  pela  visão  enamorada  do  poeta 
em  adequado  fundo  para  o  primeiro  plano  do  retrato,  dá 
também  a  matéria  de  alguns  sonetos,  o  XII,  XIII,  XIV, 
xxxvni  e  xliv,  segundo  os  quaes  o  magico  effeito  do 
amor,  por  toda  a  parte  se  derramando,  tudo  espiritualizando, 
exprime  uma  espécie  de  pantheismo  amoroso,  pois  tudo 
revela  a  presença  do  deus  vendado,  a  sympathia  da  natureza 
com  o  sentimento  dominante  na  alma  do  poeta.  Alguns  mo- 


168  Historia  da  Ldtterakira  Glasw 

mentos  do  amor,  a  ausência,  a  desgedida  e  o  lugar  onde 
nasceu  o  amor  também  Ferreira  os  idealiza  nos  sonetos  XV, 
XLIII  e  XLV,  e  a  creaçâo  duma  natureza  subjectiva,  que 
plenamente  satisfaz  a  alma  e  que  se  lhe  revela  tão  completa 
e  organizada  como  a  natureza  externa  constitue  o  thema  do 
soneto  xlviii.  E  as  contradições  do  amor,  representadas  por 
extravagantes  paradoxos,  também  já  as  abeira  Ferreira  no 
soneto : 

Quem  vio  neve  queimar?  quem  \ io  tão  írio 
Hum  fogo,  de  que  eu  arco?  quem  chegs 
A  morte  vivo  e  ledo  estar  canta 
Parece  quanto  digo  desvario. 

Os  sonetos  do  2.0  livro  não  ostentam  já  a  variedade  dos 
do  i.°,  nem  lhes  equivalem  em  altura  de  inspiração.  Posto 
que  se  mantenha  a  mesma  forma,  mais  perfeita,  muito  menos 
contrafeita  que  em  Sá  de  Miranda,  a  carência  de  conceitos 
bellos  ou  engenhosos  grandemente  os  prejudica.  A  maior 
parte  delles  é  suggerida  por  propósitos  de  amabilidade  cor- 
tesanesca,  a  outros  inspira-os  a  saudade  da  esposa  morta, 
dois  são  um  brinquedo  litterarrio,  os  na  cantiga  lingua  por- 
tuguesa», seis  são  de  matéria  religiosa.  Dos  que  são  consa- 
grados á  memoria  da  esposa,  um  ha  que  merece  registo 
porque  tem  como  forma  a  invocação  directa  á  alma  que  se 
amou  e  que  para  sempre  partiu  e  que  nós  também  consi- 
deramos como  elemento  daquella  cyclica  matéria  poética,  só 
fixada  por  Camões.  É  o  que  começa: 

O  alma  pura,  em  quanto  cá  vivias, 
Alma  lá  onde  vives  já  mais  pura, 
Porque  me  desprezaste  ?  quem  tam  dura 
Te  tornou  ao  amor,  que  me  devias? 

Dos  sonetos  religiosos,  que  iniciaram  a  variante  em  que 
se  confinou  Frei  Agostinho  da  Cruz,  um  tem  um  caracter 
descriptivo  e  episódico,  que  apesar  de  repugnar  á  índole  do 


Historia  da  LiUcralu.ru  Gltissica  109 

soneto  viria  a  ser  muito  exercitado  pelos  poetas  do  século 
xix.  Em  António  Ferreira  esse  soneto  offerece  só  o  interesse 
da  prioridade,  pois  é  um  quadro  incompleto,  num  soneto 
incompleto  :  nos  dois  quartetos  delineia  o  quadro  e  brusca- 
mente muda  de  tom  e  passa  nos  dois  tercetos  para  o  mundo 
subjectivo,  sob  a  forma  dum  commentario  moral  extraindo 
do  inacabado  quadro  da  serenidade  heróica  dos  martyres  que 
iam  soffrer  a  morte. 

Treze  odes  possuímos  de  António  Ferreira.  Era  a  ode 
um  género  poético,  que  Pindaro  e  Horácio  haviam  elevado 
a  grande  prestigio  e  belleza.  Pindaro  fizera  da  ode  um 
género  orficial,  em  que  eram  celebrados  os  grandes  triumphos 
dos  jogos  nacionaes  da  Grécia,  e  um  género  coral,  um 
numero  das  festas  que  acompanhavam  a  celebração  desses 
jogos.  Horácio  déra-lhe  uma  interpretação  mais  ampla,  porque 
ao  mesmo  tempo  que  lhe  attribuia  um  papel  semelhante  ao 
das  odes  pindaricas,  engastava-lhe  assumptos  muito  variados, 
como  cumpria  a  composições  que  por  um  lado  haviam  de 
satisfazer  c  gosto  do  imperador  Augusto  e  por  outro  as 
tendências  pessoaes  do  poeta.  No  renascimento  a  ode  foi 
cultivada  como  um  género  bastante  amplo  na  comprehensão 
dos  assumptos,  só  exigente  quanto  á  dignidade  dos  mesmos 
e  a  certa  gravidade  de  sentimentos.  Foi  Horácio  o  modelo 
de  Ferreira,  que  sempre  o  imitou  de  perto.  Ferreira  confessou 
na  primeira  das  suas  odes  a  novidade  e  gravidade  desse 
ger.ero.  Em  algumas  odes  a  imitação  é  muito  próxima, 
nomeadamente  na  i.a,  4.*,  6.a  do  i.°  livro,  na  2.a  e  5.°  do 
2.0  livro  e  dentre  estas  na  6.*  do  livro  i.°,  dedicada  a  seu 
irmão  Garcia  Froes,  que  é  quasi  uma  traducção  da  de  Horácio 
a  Virgílio,  que  começa  Sic  te  diva  potens  Cypri.  As  odes  de 
Ferreira  ou  têm  um  caracter  laudatório  ou  contem  confissões 
moraes  onde  a  austeridade  e  o  amor  da  simplicidade  são 
mais  declarada  e  convictamente  exalçadas  que  no  poeta 
venusino,  Se,  porém,  essas  idéas  são  nobres  o  elevadas,  não 
é  individualmente  original  a  sua  expressão  litteraria,  quasi 


170  Historia  da  Litter  atura  Clássica 

sempre  muito  chã  e  vulgar,  se  não  fora  o  artificio  da 
métrica. 

As  nove  elegias  de  Ferreira  apartam-se  dos  outros 
generc-s  poéticos,  por  elle  cultivados  não  pelo  tom  do  senti- 
mento, que  as  domina  ou  pela  natureza  de  seus  assumptos, 
mas  somente  pela  metrificação  e  combinação  das  rimas. 
Os  seus  assumptos  eram  também  idóneos  para  preencherem 
outras  tantas  odes.  Sentimento  elegíaco  só  o  possuem  a 
primeira  e  a  segunda  elegias  á  morte  do  príncipe  D.  João, 
pae  de  D.  Sebastião,  e  á  morte  dum  companheiro  litterario, 
Diogo  de  Bettencourt,  e  ainda  assim  mais  na  intenção  trahida 
pelo  assumpto  que  pela  suggestão  produzida  nos  leitores. 
As  recordações  da  camaradagem  litterária  com  um  amigo 
que  se  deplora  e  as  saudades  dum  príncipe  bondoso  são 
evidentemente  matéria  de  maior  cunho  elegíaco  que  o  re- 
gresso da  Primavera,  amorosa  e  festiva,  a  saudação  a  um 
amigo  que  regressa,  a  correspondência  amistosa  com  Andrade 
Caminha,  o  elogio  dos  desvelos  de  terno  amor  filial  de  Braz 
de  Albuquerque,  auetor  dos  Commentarios.  Destacam  por 
terem  realmente  um  assumpto  bem  caracterizado  e  posto  em 
relevo  aquellas  em  que  traduziu  Moscho  e  Anacreonte,  Amot 
fugido  e  Amor  perdido.  A  ultima,  A  Santa  Maria  Magdalena, 
revela  bem  como  António  Ferreira,  pobre  imitador,  não  sabia 
trilhar  veredas  novas,  que  elle  mesmo  houvesse  de  abrir; 
sem  o  bordão  de  Horácio,  o  seu  andar  era  tardo,  hesitante 
e  não  o  levava  aonde  queria  chegar. 

As  doze  éclogas  de  Ferreira  carecem  de  movimento  e 
acção,  que  lhes  dêem  interesse;  são  predominantemente 
lyricas  e  escassamente  descriptivas.  Androgeo,  Filis,  Vincio, 
Aonic,  Alcippo,  Serrano,  Silvano,  Castalio,  Ménaío,  Falcino, 
toda  uma  povoação  de  pastores  canta  ao  vento  seus  amores, 
vivo  fogo  em  que  todos  gostosamente  se  consomem,  mesmo 
quando  as  suas  amadas  lhes  não  retribuem,  ou  saudosamente 
lamenta  a  morte  de  algum  pastor,  Daphnis,  Miranda  ou  Jânio. 
Delias  destacam  a  quarta,  em  que  Aonio  declara  a  Lilia  seu 


Historia  da  Litter  atura  Clássica  171 

ardente  amor,  e  a  quinta  em  que  Vincio,  enamorado  de 
Célia,  e  Aonio  de  Lilia,  cantam  ao  desafio  sobre  a  vehemencia 
de  seus  amores.  É  juiz  deste  pleito  poético  e  amoroso  o 
pastor  Tevio,  que  profere  a  seguinte  sentença,  que  trahe  o 
pensamento  constante  dos  poetas  quinhentistas  de  que  todos 
os  seus  esforços  deveriam  visar  a  attingir  a  belleza  exem- 
plificada nos  modelos  clássicos,  desprevenidos  como  estavam 
da  moderna  noção  de  progresso  litterario  : 

Cesse  já  dos  Pastores  de  Amo  a  fama. 
Doce  me  he  vosso  canto,  e  doce  seja, 
Meus  Pastores,  a  quem  mal  vos  desama. 

Ambos  iguaes  no  canto,  inda  ambos  veja 
Muitos  annos  cantar,  e  vejais  cedo 
A  alma  chea  cada  hum  do  que  deseja, 
Sem  pender  dJesperança,  nem  de  medo. 

Os  amores  alludidos  nas  éclogas  de  Ferreira  são  obri- 
gados themas  litterarios,  não  têm  a  vehemencia  dos  que  nos 
narram  Ribeiro  e  Falcão,  que  da  sentida  experiência  pessoal 
se  inspiravam ;  são  sentimentos  que  o  poeta  affirma  serem 
muitos  intensos  e  infelicitadores  ou  absorventes,  mas  a  que 
não  adapta  a  sua  expressão  litteraria,  quasi  sempre  sem 
calor  nem  vibração.  Este  amor  é  verdadeiramente  o  deus 
Amor,  da  antiguidade,  caprichoso,  formoso  e  loiro,  uma 
personagem  que  se  faz  mover  duma  parte  a  outra  com  sua 
aljava  de  traiçoeiras  settas,  nunca  o  mundo  de  sentimentos, 
de  tendências,  de  curiosos  cambiantes  psychicos  que  encerra 
o  amor  humano.  Os  quinhentistas  abriram  horizontes  novos, 
mas  não  os  devassaram  com  curiosidade  igual  á  novidade. 

Os  propósitos  adulatórios  e  as  pessoaes  allusões  também 
prejudicam   e   complicam   algumas  das  éclogas  de  Ferreira. 

Quanto  á  paisagem,  ella  não  é  a  flagrante  natureza,  que 
Ferreira  não  queria  detidamente  examinar,  mas  um  exemplo 
da  concepção   clássica,   toda   animista   e   genérica,   isto  é,  a 


172  Historia  da  Litter atura  Clássica 

•natureza  povoada  de  divindades  e  semi- divindades  e  só  vista 
nos  seus  aspectos  mais  geraes,  posta  de  lado  por  desinte- 
ressante ou  por  não  conseguir  fazerse  ver  a  particularidade 
typica.,  o  pormenor  regional,  o  accidente  imprevisto.  Como  o 
deus  Amor,  Ferreira  acaçapava  o  seu  impressionismo  com 
uma  venda.  É  com  a  presença  da  pessoa  amada  ou  com  a 
sua  ausência  que  o  campo  se  torna  alegre  ou  triste,  ou  são 
a  vaga  primavera  e  o  vago  outomno  que  lhe  restituem  ou 
retiram  as  galas  : 

Torna  á  saudosa  praya,  que  pisaste, 
Torna  a  este  campo,  que  tam  verde,  e  ledo 
Comtigo  era,  e  tam  triste  já  tornaste. 

Aqui  a  menham  rosada,  o  vento  quedo, 
Aqui  claras,  e  brandas  sempre  as  agoas, 
A  noite  trazias  tarde,  o  dia  cedo. 

Pastor  fermoso,  agora  as  altas  taboas 
Da  dura  rocha  turvam  o  claro  rio, 
Mostrando  em  suas  quedas  tristes  mágoas. 

Quantas  vezes  aqui  o  dourado  fio 
Tiravam  as  brandas  Nimphas  ao  Sol  alto 
No  frio  Inverno,  á  sombra  no  Estio  ? 

Esconde-os  no  mar  o  sobresalto 

Da  tua  morte ;  deixas  dJherva  o  monte, 

E  dJagoa  o  rio,  e  d^aves  já  o  ar  falto. 

Nem  arvore  dá  sombra,  nem  dá  fonte 
Agoa,  nem  dia  o  Sol,  nem  a  noite  Estrellas, 
Nem  ha  quem  ledo  cante,  ou  de  amor  conte. 

Foi  muito  do  gosto  do  quinhentismo  applicar  á  agio- 
graphia  os  novos  recursos  de  composição  e  métrica,  fazendo 
assim  uma  espécie  de  conciliação  entre  o  fundo  medieval  e 
a  forma  neo-classica.  Como  Sá  de  Miranda,  a  quem  se  attri- 
tme  o  poema  da  Egypciaca  Santa  Maria,  como  Diogo  Bernar- 


Historia  da  Litteratura  Clássica  173 

des,  auctor  de  Santa  Úrsula,  como  Frei  Paulo  da  Cruz,  o 
Fradinho  da  rainha,  no  século  Jorge  Fernandes,  auctor  da 
Trasladação  de  São  Vicente,  como  Vasco  Mousinho  de  Que- 
vedo Castello  Branco,  auctor  de  Santa  Isabel,  (l)  António 
Ferreira  compôs  o  seu  poemeto  de  Santa  Comba  dos  Vallcs. 
Nelle  narra  como  a  pastora  Colomba  fugiu  aos  rogos  e  de- 
pois á  ira  do  rei  mouro  e  fá-lo  com  certa  fluência  narrativa. 
O  poemeto  é  em  oitava-rima — já  empregada  nas  éclogas,  a 
par  dos  tercetos  e  dos  versos  quebrados  —  e  tem  proposi- 
ção,  invocação   e  dedicatória,  como  nas  poéticas  se  exigia. 

PEDRO  DE  ANDRADE  CAMINHA 

As  primeiras  poesias  impressas  deste  poeta  (2)  foram  as 
insertas  na  Relação  do  solemne  recebimento,  que  se  fez  em  Lisboa 
ás  Santas  Reliqiuas,  que  se  levarão  á  Igreja  cm  S.  Roque,  Lis- 
boa, 1588.  Nessa  collectánea  se  contêm  alguns  sonetos  mys- 
ticos  que,  se  lhes  juntarmos  os  que  precedem  a  Auslriada,  e 
o  Segztndo  Cerco  de  Diu  de  Jeronymo  Corte  Real,  o  outro  so- 
bre a  Elegiada,  de  Luiz  Pereira  Brandão,  o  que  lhe  inspirou 
a  morte  de  D.  João  e  ainda  os  que  se  contem  na  edição 


(1)  Sobre  as  obras  litterárias  suggeridas  pela  vida  da  rainha  santa, 
consultem-se  os  seguintes  trabalhos :  A  Evolução  do  culto  de  D.  Isabel 
de  Aragão.. . ,  Doutor  António  de  Vasconcellos,  Coimbra,  1894,  2  vols. ;. 
Santa  Isabel  c  a  Poesia,  artigo  de  Sousa  Viterbo  publicado  no  vol.  2.0  da. 
Revista  da  Universidade  de  Coimbra. 

(2)  Ignora-se  o  lugar  e  a  data  do  nascimento  de  Pedro  de  Andrade 
Caminha;  presume- se,  todavia,  que  houvesse  nascido  no  Porto  em  1520. 
Somente  são  conhecidas  as  seguintes  informações :  que  serviu  o  Duque 
de  Guimarães,  D.  Duarte,  como  seu  camareiro  e  guarda-roupa,  o  qual 
o  recommendou  especialmente  em  seu  testamento;  que  em  1556 recebeu 
de  D.  João  111  doação  dos  direitos  reaes  sobre  os  vinhos  exportados 
pela  barra  do  Douro;  que  em  1570  denunciou  Francisco  Jorge  á  inquisi- 
ção attribuindo-lhe  relações  com  judeus ;  que  em  1557  recebeu  de  D.  Se- 
bastião   uma    importante  tença   annual   e  logo  no  ar.no  seguinte  pelo 


174  Historia  da  Litter atura  Clássica 

Priebsch  constituem  quanto  se  conhece  de  Caminha,  do  seu 
cultivo  desse  género  poético.  Estes  sonetos  mysticcs  e  lau- 
datórios  de  Caminha  são  puros  exercícios  de  metrificação, 
onde  não  sobra  o  estro;  mais  feliz  será  nesse  tentamen  do 
soneto  mystico  Frei  Agostinho  da  Cruz.  Foi  pela  edição  de 
1898  que  se  conheceu  a  maior  parte  das  obras  poéticas  de 
Caminha.  Cento  e  dezoito  sonetos  contem  essa  edição,  das 
quaes  só  um  laudatório,  em  homenagem  ao  conde  da  Feira, 
vice-rei  da  índia.  Os  outros  cento  e  dezasete  versam  matéria 
amorosa,  segundo  os  processos  poéticos  em  curso  no  seu 
tempo  e  já  por  nós  apontados.  O  amor  ideal  é  em  Caminha 
um  pouco  prejudicado  pela  falta  de  expressão  para  as  abs- 
tracções e  subtilezas  dessa  elevada  concepção.  Os  themas 
do  retrato,  de  effeito  sympathico  da  formosura  da  amada 
sobre  a  natureza,  o  desenvolvimento  de  certos  pormenores 
do  retrato,  as  contradicções  do  amor,  a  permanência  immu- 
tavel  cio  soffrimento  do  poeta  ante  as  vicissitudes  cyclicas  da 
natureza,  a  absorpção  da  sua  personalidade  no  objecto  amado, 
as  cruezas  gostosas  do  amor,  extrema  submissão  da  vontade 
e  dos  sentidos  são  themas  predominantes  nos  sonetos  de  Ca- 
minha e  muito  no  gosto  da  epocha,  que  fazem  parte  daquella 
cyclica  matéria  poética  que  todos  os  poetas  quinhentistas 
elaboraram  á  compita.  A  forma  é  geralmente  correcta  e  har- 
moniosa, mas  carece  de  alto  relevo,  de  poder  emotivo,  por- 
que Caminha,  imaginação  escassa  e  tendo  vivido  uma  vida 
palaciana  de  aulico.  tranquilla  e  commoda,  não  pôde  attingir 


mesmo  monarcha  acerescida  a  doação  do  castello  de  Celorico  de  Basto, 
a  cuja  alcaidaria  renunciou  em  1581 ;  e  que  falleceu  em  Villa  Viçosa 
em  1589,  achando-se  então  ao  serviço  dos  duques  de  Bragança.  As  suas 
obras  correm  impressas  na  edição  académica  de  1781,  Poesias  de...  e 
no  volume  publicado  pelo  sr.  J.  Priebsch,  em  1898,  Gbras  Inéditas 
de.  .  Em  1916,  o  sr.  António  Baião  communicou  á  Academia  das  Scien- 
cias  a  existência  na  Torre  do  Tcmbo  dum  cancioneiro  do  mesmo  poeta. 
V.  O  Pceta  Andrade  Caminha  e  um  seu  Cancioneiro  desconhecido,  vol,  x 
do  Boletim  da  2."  Classe  da  Academia. 


Historia  da  Littoratura  Classiea  175 

as  formas  poéticas  superiores  duma  imaginação  poderosa 
que  renova  com  variantes  de  inspiração  genial  velhos  the- 
-mas,  nem  pôde  vivificar  esses  themas  com  a  vibratilidade 
sensível  duma  alma  provada  pelo  sofFrimento  real.  As  suas 
emoções,  as  suas  dores  são  soffrimentos  litterarios  e  são  ar- 
gucias  e  sophismas,  em  que  a  imaginação  se  compraz,  obri- 
gada a  agitar-se  num  estreito  campo  e  a  só  desses  limites 
acanhados  buscar  os  seus  themas.  Por  isso  as  dores  de 
amar,  que  Caminha  conta  e  descreve,  o  elogio  da  formosura 
de  D.  Francisca  de  Aragão,  sua  musa  inspiradora,  têm  seu 
cunho  de  artificioso,  de  brinquedo  litterario,  são  como  disse- 
mos acima  sophismas.  O  thema  das  mudanças  está  engas- 
tado nos  sonetos  xix,  XXXVII,  lix,  neste  ultimo  principal- 
mente. O  soneto  XXXIX  sobre  a  sombra  da  amada,  «que 
quem  s'enganava  sombra  chamou»,  c  o  XLV  em  que  mostra 
como  a  grandeza  do  seu  amor  não  se  apouca  nem  intimida 
perante  a  grandeza  duma  paisagem  da  magestosa  e  impo- 
nente natureza,  merecem  menção  por  serem  dos  mais  origi- 
■naes.  Só  o  soneto  lxxii  é  estranho  ao  amor,  pois  com- 
prehende  uma  impessoal  descripção  de  paisagem. 

Além  de  sonetos,  Andrade  Caminha  escreveu  numero- 
ras  poesias  de  géneros  diversos  como  cantigas,  glosas, 
vilancetes,  endechas,  esparsas,  trovas,  epigrammas,  éclogas, 
elogios,  odes,  epithalamios,  sextinas,  canções  e  epitaphios. 
Esta  vasta  productividade  faz  de  Caminha  um  dos  mais 
fecundos  imitadores  dos  poetas  clássicos  e  neo-clássicos  e 
um  dos  mais  operosos  continuadores  de  Sá  de  Miranda,  que 
no  devotado  culto  das  musas  aproveitou  os  largos  ócios  de 
funccionario  cortesão.  Não  teve  estro  poético  acima  da 
escala  commum,  mas  adquiriu  facilidade  apreciável  na  ver- 
sificação, pelo  que  pôde  com  os  lugares  communs  da  escola 
construir  as  suas  obras,  tanto  mais  semelhantes  ás  dos  seus 
confrades  quinhentistas  quanto  mais  acuradas  de  forma. 
Visto  que  eram  os  mesmos  os  modelos  e  todos  possuíam 
uma    concepção    de    belleza   absoluta,    conjunto    de  effeitos 


170  Historia  da  Litter 'atura   Clássica 

ímmutaveis  que  todos  aspiravam  a  reproduzir,  «renovar  a 
antiguidade.»,  como  dizia  António  Ferreira,  o  desenvolvi- 
mento litterario  era  de  algum  modo  regressivo,  pois  condu- 
zia á  -uniformidade.  Será  difficil  apresentar  características 
estheticas,  cunhos  diíFerenciaes  de  constituição  moral  da 
pessoa  de  seus  auctores  que  saliente  a  dissimelhança  entre 
uma  écloga  de  Ferreira  e  outra  de  Caminha.  Apartam  se 
por  differenças  mínimas,  como  as  pessoas  mais  incaracterís- 
ticas e  mais  communs  se  distinguem,  mas  não  por  algum 
impressivo  cunho  de  temperamento  poético  original. 

Pela  elegância  da  forma  e  dos  conceitos,  tanto  aquella 
como  estes  sempre  de  extrema  leveza,  Caminha  conseguiu 
melhor  êxito  nas  peças  de  gosto  medieval,  metros  curtos. 
É.  esse  o  seu  principal  papel  entre  os  poetas  da  escola 
italianizante,  haver  vivificado  e  restituído  á  estimação  géne- 
ros em  via  de  se  tornarem  obsoletos. 


DIOGO  BERNARDES 

Deste  poeta  (')  existem  as  seguintes  recopiiações  poéti- 
cas: Varias  Rhhas  ao  Bom  Jesus,  1.594 ;  Fhres  do  Lima,  1596 
e  o  Lima,  1596.  Contêm  estas  collectaneas  géneros  poéticos 
muito  variados  como  sonetos,  epigrammas,  éclogas,  epistolas, 
endechas,    voltas   e   villancetes,   portanto   géneros  do  velho 


('•)  São  muito  reduzidas  as  noticias  biographicas  acerca  de  Diogo 
Bernardes.  Nasceu  em  Ponte  da  Barca  em  anno  que  se  ignora.  Em  15Í6 
teve  a  nomeação  de  tabellião  do  concelho  da  Nóbrega;  acompanhou 
mais  tarde,  como  secretario,  a  Pedro  de  Alcáçova  Carneiro,  quando 
este  foi  a  Madrid,  como  embaixador  de  D.  Sebastião;  em  1578,  havendo 
tomado  parte  na  expedição  a  Marrocos,  foi  captivado,  só  conseguindo  o 
seu  resgate,  muitos  annos  mais  tarde,  por  mediação  de  Filiope  n,  o  qual 
lhe  concedeu  uma  tença.  Junto  do  regente  do  reino,  Cardeal  Alberto  da 
Áustria,  desempenhou  o  cargo  palaciano  de  moço  de  toalha.  Morreu  em 
1605,  segundo  a  versa  o  mais  acceita. 


Historia  da  Litteràtitra  Clássica  177 

gosto  palaciano  das  cortes  de  amor  e  medieva,  e  géneros  do 
renascimento,  dos  que  Sá  da  Miranda  importara.  Enga- 
nar-se-hia  quem  o  suppuzesse  um  poeta  regionalista,  que 
fizesse  o  fundo  da  sua  obra  com  a  paisagem  minhota,  episó- 
dios da  vida  minhota  e  modismos  de  linguagem  minhota. 
Longe  do  poeta  tal  pensamento,  por  inconcebível  numa 
epocha  em  que  se  não  julgaria  matéria  litteraria  de  interesse 
e  valor  a  diversificação  regionalista.  Como  poderia  ser  esse 
o  objectivo  do  poeta,  quando  o  supremo  ideal  esthetico  da 
sua  epocha  era  o  de  repetir  as  formas  de  arte  de  gregos  e 
romanos,  diligenciando  até  apagar  o  cunho  nacionalista  ? 
Diogo  Bernardes  apenas  deu  o  nome  de  Lima  ao  obrigado 
rio  do  bucolismo,  referiu-se  ao  seu  aífluente  Vez,  que  «no 
Lima  entrando  o  nome  perde»,  e  aproveitou  motivos  sugge- 
ridos  pela  devoção  local  do  Bom  Jesus. 

Parte  da  obra  de  Diogo  Bernardes,  principalmente  o 
volume  das  Varias  Rimas  ao  Bom  Jesus,  e  á  Virgem  gloriosa 
sua  may,  e  a  sanctos  particulares^  é  dominada  pelo  sentimento 
religioso,  formando  um  vivo  contraste  com  a  parte  profana, 
composta  de  sonetos  amorosos,  éclogas  e  cartas  a  amigos, 
além  de  muitas  composições  menores.  Essa  religiosidade 
como  inspiração  poética  proveio-lhe  dos  seus  soffrimentos  no 
captiveiro  de  Marrocos,  os  quaes  lhe  deram  essa  intensidade 
vivida  que  destaca  algumas  peças. 

A  fluência  da  forma  do  poemeto  Santa  Úrsula  mostra 
como  nos  assumptos  narrativos  alguns  poetas  quinhentistas 
se  achavam  mais  á  vontade  que  occupando-se  de  themas 
moraes.  Como,  porém,  em  todas  as  suas  peças  Bernardes 
cuidasse  da  forma,  attingiu  harmonia  agradável  em  seus 
versos. 

Aos  seus  sonetos  applica-se  a  caracterização  já  apontada 
a  respeito  de  Ferreira  e  Caminha. 


\\    h*  L.  Clássica,  vol.  )•• 


178  -  Ihstona  da  LiUeratura  Classtca 


FREI  AGOSTTNÍIO  DA  CRUZ 

Deste  poeta,  (')  figura  curiosa  de  cenobita,  que  para  a 
exaltação  religiosa  drenou  a  exuberância  do  seu  sentimento 
lyrico,  possuímos  principalmente,  não  enumerando  algumas 
composições  menores,  cento  e  quarenta  e  um  sonetos,  quinze 
éclogas,  dezanove  elegias,  alguns  epigrammas,  odes,  um 
epitaphio  e  três  cartas. 

Nos  sonetos  predomina  aquella  variante  já  por  nós  sur- 
prehendida  no  final  do  segundo  livro  dos  sonetos  de  António 
Ferreira:  a  inspiração  religiosa.  Tal  predominio  não  exclue, 
porém,  a  confissão  de  sentimentos  de  amor  profano  nalguns 
raros  sonetos,  que  as  circunstancias,  talvez  a  solicitude  de 
algum  seu  admirador,  conseguiu  salvar  da  destruição  inexo- 
rável, a  que  o  poeta  os  votara: 

Os  versos,  que  cantei  importunado 
Da  mocidade  cega  a  quem  seguia, 
Queimei  'como  vergonha  me  pedia) 
Chorando,  por  haver  tão  mal  cantado. 


(l)  Frei  Agostinho  da  Cruz,  que  no  século  foi  Agostinho  Pimenta, 
irmão  de  Diogo  Bernardes,  nasceu  em  Ponte  da  Barca  em  1540  e  foi 
creado  com  o  Infante  D.  Duarte,  neto  de  D  Manuel  r.  Após  noviciado 
no  convento  de  Santa  Cruz,  de  Cintra,  professou  em  i5<x>,  vivendo  em 
rigorosa  observância  da  disciplina  da  sua  regra  Em  1605  foi  provido  no 
cargo  de  guardião  do  Convento  de  S.  José  de  Ribamar.  Resignando  ssse 
cargo,  retirou-se  para  a  serra  da  Arrábida,  onde  viveu  como  eremita 
numa  pequena  habitação  laboriosamente  construída  por  suas  próprias 
mãos  e  depois  na  que  lhe  mandou  edificar  o  Duque  de  Aveiro,  seu 
amigo.  Morreu  em  1619,  recebendo  excepcionaes  homenagens  de  vene- 
ração. As  suas  poesias  estão  publicadas  no  pequeno  volume  Varias 
Poesias  do  Venerável  Padre  Frei  Agostinho  da  Crus,  Lisboa,  1771, 
edição  prefaciada  por  José  Caetano  de  Mesquita  e  Quadros,  e  nos 
volumes  1  °  e  2  °  do  Archivo  Bibliographico  da  Universidade  de  Coimbra, 
Coimbra,  1901  e  1901,  e  agora,  graças  ao  sr.  dr.  Mendes  dos  Remédios 
reunidas  em  volume  sob  o  titulo  de  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Crus, 
Coimbra,  1918,  466  pags. 


Historia  da  Litter atura  Clássica  179 

Esses  sentimentos  anteriores  á  entrada  na  vida  religiosa 
são  expressos  em  formosos  versos,  de  agudezas  subtis,  de 
forma  engenhosa  no  gosto  de  Petrarcha  e  de  Camões,  em 
que  se  eleva  a  uma  concepção  do  amor,  impregnada  de 
devoção  extrema,  forma  mundana  da  capacidade  de  arreba- 
tadamente adorar,  que  dominaria  a  sua  vida  e  que,  certo,  o 
levaria  a  grande  altura  de  inspiração. 

Mas  foi  outro  o  rumo  seguido  pelo  poeta:  á  religião  foi 
buscar  os  themas  dos  seus  sonetos  posteriores,  em  numero 
muito  maior.  Dizemos  posteriores,  porque  se  nos  affigura 
fora  de  duvida  que  os  poucos  sonetos  profanos  são  chrono- 
logicamente  anteriores  aos  outros,  como  também  cremos 
que  os  sonetos  religiosos  publicados  pelo  sr.  Mendes  dos 
Remédios  sejam  anteriores  aos  sonetos  religiosos,  publicados 
por  José  Caetano  de  Mesquita.  São  numerosos  os  sonetos, 
dos  que  temos  como  primeiros,  em  que  apenas  se  metrifica 
o  conteúdo  das  orações  religiosas,  sem  se  lhes  juntar  con- 
ceito pessoal  do  poeta,  nem  sequer  lhes  alterar  a  exposição 
geraimente  estabelecida. 

São  esses  sonetos  os  que  desenvolvem  os  seguintes 
motivos:  ao  levantar  da  cama,  espécie  de  orações  da  manhã, 
protestação  da  fé,  forma  poética  do  Credo,  Padre  Nosso, 
Ave- Maria,  confissão  geral  ao  levantar  do  Cálix,  oração  após 
as  refeições,  oração  da  noite,  etc.  Depois  Frei  Agostinho  da 
Cruz,  colhendo  sempre  na  matéria  religiosa  os  seus  themas, 
dá  aos  seus  sonetos  a  forma  de  panegyrico,  isto  é,  não  faz 
descripções,  nem  se  permitte  a  apresentação  de  sentenças 
próprias,  revolvendo  em  combinações  novas  a  velha  maté- 
ria; porque  se  trata  de  matéria  de  dogma,  sem  admissíveis 
variantes  de  interpretação,  limita- se  a  fazer  delia  o  caloroso 
elogio,  em  sonoros  versos,  de  mystica  religiosidade,  fazendo 
assim  uma  espécie  de  apologética  em  verso,  cujo  quinhão  de 
poesia  consiste  na  harmonia  rythmica,  na  visão  serena  da 
paysagem  e  das  coisas  ambientes  e  no  irromper  do  seu  exal- 
tado sentimento,  que  faria  delle  um  apaixonado  lyrico,  se  as 


180  Historia  da  Litter 'atura  Clássica 

circunstancias  não  o  houvessem  feito  um  fervoroso  asceta, 
tão  abrazado  em  amor  divino,  como  o  fora  no  amor  terreno 
da  belleza  feminina.  Não  se  espera,  pois,  que  no  cunho  pes- 
soal do'  poeta  esteja  a  valia  original  dos  sonetos  de  Agosti- 
nho da  Cruz.  Seria  para  tal  necessário  o  génio  creador  dum 
Gil  Vicente,  que  do  cansado  mysterio  medieval  soube  ainda 
extrahir  nova  e  original  matéria  de  arte.  Nem  Agostinho  da 
Cruz,  nem  os  seus  pioneiros,  António  Ferreira  e  Caminha, 
foram  capazes  dessa  empresa  de  transformar  a  matéria  de  fé 
em  matéria  de  emoção  esthetica.  Um  dos  seus  mais  curiosos 
sonetos  é  o  que  se  intitula  A  Saudade  de  hum  rio,  em  que  o 
poeta  bruscamente  impelle  para  a  vereda  sempre  trilhada, 
da  meditação  mystica,  o  curso  do  pensamento  que  ia  a  fugir 
nas  asas  do  devaneio.  Temos,  pois,  três  phases  capitães  do 
soneto  em  Agostinho  da  Cruz:  soneto  amoroso,  muito  no 
gosto  do  seu  tempo,  genialmente  expresso  por  Camões,  so- 
neto religioso  sob  forma  oracional  e  soneto  religioso  sob 
forma  panegyrica.  Da  primeira  phase  restam-nos  apenas 
nove  exemplos ;  é  mais  abundante  a  segunda,  que  é  de  certo 
modo  a  aprendizagem  do  poeta,  e  a  terceira  é  a  mais  abun- 
dante versando  themas  como  a  coroa  de  espinhos,  Deus,  as 
chagas,  Senhora  da  Arrábida,  Santa  Clara,  S.  João  Baptista, 
a  oração,  Jesus  Crucificado,  Magdalena,  o  Natal,  Santo  An- 
tónio, S.  Francisco,  etc. 

Nas  éclogas  de  Frei  Agostinho  da  Cruz  desapparece  o 
elemento  dramático,  não  tem  movimento,  descrevem  tran- 
quillos  instantes,  doces  quietações  em  que  louva  Deus;  a 
primeira  nem  tem  dialogo  e  poderia  prescindir  do  nome  de 
écloga,  pois  não  tem  adornos  pastoris  que  imprimam  cara- 
cter. Só  ou  acompanhado,  sempre  o  pastor  Limabeu  entoa 
seus  hymnos  de  divino  amor. 

Outros  poetas  menores  são  geralmente  nomeados  nos 
livros  de  historia  litteraria  com  grande  encómio.  Certo  é, 
porem,   que  de  alguns  não  se  conhecem  obras  e  de  outros 


Historia  da  Litteratura  Clássica  »  181 

as  obras  que  possuímos  claramente  mostram  que  nenhum 
movimento  differencial  imprimiram  aos  géneros  poéticos. 

André  Falcão  de  Rezende  (1527 ?-i5Q8)  foi  auctor  de 
varias  obras,  principalmente  do  curioso  poema  da  Creação  e 
composição  do  homem,  em  que  perfigura  todo  o  corpo  humano 
e  a  sua  vivificação  pela  alma  num  castello  complicadíssimo 
e  formosíssimo,  que  a  breve  trecho  cahe  em  ruinas  e  total- 
mente se  alue. 

Balthazar  de  Estaco  (1570-  ?)  auctor  dos  Sonetos,  Eglo- 
gas  e  outras  rimas,  António  de  Abreu,  cujas  Obras  Inéditas  só 
em  1805  se  publicaram,  poderão  ser  lembrados.  Os  restantes 
interessarão  á  bibliographia  principalmente,  pois  em  historia 
litteraria  apenas  attestam  a  extensão  das  influencias  pela 
imitação. 


CAPTULO  IV 


AS    NOVELLAS 


As  novellas,  que  constituem  o  objecto  deste  capitulo, 
representam  uma  forma  de  gosto  litterario,  que  foi  muito 
divulgada  no  século  XVI  e  que  é  uma  das  mais  característi- 
cas originalidades  das  litteraturas  peninsulares.  É  também 
mais  como  documento  desse  gosto  e  como  feição  typica,  que 
taes  obras  boje  offerecem  interesse,  pois  não  são  muito  nu- 
merosas as  bellezas  nellas  contidas,  que  hajam  triumphado 
da  obliteração  do  gosto  que  lhes  deu  origem. 

As  litteraturas  neo-classicas  foram  principalmente  litte- 
raturas poéticas,  isto  é,  litteraturas,  em  que  na  escala  hie- 
rarchica  dos  géneros  os  primeiros  lugares  eram  arbitrados 
aos  géneros  poéticos ;  em  prosa  só  a  musa  austera  da  histo- 
ria recebia  o  seu  culto.  Poetas  eram  os  principaès  modelos 
gregos  e  romanos. 

Pois,  apesar  desta  condição  geral,  e  da  condição  espe- 
cial de  ser  a  nossa  litteratura  predominantemente  lyrica,  o 
nosso  quinhentismo  produziu  vários  romances  em  prosa, 
dois  dos  quaes,  de  influencia  europêa,  muito  vivamente  ex- 
pressaram o  gosto  da  épocha  pelas  narrativas  de  maravilho- 
sas aventuras  de  amor.  Na  essência,  estas  obras  eram  tam- 
bém muito  obras  de  lyrismo,  algumas  até  de  caracter 
auto-biographico,  e  estavam,  pois,  de  accordo  com  a  nossa 
tradição  litteraria,  só  se  havendo  appropriado  dum  meio  de 
expressão,  pouco  em  apreço,  a  prosa. 


184  Historia  da  LUter atura  Clássica 

O  romance  moderno,  das  litteraturas  neo-latinas  —  que 
logo  em  plenos  séculos  xni  e  xiv  o  cultivaram,  ainda  na 
sua  phase  de  intensa  imitação  dos  modelos  da  Grécia  e  de 
Roma  —  constituiu-se  de  modo  muito  imprevisto,,  constitui- 
ção estranha  que  é  uma  das  maiores  surpresas  da  evolução 
litteraria.  As  litteraturas  helíenicá  e  latina  não  podiam  os 
auctores  pedir  exemplos,  porque  ellas  os  não  podiam  pro- 
porcionar. A  Económica,  de  Xenophonte,  em  que  o  celebre 
discípulo  de  Platão  sob  forma  dialogai  faz  o  elogio  da  agri- 
cultura, da  perfeita  administração  caseira  e  expõe  o  proveito 
que  traz  a  collaboração  da  mulher  nessa  administração  —  e 
a  Cyropedia,  bíographia  amena  de  Cyror  são  as  únicas  obras 
clássicas  a  que  se  poderá  attribuir  por  extensão  o  nome  de 
romances.  Mas  não  seria  licito  arbitrar-lhes  também  a  pater- 
nidade do  desenvolvimento,  tão  intenso  e  tão  multimodo,  do 
romance,  que  no  fim  da  edade  média  e  no  principio  da  era 
clássica  ostentou  modalidades  tão  distinctas;  Menéndes 
y  Pelayo,  na  monographia  magistral  que  ás  origens  deste  gé- 
nero consagrou  ('),  aponta,  e  sem  ar  de  classificação,  as  se- 
guintes espécies,  algumas  das  quaes  por  sua  vez  ainda  divi- 
síveis; livros  de  cavallarias,  novellas  sentimentaes,  novelias 
by2antinas  de  aventuras,  novellas  históricas,  novellas  pasto- 
ris e  livros  de  geographia  fabulosa.  É  também  obvio  que: 
não  se  pode  attribuir  esse  desenvolvimento  complexo  á  trans-; 
formação  do  conteúdo  de  outras  obras,  que  já  têm  recebido 
um  pouco  apressadamente  a  paternidade  das  varias  formas 
ulteriores  do  romance,  como  Daphnis  e  Chloe,  novelia  bucó- 
lica, cujo  auctor  se  julga  ter  sido  Longus;  essa  noveila  é 
uma  pintura  idyllica  da  natureza  e  a  narrativa  cândida  do 
amor  sereno  dos  dois  protagonistas. 

Os    auctores   clássicos   apenas  proporcionaram   o   meio 


(')    Ortgehes  de  la  novela  —  Tomo  i:  Introducion,  Tratado  histo^ 
rico  sobre  la  primitiva  novela  espaffola,  Madrid,  1905, 


Historia  da  Litteratura  Clássica  185 


pastoril,  isto  é,  a  intriga  entre  pastores,  reaes  pastores  umas 
vezes,  e  outras  estranhas  personagens  disfarçadas;  se  Iheo- 
erito  foi  fiel  pintor  da  vida  pastoral  da  Sicília  e  da  Itália 
meridional,  Virgílio  embutiu  muitas  allusões  a  pessoas  e  ca- 
sos contemporâneos  nas  suas  éclogas. 

A  intensa  sympathia,  que  despertavam  estas  obras,  de 
Theocrito,  poeta  da  decadência  grega,  e  de  Virgílio,  nellas 
menos  original,  era  no  geral  pensar  devida  a  dois  sentimen- 
tos então  muito  vivos:  a  ansiedade  por  viver,  por  conhecer 
sequer,  a  vida  despreoccupada  e  simples,  sem  artifícios,  sem 
as  pungentes  mortificações  que  trabalhavam  a  vida  do 
homem  civilizado  do  século  XVI,  o  século  da  historia 
•que  fl %  JWjMiSjf  M**MÍàf* g  ^°'1  portador,  anseio  a  que  já 
alguém  IfOWWU-  *5£jj|  moral ;  e  o  vivido  sentimento  da 
natureza,  que  a  incultura  medieval  e  o  mysticismo  religiosa 
haviam  obnubilado,  pelo  menos  na  expressão  litteraria. 
A  poesia  bucólica  de  Theocrito  e  Virgílio  e  o  romance  de 
JLongus  faltavam  aos  homens  do  século  XVI  numa  espécie 
de  edade  de  ouro  da  humanidade  e  ofFereciam  á  sua  contem- 
plação quadros  da  natureza,  a  montanha,  o  prado,  o  ribeiro, 
paisagens  que  ainda  não  tinham  visto  com  aquelles  olhos. 
Não  vinha  também  esse  gosto  contrariar  hábitos  litterarios, 
pois  no  lyrismo  provençal,  por  toda  a  península  ibérica  am- 
plamente cultivado,  muito  abundavam  as  serranilhas  e  pas- 
torellas,  cantigas  para  pastores  na  serra. 

A  épica  medieval,  ou  fosse  de  original  creação  francesa, 
como  é  geralmente  acreditado,  —  ou  fosse  também  de  crea- 
ção árabe  peninsular,  como  pretende  o  sr.  Julian  Ribe- 
ra  (') — ,  successivamente  interpolada  de   novos   episódios, 


(•)  V.  Discursos  leidos  ante  la  Real  Academia  de  la  Historia  cn  la 
recepción  publica  dei  senor  D.  Jiriián  Ribera  y  Tarragó  el  dia  6  de  junio 
de  içij.  Madrid,  1915,  81  pags.  Segundo  suas  próprias  palavras,  é  assim 
enunciada  a  these  do  sr.  Ribéra :  Huellas,  que  aparecer,  cn  los  primiti* 
vos  historiadores  niusulmanes  de  la  península,  de  una  poesia  épica  rotnan* 


186  Historia  da  Litteraiura  Clássica 

amplificada  desmedidamente  e  depois  prosificada,  tomou-se 
desde  que  todo  o  decurso  das  aventuras  se  sujeitou  a  uma 
certa  unidade  de  acção  em  romance  de  cavallaria.  Em  França 
esta  transformação  foi  auxiliada  pela  dum  género  seu  pró- 
prio, o  fabliau,  narrativa  graciosa  com  uma  comprehensão 
mais  larga  que  as  gestas,  o  qual  extrahia  os  seus  assumptos 
da  vida  commum.  Deveria  ter  contribuído  para  a  prosifica- 
ção  da  gesta  a  divulgação  da  imprensa ;  o  verso  era  um 
bordão  para  a  memoria,  desnecessário  quando,  por  serem 
impressas,  as  narrativas  podiam  ser  lidas  e  apresentarem 
uma  maior  extensão. 

Alguns  lais  são  conhecidos  hoje  tanto  na  forma  poética 
antiga,  como  na  redacção  em  prosa.  E  um  delles  é  o  famoso 
Amadis  de  Gaula,  de  que  se  tem  pretendido  que  a  primeira 
prosificação  seja  do  português  Vasco  de  Lobeira.  Em  Itália 
o  poema  arthuriano,  amoroso  e  cavalheiresco,  foi  levado  a 
grande  brilho  por  Pulei,  auetor  do  Morgante  Maggiore,  por 
Boiardo,  auetor  do  Orlando  Innamorato  e  por  Ariosto  no  seu 
famoso  Orlando  Furioso,  pela  primeira  vez  impresso  em  1516, 
obra  de  génio,  que  suscitou  numerosas  imitações  sem  mérito; 
depois  do  poema  de  Ariosto,  que  representa  um  thema  me- 
dievo tratado  com  todos  os  petrechos  intellectuaes  dum  ho- 
mem da  Renascença,  de  cultura  clássica,  só  Cervantes  apre- 
sentaria uma  composição  nova,  a  satyrica.  Ainda  na  Itália 
Boccacio  déra-nos  um  romance  pastoral,  o  Ameto,  Boiardo  as 
suas  Egloghe,  Sannazaro  a  sua  Arcádia,  demonstrações  elo- 
quentes do  gosto  pastoril,  logo  imitado  na  península  por 
Boscan,  Garcilaso  de  la  Vega  e  Sá  de  Miranda. 


ceada  que  debió  florecer  en  Andalucia  en  los  siglos  ix y  x-  Póde-se  ver 
uma  summula  das  idéas  do  sr.  Ribéra  a  tal  respeito  na  resenha  que  pu- 
blicámos, dos  Discursos,  no  5.0  vol.  da  Revista  de  Historia,  pags.  88  e 
89,  Lisboa,  1916. 


Historia  da  bitter atura  Clássica  187 


JOÃO  DE  BARROS 

É  João  de  Barros,  o  historiador  famoso  que  mais 
largo  lugar  occupará  no  capitulo  sobre  a  historiographia, 
quem  abre  esta  pequena  galeria  de  novellistas. 

Em  1520,  publicou  se  a  Chronica  do  Emperador  Clarimundo 
donde  os  Reis  de  Portugal  descendem,  obra  dedicada  ao  principe 
D.  João,  depois  rei  terceiro  do  nome,  de  cuja  infância  e  estu- 
dos fora  João  de  Barros  assíduo  companheiro . 

O  entrecho  do  romance  é  sobremodo  enredado,  porque 
muitas  são  as  personagens,  muitos  os  seus  encontros  casuaes, 
muitos  os  reconhecimentos,  e  repetidamente  novas  personagens 
accrescem  com  sua  missão,  donde  derivam  novas  aventuras, 
correrias  em  busca  de  certo  castello,  encontros  e  recontros. 
Certo  que  João  de  Barros  era  fartamente  lido  na  litteratura 
do  género  e  que  delia  possuia  os  lugares  communs  de  escola, 
com  os  quaes  de  prompto  poderia  urdir  um  novo  romance. 
Mas,  apesar  da  edade  moça  em  que  compôs  este  romance, 
não  se  limitou  a  obedecer  passivamente  ao  gosto  corrente, 
antes  elementos  pessoaes  lhe  juntou.  Um  sopro  de  lyrismo 
percorre  todo  o  romance,  c  qual  com  elle  se  vitaliza  e  ame- 
niza ;  a  longa  e  emmaranhada  acção  tem  sua  emotividade, 
expressa  já  pela  fluência  do  estylo,  já  pela  descripção  singela, 
mas  viva.  O  que  é  da  escola  e  o  que  é  de  João  de  Barros, 
na  longa  fiada  de  episódios,  quaes  os  themas  do  cyclo  e  os 
introduzidos  pela  imaginação  de  João  de  Barros -7- é  hoje 
difficil  distinguir,  como  também  não  é  fácil  apurar  o  que  de 
allusões  pessoaes  e  contemporâneas  se  possa  conter  nesses 
episódios  accrescidos  por  João  de  Barros.  Só  uma  analyse 
minuciosa  e  uma  comparação  quasi  juxtalinear  poderiam 
offerecer  indicações  seguras,  e  tal  pratica  não  tem  cabimento 
senão  em  monographia  especial  sobre  a  obra.  O  elemento 
principal  de  novidade  e  esse  bem  evidentemente  expresso, 
que  a  Chronica  do  Emperador  Clarimundo  trouxe,  foi  a  glorifi- 


188  Historia  da  Litter atura  Clássica 

cação  da  pátria.  João  de  Barros  quiz  fazer  uma  galante  apo- 
theose  patriótica  e,  como  homem  de  letras  do  seu  tempo,  fê-la 
com  os  meios  que  o  gosto  do  tempo  lhe  proporcionava.  Gil 
Vicente  fê-la  mais  duma  vez  pelo  seu  theatro  ;  João  de  Barros 
fê-la  por  meio  dum  romance  de  cavallaria.  Logo  em  princi- 
pio da  obra,  quando  a  simula  traduzida  do  húngaro  e  reve- 
lada por  um  fidalgo  allemão  da  corte,  Carlim  Delamor,  que 
teria  vindo  no  séquito  da  rainha,  declara  que  a  curiosidade 
dessa  obra  está  na  circunstancia  de  ser  o  imperador  Clari- 
mundo,  de  Constantinopla,  antepassado  dos  reis  de  Portugal. 
O  vinculo  era  o  Conde  D.  Henrique,  pae  de  D.  Affònso  I, 
segundo  genito  de  um  rei  da  Hungria  e  neto  do  imperador 
Clarimundo.  Nos  dois  primeiros  livros  é  narrada  a  vida  tem- 
pestuosa de  Clarimundo,  desde  o  seu  nascimento  e  creação 
até  á  entrada  em  Constantinopla  e  occupação  do  throno.  No 
livro  8.°,  são  descriptos  os  errores  de  Clarimundo,  imperador, 
que  passando  junto  á  costa  de  Portugal,  aqui  desembarca  e 
tem  combate  com  um  maléfico  gigante,  que  é  vencido  e 
tnorto.  Desejoso  de  igualmente  medir  forças  com  um  irmão 
do  gigante,  que  diziam  habitar  o  castello  de  Torres  Vedras, 
para  alli  pretende  dirigir-se.  Desviado  desse  propósito  por 
JFanimôr  e  conduzido  ao  eirado  da  mais  alta  torre  do  cas- 
tello, donde  a  vista  alcançava  larga  extensão  de  mar  e  terra, 
ouve  em  grande  recolhimento  a  prophecia  das  proezas  he- 
róicas que  na  terra  praticariam  os  reis  de  Portugal,  seus 
descendentes.  E  sob  a  lua  cheia,  no  silencio  da  noite,  Fani- 
môr  faz  a  sua  invocação,  pede  á  divina  Trindade : 

Infunde  em  mim  graça  pêra  dizer 

As  obras  ião  grandes,  que  hâo  de  fazer 

Os  Reys  Portuguezes  com  sua  bondade. 

E  «  arrebatado  de  hum  espirito  divino,  que  o  accendeo 
com  tanto  furor,  que  ás  vezes  parecia  um  gigante»,  narra  a 
Clarimundo  maravilhado  os  feitos  de  Afíonso  Henriques  e 


Historia  da  Litter  atura  Clássica  180 

dos  reis  subsequentes  até  ás  navegações  e  conquistas  de 
Africa  e  Oriente.  A  narrativa  das  prophecias  é  feita  ora  em 
verso,  oitava  rima,  em  estylo  altiloquo,  de  tom  épico,  ora 
em  prosa,  representando  o  primeiro  o  discurso  directo  de 
Fanimôr,  e  a  segunda  a  reproducção  da  sua  falia  por  João 
de  Barros.  Esta  apologia  das  grandezas  da  pátria  pedia  um 
estylo  intenso,  com  expressão  já  diversa  da  narrativa  tran- 
quilla  do  romance,  e  João  de  Barros  encontrou  certa  vehe- 
meneia  de  linguagem,  ainda  mais  na  prosa  que  no  verso. 
Esta  é  a  originalidade  principal  do  romance  de  cavallaria  do 
auetor  das  Décadas,  que  está  plenamente  de  accordo  com  o 
caracter  predominante  e  a  intenção  da  sua  obra  histórica, 
que  ao  deante  evidenciaremos.  Uma  das  estancias  deste  poe- 
ma da  falia  prophetica  de  Fanimôr  é  muito  provável  fonte 
da  passagem  correspondente  dos  Lusíadas,  sobre  a  apparição 
de  Jesus  Christo  a  D.  Affonso  Henriques,  em  Ourique : 


«  O  campo  de  Ourique  jágora  he  contente 
Da  grande  victoria  que  nelle  será, 
Onde  Christo  em  carne  apparecerá 
Mostrando  as  chagas  publicamente. 

Ao  qual  este  Rey  Sancto,  prudente 

Dirá :  Ó  meu  Deus,  a  mim  pêra  que  ? 

Lá  aos  Herejes  inimigos  da  Fé, 

Da  Fé  em  que  eu  ardo  d'amor  muy  ardente . 


E  toda  a  peça  poderá  também  ser  apontada  como 
provável  fonte  da  prophecia  da  sereia  no  canto  X  dos 
Lusíadas.  Como  se  vê,  já  então  João  de  Barros  tinha  o  pensa- 
mento fito  da  epopêa  nacional.  (*) 


(J)    A   Chronica   do   Emperador   Clarimundo,   pela   primeira  vez 
publicada  em  1530,  foi  reproduzida  em  1553,  1601,  1742,  1791  c  1843. 


190  Historia  da  Litter  atura  Clássica 


JORGE  DE  MONTEMOR 

Em  1542  foi  publicada  a  primeira  parte  da  famosa 
novella  Los  siete  libros  de  la  Dia?ia,  obra  hespanhola  do 
português  Jorge  de  Montemor.  Apesar  da  nacionalidade 
de  seu  auctor,  tal  obra  pertence  á  historia  litteraria  de  Hes- 
panha ;  razões  de  facto  e  razões  de  critica  nos  determinam 
á  deliberação  de  a  não  incluir  no  presente  quadro  do  nosso 
quinhentismo.  (') 


(  )  Jorge  de  Montemor  nasceu  na  villa,  de  que  tomou  o  appellido, 
no  fim  do  primeiro  quartel  do  scculo  xvi.  Passando  muito  cedo  a  Hes- 
panha,  teve  o  lugar  de  musico  da  capella  real  de  Madrid.  Em  1552 
acompanhou  a  Portugal  a  infanta  D.  Joanna,  filha  de  Carlos  v,  que  veio 
casar  com  o  príncipe  D.  João,  p>e  de  D.  Sebastião.  Foi  durante  esta 
estada  em  Portugal  que  escreveu  a  Sá  de  Miranda  uma  epistola  autobio- 
graphica,  em  castelhano,  a  que  c  potra  português  respondeu  do  mesmo 
modo.  Em  J555  acompanhou  a  Jrglaterra  o  príncipe  D.  Filippe  e  em  1560 
achava-se  na  Itália,  ro  Piemonte.  Ahi  morreu  em  1561,  na  cidade  de 
Turim,  dum  duello  cujas  causas  não  são  bem  conhecidas  Todas  as  suas 
obras  foram  escriptas  em  língua  castelhana;  do  seu  cultivo  da  lingua 
portuguesa  apenas  ha  a  tradição  conservada  por  um  editor  de  haver 
começado  a  escrever  um  poema  O  Descobrimento  da  índia  Oriental, 
plano  prejudicado  pela  morte. 

Ai  êrca  da  sua  novella  pastoral  e  acerca  da  sua  larguíssima  influencia 
01a  Europa,  principalmente  sobre  a  btteratura  francesa,  pode- se  consultar 
a  seguinte  bibliographia  :  G  Schõnherr,  Jorge  de  Montemayor,  sem  Leben 
und  seitt  Schãjjcrrrcuian,  Halle,  18^6;  H  A.  Rennert,  The  Span>sh  Pas- 
toral Novel,  Baltimore,  1892;  G.  Ticknor,  History  0/  Spanish  Literatare, 
Boston,  1849;  Domingos  Garcia  Pt-rez,  Catalogo  ra&onado,  biográj  co  y 
b  blw  grájlco  de  los  andores  portugueses  que  escrib<ercn  en  castellano, 
Madrid,  1890;  E  Fernandez  de  Nav  arrete,  Bosquejo  histórico  sobre  la 
ntvela  esperneia;].  Fitzmaurice-Kclly,  The  Bbl  ography  o/lhe  Diana  ena- 
morada,  na  Revue  Hispanique,  1895;  Menéndez  y  Pelayo,  Orígmes  dela 
Novela,  tomo  i.°,  Madrid,  1905;  Sousa  Viterbo,  Jorge  de  Montemor,  no 
Archivo  Histórico  Português,  Lisboa,  1903;  K.  Tobler,  Shakespeares 
Sommersnachtstrattm  nnd  Montemaycrs  Diana.  Weimar,  1898;  Lu  Pas- 
torale  Drama  tique  en  Vrance,  Jules  Marsan,  Paris,  1905.  As  razões  por 


Historia  da  Litteratura  Classwo  101 


FRANCISCO  DE  MORAES 

Ao  Imperador  Clarimundo  segue-se  chronologtcamente  o 
romance  também  de  cavallarias,  o  Palmeirim  de  Ingla'errat 
de  Francisco  de  Moraes,  ( )  que  appareceu  provavelmente 
em  1544.  Era  esta  obra  a  contribuição  portuguesa  para  o 
cyclo  dos  Palmeirins,  tão  abundante  e  tão  preferido,  como  o 
fora  o  dos  Amadis.  Á  data  do  apparecimento  da  obra  portu- 
guesa era  já  muito  divulgado  o  gosto  desses  romances,  em 
Hespanha.  Abrira  o  cyclo  o  original  hespanhol,  Palmeirim 
de  Oliva,  de  Salamanca,  151 1  (8),  escripta  por  auctor  anonymo, 


que  excluimos  do  nosso  estudo  e  consideramos  estranha  á  historia  litte- 
raria  de  Portugal  a  D  ana  —  em  que  só  ha  algumas  curtas  phrases  e 
dois  poemetos  em  português  —  estão  expostas  no  nosso  artigo,  suggerido 
pelo  próprio  Montemor,  Do  critério  de  nacionalidade  nas  littcraturas, 
publicado  no  Instituto,  vol.  64. °,  Coimbra,  1917,  e  nos  Estudos  de  Litte' 
r atura,  2  a  Serie,  Lisboa,  1918. 

i1)  Francisco  de  Moraes,  o  Palmeirim,  nasceu  provavelmente  nos 
arredores  de  Lisboa,  nos  fins  do  século  xv  ou  já  em  1500,  filho  deSebas- 
íião  de  Moraes,  thesoureiro-mór  do  reino.  Protegido  por  D.  João  nr,  re- 
cebeu nomeação  de  thesoureiro  da  rasa  real  Privou  com  os  condes  de 
Linhares  e  acompanhou  como  secretario  o  conde  D.  Francisco  de  Noro- 
nha, quísndo  este  partiu  para  França,  como  embaixador.  Na  corte  fran- 
cesa deixou-se  tomar  de  amores  por  uma  dama  de  honor  da  rainha 
D.  Leonor,  viuva  de  D.  Manuel  1  e  depois  esposa  de  Francisco  1,  de 
França  Não  sendo  correspondido,  compòz  a  Desculpa  duns  amores,.. 
publicados  só  em  1624  Recentemente,  o  sr.  Conde  de  Sabugosa  recons- 
tituiu esses  amores  num  ensaio  desse  mesmo  titulo,  Desculpa  duns  amo- 
res, nas  Neves  de  Antanho,  Lisboa,  1919. 

Regressou  a  Portugal  em  1543  e  casou,  passando  de  cincoenta 
annos  de  edade,  com  Barbara  Madeira.  Em  1549  voltou  a  França  com 
D.  Francisco  de  Noronha  e  em  1550  estava  já  de  volta,  pois  sabe-se  que 
tomou  parte  num  famoso  torneio  de  Xabregas.  Passou  a  ultima  parte  da 
sua  vida  em  Évora,  onde  morreu  assassinado  talvez  em  1^72.  Usou,  como 
appellido  de  família,  o  nome  de  Palmeirim,  a  isso  especialmente  aucto- 
rizado  pelo  rei  D.  João  111. 

(2)  Reeditada  esta  i.a  parte  em  1516,  1525,  1526,  1534,  1540,  1547, 
Í555,  1562  e  1580. 


102  Historia  da  Litteratura  Clássica 

provavelmente  a  filha  dum  carpinteiro  de  Burgos,  segundo  o 
testemunho  coevo  de  Francisco  Delicado ;  a  essa  primeira 
parte  se  seguira  logo  em  Salamanca,  15 12,  o  Primaleão  da 
Grécia  -('),  segundo  inferências  do  próprio  texto,  obra  da 
mesma  desconhecida  auetora.  Nelle  se  narram  as  aventuras 
corridas  e  os  feitos  praticados  por  Primaleão  e  Polendo, 
filhos  do  imperador  Palmeirim,  protagonista  da  i.a  parte. 
Em  1533,  Valladolid,  outro  anonymo  auetor,  também  hespa- 
nhol,  proseguia  a  chronica  pittoresca  dessa  phantastica  famí- 
lia dos  Palmeirins  e  narrava  a  agitada  e  heróica  biographia 
de  Platir,  filho  do  imperador  Palmeirim  da  Grécia  e  de 
Gridonia ;  e  também  se  presume  a  existência  de  outra 
obra,  de  que  hoje  se  não  conhece  o  auetor,  nem  a  data 
da  publicação  nem  sequer  nenhum  exemplar,  em  que  seria 
historiada  a  vida  de  Flortir,  filho  do  imperador  Platir  e  de 
Florinda,  sua  esposa,  filha  dum  rei  da  Lacedemonia.  Desta 
obra  apenas  se  sabe  que  François  de  Vernassal,  traduetor  da 
Primaleão,  viu  um  exemplar  em  1549.  Seu  auetor  crê-se 
fosse  italiano, 

Francisco  de  Moraes  escolheu  para  heroe  da  sua  chro- 
nica de  aventuras  a  Palmeirim  de  Inglaterra,  filho  de  D. 
Duardos,  príncipe  da  Inglaterra,  e  de  Flerida.  Este  protago- 
nista da  novella  portuguesa  entroncava  na  genealogia  dos 
Palmeirins  por  sua  mãe,  Flerida,  que  era  irmã  de  Primaleão 
da  Grécia  e  filha  de  Palmeirim  de  Oliva  e  Polinarda. 

Resumimos  a  seguir,  muito  summariamente,  o  enredado 
entrecho  do  Palmeirim  de  Inglaterra. 

D.  Duardos,  filho  de  Fradique,  rei  de  Inglaterra,  viera 
á  Grécia  para  se  casar  com  Flerida,  casamento  que  fez  em 
meio  de  esplendidas  festas.  Acabadas  as  bodas,  retirou-se 
com  sua  esposa.  Algum  tempo  depois,  como  ella  se  sentisse 
gravida  e  mal  passasse  durante  tal  período,  D.  Duardos,  para 


\})    Reeditada  esta  a."  parte  em  1516,  1524,  1528,  1534,  1563, 1566,. 
1585  e  1588. 


Historia  da  Litter  atura  Clássica  193 

a  distrahir,  levou-a  para  uns  paços,  que  possuía  em  meio 
duma  floresta.  Como  Flerida  se  comprouvesse  naquella  moradia 
e  D.  Duardos  amasse  as  caçadas  de  montaria,  por  alli  estan- 
cearam  até  ao  bom  successo.  Uma  vez  que  D.  Duardos 
sahira  ú  caça,  vendo  fugir  um  javali,  perseguiu-o  em  tão 
doida  correria  que,  sem  o  attingir,  se  affastou  muito  do 
acampamento,  onde  ficava  a  esposa  com  suas  damas,  e  se 
perdeu. 

Caminhando  á  toa,  fora  dar  a  um  forte  castello,  em  meio 
dum  rio,  onde  o  gasalharam  a  principio  festivamente  para  o 
poderem  surprehender  desarmado  e  o  prenderem.  E  que 
nesse  castello  vivia  Eutropa,  muita  sabia  nas  artes  de  feiti- 
çaria e  encantamento,  que  alli  aguardava,  muitos  annos 
havia,  o  ensejo  de  tomar  vingança  da  morte  de  Farnaque, 
gigante  seu  irmão,  morto  em  combate  por  Palmeirim  de 
Oliva.  Eutropa  creara  desveladamente  a  Dramusiando,  gi- 
gante filho  de  Farnaque,  a  quem  confiara  seus  projectos  de 
vingança.  Fora,  de  facto,  este  Dramusiando  quem  subjugara 
D.  Duardos,  colhido  no  somno  e  sem  armas.  O  destino  de 
D.  Duardos  não  ficara  ignorado  dos  seus,  porque  Argonida, 
filha  de  Eutropa,  o  delatou,  movida  pelo  antigo  amor  que  a 
prendera  ao  esforçado  cavalleiro. 

Emquanto  seu  esposo  era  traiçoeiramente  aprisionado, 
Flerida,  em  prantos  e  lamentações,  desesperada  de  rehaver 
o  esposo,  dava  á  luz  dois  robustos  filhos,  que  houveram  no- 
mes de  Palmeirim  de  Inglaterra,  protagonista  da  obra,  e 
Floriano  do  Deserto. 

A  ambos  colhe  e  furta  um  feroz  selvagem,  que  vivia  da 
caça  que  fazia  com  dois  leões  seus  companheiros.  O  selva- 
gem que  roubara  os  infantes  recem-nascidos  não  os  deu  a 
comer  aos  seus  leões,  como  projectara,  porque  a  mulher 
delle,  tocac;  i  pelo  instincto  maternal,  a  isso  se  oppôs  e  até 
os  creou  do  mesmo  leite,  com  que  alimentava  outro  seu  ver- 
dadeiro filho.  Um  dos  infantes,  Floriano  do  Deserto,  per- 
de-se  na  caça,  em  que  aos  dez  annos  já  era' muito  dextro  e  é 

H.  da  L.  Clapsica,  vol.  1.»  13 


194  Historia  da  hitUr  atura  Clássica 

levado  para  Londres  por  Pridos,  que  regressava  das  balda- 
das diligencias  em  procura  do  desapparecido  D.  Duardos. 
Na  corte,  Floriano  do  Deserto  é  posto  ao  serviço  de  Flerida, 
que  ignora  ser  sua  mãe.  O  outro  infante  Palmeirim  e  Sel- 
vião,  o  verdadeiro  filho  dos  selvagens,  são  levados  pelo  ca- 
pitão dum  navio,  casualmente  aportado  áquellas  paragens, 
para  Constantinopla.  Nesta  corte  é  Palmeirim  posto  ao  ser- 
viço de  Polinarda,  que  ignorava  fosse  sua  prima  co-irmã. 
A  inesperada  revelação  da  dona  do  Lago  das  Três  Fadas 
annuncia  ao  imperador  de  Constantinopla  que  a  formosa 
creança,  recem-chegada,  de  poderosos  reis  christãos  des- 
cende e  que  lhe  estão  reservados  grandes  destinos  —  pelo 
que  o  imperador  redobra  a  sua  estima. 

Entretanto  corriam  mundo,  por  diversos  caminhos,  Pri- 
maleão, já  nosso  conhecido,  e  Vernao,  príncipe  allemão, 
genro  de  Palmeirim  da  Grécia.  Primaleão  conseguia  chegar 
ao  castello  de  Dramusiando.  Este  havia  determinado  que 
quem  quer,  que  acudisse  ao  castello,  travaria  combate  com 
D.  Duardos,  a  quem  para  esse  fim  concedera  limitada  liber- 
dade, e  depois,  successivamente,  com  outros  gigantes  até 
chegar  a  vez  de  Dramusiando,  se  o  forasteiro  não  houvesse 
sido  morto  em  tão  duras  provas.  Um  dia  chegou  ao  castello 
Primaleão.  que  pelejando  com  o  sequestrado  D.  Duardos  o 
reconhece.  Vencendo  aos  gigantes  Pandaro  e  Daliagão,  é 
afinal  vencido  por  Dramusiando,  de  quem  fica  também  pri- 
sioneiro. 

Em  Constantinopla,  Palmeirim,  sempre  ignorada  a  sua 
personalidade  authentica,  era  armado  eavalleiro  por  seu  avô 
e  deixava-se  enamorar  da  princeza  Polinarda,  a  quem  servia. 
Com  um  torneio,  deslumbrante  de  sumptuosidade  e  concor- 
rência, festejou  o  imperador  a  concessão  da  cavallaria  a 
Palmeirim.  É  pois  chegado  á  maioridade  aquelle,  cujos  fei- 
tos e  aventuras  formam  o  núcleo  principal  do  romance  de 
Moraes.  Logo  nesse  dia,  de  surprehendente  maneira,  re- 
cebe   elle  o  seu  escudo,  onde  se  achavam   gravadas   armas 


Historia  da  Litter atura  Clássica  195 

allusivas  á  sua  precedente  vida  de  sequestro  com  o  selva- 
gem dos  leões,  na  floresta. 

Acompanhado  de  Polendos  e  Belcar,  chega  Vernao  ao 
castello  de  Dramusiando,  sem  que  nenhum  conseguisse  o 
almejado  fito  de  libertar  D.  Duardos  e  Primaleão.  Como  a 
noticia  e  o  sentimento  se  espalhassem  por  toda  a  parte, 
Recindos,  rei  de  Hespanha  e  Arnedos,  rei  de  França,  se 
determinaram  a  por  suas  próprias  mãos  se  empenharem  na 
libertação  de  tão  assignalados  cavalleiros.  Não  foi  outro  o 
resultado  senão  servir  o  intuito  mesmo  de  Dramusiando,  o 
qual  projectava  tirar  da  morte  violenta  de  seu  pae  a  seguinte 
nobre  vingança :  sequestrar  em  seu  poder  D.  Duardos, 
Primaleão  e  todos  os  esforçados  cavalleiros,  que  em  seu 
auxilio  accorressem  para  com  elles  ir  á  conquista  da  ilha 
do  Lago  sem  Fundo,  que  fora  de  seu  avô  Almedrago  e  hoje 
se  achava  usurpadamente  senhoreada  por  outros  gigantes. 
Conseguindo  este  objectivo,  Dramusiando  restituiria  á  liber- 
dade os  seus  violentados  collaboradores. 

Neste  meio  tempo,  ardendo  em  sede  de  gloria,  o  joven 
Palmeirim  deixava  sua  senhora  e  namorada,  a  princeza  Po- 
linarda,  e  partia  em  busca  de  aventuras,  levando  o  escudo 
que  Daliarte  lhe  offerecêra  e  acompanhando- se  de  Selviâo, 
seu  collaço  e  supposto  irmão.  Na  sua  rota,  tomou  o  nome 
de  Cavalleiro  da  Fortuna.  São  numerosas  e  variadas  as 
aventuras  guerreiras,  as  justas  e  disputas  em  que  participa 
o  Cavalleiro  da  Fortuna,  nas  quaes  porfiam  primazias  a 
valentia  do  seu  braço,  a  generosidade  do  seu  coração  e  a 
elegante  subtileza  do  seu  dizer,  a  viva  e  apaixonada  lem- 
brança de  sua  ama  Polinarda.  Muitos  são  os  encontros  im- 
previstos, que  se  resolvem  em  reconhecimentos,  para  cuja 
explicação  Moraes  a  cada  passo  regressa  a  anteriores  episó- 
dios, que  algumas  vezes  constituem  matéria  das  outras  novel- 
las  do  cyclo,  precedentemente  publicadas. 

Algumas  dessas  aventuras  têm  por  assumpto  themas  já 
cyclicos  também,  como  o  passo  da  ponte,  (cap.  xx)  que  en- 


196  Historia  da  Litteratura  Clássica 

contraremos  tratado  na  Menina  e  Moça,  de  Bernardim  Ri- 
beiro. Agora  a  historia  complica- se  com  o  novo  disfarce  de 
Palmeirim  :  para  aquelles  que  ignoravam  ser  elle  um  dos 
verdadeiros  filhos  de  D.  Duardos,  ainda  accresce  o  desco- 
nhecimento em  que  estão  de  ser  o  Cavalleiro  da  Fortuna, 
«armado  de  armas  de  pardo  e  abrolhos  de  ouro  por  ellas», 
o  mesmo  que  o  donzel  Palmeirim,  creado  na  corte  do  impe- 
rador Palmeirim  de  Constantinopla,  que  o  armara  cavalleiro 
em  meio  de  ruidosas  festas. 

Facilmente  se  prevê  que  era  a  Palmeirim,  o  cavalleiro 
da  Fortuna,  que  o  Destino  —  o  que  equivale  a  dizer  o  plano 
do  novellista  Moraes  —  reservava  o  papel  de  libertador  de 
seu  pae  D.  Duardos  e  seus  companheiros  de  captiveiro.  De 
facto,  depois  de  haver  percorrido  o  roteiro  da  aventura,  a 
mais  extravagante  geographia  em  que  a  Inglaterra,  a  França 
a  Hungria,  a  Bretanha,  a  Syria,  a  Lacedemonia  e  o  império 
romano  do  Oriente  parecem  fronteiriços  ou  próximos  vizi- 
nhos, estreitados  por  extrema  facilidade  de  communicações 
—  depois  de  haver  saltado  por  todas  as  casas  do  mappa  da 
cavailaria,  Palmeirim  chegou  ao  valle  da  Perdição  —  é  sem- 
pre expressivamente  fatidica  a  nomenclatura  topographica 
dos  romances  de  cavailaria  —  e  attingiu  emfim  o  castello  de 
Dramusiando.  Travou  lucta  com  D.  Duardos,  seu  ignorado 
pae,  que  ficou  indecisa;  com  Pandaro,  a  quem  subjuga; 
com  Daliagão  a  quem  degola;  e  com  Dramusiando  que  se 
abate  extenuado  e  vencido.  Quando  Palmeirim,  também 
muito  ferido,  se  sentou  junto  do  gigante  vencido  para  lhe 
tirar  o  elmo  e  lhe  dar  o  golpe  de  misericórdia,  a  elles  desce 
a  chusma  de  cavalleiros  captivos,  pedindo  ao  vencedor  que 
poupe  a  vida  do  gigante.  Rapidamente  se  curam  os  feridos, 
por  intervenção  opportuna  dum  velho  e  duas  donzellas,  das 
quaes  « cada  uma  trazia  na  mão  uma  boceta  dourada,  em 
que  vinham  alguns  unguentos  necessários  a  tal  tempo».  Esta 
é  a  variada  matéria  da  primeira  parte. 

A  segunda  parte  do  romance  começa  com  a  partida  de 


Historia  da  Litter  atura  Ctassica  197 

todos  os  cavalleiros  para  Londres,  já  libertados,  com  grande 
desespero  de  Eutropa,  que  novas  vinganças  premedita.  Des- 
encantando o  castello,  Dramusiando,  tornado  amigo  dos  seus 
captivos  e  já  christão,  acompanha  os  cavalleiros  para  o  novo 
percurso  de  aventuras,  que  se  vae  desenrolar.  O  reconheci- 
mento de  D.  Duardos  e  de  seus  filhos  faz-se  por  meio  da 
revelação  do  sábio  Daliarte,  na  presença  da  corte  assom- 
brada. 

A  segunda  parte  é,  como  a  primeira,  um  emmaranhado 
tecido  de  aventuras,  de  accesas  batalhas,  que  sempre  escure- 
cem as  passadas;  de  novo  occorre  a  lucta  com  um  caval- 
leiro  que  guarda  a  ponte  e,  como  na  parte  primeira,  ha  tam- 
bém um  episodio  nodal.  Naquella  era  elle  a  libertação  de 
D.  Duardos  e  seus  companheiros ;  nesta  é  a  tomada  do 
Castello  de  Almourol,  onde  um  poderoso  gigante,  também 
de  nome  Almourol,  guarda  a  formosíssima  Miraguarda.  Pal- 
meirim vence  o  Cayalleiro  Triste,  que  era  um  dos  defenso- 
res de  Miraguarda  e  que  por  esta  é  affastado  do  Castello. 
E  ao  gigante  Almourol  vence  o  gigante  Dramusiando  que 
se  encarrega  da  guarda  do  castello,  durante  o  impedimento 
de  Almourol,  muito  gravemente  ferido.  Ás  portas  do  Cas- 
tello, repetem -se  os  combates  e  desfilam  os  mais  heróicos  e 
experimentados  cavalleiros  da  christandade,  dos  quaes  é 
sempre  o  primeiro  entre  os  primeiros  o  protagonista  Palmei- 
rim. E  como  a  fama  da  formosura  de  Miraguarda  transpu- 
sesse as  fronteiras  da  christandade  e  suscitasse  ciúmes  a 
Targiana,  princeza  da  Turquia,  servida  por  Albayzar  de 
Babylonia,  também  de  tão  longe  vem  Albayzar  de  Babylonia. 

Seria  bastante  indicio  da  victoria  dependurar  o  escudo 
vencedor  em  lugar  mais  alto  que  aquelle  onde  brilhava  o 
escudo  com  o  vulto  de  Miraguarda.  Albayzar  trava  combate 
com  Dramusiando,  mas  nas  tréguas  da  noite,  receoso  de  vir 
a  ser  vencido,  rouba  o  escudo  de  Miraguarda  e  foge.  Este 
episodio  mostra,  por  parte  de  Moraes,  prejuízos  religiosos  e 
de  raças,  pois  só  em  Albayzar,  que  não  era  christão,  e  em 


198  Historia  da  Litteratura  Clássica 

Targiana,  que  também  christã  não  era,  figurou  as  únicas 
personagens  de  cobardia  e  baixa  inveja,  que  ha  no  seu  ro- 
mance. 

Em  busca  do  roubador  Albayzar,  parte  Florendos  e 
muitos  riscos  corre  e  vence,  accomettendo-o  sempre  novos 
perigos  imprevistos;  a  esse  rosário  infindo  de  batalhas, 
captiveiros  e  sortilégios,  associa-se  Floriano  do  Deserto,  que 
fora  aprisionado  por  Auderramete,  irmão  de  Albayzar. 
O  amor  que  Floriano  do  Deserto  concebe  por  Targiana 
inspira-lhe  novos  heroísmos  e  arriscadas  proezas.  E  logo  a 
primeira  é  o  rapto  de  Targiana,  que  Floriano  faz,  levando-a 
para  Constantinopla,  então  cidade  christã.  Esta  audácia 
determina,  da  parte  de  Grão-Turco,  o  aprisionamento  dos 
cavalleiros  que  confiadamente  tinham  vindo  aos  seus  domí- 
nios, a  acompanhar  Targiana,  restituída  por  ordem  do 
imperador,  aos  quaes  guarda  em  seu  poder  até  que  lhe 
entreguem  o  roubador  da  filha.  E  assim,  sempre  mais  com- 
plicada de  episódios  novos,  mas  com  feliz  desfecho,  a  que 
logo  accrescem  outros,  que  de  novo  enredam  o  entrecho  e 
não    deixam    amortecer-lhe    a    vivacidade   e   a  complicação, 

4ecorre  o  romance  de  Moraes,  sequencia  continua  de  acções 
árias,  separáveis,  quasi  autónomas,  escassamente  ligadas 
por  um  ténue  fio,  cujo  fim  é  sempre  exemplificar  e  demons- 
trar qual  era  o  theor  de  vida  dum  verdadeiro  cavalleiro, 
sem  medo,  nem  mácula,  correndo  aventuras  por  sua  dama. 
No  final  da  novella,  aos  combates  singulares  succedem-se  as 
batalhas  de  exércitos  ou  grupos  de  cavalleiros,  e  assistimos 
ao  combate  dos  doze  batalhadores  e  a  duas  grandes  bata- 
lhas campaes  entre  tropas  christãs  e  tropas  turcas.  É  por 
uma  grande  batalha  campal  onde  uns  enlouquecem  e  outros 
morrem  e  pela  descripção  da  ôòr  de  suas  damas  que  o 
romance  fenece. 

Muita  matéria  ficava  ainda  por  tratar:  de  um  lado,  a 
Ilha  Perigosa,  onde  jaziam  os  mortos  e  as  viuvas  os  pran- 
teavam,  continuava  encantada,?  porque  o  feiticeiro  Daliarte 


Historia  da  Lilteratura  Clássica  199 

fora  assassinado  sem  quebrar  esse  encanto;  doutro  lado, 
daquelles  heroes  alguns  deixaram  geração  digna  de  con- 
tinuar suas  proezas.  O  próprio  Palmeirim  de  Inglaterra 
teve  um  filho  delle  digno,  D.  Duardos  li,  e  o  mesmo  Fran- 
cisco Moraes  annunciou  a  sua  chronica:  «como  na  chronica 
do  segundo  D.  Duardos,  filho  de  Palmeirim  de  Inglaterra 
se  pôde  ver »  ('). 

Unidade  de  acção  ninguém  a  procure  neste  romance, 
que  não  teve  em  vista  a  ostentação  de  tal  predicado,  mas 
opulências  de  imaginação,  sequencia  ininterrupta  de  impre- 
vistos, exemplos  de  heroísmo  inesgottavel,  movimento  e 
agitação,  extrema  inverosimilhança;  isso  intensamente  se 
observa  na  obra  de  Moraes.  As  obras  deste  género  tinham 
por  objectivo  dois  vicios  de  composição  litteraria,  a  que 
modernamente,  sobretudo  com  o  realismo,  se  fez  a  devida 
justiça:  o  maravilhoso  e  o  romanesco.  Taes  obras  corres- 
pondem a  um  género  actual,  inteiramente  posto  de  lado  do 
quadro  dos  vaiòres  litterarios,  o  romance  de  aventuras,  de 
Montépin,  Richebourg,  Ponson  du  Terrail  oa  Perez  Escrich. 
Só  os  petrechos  com  que  se  architecta  esse  maravilhoso  e 
esse  romanesco  divergem,  porque  também  diverge  o  theor 
de  vida  dentro  do  qual  o  enredo  tem  de  decorrer  por  con- 
descendência com  o  mínimo  de  verosimilhança,  a  que  se 
obrigam  seus  auctores:  em  vez  dos  feitos  heróicos,  dos 
amores  inspiradores  de  épicas  façanhas,  dos  cavalleiros 
andantes,  dos  gigantes  e  das  fadas,  dos  encantamentos,  da 
geographia  maravilhosa,  os  meios  modernos  como  a  astúcia, 
a  lethargia,  a  audácia,  a  investigação  policial,  a  crimina- 
lidade servida  por  inventos  aperfeiçoados.  É  bom  recordar 
este  estádio  do  género  para  se  reconhercer  o  grande  per- 
curso de  progresso  andado  para  chegar  a  Balzac,  Flaubert, 
Zola    ou   Dickens   e    para   sabermos    as  razões  históricas  e 


(*)    V.  pag.  382  da  edição  de  Lisboa,  1852,  3.°  vol. 


200  Historia  da  Lttteratura  Clássica 

estheticas    que   relegaram    o   actual   romance   de   aventuras 
para  o  subalternissimo  lugar  que  se  ihe  abandona. 

Todavia,  o  Palmeirim  de  Inglaterra  já  aceusa  algum  pro- 
gresso na  evolução  do  género.  Mais  diserta  a  dicção,  plena- 
mente cumpre  seu  objectivo  de  dignificar  a  vida  cavalheirosa 
dos  altos  ideaes,  dominada  por  sentimentos  de  honra,  de 
heroismo  e  de  justiça  corajosa.  A  imaginação  mais  fecunda 
ensancha  a  narrativa  com  episódios  sempre  variados,  não 
se  limitando  á  parte  concreta  e  objectiva,  mas  demorando-se 
na  pintura  das  physionomias  e  dos  trajos  e  na  descripção 
dos  sentimentos.  Assim,  exemplificando,  dá-nos  o  retrato  de 
Dramusiando :  «As  condições  de  Dramusiando  eram  estas: 
de  todalas  cousas  da  natureza  assaz  perfeito:  de  corpo  e 
rosto  bem  proporcionado :  não  de  grandeza  desmedida, 
como  os  outros  gigantes,  dotado  de  maiores  forças  do  que 
seus  membros  pareciam;  mui  nobre  de  condição,  e  esfor- 
çado sobre  os  outros  homens ;  menos  soberbo  do  que  a 
gigante  convinha:  aprazível  na  conversação:  grandemente 
destro  em  todas  as  armas;  e  sobre  tudo  o  melhor  cavalleiro 
que  em  seu  tempo  antre  todos  os  gigantes  houve  >  (1). 

Reproduzimos  outro  exemplo:  «Acabado  o  comer  en- 
trou pela  porta  uma  donzella  fermosa,  vestida  ao  modo 
inglez  de  uma  roupa  de  setim  avelludado  negro,  e  em  cima 
uma  capa  cueta  de  escarlata  roxa,  broslada  de  chaperia 
rica  e  louçãa,  com  rosto  sereno  e  algum  tanto  descon- 
tente» (2). 

Na  sua  linguagem  ha  não  só  fluência,  mas  elegância  e 
até  subtileza,  sobretudo  nos  diálogos  entre  cavalleiros,  onde 
não  será  imprudente  descobrir  algumas  agudezas  prenuncias 
do  gosto  gongorico.  Mas  o  mérito  fundamental  será  sempre 
o   da   exuberante   imaginação,  em  que  a  variedade  dos  epi- 


(»)     V.  i.°  vol.  da  ed.  cit.,  pags.  21-22 
(2)     V.  i.°  vol.  da  ed.  cit.,  pag.  79. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  201 

sodios,  a  concorrência  de  personagens,  a  largueza  do  campo 
de  acção,  os  petrechos  litterarios  da  epocha,  a  topographia 
fatídica,  a  geographia  phantastica  e  a  chronologia  fabulosa 
se  deram  as  mãos  para  produzir  esse  trama  enredado,  que 
alguns  auctores  não  hesitaram  em  comparar  a  Homero  (*)  e 
que  antes  merecera  a  Cervantes  o  bem  conhecido  elogio  (2). 
A  esse  mérito  real  e  ao  facto  de  haver  sido  objecto  de 
longa  controvérsia  a  respeito  da  nacionalidade  de  seu  auctor 
deve  o  Palmeirim  as  sympathias,  que  tem  desfructado.  A 
questão  da  naturalidade  está  hoje  definitivamente  resolvida 
a  favor  de  Moraes.  (*) 


(')  Y.  Oclorico  Mendes  no  seu  Opúsculo  acerca  do  Palmeirim  de 
Inglaterra,  a  pag.  24  e  26,  e  Nicolas  Diaz  Benjuméa  no  seu  Discurso 
sobre  el  Palmeirin  de  Inglaterra  y  su  verdadero  autor,  a  pag.  81. 

(2)  Por  bocca  do  cura,  occupado  na  queima  dos  romances  de 
cavallarias  que  formavam  a  livraria  de  D.  Quixote,  diz  do  Palmeirim 
Cervantes  no  capitulo  6.°  da  Parte  2.a  do  seu  famoso  romance  :  . .  «y  esa 
palma  de  Inglaterra  se  guarde  y  se  conserve  como  a  cosa  única,  y  se 
haga  para  el!a  outra  cajá  como  la  que  halló  Alejandro  en  los  despojos 
de  Dário,  que  la  disputo  para  guardar  en  ella  las  obras  dei  poeta 
Homero.  Este  libro,  senor  compadre,  tiene  autoridad  por  dos  cosas;  la 
una  porque  el  por  si  es  muy  bueno,  y  la  otra  porque  es  fama  que  le 
compuso  un  discreto  rey  de  Portugal.  Todas  las  aventuras  dei  castillo 
de  Miraguarda  son  bonissimas  y  de  grande  artificio,  las  razones  corte- 
sanas  y  claras,  que  guardan  y  miran  el  decoro  dei  que  habla  con  mucha 
propriedad  y  entendimiento.  Digo  pues,  salvo  vuestro  buen  parecer, 
senor  Maese  Nicolás,  que  este  y  Amadis  de  Gaula  queden  libres  dei 
fuego,  y  todos  los  demás,  sin  hacer  más  cala  y  cata,  perezean». 

(*)  Julgamos  conveniente  rememorar  as  phases  principaes  da 
controvérsia  que  se  agitou  cm  torno  da  nacionalidade  do  auctor  do  Pal- 
meirim. Foi  Vicente  Salva,  bibliophilo  e  livreiro  em  Londres,  que,  em 
1826,  no  seu  catalogo  dos  livros  hespanhoes  e  portugueses  impressos  em 
Londres,  levantou  a  questão,  attribuindo  a  auetoria  da  obra  a  um  hes- 
panhol,  Miguel  Ferrer  ou  Luiz  Hurtado,  com  o  fundamento  de  que  a 
edição  de  Palmeirim,  em  hespanhol,  é  de  1547  e  a  edição  portuguesa  é 
de  1567,  conforme  reza  o  colophonte,  e  o  da  phrase  formada  pelas  ini- 
ciaes  do  acróstico,  que  precede  a  edição  hespanhola :  Luis  Hurtado 
autor  ai  lector  da  salud.   Pascual  de  Gayangos  perfilhou  essa  mesma 


202  Historia  da  LU  ter  atura  Clássica 

A  obra  de  Moraes  foi  traduzida  para  a  língua  hespa- 
nhola  logo  em  1547  a  primeira  parte  e  em  1548  a  segunda 
por  traductor  desconhecido;  para  francês  por  Jacques  Vin- 
cent  em'  1552  e  1553;  para  lingua  italiana  por  Mambrino 
Róseo  em  1553  e  1555  e  pelo  mesmo  continuada  em  1558; 
e  para  lingua  inglesa  por  A.  Munday  em  1596.  Em  portu- 
guês   teve    também    seus   continuadores:    em    1586,    Diogo 


opinião  e  deu-lhe  auctoridade  para  que  fosse  acceita  nos  meios  littera- 
rios.  Em  defeza  da  hypothese  da  nacionalidade  portuguesa,  sahiu  Ma- 
nuc  1  Odorieo  Mendes,  humanista  brasileiro,  que  publicou  em  Lisboa,  1860, 
o  seu  Opusculo  ácèrca  do  Palmeirim  de  Inglaterra  e  do  seu  autor  no  qual 
se  prova  haver  sido  a  referida  obra  composta  originalmente  em  português, 
em  que  adduz  os  seguintes  argumentos:  i.°  a  dedicatória  do  romance  á 
infanta  D.  Maria  em  1544,  em  que  se  falia  da  obra  já  concluída ;  2.0  con- 
siderar como  só  referente  ao  acróstico  a  phrase  que  as  suas  iniciaes 
formam  :  Luiz  Hurtado  seria  auetor  só  do  acróstico ;  3.0  o  episodio  das 
justas  ein  honra  de  quatro  senhoras  francesas,  uma  das  quaes  é  Torci 
por  quem  Moraes  se  apaixonara,  quando  estivera  em  França;  40  a 
declarada  preferencia  de  Moraes  pela  paisagem  e  pelas  personagens 
portuguesas.  A  este  opusculo  respondeu  Pascual  de  Gayangos  na  Re- 
vista Espauola,  mantendo  a  opinião  em  favor  de  auetor  hespanhol,  com 
o  argumento  principal  de  que  a  edição  mais  antiga  continuava  a  ser  a 
hespanhola  e  a  única  declaração  franca  era  a  do  acróstico ;  quanto  Men- 
des allegava  eram  provas  indirectas,  sem  segurança.  Em  1877,  o  erudito 
hespanhol  Nicolas  Diaz  Benjuméa  volta  a  ventilar  o  problema  mas  deci- 
didamente a  favor  de  Francisco  Moraes.  Benjuméa,  muito  diffusamente, 
repete  as  razões  principaes  de  Odorieo  Mendes,  já  por  nós  reproduzidas, 
e  outros  pequenos  argumentos  também  primeiramente  adduzidos  por 
Mendes.  Em  J904  renovou  esta  discussão  o  sr.  W.  Purser  que  pormeno- 
rizou e  documentou  mais  seguramente  as  allegações  de  Mendes,  fazendo 
também  investigações  acerca  de  Ferrer  e  Hurtado,  aos  quaes  alternada- 
mente se  attribuia  o  romance,  para  assim  produzir  também  a  parte  ne- 
gativa da  demonstração.  A  propósito  desse  livro,  o  sr.  Fitzmaurice- 
Kelly  no  10. °  vol.  da  Rcvue  Hispanique  oceupou-se  também  desta  maté- 
ria, votando  pelo  auetor  português.  Em  1916,  o  sr.  Henry  Thomas 
rememora  esta  discussão,  que  considera  definitivamente  resolvida  a 
favor  de  Francisco  Moraes,  na  sua  communicação  á  Sociedade  Biblio- 
graphica  de  Londres,  The  Palmeirin  Romances.  Londres.  O  trabalho  de 


Historia  da  IÁtteratura  Clássica  203 

Fernandes  (')  fez  publicar  o  seu  D.  Duardos  II,  partes  terceira 
e  quarta  do  Palmeirim  de  Inglaterra;  e  em  1602,  Balthazar 
Gonçalves  Lobato  (3)  deu  o  seu  Clatisol  de  Bretanha,  partes 
quinta  e  sexta  do  Palmeirim.  D.  Duardos  11  era  filho  de  Pal- 
meirim de  Inglaterra  e  Polinarda;  e  Clarisol  de  Bretanha 
era  filho  de  D.  Duardos  II  e  de  Carmelia. 

Em  torno  dos  heroes  centraes,  que  deram  o  nome  ás 
obras,  muitos  outros  se  agitam  e  ostentam  seus  heroismos. 
Os  caracteristicos  destas  obras  são  semelhantes  aos  do  Pai' 
meirim,  mas  em  intensidade  mais  attenuada. 

Em  1626,  por  diligencias  de  Manuel  de  Carvalho,  appa- 
receram  em  Évora,  com  dedicatória  a  Manuel  Severim  de 
Faria,  Os  Diálogos  de  Francisco  de  Moraes,  author  de  Palmeirim 
de  Inglaterra.  Com  um  desengano  de  amor,  sobre  certos  amores, 
que  o  author  teve  em  França  com  uma  dama  francesa  da  rai?iha 
Dona  Leonor.  Sâo  trôs  os  diálogos  e  de  Índole  muito  outra 
da  novella.  No  primeiro  são  interlocutores  um  escudeiro 
que  allega  razões  contra  a  nobreza  de  herança,  sua  contem- 
porânea, que  já  não  provinha  da  aristocracia  moral,  de  feitos 


Benjuméa  está  publicado  no  tomo  iv,  parte  n  da  collecção  Historia  e 
Memorias  da  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa  e  oceupa  87  pags. 
Do  conteúdo  do  excellente  livro  do  sr.  Purser  póde-se  avaliar  pelo 
extenso  e  judicioso  parecer  sobre  elle  feito  por  José  de  Sousa  Monteiro 
e  publicado  no  vol.  2.0  do  Boletim  da  Segunda  Classe  da  Academia  Real 
das  Sciencias,  Lisboa,  1910,  pags.  281-299.  Também  de  Francisco  Mo- 
raes e  da  sua  novella  se  oceupou  a  sr.a  D.  Carolina  Michaelis  de  Vas- 
concellos  na  Zcitsc/irift.  fúr  Romanische  Philologie,  tomo  vi,  Halle,  1883. 
— O  sr.  Henry  Thomas  condensou  todas  as  investigações  acerca  da 
novellistica  peninsular  na  obra  recente :  Spanish  and  Portugitese  Ro- 
mances of  Chivalry — The  revival  0/  the  romance  0/  chivalry  in  tlie 
spanish  Península,  and  ifs  extension  and  influenze  abroad,  Cambridge,. 
1920,  335  pags.  E  uma  obra  fundamental.— A  bibliographia  do  problema 
da  auetoria  do  Palmeirim  está  mencionada  a  pag.  182-5  da  3."  ed.  da 
nossa  Critica  Litteraria  como  Sciencia. 

(x)    Ignora-se  a  biographia  de  Diogo  Fernandes. 

(2)    Ignora-se  a  biographia  de  Balthazar  Gonçalves  Lobato. 


204  Historia  da  Litteratura  Clássica 

ou  virtudes,  e  um  fidalgo  que  defende  a  sua  classe  e  impugna 
tantas  letras  que  com  surpreza  nota  no  escudeiro  contendor. 
A  leitura  devia  ser  defeza  a  escudeiros,  que  só  haviam  «de  ter 
alçada  até  Amadis,  e  não  mais  por  diante».  O  segundo  dia- 
logo decorre  entre  um  cavalleiro  e  um  doutor.  Discutem 
estes  um  problema,  que  muito  preoccupou  nossos  maiores  e 
que  repetidamente  foi  versado  nas  academias  dos  séculos  xvn 
e  XYlli:  a  primazia  da  carreira  das  letras  ou  das  armas.  Este 
dialogo  é  gracioso  e  vivo,  um  verdadeiro  tiroteio  de  razões, 
frequentemente  de  ordem  pratica  e  por  isso  mais  pondero- 
sas. O  terceiro,  mais  breve,  reproduz  o  derrete  dum  moço 
de  estribeira  com  uma  regateúa  e  tem  principal  valor  como 
repositório  de  miúdas  informações  sobre  indumentária  po- 
pular. A  Desculpa  duns  amores  narra,  com  encantadora  since- 
ridade e  elegante  forma  os  seus  não  correspondidos  amores 
por  M.e,le  de  Torcy,  de  quem  queria  fazer-se  comprehender 
em  português,  em  castelhano,  em  prosa  e  em  verso,  mas 
sempre  em  vão,  porque  se  a  dama  bem  conhecia  os  desejos 
de  Moraes,  não  sabia  que  cousa  era  «querer  bem  como  por- 
tuguês». Esta  formosa  peça  autobiographica,  pelas  seme- 
lhanças que  ostenta  com  circunstancias  da  justa  do  Palmei- 
rim, capítulos  i37.°-i47.°,  em  honra  de  quatro  damas  france- 
sas, constituiu  novo  e  importante  argumento  em  favor  da 
auctoria  portuguesa. 


BERNARDIM  RIBEIRO 

Com  alguns  annos  de  intervailo,  succedeu  ao  Palmeirim 
a  Menina  e  Moça,  cujo  primeiro  livro  se  publicou  em  Ferrara, 
no  anno  de  1554,  e  cuja  primeira  edição  completa  appareceu 
em  1557,  datas  ambas  posteriores  á  morte  de  Bernardim 
Ribeiro. 

O  primeiro  livro  é  uma  espécie  de  prologo  á  parte  mais 
intensa  da  acção,  a  qual  decorre  no  segundo  livro.  Repro- 


Historia  da  Litteratura  Clássica  205 

duzimos  a  seguir  o  enredo,  para  que  mais  seguramente  se- 
jamos acompanhados  no  nosso  exame. 

Alguém,  que  se  não  nomeia,  do  sexo  feminino,  e  que 
por  desventuras  amorosas  se  desterrara  em  plena  mocidade 
de  belleza  para  um  cimo  na  Serra  de  Cintra,  levanta-se  uma 
manhã,  absorto  em  pungentes  recordações,  como  sempre,  e 
põe-se  a  caminho,  indo  descansar  num  fresco  valle,  á  mar- 
gem dum  ribeiro.  Na  ramaria  das  arvores  canta  um  rouxi- 
nol, que  de  cansado  cahe  e  se  affbga  no  rio.  Emquanto 
lamenta  a  morte  cruel  da  innocente  ave,  approxima-se  uma 
dama  de  nobre  presença,  d'aspecto  soffredor;  uma  instinctiva 
sympathia  as  attrahe,  e  a  recem-chegada,  havendo  percebido 
que  a  donzella  desejava  recatar  o  seu  segredo,  propõe-se 
contar-lhe  uma  historia  de  desventurado  amor,  a  historia  de 
dois  amigos  que  a  seu  pae  ouvira  e  que  decorrera  naquelle 
mesmo  valle,  ao  tempo  habitado  e  opulento  de  paços  nobres. 
E,  após  umas  amargas  reflexões,  começa  a  longa  narrativa: 
Alli  se  estabelecera  em  tempos  um  nobre  cavalleiro ,  apor- 
tado á  mais  próxima  praia.  Lamentor  se  chamava  elle  e 
acompanhavam-no  Belisa,  que  por  devotado  amor  o  seguira, 
abandonando  a  sua  família  e  o  seu  paiz,  e  Aonia,  irmã  de 
Belisa. 

Ao  atravessarem  a  ponte,  sahiu-lhes  ao  encontro  o  es- 
cudeiro dum  cavalleiro,  que  alli  aguardava  aventuras  du- 
rante o  prazo  de  três  annos,  prazo  que  lhe  fora  ordenado 
por  sua  exigente  e  desapiedada  dama,  findo  o  qual,  se  hou- 
vesse logrado  sahir-se  victorioso  de  todos  os  passos,  possui- 
ria a  desejada  mão.  Resistindo  a  principio,  Lamentor  annúe, 
acceita  o  desafio  e  o  cavalleiro  da  ponte  é  vencido  e  morre 
pouco  abaixo  do  lugar  da  justa,  de  olhos  postos  no  castello 
da  sua  dama,  quando  faltavam  oito  dias  para  concluir  o  longo 
prazo  de  ansiosa  espera.  Alli  se  fixa  Lamentor,  e  logo  na 
primeira  noite,  quando  Lamentor  pesadamente  dormia,  Be- 
lisa dá  á  luz  uma  filha,  que  se  chamará  Arima.  e  morre  do 
parto. 


£06  Historia  da  Litteratura  Clássica 

Não  desiste  Lamentor  do  seu  primitivo  propósito  de 
alli  se  estabelecer,  e  ás  primitivas  tendas  succedem  uns 
opulentos  paços.  Entretanto  novo  cavalleiro  chega  para  dis- 
putar o  passo  aos  que  cruzavam  a  ponte.  Attrahido  pelos 
prantos,  com  que  era  lamentada  a  morte  de  Belisa,  vê  Aonia 
e  delia  promptamente  se  namora.  Após  curta  indecisão,  de- 
termina abandonar  Cruelcia,  sua  primeira  dama,  por  cujo 
amor  viera  correr  aventuras  e  para  disfarce  toma  o  nome 
de  Bimnarder,  suggerido  por  uma  phrase  dum  mateiro  que 
vinha  passando.  Uma  vez  que  os  lobos  perseguiram  e  mata- 
ram o  seu  cavallo,  travou  conhecimento  com  os  pastores  do 
sitio ;  esse  conhecimento  lhe  lembrou  a  resolução  de  tomar 
o  disfarce  de  pastor,  o  que  faz  sob  aquelle  nome,  merecendo 
a  alcunha  do  da  flauta,  por  neste  instrumento  sempre  pran- 
tear suas  saudades.  A  narradora  exemplifica  os  cantares  de 
Bimnarder.  Estas  cantigas  e  o  todo  de  Bimnarder  fazem 
crer  á  ama  de  Arima  e  companheira  de  Aonia,  que  o  pastor 
da  flauta  era  um  falso  pastor.  A  perspicácia  da  ama  foi  au- 
xiliada pelo  seu  conhecimento  do  paiz,  pois  dalli  era  e  dalli 
sahira  para  por  amor  acompanhar  alguém,  de  que  viuvara 
no  paiz  de  Aonia,  cuja  mãe  a  recolhera.  Communicando  a 
Aonia  as  suas  suspeitas,  desperta-lhe  a  curiosidade.  Esta, 
uma  vez  que  do  eirado  o  espreitava,  presenceia  um  combate 
de  touros  e  assustada  do  perigo  que  o  falso  pastor  corria, 
desmaia.  Sabe  depois  por  uma  conversa  surprehendida  quem 
é  o  pastor.  A  despeito  dos  prudentes  conselhos  da  ama, 
com  elle  falia  por  uma  fresta  alta  do  seu  quarto.  Uma  noite 
que  precipitadamente  descera  dessa  fresta,  Bimnarder,  que 
nella  trepado  continuava  a  aguardar  o  regresso  de  Aonia, 
deixou-se  dormir  e  cahiu,  ferindo-se  bastante  —  episodio  sug- 
gerido talvez  pela  Ce/estitia,  de  Rojas,  em  que  Calisto  morre 
duma  queda  da  janella  da  torre  por  onde  chegava  até  Meli- 
bêa.  Por  uma  creada,  Enis,  sabe  delle  e,  indo  a  uma  romaria 
próxima  da  sua  choupana,  consegue  vê-lo.  A  ama,  que  ou- 
vira a  queda  dum  corpo  junto  á  parede  do  quarto,  julgando 


Historia  da  Litter atura  Clássica  207 

que  fosse  algum  indiscreto  pedreiro,  mandou  tapar  a  fresta. 
Entretanto,  Lamentor  combinava  o  casamento  de  Aonia  com 
Fileno,  que  a  leva  para  seus  paços,  com  grande  desespero 
de  Bimnarder. 

É  este  o  assumpto  da  primeira  parte  e  esse  assumpto  é, 
como  se  vê,  uma  sobreposição  de  narrativas,  que  concentri- 
camente  se  penetram  umas  nas  outras,  como  caixas  chinesas. 
E  como  nestas  nenhuma  caixa  chega  a  ser  utilizada,  porque 
a  immediata  a  obstrue,  assim  cada  historia  da  Menina  e  Moça 
è  addiada  e  suspensa  pela  que  a  seguir  surge.  A  primeira, 
que  esperávamos,  seria  a  da  menina  e  moça,  que  conhecemos 
ao  abrir  o  livro;  é  posta  de  lado  pela  historia  que  suppomos 
seguir-se  lhe,  a  da  sua  interlocutora,  que  afinal  apenas  conta 
a  historia  duns  amores  que  naquelle  valle  decorreram  e  que 
ouvira  contar  a  seu  pae.  E  qual  é  a  historia  que  nesse  valle 
.decorreu?  É  a  do  cavalleiro  da  ponte?  Esta  promptamente 
•se  fecha  com  a  morte  do  cavalleiro.  Será  a  do  pastor  disfar- 
çado e  da  joven  Aonia  ?  Esta  interrompe-se  bruscamente 
pelo  casamento  de  Aonia  com  Fileno.  E  assim  por  successi- 
vos  addiamentos  se  chega  á  segunda  parte,  em  que  decor- 
rem os  amores  de  Arima,  a  filha  da  fallecida  Belisa,  que 
alli  mesmo  nascera.  Esta  primeira  parte  não  é  pois  um  ro- 
mance, mas  uma  sequencia  de  episódios  inacabados. 

A  belleza  dessa  primeira  parte  consiste  no  tom  de  me- 
lancholia  profunda,  na  expressão  de  acatamento  e  reveren- 
cia pelos  grandes  amores  que  dão  o  cunho  de  serena  gravi- 
dade á  narrativa.  Era  a  primeira  vez  que  em  lingua  portu- 
guesa uma  penna  podia  livremente  correr  a  narrar  máguas 
de  amor,  a  lamentar-se  soltamente,  sem  as  peias  do  verso,  o 
limite  das  pequenas  composições  ou  a  obrigação  dum 
assumpto  movimentado,  como  no  theatro  vicentino.  Por  isso 
se  descurou  a  unidade  da  obra;  os  episódios  succederam-se 
associados,  todos  elles  a  satisfazerem  essa  necessidade  de 
dizer  saudades  e  tristes  amores. 

A   i.a  edição  da  Menina  c  Moça  é  de  1554,  de  Ferrara,  e 


208  Historia  da  Litter atura  Clássica 

apenas  contem  a  i.a  parte  acima  resumida  (*) ;  a  2.*  de  Évora» 
1557,  comprehende  também  a  2.a  parte  da  novella;  e  a  3.* 
edição,  de  Ferrara,  apenas  contém  os  primeiros  dezesete  ca- 
pítulos-da  2.a  parte. 

Diverge  muito  da  i.a  esta  2.a  parte,  pelo  que  é  corrente 
opinião  não  ser  da  auctoria  de  Bernardim  Ribeiro.  Os  argu- 
mentos são  as  differenças  intrínsecas  que  são  principalmente- 
as  seguintes: 

A  primeira  parte  da  novella  é  uma  expansão  de  subjecti- 
vismo e  delia,  tão  infrene  e  tão  impulsivamente  sentimental, 
procede  a  própria  irregularidade  de  composição  desses  pri- 
meiros trinta  e  um  capítulos;  a  segunda  parte  é  um  confuso- 
romance  de  cavallarias,  de  milito  escassa  ligação  com  a  parte 
antecedente,  pois  não  continua  a  intriga,  nem  conclue  a 
annunciada  historia  dos  dois  amigos,  apenas  contém  algu- 
mas personagens  da  primeira  parte,  mas  geralmente  postas 
em  segundo  plano,  no  meio  das  numerosas  personagens  no- 
vas e  que  em  breve  desapparecem.  Não  tem  a  segunda  parte 
um  protagonista  único,  mas  sim  dois:  Avalor  ou  Álvaro, 
namorado  de  Maria  ou  Arima,  filha  de  Lamentor  e  depois 
Tasbião.  Ora  este  Tasbião  é  um  dos  dois  amigos  daquella 
historia,  que  na  primeira  parte  nos  foi  annunciada  como 
muito  trágica  e  desgraçada,  apesar  do  que  casa  com  Roma- 
bisa,  irmã  de  Lucrécia,  e  muito  pacatamente  e  felizmente- 
vive.  A  primeira  parte,  sempre  dominada  por  sentimentos 
profundos  de  desalento  e  paixão,  tem  o  meio  termo  entre 
romance  de  cavallaria  e  romance  pastoril,  só  mantendo  uni- 
dade e  coherencia  110  tom  sentimental,  que  a  domina ;  a  se- 
gunda parte  é  uma  bem  característica  novella  de  cavallarias 
objectivamente  narradas,  sem  o  cunho  subjectivo  da  prece- 


(l)  Desta  edição  só  se  conhece  o  exemplar  do  Museu  Britannico, 
que  em  1918  mandámos  photograpbar  para  promover  uma  reimpressão, 
revista  pelo  fallecido  erudito  A.  Braamcamp  Freire.  O  texto  accusa  bas- 
tantes differenças.  do  das  edições  vulgares. 


Historia  da  Litkraluva  Clássica  209 

dente,  mas  evidentes  vestígios  de  outras  leituras,  principal- 
mente nas  imitações  de  Tristão  e  do  Amadis. 

Estas  razoes  são  verificáveis  e  produzem  uma  justifica- 
ção sufficiente  do  conceito  estabelecido  e  corrente,  que  con- 
sidera a  segunda  parte  uma  continuação  de  imitadores.  Nós, 
por  uma  impressão  de  leitor,  pelo  sabor  diverso  que  cada 
parte  nos  proporciona,  pela  disposição  de  espirito  que  adivi- 
nhamos em  cada  uma  e  pelo  argumento  extrinseco  de  não 
ter  apparecido  a  segunda  parte  logo  na  i.a  edição,  inclina- 
mo-nos  também  a  crer  que  não  seja  de  Bernardim  Ribeiro 
a  segunda  parte  (M.  Era  uso  corrente  no  século  XVI  prolon- 
gar um  romance  em  extensas  continuações,  tomando  a  des- 
cendência dos  heroes  das  partes  precedentes,  de  modo  que  á 
chronologia  bibliographica  das  obras  pode  corresponder  uma 
genealogia  das  personagens  (*).  Mas  também  não  podemos 
deixar  de  oppôr  a  esta  nossa  presumpção  dois  limites.  O  pri- 


l1)  Cabe  ao  sr.  D.  José  Pessanha  a  auctoria  da  principal  analyse 
da  Menina  e  Moça  com  o  objectivo  de  demonstrar  ser  apocrypha  a  2.a 
parte.  V.  a  sua  edição  da  novella,  Porto,  1891. 

As  razões  adduzidas  pelo  sr.  D.  José  Pessanha  são  as  seguintes: 
i.a  a  diversidade  de  maneira  artística  das  duas  partes,  a  primeira  bucó- 
lica e  subjectiva  e  a  segunda  cavalheiresca  e  mais  impessoal,  excepção 
feita  da  historia  de  Avalor;  2.* —  o  lapso  de  confusão  que  occorre  no 
capitulo  3.0  da  segunda  parte,  em  que  uma  personagem  se  refere  ao  li- 
vro, em  meio  da  sua  exposição,  lapso  menos  provável  de  ser  commetido 
por  Bernardim,  diz  o  sr.  D.  J.  P.;  3.a —  a  discordância  entre  as  duas  partes 
quanto  á  explicação  do  apparecimento  de  Bimnarder  ao  lugar  onde  co- 
nheceu Aonia ;  4.*  —  na  segunda  parte  Bimnarder  e  Tasbião  têm  desti- 
nos diversos  dos  que  lhe  havia  fixado  a  primeira;  5. a  —  o  editor  de 
1557-1558  achou  logo  alguma  difterença  entre  as  duas  partes ;  6.»  —  o 
sentido  implícito  no  titulo  de  cada  uma  das  partes.  V.  na  edição  do  sr. 
D.  J.  P.  a  nota  A.  pag.  229-243. 

(2)  Para  os  romances  do  cyclo  dos  Palmeirins  fez  este  trabalho  de 
erigir  um  quadro  chronologico  das  obras  e  uma  genealogia  da  família 
dos  Palmeirins  o  sr.  Henry  Thomas  na  sua  monographia.  The  Palmerin 
Romances,  a  paper  read  before  the  Bibliographica!  Society,  London,  1916, 
52  pags. 

II.  da  L.  Clássica,  vol.  1.»  H 


210  Historia  da  Litter -atura   Clássica 

meiro  é  que  estas  razões  differenciaes  são  muito  relativas, 
tão  relativas  e  contingentes  que  se  prestam  a  conclusões  di- 
versas para  cada  auctor  (T)  e  até  para  o  mesmo  autor  em 
epochas  diíferentes  (2). 

O   segundo   é    que    a    Menina   e   Moça,   na  sua  primeira 
parte,  não  é  uma  obra  regular,  é,  pelo  contrario,  como  dili- 


(')  Exemplifica-se  este  nosso  asserto  com  a  impressão  causada 
pelo  romance  de  Avalor,  peça  poética  engastada  na  2.a  parte  da  novella, 
no  espirito  de  dois  auctores  concordes  em  julgarem  por  apocrypha  essa 
2a  parte:  Menéndez  y  Pelayo  e  o  sr.  Delphim  Guimarães.  Escreve  o  cri- 
tico hespanhol :  «  Algo  suyo  debe  de  haber  en  la  historia  de  Arima  y 
Avalor,  que  tiene  toques  rr.uy  delicados,  y  por  mi  parte  me  cuesta  tra- 
bajo  creer  que  no  sea  suyo  el  romance  inserto  en  el  capitulo  xi.  Sea  de 
quien  fuere,  es  delicioso.  Nada  hay  en  las  cinco  éclogas  de  nuestro 
poeta,  nada  en  la  de  Crisfal  de  Cristóbal  Falcão,  nada  en  la  lirica  portu- 
guesa de  entonces,  que  tenga  el  extranho  hechizo,  la  misteriosa  vague- 
dad  de  este  romance  de  Avalor».  {Origenes  de  la  novela ,  pag.  cdsliii-iv). 
Depois  segue-se  a  transcripção  da  peça  poética ;  sobre  esse  mesmo  ro- 
mance de  Avalor  se  pronunciou  do  modo  seguinte  o  sr.  Delphim  Guima- 
rães :  «  Com  effeito,  é  preciso  não  conhecer  as  producções  do  poeta  bu- 
cólico, não  ter  estudado  a  sua  maneira,  para  se  lhe  attribuirem  os  versos 
incorrectíssimos,  intercalados  na  2.R  parte  da  novella,  sob  a  designação 
de  Romance  de  Avalor,  em  que  um  versejador  da  força  de  Rosalino  Cân- 
dido conseguiu  amontoar  esta  enfiada  de  rimas,  sem  elevação  e  sem 
senso  commum».  Segue-se  a  transcripção  do  romance,  a  que  se  junta 
ainda  este  outro  commentario :  «Pois  esta  infamissima  imitação  está 
correndo  em  selectas  escolares,  devidamente  approvadas,  como  trecho 
escolhido,  para  as  creanças  aquilatarem  do  engenho  peregrino  de  Ber- 
nardim Ribeiro».  [Bernardim  Ribeiro,  o  poeta  Chris/al,  pag.  7  e  9). 
O  sr.  D.  Guimarães  ver-se-hia,  sem  duvida,  em  grandes  difficuldades, 
se  lhe  fosse  pedida  a  explicação  objectiva  de  ser  esta  composição  poé- 
tica uma  «infamissima  imitação  ». 

(2)  O  sr.  TheophiJo  Braga  teve  a  este  respeito  opinião  muito  di- 
versa da  que  actualmente  professa  :  em  1872  claramente  repudiava  a 
2.a  parte  como  falsa ;  em  1897  acceita-a  como  authentica  e  lógica  conti- 
nuação da  i.a  parte.  As  irregularidades,  que  reconhece  nessa  continua- 
ção, attribue-as  á  «decadência  mental  do  poeta».  {Bernardim  Ribeiro  e 
os  Biicolistas,  pag.  267). 


Historia  da  Litteratura  Clássica  211 

.mos  evidenciar,  muito  irregular  e  é  também  um  fra- 
gmento apenas,  pois  seria  illogico  considerar  obra  acabada 
o  que  é  simples  introducção.  Correspondentemente,  não 
pode  julgar-se  incapaz  de  ser  auetor  duma  segunda  parte 
irregular  o  auetor  duma  primeira  parte  irregular.  Ha  também 
que  attender  á  possibilidade  de  decadência  intellectual  muito 
verosímil  num  engenho,  que  não  foi  genial  e  que  foi  doen- 
tio. A  consideração  destas  objecções  faz-nos  crer,  embora 
nos  inclinemos  á  opinião  corrente,  que  este  problema  con- 
tinuará no  domínio  das  probabilidades,  se  uma  prova  irrefu- 
tável se  não  produzir.  Bernardim  Ribeiro  não  foi  um  génio 
excepcional,  que  não  possa  admittir  a  existência  de  desfalle- 
cimentos,  cum  dormitai  Homcrus,  nem  a  segunda  parte  da 
Menina  e  Moça  é  obra  em  conjuncto  tão  inferior,  que  não 
possua  partes  muito  dignas  da  auetoria  cie  Bernardim  Ribeiro, 
principalmente  os  dezasete  primeiros  capítulos. 


JORGE   FERREIRA 

Jorge  Ferreira  de  Vasconcelios,  neste  livro  já  nomeado 
no  capitulo  sobre  o  theatro  clássico,  publicou  em  1567  o  seu 
Memorial  das  Proezas  da  Segunda  Tavola  Redonda,  que  dedicou 
a  D.  Sebastião.  Presurne-se,  com  verosimilhança,  que  esta 
obra  seja  refundição  de  outra  anteriormente  publicada,  os 
Triumphos  de  Sagramor,  impressa  em  Coimbra,  no  anno  de 
1554.  Depois  de  Barbosa  Machado,  que  a  mencionou  em  sua 
Bibliothcca  Lusitana,  nunca  mais  foi  visto  exemplar  desta 
obra.  Outros  escriptos  de  Jorge  Ferreira  se  perderam  com- 
pletamente antes  de  impressos,  como  o  Dialogo  das  grandezas 
de  Salomão,  Peregrino,  talvez  comedia  na  estruetura  da 
Euphrosina  e  os  Colloquios  sobre  parvos.  Sabe-sc  da  existência 
destas  obras  pelas  referencias  do  Conde  da  Ericeira,  em 
1724,  e  de  Barbosa  Machado.  Constituíam  ellas  o  códice  das 


212  Historia  da  Litteratura  Clássica 

Obras   Moraes   que    se    guardavam    na   livraria  do  Conde  de 
Vimioso,  destruída  pelo  terramoto  de  1755. 

No  prologo  do  seu  Memorial,  reimpresso  em  1867,  Jorge 
Ferreira  accentúa  a  idéa,  muito  corrente  então,  do  poder 
suggestivo  da  leitura  das  acções  heróicas  dos  grandes 
guerreiros,  que  pelo  exemplo  estimulavam  á  pratica  de 
idênticas  façanhas  e,  evocando  a  memoria  do  pae  de 
D.  Sebastião,  o  infante  D.  João,  fallecido  aos  dezasseis 
annos,  declara  que  é  também  para  ensinamento  do  joven 
rei  que  compõe  o  Memorial,  onde  historia  as  proezas  dos 
cavalleiros  da  Tavola  Redonda  e  narra  o  brilhante  torneio, 
que  se  realizara  em  Xabregas,  por  occasião  de  ser  armado 
cavalleiro  o  príncipe  D.  João:  «Pareceo-me  de  obrigação  e 
necessidade  trazer  á  luz  ho  torneo  e  mostra  que  nos  delle 
ficou,  pêra  que  como  os  que  ho  tratamos  temos  na  memoria 
viva  a  dor  de  tal  perda. »  Havemos  de  reconhecer  que  é 
precisa  uma  extrema  benevolência  para  oppôr  ás  longas 
complicadas  e  numerosas  aventuras  da  Tavola  Redonda, 
ainda  que  de  pura  imaginação,  um  simples  torneio  cortesão 
e  a  ephemera  vida  dum  príncipe  obscuro.  Depois  Jorge 
Ferreira  relembra  as  origens  da  ordem  da  cavallaria,  origens 
fabulosas  que  piamente  expõe,  desde  a  sua  creação  por 
Bacho.  O  alegre  deus  do  vinho,  conquistador  da  índia, 
teria  libertado  alguns  companheiros  mais  illustres  de  todo 
tributo  e  servidão,  e  confiára-lhes  o  encargo  de  manter  sobre 
todos  a  lealdade  e  a  verdade,  e  defender  e  amparar  fracas 
mulheres,  a  quem  fosse  feita  injuria.  Alexandre  Magno 
concedera  novos  privilégios  aos  cavalleiros  da  ordem  insti- 
tuída por  Bacho,  permittindo-lhes  o  uso  de  ouro,  purpura  e 
insígnias  reaes,  e  punindo  com  a  pena  de  morte  quem  de 
algum  modo  os  aggravasse;  Octávio  Augusto  concedera- 
lhes  a  regalia  de  jantarem  á  mesa  real.  Foi,  porém,  com  o 
rei  Arthur  que  a  ordem  da  cavallaria  attingiu  grande  desen- 
volvimento e  esplendor.  Por  este  rápido  resumo  se  verá  a 
confusão  histórica,   que   reinava  nalguns    dos  mais  esclare- 


Historia  da  Litteratura  Classi  213 

eidos  cérebros  do  século  XVI,  e  poderá  medir-se  a  grande 
tarefa  da  critica  histórica  para  chegar  a  formular  o  nosso 
corpo  de  idéas.  N 

As  proezas  da  cavallaria,  que  sob  o  rei  Arthur  toma  o 
nome  de  Tavola  Redonda,  preenchem  todo  o  Memorial  desde 
o  capitulo  li  ao  capitulo  XLVI.  São  esses  capítulos  uma 
laboriosa  compilação  de  quantas  façanhas  se  attribuiam  ao 
rei  Arthur  e  seus  principaes  companheiros,  Galvão,  Laça- 
rote,  Tristão,  Galaaz,  etc.  —  compilação  também  de  labo- 
riosa leitura,  porque  os  dotes  litterarios  não  esmaltam  essa 
tortuosa  narrativa.  Segue-se  a  descripção  das  esplendidas 
festas  de  Xabregas,  com  muita  minúcia  e  reconstituição  da 
parte  litteraria,  profusa  de  discursos  muito  rebuscados  que 
substituíam  os  antigos  breves,  como  o  próprio  nome  affirma, 
muito  concisos.  No  final  da  descripção  destas  festas,  Jorge 
Ferreira  annuncia  novo  volume  que  não  chegou  a  appa- 
recer.  , 

O  Memorial  ostenta  os  característicos  ordinários  nas 
obras  do  seu  género,  mas  sem  brilho,  antes  com  exaggero 
dos  defeitos  próprios  da  sua  contextura:  repetição  dos  epi- 
sódios mais  estimados  nas  obras  iniciadoras  dessa  modali- 
dade do  romance;  falta  de  sequencia  através  da  inextricável 
confusão  episódica,  abuso  dos  processos  da  escola  e  a  mono- 
tonia resultante.  Estes  defeitos  cada  vez  mais  avultarão, 
pois  a  invenção  de  proezas  esforçadas  tem  um  limite  de 
variedade,  em  que  logo  começa  a  repetição. 


CAPITULO  VI 

A  HISTORIOGRAPHIA 

Ao  abrir  o  século  XVI,  os  novos  historiadores  encontra- 
ram-se  de  frente  com  duas  correntes  de  opinião  acerca  do 
modo  de  escrever  a  historia  e  da  sua  funcção;  a  que  rece- 
biam da  edade  média,  da  tradição  nacional,  e  a  que  da  nova 
atmosphera  de  ideas  e  valores  litterarios  lhes  vinha.  Consis- 
tia a  tradição  nacional  no  género  chronica,  cultivado  quan- 
tiosa e  valiosamente  desde  que  D.  Duarte  creára  o  cargo  de 
chronista-mór  do  reino,  em  1434  (').  A  instituição  desse  cargo 


(')  O  cargo  de  chronista-mór  do  reino,  creado  pelo  rei  D.  Duarte 
em  1434  e  logo  provido  em  Fernão  Lopes,  é  um  dos  factos  mais  typicos 
da  nossa  historia  litteraria.  Andou  quasi  sempre  ligado  ás  funcções  de 
guarda-mór  do  archivo  da  Torre  do  Tombo.  Desempenhado  com  varia 
regularidade,  existiu  até  1842,  anno  em  que  foi  extincto.  Foi  Garrett  o 
ultimo  chronista-mór  do  reino,  tendo  nessa  qualidade  feito  apenas  uma 
leitura  publica.  Regulamentado  ainda  em  1839,  morreu  de  inanição  após 
a  frustrada  tentativa  de  Garrett  pelo  transformar  numa  espécie  de  vul- 
garização da  historia  por  meio  de  conferencias.  Também  não  surtiu 
efíeito  a  sobrevivência  desse  cargo  sob  a  forma  de  chronista-mór  das 
províncias  ultramarinas,  em  que  Costa  e  Sá  chegou  a  ser  investido.  Se- 
ria de  curiosidade  e  utilidade  fazer  a  historia  deste  cargo  que  durou  qua- 
tro séculos  cumpridos.  Para  esse  estudo,  pódem-se  ver  as  seguintes  fon- 
tes principaes ;  Dissertação  Histórica  e  Critica  para  apurar  o  Catalogo 
dos  Chronistas-móres  do  Reino  e  Ultramar,  Fr.  Manuel  de  Figueiredo, 
Lisboa,  1789,  19  pags;  Breve  Catalogo  dos  C/ironislas  e  escriptores  porlu- 


216  Historia  da  Litteratura  Clássica 

e  as  obras  de  historiadores  como  Fernão  Lopes,  Gomes 
Eannes  de  Azurara,  Ruy  de  Pina,  Garcia  de  Rezende  e 
Duarte  Galvão  bastavam  para  crear  uma  tradição  histórica 
nacionah  opulenta  e  bem  caracterizada.  Bem  caracterizada 
porque  a  chronica  foi  uma  forma  histórica  bem  distincta  das 
outras  já  então  conhecidas  e  exercitadas:  não  se  confundia 
com  a  vida  ou  biographia,  porque  não  era  uma  composição 
intencionalmente  organizada  por  escolha  de  factos  e  com 
estructura  adequada  para  mostrar  o  desenvolvimento  da 
acção  dum  homem  e  a  sua  influencia  sobre  a  sociedade  do 
seu  tempo,  trabalho  de  arte  e  de  psychologia;  não  se  con- 
fundia com  o  retraio  moral,  condensação  da  biographia.  nem 
com  as  memorias,  depoimento  testemunhal,  feito  de  descri- 
pções,  juízos  e  commentarios,  e  do  mais  heterogéneo  con- 
teúdo. A  chronica,  como  o  seu  próprio  titulo  indica,  era 
uma  ordenação  dos  factos  não  em  relação  a  um  fim  deter- 
minado, a  um  objectivo  superior  aos  próprios  factos,  mas 
em  que  esses  mesmos  factos  constituiam  o  objectivo  em 
vista;  o  methodo  único  é  o  critério  chronologico ;  não  cabe, 
pois,  na  chronica,  a  habilidade  artística  da  biographia  nem 
a  perspicácia  psychologica  do  retrato ;  nella  só  se  trata  de 
enseriar  os  factos  argamassados  pela  narrativa  do  chronista. 
Essa  narrativa  seguida  é  que  a  distingue  da  forma  histórica 
immediatamente  inferior,  o  quadro  de  ephemerides,  que  já 


guezes,  que  florescerão  no  assigualado  aano  de  ijouj  a  mais  celebre  epo- 
cha  da  língua  por(ugueza_,  Fr.  Francisco  de  S.  José,  Lisboa,  1804,  22 
pags ;  Memorias  authcaiicas  para  a  historia  do  Real  Archivo,  João  Pedro 
Ribeiro,  Lisboa,  1819;  Gabinete  histórico,  Fr.  Cláudio  da  Conceição, 
Vol.  xii,  Lisboa,  1829,  pag.  xxvi —  l,  peça  preliminar  sob  o  titulo  de  Re- 
flexão  sobre  a  necessidade  de  se  escrever  a  Historia  c  noticia  dos  Qhronis' 
tas-Mórcs  do  Reino  que  tem  havido ;  Historia  dos  Estabelecimentos  Scien- 
UficoSj  Liíterarios  c  Arlisticos  de  Portugal  José  Silvestre  Ribeiro,  Tomo 
vi,  Lisboa,  1876,  pags.  209-220,  298  a  307  e  tomo  ix,  Lisboa,  i88i,pags. 
25-29;  O  Archivo  da  Torre  do  Tombo,  srs.  Pedro  de  Azevedo  e.  António 
Baião,  Lisboa,  1905,  pags.  212-214. 


] listaria  da  Litteratura  Clássica  217 

encontrámos  na  edade  Média.  O  rei  ou  a  alta  personagem 
que  dá  o  titulo  á  chronica  não  é  figura  central,  é  só  uma 
designação  que  fixa  os  limites  de  extensão  da  obra. 

A  expansão  colonial  da  nação  portuguesa  já  introduzira 
uma  variante,  melhor  um  alargamento  das  attribuições  do 
chronista-mór  do  reino,  que  segundo  a  carta  de  nomeação 
de  D.  Duarte  eram  exclusivamente:  «poer  em  caronyca  as 
estorias  dos  Reys  .que  antigamente  em  Portugal  foram». 
Mas  Azurara  já  se  oceupára  dos  governadores  de  Ceuta, 
iniciando  a  chronica  do  ultramar. 

A  corrente  nova  do  quinhentismo  consistia  em  fazer  da 
historia  uma  declarada  apologia  pessoal,  de  intenções  lauda- 
tórias,  didácticas  e  moraes,  segundo  os  modelos  offerecidos 
por  Plutarcho  e  Tito  Livio,  com  accentuação  do  tom  orató- 
rio e  do  tom  épico,  portanto  com  predomínio  dos  elementos 
artísticos  rudimentarmente  contidos  nos  chronicons  medie- 
vaes  e  com  sacrifício  da  serenidade  narrativa  e  da  aprecia- 
ção critica. 

A  ufania  causada  pelas  empresas  militares  de  Portugal, 
os  seus  triumphos  heróicos  concordavam  plenamente  com  a 
tradição  nacional,  com  o  gosto  da  épocha,  para  accentua- 
rem  o  sentimento  épico  que  dominaria  grande  parte  da  his- 
toriographia  quinhentista.  E  dizemos  só  grande  parte  porque 
necessariamente  as  reflexões  e  o  variável  poder  de  imagina- 
ção de  cada  auetor  haviam  de  imprimir  cunho  próprio  nas 
obras;  discernir  essas  impressões  pessoaes  dentro  da  gene- 
ralidade da  concepção  histórica  da  épocha  será  o  objecto 
deste  capitulo.  A  Itália  não  tinha  ainda  modelos  para  apre- 
sentar, porque  os  seus  melhores  historiadores  do  Renasci- 
mento são  contemporâneos  do  intenso  movimento  historio- 
graphico   português    ('),    em   quantia  apreciável   estranho   a 


(1)    É  Machiavelli  (1469-1527)  que  abre  a  galeria  dos  historiadores 
italianos   do   século   xvi,    em    que  figuram  principalmente:   Francesco 


218  Historia  da  Litteratura  Clássica 

influencias  eruditas,  só  suggerido  e  estimulado  pelos  aconte- 
cimentos que  regista.  A  vida  politica  colonial  de  Portugal 
determinará  a  creação  dum  cargo  de  chronista-mór  do  ultra- 
mar e  um  alargamento  considerável  do  quadro  das  matérias 
históricas,  o  qual  comprehenderá  não  só  elementos  militares, 
mas  também  alguns  económicos,  e  dará  grande  attenção  a 
povos  até  então  banidos  da  historia,  povos  de  Africa  e  índia, 
com  seus  costumes,  seu  passado  próprio,  sua  individuali- 
dade. Esse  cunho  de  cosmopolitismo  colonial  é  a  verdadeira 
originalidade  da  nossa  historiographia  quinhentista. 

A  intenção  de  ensinamento  moral  da  historia  já  estava 
expressa  em  vários  passos  dos  chronistas  medievos.  Frei 
João  Alvarez  escrevera:  «A  memoria  das  cousas  passadas 
dá  conhecimento  para  as  do  presente  e  avisamento  das 
que  som  por  vir.  E  asy  os  notavees  factos  dos  antigos  se 
põem  em  escripturas  para  suas  obras  vertuosas  seerem  em 
nembrança  por  ensinança  e  doutrina  de  nos  outros»  ('). 
E  o  anonymo  auctor  da  Chronica  do  Condestavel  exprime 
igual  pensamento:  «Antigamente  foy  custume  fazere  memo- 
ria das  cousas  que  se  faziam :  assy  erradas  como  dos 
valentes  e  nobres  feitos:  dos  erros  porque  se  delles  sou- 
besse guardar.  E  dos  vallentes  e  nobres  feytos  aos  boõs 
fezessem  cobiça  auer  per  as  semelhãtes  cousas  fazerem»  (2). 
Alguma  confissão  deste  género  sobre  o  conceito,  que  da 
historia  formava,  teria  feito  Fernão  Lopes  nalguma  das  suas 
obras  assignadas,  mas  como  o  inicio  da  sua  obra,  certamente 


Guicciardini  (1483-1540) ;  Benedetto  Varchi  (1502-1565) ;  Jacopo  Nar- 
di  (1476-1555);  Bernardo  Legni  (1504-1559);  Francesco  Giambullari 
(1495-1555);  Bernardo  Davanzati  (1529-1606);  Angelo  di  Contanzo 
(1507- 1591);  Camillo  Porzio  (1526-1603)  e  Paolo  Paruta  (1540-1598). 

i1)  V.  Chronica  do  Infante  Santo  D.  Fernando.  Coimbra,  191 1,  ed. 
do  sr.  Mendes  dos  Remédios,  pag.  3. 

■)  Y.  Chronica  do  Condestabre  de  Portugal  Dom  Nuno  Alvares 
Vereira.  Coimbra,  1911,  ed.  do  sr.  Mendes  dos  Remédios,  pag.  1. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  2 1 9 

mais  vasta  que  as  partes  que  conhecemos,  se  perdeu,  com 
elle  desappareceu  também  essa  opinião  do  historiador.  Ruy 
de  Pina  expõe  tarnbem  semelhante  opinião:  « Estorea,  muy 
excellente  Rey,  he  assi  muy  liberal  Princesa  de  todo  b^m, 
que  nunqua  em  sua  louvada  conversação  nos  recolhe,  que 
delia  não  partamos,  sem  em  toda  calidade  de  bondades,  e 
virtudes  spirituaes  e  corporaes  nos  acharmos  logo  outros, 
e  sentirmos  em  nós  hum  outro  singular  melhoramento.  Nem 
he  sem  causa;  porque  a  doutrina  hystorial,  polo  grande 
provimento  dos  verdadeiros  enxemplos  passados  que  con- 
sigo teem,  he  assi  doce  e  conforme  a  toda  a  humanidade, 
que  atem  os  maaos  que  per  lição,  ou  per  ouvida  com  elia 
participam  torna  logo  boõs,  ou  com  desejo  de  o  seer;  e  os 
boõs  muyto  melhores.  Cuja  virtuosa  força  he  tamanha,  que 
per  obras  ou  vontade,  dos  fracos  faz  esforçados,  e  dos 
escassos  liberaaes,  e  dos  crus  piadosos,  e  dos  frios  na  Fé 
Católicos  e  boõs  christaaõs;  e  assi  discorrendo  per  todalas 
outras  virtudes»  (*). 

Esta  doutrina  da  historia  poder  transformar  os  caracte- 
res pelo  exemplo  e  pela  emulação  é  confirmada,  ampliada 
e  vastamente  exemplificada  nas  obras  dos  historiadores 
quinhentistas. 

Como  esta  hi^Loriographia  contém  muito  reduzidos  ele- 
mentos de  arte,  nós  occupar- nos  hemos  mais  em  surprehen- 
der  os  vestígios  da  personalidade  dos  auctores  e  em  exa- 
minar o  conteúdo  das  obras  do  que  em  lhes  fazer  a  critica 
esthetica  que  não  comportam.  Apuraremos  depois  o  cunho 
geral  desta  histori<  .graphia  do  quinhentisrno. 


(!)    V.   C/ironica  d'El-Pá  D.  Dtwrte,  pag.  6ç,  Porto,  1914,  a 
?-.  Alfredo  Coelho  de  Magalhã 


220  Historia  da  Litleratura  Clássica 


DE  BARROS 


Conta  este  historiador  (})  como  a  empresa  de  narrar  os 
altos  feitos  dos  portugueses  nas  partes  do  Oriente  muito 
cedo   lhe  tomara  o  espirito  e  como  compuzéra  a  novella  do 


')  João  de  Barres  nasceu  era  Vizeu  em  1496.  Foi  educado  no  paço, 
esmeradamente  e  em  estreita  amizade  com  D.  Manuel  1  e  D.  João  111. 
Deste  monarcha  recebeu  em  1522  o  governo  do  Castello  de  S.  Jorge 
da  Mina,  em  que  serviu  até  1525.  Neste  anno  teve  a  nomeação  de  thescu- 
reiro  da  Casa  da  índia,  da  Casa  da  Mina  e  da  Casa  de  Ceuta,  cargo  que 
desempenhou  até  dezembro  de  1528,  como  consta  da  respectiva  carta  de 
quitação.  Em  1533  ascendeu  a  feitor  da  Casa  da  Guiné  e  da  Casa  da 
índia,  após  longa  ausência  na  sua  quinta  da  Ribeira  de  Litem,  próxima 
de  Pombal,  para  fugir  a  uma  peste.  Quando  D.  João  111  encetou  a  colo- 
nização do  Brasil,  João  de  Barros  recebeu  a  capitania  de  cincoenta 
léguas  de  costa,  ao  norte,  como  consta  do  respectivo  foral,  de  1535,  mas 
o  naufrágio  da  esquadra  que  armara  e  a  consequente  morte  dos  colonos 
impediram  que  proseguisse  no  seu  einprehendimento  mercantil.  Dos 
seus  redditos  de  funecionario  foi  indemnizando  as  viuvas  e  os  orphãos 
das  victimas  Mas  parece  não  se  haver  quitado  completamente  porque 
por  sua  morte  seus  herdeiros  fizeram  declaração,  datada  de  1577,  de 
que  não  queriam  receber  a  sua  herança  em  vista  das  muitas  dividas  que 
deixava.  Em  1567  renunciou  ao  cargo  de  feitor  das  Casas  da  Guiné  e  da 
índia,  recebendo  então  generosas  doações  para  si,  sua  mulher  e  filhos. 
Passou  os  últimos  tempos  de  sua  vida  na  Ribeira  de  Litem,  onde  morreu 
em  1570.  —  Prepara  urna  sua  biographia  o  sr.  António  Baião,  que  já 
colligiu  importantes  materiaes  para  ella  na  collecção  de  Documentos  iné- 
ditos sobre  João  de  Barros,  sobre  o  escriptor  seu  homonymo  contemporâ- 
neo, sobre  a  f omitia  do  historiador  c  sobre  os  continuadores  das  suas  «Déca- 
das», no  Boletim  da  Segunda  Classe  da  Academia  das  Scicncias, 
vol.  11. o,  Coimbra,  1917,  de  que  nos  soccorremos.  É  lamentável  o  estado 
de  atrazo,  em  que  se  acham  ainda  os  estudos  sobre  João  de  Barros  e 
seus  continuadores.  No  fim  do  século  xvui,  os  philologos  da  Academia 
rejuvenesceram  os  créditos  delle  como  clássico  da  lingua  e  o  P.e  Antó- 
nio Pereira  de  Figueiredo  estudou  mesmo  o  espirito  da  lingua  portu- 
guesa, segundo  as  Décadas;  Delphim  Maia,  em  1852,  e  Pinheiro  Chagas, 


Historia  da  Literatura  Clássica  22  1 

Imperador  Ga /imundo,  «afim  de  aparar  o  estilo  de  minha 
possibilidade  pêra  esta  vossa  Ásia.»  (l) 

Esse  emprehendirnento  ia  ao  encontro  dum  vivo  desejo, 
que  também  alimentavam  os  reis  D.  Manuel  I  e  D.  João  III, 
os  quaes  ainda  não  haviam  conseguido  pessoa  idónea  e  de 
deliberação  que  lhe  desse  execução.  Tomando  cargo  dessa 
ambiciosa  empresa  litteraria,  João  de  Barros  esboçou  um 
vasto  plano  de  construcção  histórica,  que  elle  mesmo  nos 
communicou  e  que  parece  haver  cumprido  em  grande  parte. 
Esse  plano  é  por  elle  referido  no  capitulo  i  da  i  parte  da 
I  Década,  que  de  facto  constitue  um  prologo  a  toda  a  obra 
da  Ásia. 

Na  formação  de  Portugal  e  na  sua  expansão  colonial, 
via  João  de  Barros  três  principaes  aspectos — justamente 
aquelles  mesmos  que  o  rei  D.  Manuel  i  com  justificadas 
razões  enumerava  em  seu  longo  titulo;  conquista,  navegação 
e  çommercio.  Dos  três  se  propunha  tratar.  A  conquista 
comprehendia  toda  a  sua  actividade  militar,  principalmente 
aquella  em  que  as  suas  milicias  propugnavam  a  dilatação 
da  fé  christã;  historiá-la- hia  subdividida  pelas  quatro  partes 
do  mundo  onde  decorrera,  das  quaes  as  correspondentes 
quatro  partes  da  sua  obra  tomariam  o  nome:  Europa,  histo- 
ria da  metrópole,  desde  as  longínquas  luctas  dos  lusitanos 
com  os  romanos;  Africa,  que  principiaria  com  a  tomada 
de  Ceuta;  Ásia,  desde  os  esforços  preliminares  do  infante 
D.  Henrique,  mas  cuja  matéria  principal  desde    1500  seria 


em  1867,  relembraram  a  Ásia  com  admiração  ;  em  1917  o  sr.  António 
Baião  apresentou  a  magnifica  collecção  documentar,  que  ha-de  servir 
de  base  á  nova  biographia  do  escriptor  e  logo  suggeriu  uma  nota  de 
Mr.  Edgar  Prestage  sobre  os  seus  retratos  e  a  reimpressão  do  Dialogo 
em  louvor  da  nossa  linguagem,  dirigida  pelo  sr.  Prof.  Luciano  Pereira 
da  Silva.  Excellente  serviço  foi  também  a  organização  duma  anthologia 
de  Barros  pelo  sr.  Agostinho  de  Campos. 

(')    V.  Ásia,  Década  1,  Parte  1,  Prologo,  ed.  de  Lisboa,  1778. 


222  Historia  da  Litkraíura   Clássica 

seccionada  por  periodos  de  dez  armes  ou  Décadas;  e  Santa 
Crus,  que  se  oceuparia  do  novo  mundo,  desde  a  descoberta 
de  Pedro  Alvares  Cabral.  O  segundo  aspecto,  navegação, 
seria  tratado  em  um  compendio  geral  de geographia^  redigido 
em  latim  para  maior  circulação,  no  qual  se  comprehendia  a 
descripção  de  todos  os  continentes,  ilhas  e  mais  territórios  e 
mares  revelados  pelos  portugueses,  com  noticias  dos  costu- 
mes e  policia  de  seus  habitantes.  E  o  terceiro  aspecto,  com- 
mercio,  daria  objecto  a  uma  espécie  de  systematização  das 
boas,  sensatas  e  regulares  normas  de  trafico,  de  forma  a 
fazè-lo  sahir  dos  domínios  da  arbitraria  ambição  soffrega  e 
sem  escrúpulos,  para  o  morigerar  e  tornar  mais  seguramente 
fecundo.  Melhor  nos  esclarecem  as  suas  próprias  palavras : 
«A  parte  do  Commercio,  porque  elle  geralmente  andava  per 
todalas  gentes,  sem  lei,  nem  regras  de  prudência,  somente 
se  governava,  e  regia  pelo  Ímpeto  da  cubica,  que  cada  hum 
tinha,  nós  o  reduzimos,  e  puzemos  em  arte  com  regras  uni- 
versaes,  e  particulares,  como  tem  todalas  sciencias,  e  artes 
activas  pêra  boa  policia,  onde  particularmente  se  verão 
todalas  cousas  de  que  os  homens  tem  uso,  ou  sejam  natu- 
raes,  ora  artiiiciaes,  com  a  natureza,  e  qualidade  de  cada 
huma  delias,  (segundo  o  que  podemos  alcançar,)  com  as 
mais  partes  de  pezos.  medidas,  &  cetera  que  a  esta  matéria 
convém.  »(1)  Este  vasto  projecto  cremos  que  foi  executado 
em  grande  parte,  porque  no  texto  da  Ásia  repetidamente 
menciona  as  outras  partes  da  obra  (/•')  e  porque  ha  noticia  da 
sua  existência  em  manuscripto.  (3) 


(')     V.  Década  I,  ed.  1778,  pags.  14-15. 

(*)  Na  sua  Década  I  refere-se  a  Europa  a  pags.  137  e  268,  á  Africa 
a  pags.  16,  23  e  133 ;  á  parte  de  Santa  Cruz  a  pags.  389  ca  1  parte  e  20 
da  11  parte;  á  Geographia  a  pags.  79,  221  e  442  da  1  parte.  285  e  323 
da  11  parte. 

(•;)  Os  bibliographos  referem-se  nomeadamente  ao  manuscripto  da 
Geographia  UniversaliSj  ao  ca  Africa  e  a  outro,  que  trata  da  comtnuta- 


Historia  da  Litleraiura  Clássica  223 

Da  Ásia  escreveu  João  de  Barros  quatro  décadas;  a  i.\ 
a  2.a  e  a  3.*  foram  publicadas  em  1552,  1553  e  1563;  e  a  4.% 
após  varias  diligencias  morosas,  foi  publicada  por  João  Ba- 
ptista Lavanha  em  Madrid,  em  1615,  depois  de  reformada 
e  accrescentada.  Portanto,  só  as  três  primeiras  podem  attes- 
tar  authenticamente  sobre  os  méritos  de  João  de  Barros, 
como  historiador.  Vasta  matéria  alcançam  essas  três  déca- 
das, ordenadamente  distribuída. 

Trouxe  João  de  Barros,  formado  na  leitura  fervorosa  de 
Tito  Livio,  duas  novidades  á  nossa  historiographia:  o  pro- 
pósito de  patriótica  glorificação  e  as  preocupações  litterarias. 
Verdadeiramente  estas  novidades  foram  apenas  o  avultar 
com  maior  relevo  de  caracteres  já  implícitos  na  concepção 
histórica  dos  escriptores  precedentes.  Simplesmente,  como 
não  sabiam  pôr  em  historia  o  muito  escrúpulo  scientifico 
que  ella  comporta,  assim  nella  não  punham  o  muito  de  arte 
que  a  mesma  pôde  conter;  um  e  outro  aspecto,  para  occupa- 
rem  na  construcção  histórica  o  vasto  lugar,  que  hoje  senho- 
rêam,  precisavam  do  lento  e  laborioso  progresso  dos  séculos. 
Os  escriptores  precedentes,  fazendo  historia,  apenas  elabo- 
ravam o  que  na  velha  philosophia  se  chamava  conhecimento 
vulgar;  registá-lo  em  bôa  ordem  era  quanto  faziam.  João  de 
Barros,  mais  dominado  por  sentimentos  artísticos  e  patrió- 
ticos, approxima-se  mais  da  forma  superior  do  conhecimento 


ção  e  comr.iercio  com  o  Oriente.  —  O  pensamento  acima  transcripto,  de 
João  de  Barros,  sobre  a  constituição  pelos  portugueses  de  normas  com- 
merciaes,  é  exacto.  Uma  confirmação  delle  é  a  obra  recente  do  sr.  Almi- 
rante Vicente  Almeida  dJEça,  Normas  Económicas  na  Colonisação  Portu- 
guesa até  1808,  Coimbra,  1921, 161  pags.  que,  assente  sobre  os  textos  lega  es 
e  regulamentares,  faz  resaltar  que  a  exploração  mercantil  e  populacional 
das  colónias  tinha  methodos  calculados  e  variáveis  com  as  regiões.  A  obra 
é  muito  breve,  quasi  só  uma  indicação  de  problemas,  mas  tanto?  regista 
e  suggere,  que  poderia  ser  tomada  como  introducção  ou  programma 
duma  serie  de  investigações  sobre  as  praticas  económica-  da  antiga 
colonisação  portuguesa. 


224  Historia  da  Littcr  atura  Clássica 

histórico  porque  organiza  num  todo  concatenado  logica- 
mente os  dados  esparsos,  que  as  informações,  os  depoimen- 
tos escriptos  e  o  seu  testemunho  lhe  proporcionam.  E  esse 
todo  concatenado,  tal  como  elle  o  concebe,  não  pode  conse- 
guir-se,  sem  sacrifício  da  realidade.  Se  o  propósito  que  João 
de  Barros  tem  em  vista  é  o  engrandecimento  caloroso  da 
sua  pátria,  elle  não  poderá  deixar  de  proceder  por  escolha, 
guardando  os  elementos  que  servem  a  esse  propósito  e 
engeitando  os  que  o  contrariam.  Assim  fez,  porque  só  nos 
revelou  os  aspectos  favoráveis  dos  heroes,  dos  guerreiros  e 
navegadores,  que  em  sua  obra  perpassam  e  sendo  benévolo 
para  com  os  nossos  amigos  do  Oriente  e  severo  para  com 
os  nossos  inimigos.  Encarou  a  historia  da  nossa  conquista 
no  Oriente  dum  ponto  de  vista  estrictamente  português  e 
por  isso  não  apontou  o  espirito  intimo,  as  razões  e  intenções 
dominantes  do  procedimento  dos  índios  para  comnosco;  viu 
essa  occupação  militar  e  commercial  só  da  Europa  para  a 
Ásia  e  não  também  da  Ásia  para  a  Europa,  pois  quando 
recorreu  ás  chronicas  asiáticas  o  fez  só  para  bem  apurar 
factos  e  não  para  se  erguer  a  um  ponto  de  vista  mais  cora- 
prehensivo.  Dahi  uma  lamentável  falta  de  espirito  de  pro- 
porção, de  justa  apreciação  dos  factos,  principalmente  na 
sua  grandeza  e  valor.  Esta  voluntária  exaggeração  foi  ser- 
vida pelas  suas  preoccupações  litterarias:  contar  em  bom 
estylo  e  de  modo  convincente  e  communicativo.  Os  discur- 
sos vehementes,  que  na  obra  abundam,  são  uma  consequên- 
cia do  seu  propósito  patriótico,  a  qual  elle  contemplava  já 
prestigiosamente  exemplificada  em  Tito  Lívio.  Do  historia- 
dor romano  tomou  Barros  a  elegância  da  prosa,  a  composi- 
ção equilibrada  até  ao  artificio  —  pois  artificio  é  a  arbitraria 
divisão  em  décadas  —  e  o  gosto  da  rhetorica.  Em  rhetoricos 
bem  fallantes  nos  apparecem  transmudados  os  seus  guerrei- 
ros. Um  sopro  épico  percorre  a  sua  obra,  que  ás  suas  quali- 
dades litterarias  deveu  o  êxito  immediato  que  teve.  Bem  se 
comprehende  como  delia  se  inspirou  tão  funda  e  fecundamente 


Historia  da  Litteratura  Clássica  225 

Camões:  ao  historiador  das  Décadas  e  ao  poeta  dos  Lusíadas 
o  mesmo  propósito  patriótico  os  irmanava.  O  móbil  econó- 
mico das  empresas  ultramarinas  é  repetidamente  apontado, 
mas  João  de  Barros  não  tem  coragem  de  o  apontar  como 
primacial,  ou  essa  verdade  repugnava  aos  seus  sentimentos 
de  catholico,  porque  é  sempre  a  causa  da  religião  que 
occupa  o  primeiro  lugar;  mais  duma  vez  parece  que,  menos 
sincero,  disfarça  o  grande  relevo  que  as  causas  económicas 
tinham  na  determinação  dos  factos,  que  narra. 

E  um  exemplo  desse  embréchado  hybrido  de  espiritua- 
lidade religiosa  e  interesse  mercantil  a  passagem  seguinte, 
de  cujo  typo  muitas  outras  poderíamos  recortar:  <  Vasco  da 
Gama  quando  ouvia  taes  palavras,  sem  leixar  ir  El-Rey 
mais  avante  com  ellas,  disse,  que  verdadeiramente  elle  não 
punha  culpa  cuidarem  delles  muitas  cousas,  porque  grão 
novidade  devia  ser  a  todolos  seus  vassallos  verem  naquellas 
partes  nova  gente  em  religião,  e  costumes ;  e  mais  vindos 
per  caminho  nunca  navegado,  com  embaixada  de  hum  pode- 
roso Rey,  que  não  pertendia  mais  interesse  que  sua  ami- 
zade, e  communicação  de  commercio,  pêra  dar  nova  sahida 
ás  especiarias  daquelle  seu  Reyno  Calecut ;  porque  homens, 
armas,  cavallos,  ouro,  prata,  seda,  e  outras  cousas  á  humana 
vida  necessárias  no  seu  Reyno  ás  havia  tão  abastadamente, 
que  não  tinha  necessidade  de  as  ir  buscar  aos  alheios,  e 
mais  tão  remotos  como  eram  os  da  índia ;  porem  sabendo 
elle  Çamorij  o  que  El-Rey  seu  senhor  quiz  de  mil  e  seiscen- 
tas léguas  de  costa,  que  elle,  e  seus  antecessores  mandaram 
descobrir,  haveria  não  ser  nova  cousa  enviar  mais  avante 
per  esta  mesma  costa  té  chegar  a  sua  Real  Senhoria,  cuja 
fama  era  muito  celebrada  na  Christandade.  E  nestas  mil  e 
seiscentas  léguas  que  mandou  descubrir,  achando-se  muitos 
Reys,  e  Príncipes  do  género  Gentio,  nenhuma  cousa  quiz 
delles,  somente  doctrinallos  em  a  Fé  de  Christo  Jesus  Re- 
demptor  do  Mundo,  Senhor  do  Ceo,  e  da  Terra,  que  elle 
confessava,   e  adorava'  por  seu  Deos,  por  louvor,  e  serviço 

H.  da  L.  Clássica,  l.°  vol.  15 


226  Historia  da  Litteratura  Clássica 

do  qual  elle  tomava  esta  empreza  de  novos  descubrimentos 
da  terra.  E  com  este  beneficio  da  salvação  das  almas,  que 
El-Rey  D.  Manuel  procurava  áquelles  Reys,  e  povos,  que 
novamente  descubria,  também  lhes  enviava  navios  carrega- 
dos de  cousas  de  que  elles  careciam,  assi  como  cavallcs, 
prata,  seda,  pannos,  e  outras  mercadorias.  Em  retorno  das 
quaes  os  seus  Capitães  traziam  outros,  que  havia  na  terra, 
que  era  marfim,  ouro,  malagueta,  pimenta,  clous  géneros 
d'especiaria  de  tanto  proveito,  e  tão  estimada  nas  partes  da 
Christandade,  como  a  pimenta  daquelle  seu  Reyao  de  Ca- 
lecut. Com  as  quaes  commutações,  os  Reynos  que  sua  ami- 
zade acceptavam,  de  bárbaros  eram  feitos  políticos,  de  fracos 
poderosos,  e  ricos  de  pobres,  tudo  á  custa  dos  trabalhos,  e 
industria  dos  Portuguezes.  Nas  quaes  obras  El-Rey  seu  Se- 
nhor não  buscava  mais  que  a  gloria  de  acabar  grandes 
cousas  por  serviço  de  seu  Deos,  e  fama  dos  Portuguezes»  f1). 
Se  as  coisas  assim  se  houvessem  passado,  se  Vasco  da 
Gama  houvesse  exposto  esta  philosophia  dos  descobrimen- 
tos marítimos,  de  euphemismos  que  são  hypocrisias,  segundo 
a  qual  os  portugueses  se  aventuravam  a  tantos  perigos  e 
sofírimentos  só  para  enriquecerem  e  felicitarem  os  povos  do 
Oriente,  o  soberano  de  Calicut  e  a  sua  corte  ririam  a  bom 
rir.  A  mesma  disposição  insincera  de  fechar  o  espirito  á 
verdade  evidente,  porque  repugnava  a  um  espirito  grave  e 
austero  a  grossaria  do  factor  económico,  encontramos  no 
capitulo  em  que  o  historiador  explica  por  que  trocou  o 
vulgo  o  nome  de  Santa  Cruz  pelo  de  Brasil. 

E  também  por  critério  religioso  que  João  de  Barros 
classifica  os  povos  com  que  os  portugueses  tratavam  no  ul- 
tramar: christãos,  judeus,  mouros  e  gentios.  Com  os  dois 
últimos  pugnava  Portugal,  por  Deus  destinado  a  os  perse- 
guir sem  tréguas.  Desses  mouros  e  gentios  nos  descreve  o 


(')    V.  Dccada  T,  Pags.  346-348,  ed.  de  1778. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  227 

historiador  a  situação  geographica,  os  costumes,  modos  de 
governo  e  administração,  como  faziam  a  «guerra,  se  arma- 
vam cavalleiros  e  o  cerimonial  de  suas  cortes.  E  por  João 
de  Barros  que  o  exotismo  pittoresco  entra  na  nossa  histo- 
riographia.  Mas  o  sentimento  que  lhe  abre  as  portas  não  é 
uma  curiosidade  sympathica,  nem  o  gosto  da  cor  local;  é 
ainda  o  intuito  patriótico:  mostrar  as  desvairadas  e  podero- 
sas gentes  que  os  portugueses  revelaram,  trataram  e  domi- 
naram no  Oriente.  E  para  surprehender  é  a  franqueza  com 
que  Barros  confessa  o  seu  assombro  pelas  coisas  da  China, 
tão  inesperadas  para  um  europeu,  de  educação  clássica  e 
todo  ufano  da  sua  pátria,  que  chegou  a  sentir  esta  perplexi- 
dade de  duvida.  Ao  contrario  do  que  se  espera,  depois  cie 
ver  o  perfil  que  do  infante  D.  Henrique,  João  de  Barros  não 
nos  deu  retratos  das.  personagens  da  sua  épica  historia. 

Aias,  mesmo  com  taes  caracteres  e  até  por  via  delles  e 
porque  muito  bem  distribuiu  a  sua  matéria  e  ordenou  a  nar- 
rativa, sem  deslocar  partes  inopportunas,  mas  sem  deixar 
de  a  outras  partes  ir  buscar  o  que  era  legitimamente  neces- 
sário para  boa  intelligencia,  a  obra  histórica  de  João  de 
Barros  é  uma  das  melhores  do  nosso  quinhentismo  ('). 

Da  Ásia,  João  de  Barros  apenas  viu  publicadas  as  três 
primeiras  décadas,  que  alcançam  o  percurso  chronologico 
que  vae   da   fundação    do    vice-reinado  até    ao    governo   de 


(')  Todos  os  historiadores  do  século  xvi  grandemente  utilizaram 
os  primeiros  chronistas,  chegando  a  copiá-los  textualmente  em  muitos 
passos.  A  João  de  Barros  faz  o  sr.  Th.  Braga,  em  pag.  254  do  seu  Curso 
de  Historia  de  Litterc-tura  Portuguesa,  Lisboa,  1885,  a  seguinte  aceusa- 
çâo  :  «  Plagia  no  primeiro  livro  das  Décadas  a  Chronica  de  Azurara, 
fiado  na  existência  do  único  exemplar  manuscripto  que  possuía.. .».  Ora 
n  pag.  31  da  i.a  Parte  da  a.»  Década  declara  João  de  Barros,  a  propósito 
de  Azurara:  «  Gomezeanes  de  Zurara,  que  foi  Chronista  destes  Reynos, 
de  cuja  escritura  nós  tomamos  quasi  todo  o  processo  do  descubrimento 
de  Guiné,  (como  se  adiante  verá)...».  É  legitima  a  aceusação  a  Barros 
assacada  pelo  sr.  Th.  Braga? 

* 


228  Historia  da  IAtteratura  Clássica 

D.  Henrique  de  Menezes:  1500- 15 26.  A  quarta  só  posthu- 
mamente  foi  publicada  por  João  Baptista  Lavanha  ("),  que  a 
reformou  e  additou.  Mas  aquelle  vasto  monumento  histo- 
riographico,  o  mais  importante  desta  primeira  epocha  do 
classicismo,  apesar  de  representar  apenas  um  cunhal  da 
ambiciosa  fabrica  delineada  por  João  de  Barros,  não  deixou 
de  attrahir  outros  espiritos  e  teve  continuadores.  Filippe  11 
nomeou    chronista-mór  da  índia  a  Diogo  do  Couto  (2),   que 


('■)  João  Baptista  Lavanha  nasceu  em  Lisboa  antes  de  1555.  Sob  o 
patrocínio  de  D.  Sebastião  estudou  em  Roma  humanidades  e  sciencias 
exactas,  vindo  a  ser  muito  perito  em  mathematicas.  Filippe  11  de  Hes- 
panha  nomeou-o  cosmographo-mór  do  reino  e  Filippe  m  confiou-lhe  a 
educação  scientifica  do  príncipe,  depois  Filippe  iv,  e  nomeou-o  chronis- 
ta-mór do  reino.  Deixou  numerosas  obras  de  cosmographia,  pela  maior 
parte  inéditas,  e  como  chronista  narrou  a  viagem  de  Filippe  11  a  Portu- 
gal, numa  publicação  castelhana  de  1622  e  promoveu  a  edição  da  4.a 
década  de  Barros,  a  que  juntou  notas  geographicas.  Foi  tombem  elle 
quem  achou  na  Bibliotheca  do  Escuiial  o  nobiliário  do  Conde  D.  Pedro 
de  Barcellos,  que  o  2.0  Marquez  de  Castello  Rodrigo,  filho  de  Christo- 
vam  de  Moura,  fez  estampar  em  Roma,  1640.  Morreu  em  Madrid,  em 
1625. 

(2)  Nasceu  Diogo  do  Couto  em  Lisboa,  no  anno  de  1542.  Foi 
educado  em  casa  do  infante  D.  Luiz,  em  companhia  do  filho  deste, 
D.  António,  Prior  do  Crato,  e  sob  a  direcção  de  D.  Fr.  Bartholomeu  dos 
Maríyres,  então  no  Convento  de  S.  Domingos  de  Bemfica.  Em  1559 
partiu  para  a  índia,  onde  militou  activamente,  e  em  1570  veio  a  Portu- 
gal, desde  Moçambique  na  companhia  de  Camões,  «  aquelle  Princepe 
dos  Poetas  do  seu  tempo,  meu  matalote  e  amigo  Luiz  de  Camões,  tão 
pobre  que  comia  de  amigos. . .»  Regressando  de  novo  á  índia,  projectou 
escrever  uma  historia  contemporânea  daquelle  Estado,  mas  por  suggestão 
de  Filippe  n,  que  o  nomeou  chronista  official  das  coisas  da  índia  em  1595 
e  sempre  protegeu  o  seu  emprehendimento  litterario,  veio  a  proseguir 
a  Ásia  de  Barros.  As  suas  décadas  soflreram  contratempos  grandes,  em 
contraste  da  alta  protecção  de  Filippe  n :  a  sétima  perdeu-se  na  tomada 
da  nau  Santiago  pelos  ingleses,  e  a  oitava  e  a  nona  foram-Ihe  roubadas 
de  casa,  achando-se  doente,  pelo  que  teve  de  reescrevê-las,  mas  mais 
abreviadamente  do  que  antes  fizera;  e  a  sexta,  apenas  impressa,  ardeu 
quasi  totalmente  em  casa  do  impressor.  Também  o  Dialogo  do  Soldado 


Historia  da  Litteraiura  Classim  229 

escreveu  as  décadas  quarta  a  duodécima;  a  quarta,  editada 
em  1607,  é  uma  repetição  da  matéria  tratada  por  Barros  na 
sua  quarta,  só  conhecida  depois  que  Lavanha  a  publicou,  e 
a  duodécima  ficou  incompleta  e  deveu  a  sua  divulgação  a 
Manuel  Fernandes  Villa  Real,  cm  Paris,  1645,  nome  triste- 
mente celebre  como  victima  do  Santo  Orficio  (!).  Posterior- 
mente, António  Bocarro  (-)  escreveu  a  década  decima-terceira, 
em  duas  partes  e  só  publicada  em  1876,  por  diligencias  da 
Academia  Real  das  Sciencias,  que  confiou  a  edição  a  Lima 
Felner.  Xarrando  Bocarro  os  succcssos  do  governo  do 
20.0  vice-rei  D.  Jeronymo  de  Azevedo,  a  Ásia  veio  a  abran- 
ger na  sua  exposição  o  curriculo  de  1500  a  16 17,  mas  não 
seguido  regularmente,  porque  a  década  undécima  de  Couto 
perdeu- se,  a  duodécima  não  se  concluiu  e  da  parte  escripta 
desta  ao  principio  da  de  Bocarro  medeiam  os  doze  annos 
dos  governos  de  Ayres  de  Saldanha,  D.  Martins  Affonso  de 
Castro,  D.  Frei  Aleixo  de  Menezes,  André  Furtado  de  Men- 
donça e  Ruy  Lourenço  de  Távora. 

Pôde  comparar-se  a  Ásia  do  quinhentismo  com  a  Monar- 
chia  Lusitana,  do  seiscentismo,  ambas  delineadas  por  um 
chefe  de  escola  e  continuadas  por  uma  plêiade  de  histo- 
riadores que,  a  despeito  do  inevitável  variar  dos  seus  tem- 
peramentos litterarios,  se  deixou  irmanar  na  mesma  con- 
cepção histórica.  A  Ásia  é  obra  do  enthusiasmo  épico  pelas 


Pratico  foi  subtrahido  e  teve  de  ser  reescripto.  Couto  casou-se  em  Gòa 
com  uma  irmã  de  Frei  Adeodato  da  Trindade.  Morreu  em  Gòa  no  fim 
de  1616.  Frei  Joaquim  Forjaz,  Memorias  de  Lit  ler  atura,  i.°  vol.,  revelou 
a  existência  de  alguns  mss.  de  Couto  no  Convento  da  Graça. 

(l)  V.  o  opúsculo  de  José  Ramos  Coelho,  Manuel  Fernandes  Villa 
Real  c  o  seu  processo  na  Inquisição  de.  Lisboa.  Lisboa,  1894. 

(*)  EJ  mal  conhecida  a  vida  de  António  Bocarro.  Lima  Felner,  que 
dirigiu  a  edição  académica  da  sua  obra,  não  pôde  prefaciá-la  por  ter 
cegado.  Apenas  se  descobriram  então  seis  documentos  respeitantes  ás 
suas  obras.  Foi  nomeado  guarda-mór  do  archivo  da  índia  em  1631  Dei- 
xou numerosas  obras  inéditas.  Deve  ter  morrido  pouco  antes  de  1649. 


230  Historia  da  LÀtteratura   Clássica 

conquistas  e  navegações  orientaes,  inspira-a  uni  alto  senti- 
mento de  orgulho  e  vitalidade;  a  Monarchia  é  obra  de  pro- 
phetisrno  messiânico,  de  que  o  espirito  critico  desertou.  De 
Fr.  Bernardo  de  Brito  a  Fr.  Manuel  dos  Santos  ha  uma 
evidente  decadência,  após  o  élo  superior  que  António  Bran- 
dão representa;  também  de  Barros  a  Bocarro  ha  declínio, 
porque  este  é  menos  escriptor  que  Barros  e  menos  histo- 
riador que  Couto,  dos  três  irrefragavelmente  o  melhor 
dotado  para  tal  empresa:  viveu  no  oriente  e  conheceu  os 
lugares  e  muitas  das  pessoas  que  intervieram  nos  successos 
que  conta,  teve  á  mão  a  massa  documentar  do  archivo  de 
Gôa,  de  que  foi  chefe,  cuidou  mais  da  realidade  que  do 
effeito  artístico,  fito  primacial  de  Barros,  e  não  deixou 
obumbrar  o  seu  natural  espirito  critico  com  a  commovida 
admiração  das  façanhas  heróicas.  Testemunha  da  mudança 
dos  costumes  e  de  moralidade  politica,  operada  no  Oriente 
entre  os  portugueses  pela  cubica,  não  se  temeu  de  a  registar, 
abonar  concretamente  e  censurar.  E  para  mais  de  espaço  a 
verberar  compôs  o  pittoresco  e  elucidativo  Dialogo  do  Sol- 
dado Pratico,  pamphleto  de  critica  politico-social  contempo- 
rânea. Bocarro  alimenta  o  mesmo  escrupuloso  amor  da  ver- 
dade, mas  é  ainda  menos  escriptor  que  Diogo  do  Couto. 
Este  deixou  ainda  uma  Vida  de  D.  Paulo  de  Li?na  Pereira, 
heroe  de  famosas  façanhas  no  Oriente,  que  morreu  em  Africa 
em  trágicas  condições  na  viagem  de  regresso  ao  reino.  Esta 
obra  permaneceu  inédita  até   1765. 

DAMIÃO  DE  GÓES 

O  historiador  Damião  de*Goes,  Q)  tão  famoso  peia  sua 
obra  litteraria  como  pela  sua  vida  variada  de  episódios,  nas- 
ceu em  Alemquer  no  anno  de  1502,  sendo  filho  dum  fidalgo 


(*)     Ao  contrario  do  atrazo  apontado  a  respeito  de  Barros,  os  estu- 
dos goesianos  estão   muito  adiantados.  Irdciou-os  A.  P.  Lopes  de  Men- 


Historia  da  Lit  ter  atura  Clássica  231 

ao  serviço  do  infante  D.  Fernando,  pae  de  D.  Manuel  I,  e 
duma  senhora  de  sangue  flamengo,  por  ser  filha  e  neta  de 
commerciantes  daquella  nacionalidade  que,  vindos  a  Portu- 
gal em  negócios  diplomáticos,  aqui  se  fixaram  a  exercer  a 
sua  profissão.  Em  151 1  foi  admittido  no  paço  do  rei  ventu- 
roso e  ahi  começou  os  seus  estudos ;  lá  se  conservou 
até  á  morte  de  D.  Manuel  1  em  152 1,  havendo  noticia  de 
receber  moradia  régia  desde  15 18,  como  moço  da  camará 
do  soberano.  De  D.  João  111  continuou  a  receber  a  mesma 
protecção,  e  uma  das  suas  demonstrações  foi  a  nomeação, 
que  teve  para  o  cargo  de  escrivão  da  nossa  feitoria  commer- 
cial  de  Flandres  Ç),  espécie  de  succursal  e  armazéns  do  com- 
mercio  português  em  Antuérpia.  Para  ahi  partiu  em  1523, 
na  armada  de  Pedro  Affonso  de  Aguiar,  assistindo  no  cami- 
nho a  um  recontro  das  esquadras  inglesa  e  francesa  no  canal 
de  Inglaterra. 

No  meio  de   elevada  cultura  litteraria   e  artística,  que 
era  então   a  Flandres,   Damião   de  Góes  pôde  satisfazer  as 


donça  em  1858  e  proseguiram-nos  com  perseverança  e  methodo  seguro 
os  srs.  Joaquim  de  Vasconcellos,  Sousa  Viterbo  e  Guilherme  Henriques 
(Carnota).  Modernamente,  o  sr.  António  Baião  referiu-se  ainda  ao  seu 
processo  no  Santo  Officio,  o  sr.  Edgar  Prestage  publicou  o  manuscripto 
dum  censor  da  Chronica  de  D.  Manuel,  e  os  srs.  Fortunato  de  Almeida 
e  Eduardo  Moreira,  com  pontos  de  vista  oppostos,  occuparam-se  da 
heterodoxia  de  Góes,  particular  já  versado  em  1880  por  Menéndez  y 
Pelayo.  Deste  modo,  os  materiaes  eram  já  numerosos  para  fundamentar 
a  urdidura  duma  biographia  sequente,  trabalho  meritório  que  levou  a 
cabo  com  pleno  êxito  o  sr.  Prof.  Maximiano  de  Lemos  na  Revista  da 
Historia,  vols.  9.0,  10. °  e  11. °,  1920-1922.  —  A  enumeração  dos  estudos 
goesianos  pôde  ver-se  a  pags.  195-200  da  nossa  Critica  Litteraria  como 
Sciencia,  3.*  ed. 

(')  Damião  de  Góes  trabalhou  na  feitoria  de  Flandres  primeira- 
mente em  alguma  situação  mais  subalterna,  porque  só  foi  escrivão, 
quando  Ruy  Fernandes  ascendeu  a  feitor.  Sobre  a  feitoria  de  Flandres 
veja-se  o  estudo  de  A.  Braamcamp  Freire  no  Archivo  Histórico  Portu* 
guêSj  vols.  6.c  e  7.0,  Lisboa,  1908-1909. 


232  Historia  da  Litteratura  Clássica 

exigentes  necessidades  do  seu  espirito,  tão  dado  aos  estu- 
dos humanísticos  como  ao  cultivo  das  bellas  artes,  musico 
como  era  e  collecionador  de  quadros.  Já  porque  a  natureza 
do  cargo  se  prestava  á  attribuição  de  funcções  consulares  e 
diplomáticas,  já  porque  entretanto  havia  Damião  de  Góes 
grangeado  considerável  prestigio,  recebeu  varias  incumbên- 
cias diplomáticas,  como  ir  em  1529  á  Polónia,  á  corte  do 
rei  Segismundo,  então  residindo  em  Wilna,  á  Prússia;  em 
1530  á  Hollanda;  em  1531  de  novo  á  Polónia,  para  negociar 
o  casamento  do  infante  D.  Luiz.  Pouco  depois,  ainda  em 
serviço  do  rei  D.  João  ni,  foi  ás  cortes  da  Dinamarca  e  da 
Suécia.  Em  missão  commercial,  foi  também  á  Bósnia.  Nessas 
digressões,  Damião  de  Góes  não  se  limitou  ao  estricto 
desempenho  das  incumbências,  que  lhe  haviam  sido  com- 
mettidas;  obrigado  pela  forma  lenta  por  que  então  se 
faziam  tão  longas  viagens,  demorava- se  nas  cidades  princi- 
paes  do  trajecto,  procurava  os  homens  mais  ndtaveis  e  com 
elles  convivia. 

Era  nessa  epocha  a  Allemanha  theatro  da  batalha 
acérrima  da  reforma  religiosa,  e  batalhadores  de  pugna 
gigantesca  eram  alguns  dos  amigos  intellectuaes  cem  que 
Damião  de  Góes  privara :  a  figura  principal  desse  movi- 
mento, Martinho  Luthero,  e  Filippe  Melanchton,  também 
em  grande  evidencia,  que  frequentou  em  Wiburgo;  Munster 
e  Grynius,  de  Basiléa.  Estas  relações  tanto  contribuíram 
para  sua  elevação  espiritual  e  gloria  como  para  a  sua  per- 
dição no  futuro. 

Em  1533,  sendo  chamado  d  Lisboa,  recebe  de  D.  João  111 
a  offerta  do  rendoso  cargo  de  thesoureiro  da  Casa  da 
índia,  mas  pretextando  a  promessa  duma  romaria  a 
Sant'Iago  de  Compostella,  dahi  escreve  ao  rei,  a  pedir  que 
o  dispense  de  acceitar  essa  mercê  e  lhe  permitta  regressar 
ao  estrangeiro.  Habituára-se  á  vida  de  largo  convívio 
intellectual  do  estrangeiro,  á  vida  militante  da  intelligencia 
e  não  desejava  trocá-la  pela  immobilidade  dum  funecionario 


Historia  da  Litleratura  Clássica  233 

absorvido  pelo  seu  cargo  num  meio,  que  estava  longe  de  se 
comparar,  em  cultura  de  espirito,  ás  cidades  que  percorrera 
e  em  que  se  relacionara.  Regressando  á  Europa  septen- 
trional,  visita  Erasmo,  que  o  hospeda  na  sua  casa  de  Fri- 
burgo,  em  1534;  vae  a  Antuérpia  cuidar  dos  negócios  á 
sua  guarda  e  depois,  propondo-se  conhecer  outro  aspecto  da 
vida  culta  do  estrangeiro,  a  outra  linha  da  batalha  religiosa, 
visita  a  Itália.  Em  Pádua,  cuja  universidade  frequentou,, 
viveu  alguns  annos  em  cordeal  convívio  com  o  cardeal 
Jacob  Saddoleto.  Em  1538  já  se  achava  de  volta  á  Flan- 
dres, onde  casou  com  uma  senhora  nobre  flamenga,  Joanna 
van  Hargen. 

Recomeçando  as  suas  digressões,  Damião  de  Góes 
volta  á  Itália,  demorando-se  em  Roma,  visita  as  cortes  de 
Inglaterra,  (J)  França,  Hungria  e  Bohemia,  e  determinase  por 
fim  a  fixar  a  sua  residência  em  Brabante,  cidade  de  Lo- 
vaina,  sede  duma  celebre  universidade.  Ahi  viveu  algum 
tempo,  dando-se  ao  estudo  das  humanidades,  ao  cultivo  das 
artes  e  ao  convívio  dos  bons  espíritos,  quando  em  1542  a 
cidade  foi  cercada  por  um  exercito  de  Francisco  1,  de 
França.  Apesar  de  estrangeiro  e  residindo  havia  pouco 
tempo  na  cidade,  recebeu  a  honra  sem  par  de  ser  um  dos 
escolhidos  para  organizar  e  dirigir  a  defeza  militar  da 
cidade.  Os  outros  escolhidos  eram  nobres,  naturaes  do  paiz; 
era  portanto  elle  o  único  estrangeiro.  Este  facto  necessitava 
uma  explicação  mais  pormenorizada,  mas  a  ignorância  das 
circumstancias  que  rodearam  este  episodio,  torna  tal  expli- 
cação impossível.  Levantado  o  cerco  precipitadamente, 
Damião  de  Góes,  que  se  achava  fora  da  cidade  em  nego- 
ciações com  os  sitiantes,  é  aprisionado  e  conduzido  a  França, 
onde  sendo  julgado  boa  presa  é  internado  como  prisioneiro  de 
guerra    á   espera   de    resgate,    que   só    conseguiu    mediante 


(1)     São  muito   vagas  as  noticias  da  sua   estada    em    Inglaterra. 
V.  Dr.  Maximiano  de  Lemos,  Revista  de  Historia,  vol.  g.°,  pag.  214. 


234  Historia  da  Litter atura  Clássica 

elevada  quantia.  Estes  serviços  foram  reconhecidos  por 
Carlos  v,  sob  cujo  sceptro  jazia  então  a  Flandres,  e  por  elles 
recebeu  deste  soberano  um  brazão  de  armas. 

Chamado  á  corte  por  D.  João  in,  chega  a  Évora  em 
1543  e  recebe  a  nomeação  de  guarda-mór  do  archivò  da  Torre 
do  Tombo,  em  1548,  em  substituição  interina  de  Fernão  de 
Pina,  filho  do  chronista  Ruy  de  Pina.  Terminava  deste  modo 
a  quadra  internacional  da  sua  vida,  durante  a  qual  se  não 
limitara  ao  exercicio  do  seu  cargo  commercial,  das  suas 
missões  diplomáticas,  á  convivência  brilhante  e  ao  estudo 
assíduo,  antes  procurara  litterariamente  ser  o  mesmo  distin- 
cto  embaixador  que  era  no  mundo  dos  negócios,  pois  em 
pequenas  obras  em  latim,  a  lingua  internacional  de  então,  pro- 
movia a  divulgação  dos  descobrimentos  dos  portugueses,  das 
suas  façanhas  militares  em  Africa  e  na  índia,  e  dava  noticias 
dos  novos  domínios  devassados  pelos  conquistadores  portu- 
gueses, sempre  defendendo  e  engrandecendo  o  bom  nome 
português.  Foi  este  nobre  propósito  que  dictou  a  publicação 
da  pequena  obra  descriptiva  Hispânia,  calorosamente  lou- 
vada por  Pedro  Nannio,  professor  da  Universidade  de 
Lovaina  e  seu  amigo,  como  também  inspirou  a  obrinha 
Hispânia?  adversus  Munsierum  defensio,  em  que  repudiava  as 
severas  apreciações  que  do  caracter  e  da  policia  dos  costu- 
mes peninsulares  fizera  Sebastião  Munster  na  sua  Cosmogra- 
p/iia.  Ainda  sobre  o  mesmo  assumpto  travou  correspondên- 
cia com  Jacob  Fuggerum.  A  pedido  do  cardeal  Bembo,  o 
auctor  dos  Asolani,  escreveu  uma  narração  da  tomada  de 
Diu,  Dicnsis  Nobilissimcc  Carmanicv  sev  Cambaice  urbis  oppugna- 
tio.  Vulgarizava  as  bellezas  de  Lisboa  na  eloquente  e  eru- 
dita Urbis  Olisiponis  Descriptio,  que  dedicou  ao  cardeal 
D.  Henrique,  então  ainda  infante.  Com  Paulo  Jovio  discute 
questões  varias  sobre  os  feitos  e  sobre  o  império  português. 
Ao  papa  Paulo  111  dedicou  o  seu  opúsculo  acerca  do  reino 
do  Preste  João,  Fides,  Religio,  Moresque  Aetkiopum,  nova  pro- 
víncia  da   christandade   com    quem   os   portugueses  haviam 


Historia  da  Lilteratura  Clássica  235 

conseguido  estreitar  relações.  O  theor  dessas  mesmas  rela- 
ções entre  o  negus  e  os  reis  de  Portugal  é  também  des- 
cripto  por  Damião  de  Góes,  que  transcreve  algumas  i 
entre  esses  soberanos  trocadas.  Ao  mesmo  pontífice  dirigia 
uma  carta  sobre  os  povos  nórdicos,  Dcploratio  Lappiance 
gentis,  inspirada  em  vivos  sentimentos  de  philanthropia  e 
num  grande  interesse  de  zelar  pela  unidade  da  fé  christã. 
Dedicado  ao  infante  D.  Luiz.  fazia  correr  outro  opúsculo 
acerca  do  segundo  cerco  de  Diu,  De  Be  lio  Cambaico  Secundo 
Commentarii  Três.  Esta  obra  de  hábil  diplomacia  patriótica  e 
intellectual,  combinada  á  convivência  selecta  que  manteve 
em  todos  os  principaes  centros  da  Europa,  faz  de  Damião 
de  Góes  uma  figura  brilhante  do  nosso  século  xvj  e  por 
esse  aspecto  não  menos  meritório  que  pelo  de  historiador. 
A  predilecção  da  aventura  e  da  viagem  por  dilatados  mun- 
dos, em  que  os  portugueses  tanto  se  compraziam  que  para 
a  exprimir  crearam  uma  litteratura  bem  caracteristicamente 
original,  como  em  seu  próprio  lugar  diligenciaremos  eviden- 
ciar—  a  esse  gosto  da  aventura  deu  Damião  de  Góes  uma 
forma  sua.  O  sentimento  era  o  mesmo,  mas  as  formas  em 
que  o  vasaram  Fernão  Mendes  Pinto  ou  Damião  de  Góes  é 
que  foram  diversas.  Damião  de  Góes  preferiu  divagar  pelos 
mundos  novos  do  pensamento,  contemplar  os  novos  hori- 
zontes rasgados  á  vida  europêa  pelo  humanismo,  pela  re- 
forma, pelo  absolutismo  monarchico,  pelas  descobertas  scien- 
tificas,  pelas  viagens  e  conquistas  dos  portugueses;  por  isso 
viajou  pela  Europa,  seguindo  esse  pendor  de  deambulação  e 
de  maravilhoso  intellectual,  buscando  não  o  exotismo  lon- 
gínquo dos  mundos  revelados  pelos  seus  compatriotas,  mas 
o  exotismo  e  a  novidade  á  velha  intelligencia  europêa  reve- 
lados por  todos  os  obreircs  do  grande  movimento  da  renas- 
cença e  do  humanismo. 

Para  que  assim  tão  fácil  e  promptamente  se  deslocasse  e 
percorresse  paizes  tão  diversos,  em  tempo  de  diíílcilimas  cora- 
municações,  e  para  tào  rapidamente  se  adaptar  a  meios  diffe- 


23ô  Historia  da  Litteratura  Clássica 

rentes  e  se  insinuar,  creando  por  toda  a  parte  amizades  e 
dedicações,  era  necessário  não  ser  um  sedentário,  antes  ser 
um  homem  de  acção,  de  prompta  deliberação.  E  que  o  era 
demonstra-o  a  sua  defeza  da  cidade  de  Lovaina.  A  versatili- 
dade do  seu  espirito,  dado  ás  humanidades,  á  admiração 
das  artes,  ao  cultivo  da  musica,  á  pratica  dos  neg'ocios 
cornmerciaes  e  politicos  e  aos  assumptos  militares,  eviden- 
cia também  nelle  aquella  admirável  multiplicidade  de  apti- 
dões, que  caracteriza  a  mentalidade  dos  homens  superiores 
da  renascença. 

Encarregado  de  escrever  a  Chronica  de  D.  Manuel  T, 
desse  encargo  se  desempenhou  desde  1566. 

As  suas  relações  com  os  homens  mais  notáveis  dos  pai- 
zes  do  norte,  partidários  da  reforma  religiosa,  tornaram-no 
suspeito  de  heterodoxia,  pelo  que  o  provincial  dos  jesuí- 
tas, Simão  Rodrigues,  o  denunciou  em  154.5  á  Inquisição  de 
Évora,  denuncia  que  não  teve  seguimento ;  a  que  o  mesmo 
delator  apresentou  em  1550  ficou  também  sem  resultado. 

Xa  capital  vivia  uma  vida  de  conforto,  de  elegância  es- 
piritual, reunindo  quadros,  fazendo  musica  e  recebendo  em 
casa  os  melhores  espíritos  do  tempo,  como  João  de  Barros 
que  apadrinhou  um  seu  filho.  Em  sua  casa  recebeu  os  emis- 
sários estrangeiros,  que  em  1565  vieram  buscar  a  princeza 
D.  Maria,  que  se  ia  casar  á  Bélgica.  No  mesmo  anno  rece- 
beu do  rei  D.  Sebastião  as  honras  de  fidalgo  cavalleiro  da 
sua  casa;  no  anno  seguinte  recebeu  a  mercê  duma  tença,  o 
foro  das  terras  de  Magalhães  e  a  successão  para  seu  filho, 
António  de  Góes.  do  cargo  de  guarda-mór  da  Torre  do 
Tombo.  Em  1567  D.  Sebastião  concedeu-lhe  brasão  d'ar- 
mas  igual  ao  que  o  escriptor  recebera  do  imperador 
Carlos  v.  A  successão  do  cargo  do  Archivo  em  seu  filho 
não  se  cumpriu,  porque,  havendo  sido  processado  em  157 1 
pela  Inquisição,  foi  substituído  no  desempenho  daquelle 
cargo  por  António  de  Castilho.  Preso  durante  vinte  meses, 
foi  condemnado  ao  confisco  dos  bens  e  a  penitencia  rigorosa 


Historia  da  Litterafura  Clássica  287 

em  cárcere  perpetuo  (')  no  mosteiro  da  Batalha,  onde  ainda 
cumpriu  parte  da  sua  pena.  Attenuado  o  rigor  delia, 
Damião  de  Góes  obteve  permissão  para  recolher  á  sua  casa 
de  Alemquer,  onde  pouco  tempo  viveu,  pois  numa  manhã 
de  janeiro  de  1574  appareceu  morto  sobre  a  lareira,  a  que 
se  aquecia  (2).  Assim  se  reconheciam  em  Portugal  os  altos 
méritos  e  relevantes  serviços  de  Damião  de  Góes,  que  a 
Inquisição  condescendeu  ser  muito  conhecido  no  mundo, 
pelo  que  não  publicou  a  sua  sentença  condemnatoria. 

Desde  Fernão  Lopes,  nomeado  guarda-mór  da  Torre  do 
Tombo  por  141 8  e  chronista-mór  do  reino  em  1434,  que  os 
dois  cargos  andavam  adscriptos  para  maior  viabilidade  do 
propósito  de  D.  Duarte:  a  redacção  das  chronicas  de  todos 
os  reis  de  Portugal  de  forma  a  constituir-se  uma  historia 
sequente  do  reino.  De  Fernão  Lopes  a  Damião  de  Góes  ha- 
viam dirigido  o  archivo  nacional  os  seguintes  guarda-móres: 

Gomes  Eannes  de  Azurara  ou  Zurara —  1454-1475  ; 

Affonso  Eannes  de  Óbidos —  1474  (?)-i482; 

Fernão  Lourenço — 1483-1484; 

Vasco  Fernandes  de  Lucena—  1486  (?)-i4QÒ; 

Ruy  de  Pina — 1497-1523; 

Fernão  de  Pina —  15 23- 1548; 

Foi  a  este,  preso  e  afastado  do  cargo  por  motivo  ainda 
desconhecido,  que  Damião  de  Góes  succedeu  com  caracter 
de  interinidade,  em  1548  ;  mas  o  seu  exercício  prolongou-se 
até  157 1,  anno  em  que,  por  causa  do  seu  processo  inquisi- 
torial,  foi  substituído  por  António  de  Castilho. 

Até  ao  momento,  em  que  Fernão  Lopes  annuiu  ás  ins- 
tancias do  seu  amigo,  o  infante-cardeal  D.  Henrique,  haviam 


(')  Segundo  o  Regimento  do  Santo  Officio,  a  pena  chamada  de 
cárcere  perpetuo  durava  apenas  três  annos. 

(i)  Segundo  os  srs.  Profs.  Maximiano  de  Lemos  e  Thiago  de  Al- 
meida, Damião  de  Góes  teria  morrido  de  arterio-esclerose.  V.  Revista 
de  Historia,  vol.  n.°,  pags.  63-Í8. 


238  Historia  da  Litteraiura  Clássica 

desempenhado  o  cargo  de  chronista-mór  do  reino  os  seguin- 
tes escriptores: 

Fernão  Lopes —  143  4- 1459; 

(romes  Eannes  de  Azurara — 1459-1484; 

Vasco  Fernandes  de  Lucena — 1484-1497; 

Ruy  de  Pina  —  1497- 15 25  ; 

Fernão  de  Pina  — 1525-; 

D.  António  Pinheiro —  1550  1593. 

A  remuneração  destes  cargos  era  vantajosa  e  accrescida 
por  mercês  extraordinárias  dos  soberanos  e,  para  Ruy  de 
Pina,  segundo  refere  Damião  de  Góes,  por  presentes  de 
suborno  do  seu  critério  julgador.  Este  declarado  e  pertinaz 
patrocínio  da  historiographia  havia  produzido  seus  fruetos, 
mas  não  todos  aquelles  que  os  reis  desejavam,  porque  as 
circumstancias  ou  a  falta  de  zelo  dos  chronistas  algumas 
vezes  os  tornavam  litterariamente  menos  fecundos.  Todavia, 
no  tempo  de  Damião  de  Góes,  Portugal  já  possuía  em  partes 
publicadas  e  em  circulação,  e  em  partes  inéditas  toda  uma 
sequente  chronica  pátria.  Essa  sequencia  obtem-se  gru- 
pando-se  as  suas  varias  partes  por  ordem  lógica  e  despre- 
zando a  ordem  da  redacção : 

Chronica  de  D.  Affonso    Henriques  —  Composta  por  Duarte  Galvão  ; 
>         de  D.  Sancho  1  —         »  por  Ruy  de  Pina; 

»         de  D.  Affonso  11  —         »  por  Ruy  de  Pina ; 

»         de  D.  Sancho  n  —         »  por  Ruy  de  Pina  ; 

»  .       de  D.  Affonso  111  —         »  por  Ruy  de  Pina ; 

»         de  D.  Diniz  —         »  por  Ruy  de  Pina  ; 

»         de  D.  Affonso  iv  —         »  por  Ruy  de  Pina  ; 

*        de  D.  Pedro  1  —         »  por  Fernão  Lopes ; 

»         de  D.  Fernando  1     •  —         »  por  Fernão  Lopes; 

»         de  D.  João  r,i.»e  2."  partes — Compostas  por  Fernão  Lopes; 
»         de  D.  João  1,  3.a  parte  —  Composta  por  Gomes  Eannes  de 

Azurara; 
»         de  D.  Duarte  —  Composta  por  Ruy  de  Pina; 

»         de  D.  Affonso  v  —         »  por  Ruy  de  Pina ; 

»        de  D.  João  n  —         »  por  Garcia  de  Rezende 

e  Ruy  de  Pina. 


Historia  da  Liiteratura  Clássica  239 

Fora  deste  corpo  geral,  havia  chronicas  particulares  de 
figuras  preeminentes  e  dos  primeiros  successos  coloniaes,  a 
saber: 

Chronica  do  Condestavel  —  obra  anonyma,  que  começa  a  ser  com  vero- 
similhança attribuida  a  Fernão  Lopes  ; 

>  do  Infante  Santo  —  composta  por  Fr.  João  Alvares  ; 
Historia  das  Conquistas  dos  portugueses  pela  Africa  —  composta  por 

Affonso  Cerveira.  Obra  perdida,  mas  aproveitada  por  Azurara. 
Chronica  do  descobrimento  e  conquista  da  Guiné  —  composta  por  Gomes 
Eannes  de  Azurara ; 
»        de  D.  Pedro  de  Menezes  —  composta  por  Gomes  Eannes  de 
Azurara ; 

>  de  D.   Duarte  de  Menezes  —  composta  por  Gomes  Eannes  de 
Azurara  ; 

Vida  do  infante  D.  Duarte,  filho  de  D.  Manuel  i  —  composta  por  André 
de  Rezende. 

Seguia-se  logicamente  a  narrativa  do  reinado  de  D.  Ma- 
nuel I,  morto  em  152 1,  cujas  grandezas,  mais  que  os  feitos 
dos  seus  antecessores,  lisonjeavam  o  orgulho  nacional.  Delia 
estiveram  encarregados,  por  dever  do  cargo  ou  por  pessoal 
sollicitação,  Ruy  de  Pina,  que  a  redigiu  até  á  tomada  de 
Azamor  em  15 13;  seu  filho  Fernão  de  Pina,  António 
Pinheiro  e  João  de  Barros.  Só  Damião  de  Góes,  que  havia 
dez  annos  geria  o  archivo  de  S.  Jorge  (1),  se  desobrigou  da 
incumbência. 

A  Chronica  do  Sereníssimo  Senhor  Rei  D.  Emanuel  appa- 
receu  em  1566  e  1567.  Nessa  obra  diligenciou  Damião  de 
Góes  tomar  uma  attitude  critica,  isto  é,  não  acceitar  as  ingé- 
nuas  explicações,   que  João   de   Barros  defendia,    nem    nos 


(*)  São  bem  conhecidos  os  trabalhos  de  Damião  de  Góes  na  Torre 
do  Tombo,  pelos  documentos  publicados  pelo  sr.  Guilherme  Henriques 
e  pelo  Dr.  Sousa  Viterbo.  Este  deu-nos  também  uma  apreciação  na 
2.a  serie  dos  Estudos  sobre  Damião  de  Coes,  Coimbra.  1900,  cap.  II. 


240  Historia  da  Litteratura  Clássica 

apresentar  os  factos  através  de  amplificações  patrióticas. 
Mais  imparcial  para  com  as  figuras  que  apresenta  e  cuja 
actividade  nos  desenha,  chega  a  esboçar  um  propósito  de 
apreciação,  mais  claro  sobretudo  quando  se  occupa  das  vio- 
lências exercidas  sobre  os  judeus  e  da  politica  de  D.  João  II. 
Trata  na  sua  obra  menos  de  matéria  da  metrópole  que 
dos  successos  ultramarinos,  pelo  que  se  podem  comparar 
com  os  de  João  de  Barros  os  seus  processos  ao  versar 
os  mesmos  assumptos,  na  sua  penna  tornados  mais  com- 
muns  e  correntios.  A  primeira  parte  trata  dos  aconteci- 
mentos de  Portugal  e  restante  Europa  dos  fins  do  século  XV 
e  princípios  do  século  XVI,  dando  logo  demorada  pre- 
ferencia ás  occorrencias  coloniaes,  da  Ásia  e  Africa,  que 
occupam  a  segunda,  terceira  e  quarta  partes,  em  que 
são  figuras  centraes  Vasco  da  Gama,  Alvares  Cabral,  Duarte 
Pacheco,  Affonso  de  Albuquerque,  D.  Francisco  de  Almeida, 
Tristão  da  Cunha,  Lopes  de  Sequeira,  Fernão  Peres  de  An- 
drade e  Pêro  de  Annaya.  Aos  acontecimentos  do  reino  só 
regressa  para  fallar  da  beneficência  da  rainha  D.  Leonor, 
viuva  de  D.  João  II,  das  obras  religiosas  de  D.  Manuel  i  e 
das  ordenações  e  outras  leis. 

O  exotismo  tem  também  lugar  na  sua  Chronica,  onde  se 
descrevem  costumes  dos  povos  tratados  pelos  portugueses 
no  ultramar,  especialmente  dos  abexins,  parte  em  que 
aproveitou  a  sua  anterior  publicação  sobre  a  Ethiopia. 
Também  assim  precedeu  a  respeito  dos  cercos  de  Diu, 
sobre  os  quaes  escrevera  opúsculos  latinos. 

Parece  que  Damião  de  Góes  diligenciou  não  fallar  muito 
de  matéria  metropolitana,  da  vida  interna  do  paiz,  delibera- 
ção que  tanto  pôde  ser  devida  ao  plano  adoptado  como  ser 
uma  consequência  dos  desgostos  que  o  chronista  soífreu 
com  a  publicação  da  i.a  parte  da  sua  obra,  cuja  melindrosa 
matéria  suscitou  resentimentos  e  determinou  mesmo  a  inter- 
venção do  rei.  Em  nome  de  D.  Sebastião  se  lhe  emendou 
essa  i.a  parte,  que  teve  no  mesmo  anno  uma  segunda  edição. 


Historia  da  Lit  ler  atura  Clássica  241 

Só  três  séculos  depois  se  tirou  a  limpo  este  facto  pelo  appa- 
recimento  dum  exemplar  das  folhas  substituídas.  A  censura 
alterou  principalmente  o  texto  que  se  referia  á  conspiração 
da  nobreza  contra  D.  João  li,  nobreza  que  se  encontrava 
então  no  reino,  rehabilitada  e  exercendo  influencia,  e  passa- 
gens de  caracter  ethnographico  que  foram  julgadas  menos 
convenientes  á  orthodcxia  religiosa  ou  talvez  á  moral,  bem 
como  apreciações  tidas  como  severas  da  administração  de 
D.  Affonso  v  e  D.  Manuel  i,  das  relações  do  rei  de  Castella, 
Fernando  o  Caiholico,  com  D.  Manuel  I  e  as  referencias  á 
infanta  D.  Joanna,  a  Excellente  Senhora.  Na  3/1  parte  foram 
totalmente  substituídos  dois  capítulos. 

Um  dos  mais  vehementes  censores  de  Damião  de  Góes 
foi  o  2.0  Conde  de  Tentúgal,  D.  Francisco  de  Mello,  cujas 
reprehensões  foram  quasi  sempre  dominadas  por  precon- 
ceitos injustos.  O  seu  manuscripto,  que  se  guarda  no  Museu 
Britannico,  foi  ha  poucos  annos  publicado  por  Mr.  Edgar 
Prestage  (')• 

Este  facto,  as  queixas  de  Azurara,  de  João  de  Barros  e 
de  D.  Jeronymo  Osório,  o  famoso  bispo  de  Silves,  a  relu- 
ctancia  que  vários  historiadores  tiveram  em  cumprir  o  man- 
dato de  escrever  a  chronica  do  rei  venturoso,  mostram  que 
era  bem  espinhoso  o  officio  de  chronista-mór  do  reino, 
quando  tinha  de  versar  matéria  contemporânea.  As  circuns- 
tancias da  epocha  em  que  escrevia  e  as  reacções,  que  susci- 
tou, fazem  honra  a  Damião  de  Góes,  que,  se  é  menos  escri- 
ptor  que  João  de  Barros,  é  mais  historiador.  Como  era 
uso  em  seu  tempo,  Góes  utilizou  amplamente  trabalho  alheio, 
nomeadamente   de  Ruy   de  Pina  e  Bernardo  Rodrigues  (2). 


(*)     V.  Archivo  Histórico  Português,  vol.  9  °,  1914. 

(2)  Só  em  191^-1920  foi  publicada  a  chronica  inédita  de  Bernardo 
Rodrigues,  Annaes  de  Arzilla,  edição  da  Academia  das  Sciencias  de  Lis- 
boa, dirigida  pelo  sr.  David  Lopes.  É  a  pag.  xxxi  a  xxxv  que  o  erudito 
editor  evidencia  o  aproveitamento  que  dessa  obra  fez  Damião  de  Góes. 

H.  DA  L.  CLAS6ICA,  vol.  l.»  ic 


242  Historia  da  Litteratura  Clássica 

Damião  de  Góes  também  nos  deixou  uma  Chronica  do 
Príncipe  D.  /oão,  publicada  em  1567,  em  que  narra  a  vida  de 
D.  João  n  desde  o  nascimento  á  ascensão  ao  throno.  Ruy 
de  Pina  e  Garcia  de  Rezende  já  haviam  reconstituído  a 
biographia  do  Príncipe  Perfeito.  Mas  Góes  quiz  corrigir  as 
versões  correntes  desse  período,  como  declara:  «...  minha 
teçam,  que  he  reduzir  ha  Chronica  d'elRei  dom  Afonso 
quinto  do  nome,  desno  nascimento  do  Príncipe  dom  Joam 
seu  filho,  atte  que  elle  falleceo,  a  milhor  modo,  &  ordem  da 
em  que  anda  divulgada,  ho  que  nas  mais  Chronicas  destes 
Reynos  seria  também  necessário  fazersse,  se  ho  tempo  a 
isso  de  sim  desse  lugar,  porque  nellas  faltam  muitas  cousas, 
que  por  negligencia  cu  receo  do  trabalho,  hos  Chronistas 
passados  deixaram  descrever  e  assentar  nos  lugares  em  que 
ho  fio  da  historia  da  manifesto  signal  do  descuido  que  nelles 
houve.»  A  novidade  principal  desta  pequena  chronica  é  o 
lugar  que  dá  á  exposição  das  explorações  oceânicas  do 
infante  D.  Henrique,  de  que  então  com  desenvolvimento  só 
fallára  Luiz  Cadamosto,  participe  de  algumas  delias.  Góes 
deplora  que  os  chronistas  antecedentes  não  houvessem  dado 
a  essa  matéria  a  attenção  devida,  e  essas  considerações,  bem 
como  outras  que  expende  na  Chronica  de  D.  Manuel  I,  fazem 
delle  o  pae  da  critica  histórica,  que,  como  se  vê,  acompanhou 
o  apparecimento  da  critica  litteraria,  só  iniciada  por  António 
Ferreira. 

Para  preencher  a  lacuna,  que  havia  no  ponto  de  par- 
tida da  historia  nacional,  ordenada  por  chronicas,  D.  Manuel  1 
encarregou    Duarte    Galvão    í1)  de    redigir    a    chronica   de 


(*)  Duarte  Galvão  nasceu  em  Évora,  em  data  desconhecida, 
filho  de  Ruy  Galvão,  cavalleiro  e  secretario  de  D.  Affbnso  v.  Foi  tam- 
bém secretario  e  conselheiro  de  D.  Affbnso  y,  D.  João  u  e  D.  Manuel  1. 
Desempenhou  muitas  missões  diplomáticas  em  Roma,  Flandres  e  Ethio- 
pia.  Foi  durante  esta  embaixada  que  Duarte  Galvão  morreu  em  1517.  — 
Sousa  Viterbo  reuniu  em  duas  memorias,  Duarte  Galvão  e  sua  família, 


Historia  da  Litteratura  Clássica  243 

D.  Affonso  Henriques.  Desobrigou-se  o  seu  servidor  da 
incumbência  promptamente,  mas  a  sua  obra,  acceitavel 
litterariamente,  era  tão  insegura  historicamente,  que  não  se 
promoveu  a  sua  publicação,  porque  como  acervo  arbitrário 
de  lendas,  tradições  infundadas,  levianas  interpretações 
contrastava  singularmente  os  progressos  innegaveis  do  espi- 
rito critico  nesse  tempo.  Só  em  1726  foi  impressa,  mas 
antes  dessa  data  circulou  grandemente  por  copias  manus- 
criptas.  É  um  legitimo  preparador  de  Fr.  Bernardo  de 
Brito,  uma  sobrevivência  do  medievalismo  historiographico, 
anterior  á  reforma  de  Fernão  Lopes.  Também  nenhum  pro- 
gresso traz  a  refundição  das  chronicas  manuscriptas  de  Ruy 
de  Pina,  feita  por  Duarte  Nunes  de  Leão  (?-i6o8),  em  obe- 
diência a  Filippe  11,  de  que  se  publicou  em  1600  a  primeira 
parte,  e  em   1643,  posthumamente,  a  segunda. 

BRAZ    DE   ALBUQUERQUE 

O  filho  de  Affonso  de  Albuquerque,  (')  por  piedade  filial 
e  para  dar  uma  base  de  factos  á  alta  opinião  que  acerca  de 
seu  pae  reinava,  organizou  a  sua  obra  Commeniaríos,  publi- 


1905  e  1913,  numerosos  documentos,  dos  quaes  respeitam  ao  chronista 
principalmente  a  escriptura  de  dote  de  sua  mulher  D.  Catharina  de 
Sousa,  de  1486;  uma  carta  de  D.  Affonso  v  regulando  a  forma  de  paga- 
mento de  250  ducados,  apanágio  do  habito  de  SantTago  ;  outra  carta  de 
D.  Manuel  i  concedendo-lhe  25.000  reaes  brancos ;  e  uma  carta  sua  ao 
secretario  de  Estado  António  Carneiro. 

(J)  Braz  de  Albuquerque,  filho  natural  de  Afibnso  de  Albuquerque, 
nasceu  em  1500,  na  Alhandra.  Sendo  recommendado  a  D.  Manuel  1  por 
seu  pae,  em  carta  escripta  pouco  antes  de  morrer,  tomou  por  ordem  do 
rei  o  nome  de  Aftbnso,  foi  educado  no  convento  de  Santo  Eloy  e  ligou-se 
por  atfinidade  á  casa  de  Linhares.  Recebeu  tenças  régias  importantes, 
foi  vedor  da  fazenda  e  presidente  do  senado  de  Lisboa.  Morreu  em  1580. 
O  dr.  António  Baião  publicou  numerosos  documentos  respeitantes  a  Braz 

» 


244  Historia  da  Litter atura  Clássica 

cada  em  1557,  que  elle  mesmo  declara  haver  colligido  dos 
próprios  originaes  que  Albuquerque,  em  meio  da  agitação 
da  sua  vida  no  Oriente,  escrevia  a  D.  Manuel  1  (1).  Nessa  obra 
conta,  com  simplicidade  narrativa,  mas  sempre  com  signaes 
de  intensa  veneração,  a  vida  do  heróico  guerreiro,  desde  a 
sua  primeira  ida  á  índia  em  1503  com  seu  primo  Francisco 
de  Albuquerque,  até  á  sua  morte  em  frente  de  Goa,  dictando 
a  celebre  carta  ao  rei,  na  qual  lhe  recommendava  o  filho 
único,  auctor  dos  Commentarios.  A  obra  não  tem  pretensões 
litterarias,  tem-nas  de  probidade  e  estas  foram  satisfeitas 
quanto  permittiam  os  sentimentos  de  piedade  filial  e  a  con- 
cepção histórica  da  epocha.  «  Para  que  fallar  em  capitães, 
havendo  AfFonso  de  Albuquerque  na  índia?»  —  isto  dissera 
D.  Sebastião  uma  vez,  quando  os  cortesãos  lhe  apontavam 
guerreiros  de  génio,  como  conta  Braz  de  Albuquerque.  E 
dentro  deste  conceito,  dos  sentimentos  de  filho  extremoso  e 
da  concepção  da  historia  como  meio  de  formar  altos  cara- 
cteres, que  Braz  se  dispõe  a  dar  uma  demonstração  de  factos. 
Só  do  aspecto  guerreiro  se  occupa  e,  como  é  obvio,  occulta 
quaesquer  episódios  que  revelem  facetas  menos  nobres  da 
individualidade  de  seu  pae,  por  as  não  acreditar  e  por  não 
servirem  ao  seu  propósito.  A  suspeita  de  parcialidade  repu- 
dia-a  Braz  de  Albuquerque  só  com  a  seguinte  consideração : 
«E  não  devem  de  ter  menos  crédito,  e  auctoridade  diante 
de  Vossa  Alteza  estes  Commentarios  poios  eu  colligir,  sendo 
seu  Filho,  do  que  César  tem,  pelo  Mundo,  escrevendo  de  si 


de  Albuquerque  na  obra  Alguns  descendentes  de  Albuquerque  e  o  seu 
filho  á  luz  de  documentos  inéditos,  Lisboa,  1915.  São  cartas  de  padrão, 
confirmações  de  tenças,  mandados  de  pagamento,  um  aviso  para  as 
Cortes  de  1578,  que  reuniram  em  Almeirim,  e  um  pedido  de  6.000  cru- 
zados, feito  em  1524  por  D.  João  111. 

(x)  A  Academia  Real  das  Sciencias  prestou  o  alto  serviço  de 
publicar  a  collecção  dessas  Cartas  de  Affonso  de  Albuquerque,  6  vols., 
1884-1915.  Dirigiram  a  publicação  Bulhão  Pato  e  o  sr.  Henrique  Lopes 
de  Mendonça. 


Historia  da  Lit  ter  atura  Clássica  245 

ha  tantos  annos,  pois  neste  estylo  rudo  conto  a  verdade  do 
que  se  passou.»  Esta  fraca  razão  mostra  como  Braz  de 
Albuquerque  ignorava  a  existência  das  inclinações  involun- 
tárias, tendências  dominantes  que  se  installam  na  consciência 
e  dominam  toda  a  sua  vida,  creando  mesmo  uma  lógica  sua. 
A  probidade  histórica  pôde  ser  um  acto  da  vontade,  mas 
não  pode  esta  conseguir  a  imparcialidade,  que  só  nasce  do 
desinteresse. 

Muito  de  accordo  com  o  processo  do  seu  tempo,  só  no 
fim  dos  quatro  livros  da  obra,  no  breve  capitulo  derradeiro, 
nos  proporciona  alguns  informes  acerca  da  vida  de  Albu- 
querque antes  da  partida  para  a  índia,  antes  de  entrar  na 
historia,  poderemos  dizer,  e  nos  aponta  alguns  dados  moraes 
da  sua  personalidade.  Falhos  dé'  dotes  psychologicos,  os 
nossos  quinhentistas  sabiam  miudamente  pulverizar  em  fa- 
ctos toda  a  grande  actividade  dum  homem  superior,  mas 
eram  de  todo  incapazes  de  restituir  num  todo  integro  a  mo- 
ral da  personalidade,  nunca  chegando  por  isso  a  bem  sur- 
prehender  a  causa  intima  e  profunda  dessa  superioridade, 
cujas  affirmações  em  factos  nos  contavam  por  narrativas 
incansáveis. 

FERNÃO  LOPES  DE  CASTANHEDA 

Vinte  annos  gastou  Castanheda  ('),  bem  como  toda  a 
sua  fazenda,  em  colleccionar  os  materiaes  para  a  sua  Histo- 
ria do  Descobrimento  e  Conquista  da  índia  pelos  portugueses  — 
di-lo  elle  e  repete-o  o  alvará  de  privilegio  para  a  impressão 


(')  Nasceu  Fernão  Lopes  de  Castanheda  em  Santarém,  provavel- 
mente em  1500.  Muito  novo  entrou  para  a  Ordem  de  S.  Domingos,  de 
que  pouco  depois  sahiu.  Em  1528  partiu  para  a  índia;  regressando  ao 
reino  em  precárias  circunstancias,  acceitou  um  modesto  lugar  de  bedel 
na  Faculdade  das  Artes,  da  Universidade  de  Coimbra,  onde  falleceu 
em  1559. 


246  Historia  da  Litter atura  Clássica 

da  obra,  —  e  que  os  trabalhos  de  ordenação  desses  materiaes 
lhe  apressaram  a  morte  —  dizem-no  seus  filhos.  Assim  seria, 
porque  Castanheda  accumulou  com  extrema  avareza  todos 
os  factos  que  rigorosamente  pôde  apurar,  para  abonar  os 
quaes  colleccionou  papeis,  ouviu  testemunhas,  inquiriu  pro- 
tagonistas e  visitou  os  lugares,  pratica  que  entre  nós 
inaugurara"  Gomes  Eannes  de  Zurara.  A  sua  obra  é  por 
isso  uma  compilação  quanto  possível  exhaustiva  de  factos, 
fastidiosamente  enumerados  numa  grande  despretensão  litte- 
raria. 

Este  escrúpulo  de  informação  faz  da  sua  obra  uma 
espécie  de  revisão  das  airirmações  da  historiographia  qui- 
nhentista. Pelo  lado  theorico,  para  a  historia  das  idéas 
sobre  historia,  a  obra  de  Castanheda  contém  no  seu  prefacio 
a  exposição  e  defeza  dum  modo  de  comprehender  a  capa- 
cidade educativa  da  historia,  que  é  Castanheda  o  primeiro  a 
affirmar.  Segundo  elle,  a  lição  da  historia  era  a  mais  efficaz 
maneira  de  preparar  os  príncipes  para  o  governo  de  seus 
estados;  a  relles  era  mais  necessária  que  aos  particulares,  a 
elles  devia  por  isso  ser  destinada.  Esta  concepção  de  Casta- 
nheda, a  que  só  faltou  o  amplo  desenvolvimento,  para  o 
qual  a  sua  intelligencia  não  tinha  a  necessária  malleabili- 
dade,  contém  em  si  a  opinião  que  sobre  a  utilidade  da 
historia  formulou  mais  tarde  Bossuet  e  também  a  que  tem 
defendido  o  sr.  Seignobos,  partidário  da  educação  politica 
por  meio  da  historia.  Escreve  Castanheda:  «Em  grande 
obrigação  sam  os  homês  aos  historiadores,  muito  alto  & 
muito  poderoso  Rey  nosso  Senhor,  principalmente  os  prin- 
cepes  peraquem  parece  q.  õ  especial  se  fez  a  historia,  cousa 
tão  proueitosa  pêra  a  vida  humana  q.  ensina  o  q.  façamos 
&  do  q.  avemos  de  fugir,  o  q.  conuè  muito  mais  aos  prince- 
pes  q.  aos  outros  homês  porq  qualqr  home  privado  q.  faça 
ha  erro  não  he  nada  pois  não  dana  mais  que  a  si  mesmo,  & 
hú  princepe  se  ho  faz  dana  a  todos  os  q.  tê  debaixo  de  sua 
gouernãça,  porq  dela  ser  boa  ou  má  depêde  ho  bem  &  mal 


Historia  da  Litteratura  Clássica  247 

de  todos  os  da  sua  Repubrica.  Pelo  q.  he  muito  necessário 
ser  ho  princepe  mais  virtuoso,  mais  sabedor  &  mais  pru- 
dente que  todos,  &  peraque  aprenda  estas  cousas  não  te 
melhor  preceitor  q.  a  historia,  pprque?  Que  doutrina,  q.  dis- 
crição, q.  prudêcia  ha  pêra  boa  gouernança  de  Repubrica 
assi  na  paz  como  na  guerra  que  a  historia  não  insine  com 
experiecia  de  exempros,  que  sam  muito  mais  do  que  hu 
home  pode  ver  em  sua  vida  por  mais  comprida  q.  seja,  & 
por  isso  todos  esses  princepes  famosos  assi  Bárbaros  como 
Gregos  &  Latinos  forão  tão  dados  a  ler  historias.»  (') 

Dos  livros,  que  Castanheda  annunciou,  só  appareceram 
oito;  a  obra  completa  comprehenderia  a  narrativa  dos  pro- 
cessos da  dominação  portuguesa  em  territórios  da  índia, 
desde  o  descobrimento  do  seu  caminho  por  Vasco  da  Gama 
até  ao  segundo  cerco  de  Diu,  em  1546. 

GASPAR  CORRÊA 

A  vasta  obra  de  Gaspar  Corrêa  ('),  Lendas  da  índia, 
permaneceu  inédita  cerca  de  três  séculos,  havendo  corrido 
riscos  não  pequenos.  Foi  D.  Miguel  da  Gama,  neto  de 
Vasco  da  Gama,  que,  sabendo  que  nas  Lendas  grande 
lugar  occupavam  as  façanhas  do  navegador  seu  avô,  adqui- 
riu no  espolio  do  historiador  o  manuscripto,  e  foi  a  Acade- 
mia Real  das  Sciencias,  que  em  1858-1866  conseguiu  publi- 
cá-lo. As  Lendas  alcançam  a  historia  militar  da  índia  até  ao 


0)     V.  Castanheda,  Prologo,  i.°  vol.,  ed.  de  1833. 

(2)  É  muito  mal  conhecida  a  vida  de  Gaspar  Corrêa.  Apenas  se 
sabe  que  partiu  muito  novo  para  a  índia,  em  1512,  onde  militou,  que  foi 
secretario  de  Affonso  de  Albuquerque,  que  por  1529  veio  ao  reino,  que 
por  seus  serviços  recebeu  de  D.  João  m  a  mercê  de  ser  cavalleiro  da 
casa  real,  que  exerceu  vários  cargos  obscuros  no  Oriente  e  que  morreu 
em  Gòa,  no  anno  de  1561. 


248  Historia  da  Litteratura   Clássica 

governo  de  Jorge  Cabral,  que  terminou  em  1550.  Não  tem 
Gaspar  Corrêa  o  menor  prurido  artístico;  só  expõe  em 
linguagem  despretensiosa,  em  mais  dum  passo  diffusa.  as 
Lendas  que  os  portugueses  na  índia  crearam,  isto  é,  os  feitos 
que  a  lendas  se  assemelhavam.  Suppôs  que  a  circunstancia 
de  ter  podido  visitar  os  lugares,  ter  ouvido  muitos  coopera- 
dores e  haver  presenceado  grande  parte  da  matéria  que 
historiava,  lhe  bastaria  para  crear  obra  nova,  que  comple- 
tasse ou  substituísse  a  de  João  de  Barros,  como  manifesta- 
mente dá  a  entender.  Faltavam-lhe,  porém,  a  educação 
litteraria  de  João  de  Barros,  os  seus  dons  de  escriptor  e  de 
historiador;  o  titulo  de  landas  já  denuncia  uma  concepção 
dada  ao  maravilhoso,  depois  no  texto  da  obra  exemplificada 
pela  invenção  ou  acceitação  crédula  da  existência  dum  filho 
de  Duarte  Pacheco  Pereira,  chamado  Lisuarte  Pacheco,  mais 
épicamente  esforçado  que  seu  pae,  pois  as  suas  façanhas 
attingiam  o  sobrenatural. 

Muitos  outros  historiadores  se  occuparam  da  vida  por- 
tuguesa do  século  XVI,  principalmente  António  Galvão  ('), 
André  de  Rezende  (1498-1573)  (*),  Gaspar  Fructuoso  (1522- 
1591),   auctor  das  Saudades  da  Terra,  a  historia  do  descobri- 


(')  António  Galvão,  filho  do  chronista  Duarte  Galvão,  nasceu  tal- 
vez em  1490,  mas  não  na  índia,  como  se  suppoz.  Foi  governador  das 
Ilhas  Molucas,  cargo  que  exerceu  com  supremo  heroísmo  e  desinte- 
resse, e  promoveu  a  expensas  próprias  a  divulgação  da  fé  christã  e  a 
construcção  de  templos,  pelo  que  grangeou  o  nome  de  Apostolo  das 
Molucas.  Passando  ao  reino,  aqui  viveu  longos  annos  em  abandono  e 
extrema  miséria.  Morreu  em  1557.  Escreveu  o  Tratado  dos  diversos  e 
desvairados  caminhos  per  onde  nos  tempos  passados  a  pimenta  e  a  espe- 
ciaria veio  da  índia . . .  Lisboa,  1563. 

('-)  Sobre  o  eminente  humanista  escreveram  copiosamente  Diogo 
Mendes  de  Vasconcellos  e  Francisco  Leitão  Ferreira.  O  trabalho  deste 
foi  publicado  com  importantes  notas  de  A.  Braamcamp  Freire  no  Arçkwo 
Histórico  Português,  vols.  7.0,  3.°  e  ç.°,  Lisboa,  1909-1914. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  249 

mento   das   ilhas   do   Atlântico,    Lopo    de    Sousa    Coutinho 
(i5i5?-i577),  Frei  Marcos  de  Lisboa  (1511-1591),  etc. 

Porém  estes  auctores,  muito  úteis  para  os  estudos  de 
erudição  para  confronto  das  informações  que  sobre  a  mesma 
matéria  proporcionam  e  assim  mutuamente  se  rectificarem, 
não  offerecem  interesse  para  a  historia  das  idéas  sobre 
theoria  e  funcção  da  historia  e  para  a  historia  da  arte  litte- 
raria.  Todos  se  comprehendem  na  concepção  da  historia  já 
por  nós  apontada  como  professada  por  alguns  historiadores  e 
todos  são  mais  do  que  escassamente  artistas;  era  á  curiosidade 
e  ao  patriotismo  de  seus  leitores  que  elles  se  dirigiam  ;  longe 
delles  o  intuito  de  visarem  a  produzir  emoção  esthetica, 
então  só  reservada  ás  obras  de  pura  imaginação.  Entre  si 
differem  apenas  pelo  grau  maior  ou  menor  de  credulidade, 
pela  cautella  das  suas  informações,  por  pormenores  da  nar- 
rativa e  por  maior  ou  menor  destreza  no  uso  da  lingua. 
Exposição  systematica  da  sua  concepção  histórica,  com 
desenvolvimento,  nenhum  escriptor  quinhentista  a  fez.  De 
resto  a  intelligencia  portuguesa  sempre  se  tem  mostrado 
pouco  propensa  a  estudos  theóricos,  e  se  não  fossem  peque- 
nos trabalhos  de  gente  moça,  já  do  século  XIX,  ainda  hoje 
estaria  por  abrir  a  nossa  bibliographia  dessa  matéria  (J). 

É  opportuno  momento  de  perguntar  se  a  historiogra- 
phia,  que  nós  muito  summariamente  caracterizámos,  reproduz 
com  fidelidade  o  typo  humanístico  da  historiographia  do  seu 
tempo  ou  se  delle  se  afFasta  e  em  quê. 

A  historiographia  do  século  xvi,  tal  como  a  idéa  do 
regresso  á  antiguidade  clássica  e  o  humanismo  a  fizeram,  é 
uma  creação  inteiramente  italiana,  como  também  italianos 
furam  os  primeiros  historiadores  humanistas  dos  outros 
paizes,   por  exemplo  Paulo  Emilio,  que  á  França  deu  o  seu 


(*)     V.  o  appendice  bibliographico  sobre  theoria  da  historia  no 
nosso  trabalho,  O  E^/irito  HistoricOj  3.*  ed. 


250  Historia  da  Litter  atura  Clássica 

modelo,  De  rebus  gestis  f rancor  um,  Poiidoro  Virgílio,  que 
semelhantemente  procedeu  para  com  a  Inglaterra,  e  Lúcio 
Marineo  para  a  Hespanha.  (*) 

O  .typo  humanístico  da  historiographia  tinha  algumas 
predominantes  feições.  O  abandono  do  quadro  genérico  in- 
troductorio,  que  nas  obras  medievaes  chegava  a  remontar  á 
creação  do  mundo,  permittia  uma  considerável  concentração 
da  matéria;  a  rejeição  do  milagre  e  da  intervenção  divina 
dava  um  mais  amplo  lugar  á  causalidade  humana;  a  fabula 
passava  para  os  romances  de  cavallaria;  a  anecdota  e  o  pit- 
toresco  muito  se  reduziam  como  prejudiciaes  á  intenção,  que 
tinham  os  auctores,  de  restituírem  á  historia  uma  grave 
dignidade. 

Ao  mesmo  tempo  que  se  deixava  cahir  em  descrédito 
extremo  a  historiographia  medieval,  por  se  reconhecerem  os 
seus  defeitos,  por  ignorância  e  tendenciosa  inclinação  de 
seus  auctores,  illogicamente  se  passava  a  dar  aos  historiado- 
res clássicos  uma  fé  excessiva.  E  quanto  á  composição,  a 
forma  chronistica  foi  substituída  por  outra,  de  mais  arte, 
posto  que  mais  pessoal  e  por  isso  mais  arbitraria:  as  datas 
e  os  factos  miúdos  na  idade  média  superabundantes  foram 
reduzidos  e  os  successos,  agora  ligados  entre  si,  argamassa- 
dos pela  exposição  do  auctor  em  construcção  compacta, 
puderam  formar  um  todo,  uma  resurreição  e  uma  interpre- 
tação da  epocha.  Simplesmente  a  intelligencia  humana, 
recem-sahida  das  faixas  medievas,  ainda  não  inventara  os 
meios  mais  aperfeiçoados  para  servirem  esse  intuito  de  orga- 
nizar um  todo,  de  reconstituir  e  interpretar  uma  epocha. 

A  cor  local  e  seus  meios,  os  retratos,  as  descripções, 
a  flexibilidade  do   espirito   critico  só  appareceriam  trazidas 


('■)  Vejam-se  as  paginas  magistraes  do  sr.  B.  Croce  sobre  a  histo- 
riographia do  renascimento  no  seu  estudo,  Interno  alia  Síoria.  delia 
Storiographia,  Bari,  1913. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  251 

pelo  progresso  da  própria  historia,  dum  género  a  princi- 
pio convizinho  da  historia,  o  romance,  e  do  espirito  phi- 
losophico. 

Ao  bárbaro  latim  medieval  succedeu  o  apurado  latim 
dos  humanistas,  que  na  imitação  de  Cicero  e  Tito  Livio  se 
desvelavam ;  o  nacionalismo  estricto  dos  chronistas  cede  seu 
lugar  a  uma  sympathia  mais  larga,  a  um  interesse  curioso 
pelo  que  occorre  fora  das  fronteiras,  pelas  outras  parcellas 
da  humanidade  europêa  e  christã. 

A  historiographia  portuguesa  do  século  xvi  permaneceu 
muito  chronistica,  abriu  é  certo  as  portas  ao  interesse  e 
curiosidade  dos  europeus  a  povos  até  então  ignorados,  mas 
com  tal  originalidade  ganhou  mais  valia  ethnographica  que 
histórica  e  pelo  largo  lugar  dado  á  matéria  ultramarina 
muito  se  distanciou  da  vida  politica  e  intellectual  da 
Europa. 

Emquanto  os  historiadores  italianos  á  historia  estran- 
geira davam  a  sua  attenção,  nós  permanecíamos  muito  obsti- 
nadamente nacionalistas  e  deixávamos  aos  nossos  humanistas 
a  tarefa  das  relações  com  o  pensamento  europeu. 

A  inspiração  épica,  que  domina  a  nossa  historiographia, 
o  nacionalismo  fervente,  a  unilateralidade  de  critério  de 
avaliação,  de  que  é  um  exemplo  a  doutrina  do  Soldado  Pra- 
tico, eram  germens  dissolventes  que  ella  em  si  abrigava, 
promptos  a  avultarem  e  a  imperarem,  reduzindo  considera- 
velmente os  lugares  occupados  por  outros  elementos  menos 
gratos,  a  imparcialidade  e  o  espirito  critico.  Bastaria  que 
causas  enérgicas,  externas,  compellissem  para  esse  trilho  da 
desproporção  do  seu  conteúdo  a  historiographia  creada  pelo 
fugaz  imperialismo  de  Portugal.  Assim  succedeu;  essas 
causas  foram  a  rápida  decadência  da  moralidade  adminis- 
trativa e  do  espirito  heróico  no  Oriente,  e  a  perda  da  inde- 
pendência nacional.  A  historiographia  foi  então  a  voz  desa- 
nimada dos  louvadores  dos  velhos  tempos,  só  na  lembrança 
vivos,   a  voz  evocadora  dos  patriotas;  intensificou-se  o  seu 


252  Historia  da  Ldtteratura   Classiea 

patriotismo,  o  seu  tom  épico,  reduziu-se  o  seu  criticismo  e 
tornou-se  na  historiographia  mystica  e  até  um  pouco  sebas- 
tianista do  século  xvn.  A  jorros  sobre  ella  se  precipitou 
o  maravilhoso  religioso  e  heróico,  o  milagre  e  o  esforço 
sobrenatural  e  então,  rica  de  estylo,  variada  de  expressão, 
impregnada  de  sentimentos  vivos,  tornou-se  verdadeira- 
mente arte. 


CAPITULO  VII 

CAMÕES 
A  VIDA 

Longa  e  accesa  tem  sido  a  disputa  sobre  a  naturalidade 
e  data  do  nascimento  de  Luiz  Vaz  de  Camões,  sendo  hoje 
geralmente  acceito  que  a  nossa  primeira  figura  litteraria  do 
quinhentismo  tenha  nascido  em  Lisboa,  no  anno  de  1524, 
filho  de  Simão  Vaz  de  Camões  e  de  sua  mulher  Anna  de  Sá 
e  Macedo  (l).  Os  Camões  são  nomeados  já  desde  o  terceiro 
quartel  do  século  xiv  e  provêem  de  uns  fidalgos  gallegos 
que  do  seu  paiz  emigraram  para  Portugal,  onde  gozaram  de 
estima  e  favores  reaes.  Mais  do  que  muito  escassas  são  as 
noticias  acerca  da  sua  primeira  infância,  que  segundo  infe- 
rências muito  contingentes  de  algumas  suas  poesias,  teria 
decorrido  em  Coimbra.  Possível  será  que  Camões  tenha  fre- 
quentado desde  1537  os  estudos  de  algum  Collegio  das  Ar- 
tes, como  necessária  preparação  para  passar  á  Universidade. 
Nesse  anno,  D.  João  111,  reformando  o  ensino,  concentrara 
nesses  collegios  os  estudos  de  humanidades,  só  deixando 
que  fora  delles  se  exercesse  o  ensino  das  primeiras  letras. 


í1)  É  de  Coimbra  a  outra  naturalidade,  que  com  mais  sólidos  fun- 
damentos se  lhe  attribue.  V.  Vida  e  Obras  de  Luiz  de  Camões,  I  Parte, 
Wilhelm  Storck,  trad.  port.  da  sr.a  D.  Carolina  Michaêlis,  Lisboa,  1898, 
ed.  da  Academia  Real  das  Sciencias,  em  pag.  105-117. 


254  Historia  da  Lit  ter  atura  Clássica 

Também  nesse  anno  foi  transferida  de  Lisboa  para  Coimbra 
a  Universidade,  que  para  sempre  alli  permaneceu.  Julga-se 
ordinariamente  que  em  Coimbra  estanceou  Camões  até  ao 
anno  de  1542,  em  que  suspensos  os  seus  estudos  se  trans- 
portaria a  Lisboa. 

Para  attenuar  um  pouco  o  desconhecimento,  em  que 
estamos,  de  quanto  se  refere  a  esse  primeiro  periodo  da 
vida  do  poeta,  talvez  o  seu  único  momento  de  sossegado 
estudo  e  calma  meditação,  não  deixaria  de  ser  opportuno 
recordar  o  plano  de  trabalhos  escolares  que  o  poeta  haveria 
seguido  e  assim  conjecturar  algumas  das  influencias  que 
sobre  o  seu  espirito  se  hajam  exercido.  Porem,  apesar  da 
historia  da  nossa  primeira  universidade  ter  sido  objecto  de 
demorados  estudos,  não  se  pode  fazer  essa  conjectura  (*), 
para  formular  a  qual  também  seria  necessário  saber  primeiro 
a  faculdade  que  o  poeta  teria  cursado. 

Em  Lisboa  Camões  frequentou  a  corte,  onde  teria  desde 
logo  revelado  o  seu  génio  poético  e  onde  a  convivência  fe- 
minina teria  estimulado  o  seu  temperamento  amoroso.  Dessa 
frequência  do  paço  parece  ter  nascido  um  dos  seus  grandes 
amores,  o  que  lhe  inspirou  a  dama  por  elle  occulta  sob  o 
anagramma  de  Nathercia,  a  qual  parece  haver  occupado 
grande  lugar  no  seu  coração,  nas  suas  recordações  e  dado 
repetidamente  fecunda  inspiração  poética.  A  identificação 
deste  anagramma  tem  dado  motivo  á  formulação  de  hypote- 
ses  muito  subtilmente  imaginosas.  Parece  todavia  que  os 
argumentos  mais  resistentes  se  alliam  á  tradição,  segundo  a 
qual  teria  Nathercia  sido  D.  Catharina  de  Athayde,  filha  de 
D.  António  de  Lima,  nascida  talvez  em  1531  e  morta  em  1556. 


(')  O  sr.  Theophilo  Braga,  nos  quatro  grossos  volumes  da  sua 
Historia  da  Universidade  de  Coimbra,  tratou  vastamente  da  matéria, 
mas  sem  plano  lógico,  incluindo  muita  matéria  desinteressante  e  inoppor- 
tuna,  esquecendo  a  principal.  Essa  obra  não  corresponde  ao  titulo,  por- 
que é  apenas  um  cahotico  amontoado  de  apontamentos. 


Historia  da  Litter -atura  Clássica  255 

O  accesso  á  corte  julga-se  haver  sido  preparado  pela 
influencia  dos  Condes  de  Linhares,  que  Camões  privou.  Da 
corte  sahiu,  em  1546,  para  o  Ribatejo,  affastado  pelo  desa- 
grado no  animo  do  rei,  que  se  costuma  attribuir  ás  allusões 
que  o  Auto  de  El-Rei  Seleuco  fazia  ao  amor  de  D.  João  III  por 
sua  madrasta  —  segundo  se  interpretaria  na  epocha  —  ou 
simplesmente  por  serem  conhecidos  os  seus  amores,  que  o 
rei,    movido   pela  família  de  Nathercia,  quereria  contrariar. 

Em  1547  Camões  parte  para  Ceuta,  a  militar  na  guarni- 
ção dessa  praça  forte.  O  que  esse  passo  na  sua  vida  signifi- 
caria facilmente  se  interpreta,  a  deliberação  por  determinado 
caminho,  a  carreira  militar,  após  um  periodo  de  descuidada 
perplexidade  ou  de  frustrada  espectativa  na  curte.  Em  Ceuta 
militou  valentemente  e  perdeu  num  combate  um  dos  olhos. 

No  fim  de  1549  já  estava  em  Lisboa  e  logo  no  anno 
seguinte  projectou  partir  para  a  índia,  pois  o  seu  nome  fi- 
gura entre  os  alistados  na  guarnição  da  armada  daquelle 
anno,  na  nau  S.  Pedro  dos  Burgaleses.  Envolvendo-se  em  rixa 
com  Gonçalo  Borges,  moço  do  paço,  foi  preso  em  1552, 
obtendo  perdão  em  1553,  anno  em  que  parte  para  a  índia  na 
nau  6*.  Bento. 

Na  índia  toma  parte,  obscura  parte  que  não  mereceu 
registo  de  contemporâneos,  em  algumas  expedições,  nomea- 
damente ao  Golpho  Pérsico  e  ao  estreito  de  Meca.  Em  1555 
estava  de  volta  a  Goa  e  contribuía  com  o  seu  auto  de  Vhilo- 
demo  e  a  Sátira  do  torneio  para  as  festas  da  investidura  do 
vice-rei.  Na  cidade  de  Goa  se  deixou  prender  de  amores  da 
escrava  Barbara,  que  lhe  inspirou  as  famosas  Endechas.  É  tam- 
bém durante  essa  estada  na  capital  do  vice-reino  que  Camões 
escreve  e  faz  circular  a  satyra  dos  Disparates  da  índia.  Re- 
gressando á  actividade  militar,  toma  parte  em  outra  expedi- 
ção ao  sul  e  oriente,  em  1556.  Dois  annos  depois  esteve  em 
Macau,  como  provedor-mór  dos  defunctos  e  ausentes  do  pe- 
queno estabelecimento  concedido  pelo  império  chinês  para 
ponto  de  appoio  das  esquadras  portuguesas,  que  perseguiam 


256  Historia  da  Litteratura  Clássica 

os  piratas.  Incriminado  de  prevaricação,  é  preso  e  compel- 
lido  a  abandonar  o  cargo  para  vir  justiíicar-se  á  índia.  Re- 
gressando a  Goa  soffre  um  naufrágio,  em  1.5,59,  na  *oz  do 
rio  Mekong,  estanceia  em  Malaca  e  chega  á  capital  da  índia 
portuguesa.  Não  se  sabe  o  seguimento  do  processo ;  apenas 
se  sabe  que  foi  liberto  pelo  Conde  de  Redondo.  Foi  por 
essa  occasião  que  o  poeta  offereceu  aos  seus  amigos  o 
gracioso  banquete  das  trovas,  em  que  os  convivas  acharam 
versos  em  vez  de  iguarias.  Em  Goa  conheceu  Garcia  da 
Orta,  a  cujos  Simplices  e  Drogas  antepôs  um  seu  soneto, 
espécie  de  apresentação  do  sábio,  num  tempo  em  que  ainda 
não  eram  bem  discriminados  o  meio  scientifico  e  o  meio 
littérario. 

Em  1567  partiu  para  o  reino,  demorando-se  de  passagem 
em  Moçambique,  e  em  1570  já  se  achava  de  regresso  em 
Lisboa,  trazido  pela  nau  Santa  Clara.  Devia  trazer  consigo, 
já  completo  ou  em  via  disso,  o  seu  poema,  pois  dois  annos 
depois,  apparecia  a  i.a  edição  dos  Lusíadas.  Difficeis  teriam 
sido  decerto  os  últimos  annos  da  sua  existência  penosa,  que 
em  1580  terminava,  quando  também  terminava  a  autonomia 
politica  da  sua  pátria,  cujos  altos  feitos  calorosamente  glori- 
ficara. Como  recompensa,  só  conseguiu  em  1572  uma.  pe- 
quena tença  regia,  em  1582  renovada  a  favor  de  sua  mãe, 
que  lhe  sobreviveu. 


Não  ha  elementos  em  quantidade  sufnciente  nem  de 
solidez  indiscutível  que  permittam  a  reconstituição  da  per- 
sonalidade de  Camões.  A  fazer-se,  esse  esboço  de  synthese 
moral  seria  só  um  trabalho  dé  imaginação  artística,  phanta- 
sia  de  romancista.  Noutro  domínio,  onde  ordinariamente  o 
quinhão  de  contingência  é  menor,  na  biographia,  do  qual 
alguns  factos  seguros  se  conhecem,  em  phantasia  artística,. 


Historia  da  LU  ter  atura  Clássica  257 

em  imaginosos  romances  deram  os  esforços  devotados  de 
tudo  apurar,  dos  principaes  biographos.  Tanto  a  biographia 
architectada  por  Storck.  como  a  do  sr.  Th.  Braga,  nada  mais 
são  do  que  um  tecido  de  hypothsseB  engenhosas,  ligadas 
pelas  fracas  escoras  dos  poucos  factos  incontroversos. 

Para  levar  a  cabo  o  alto  emprehendimento  litterario  da 
sua  epopt-a,  para  idealizar  a  sua  vida  interior  com  a  pro- 
funda e  intima  emoção  das  suas  lyricas,  Camões  teria  de 
viver  uma  intensa  vida  individual,  subjectiva,  que  em  senti- 
mentos, idéas  e  juizos  pessoaes  magicamente  transmudava 
os  baldões  e  as  dores  acarretadas  pela  onda  amarga  e  re- 
volta da  vida.  Mas  qual  fosse  o  cunho  próprio,  o  caracter 
essencial  dessa  personalidade,  que  em  sua  desprotegida 
humildade  exerceu  a  maior  e  mais  perduradora  soberania, 
que  ainda  dominou  em  Portugal,  quaes  os  processos  moraes 
por  que  essa  personalidade  pôde  concentrar  com  a  ávida  in- 
tensidade dum  foco  e  reflectir  com  a  poderosa  fidelidade 
dum  crvstallino  espelho,  quanto  havia  de  intenso  e  de  origi- 
nal no  coração  e  no  espirito  dos  portugueses  do  século  xvi, 
para  sempre,  como  tocado  do  annel  de  Giges,  se  fechou  esse 
segredo.  Quanto  se  tentasse  seria  propor  vãs  hypotheses, 
fazer  inopportuna  arte  litteraria  —  e  ha  sempre  qualquer 
coisa  de  irreverente  mau  gosto,  quasi  sacrílego,  em  tomar  a 
personalidade  de  quem  fez  litteratura  de  génio  para  pretexto 
de  má  litteratura. 

O  LYRICO 

Aquella  matéria  poética,  que,  extrahida  do  ideal  amo- 
roso e  litterario  de  Petrarcha,  vimos  vir  sendo  elaborada 
desde  Sá  de  Miranda,  em  suecessivos  ensaios  como  á  busca 
da  perfeita  expressão  nunca  attingida,  encontrou  no  tempe- 
ramento poético  de  Camões  cabal  realização,  e  dentro  da 
forma  para  que  nascera:  o  soneto.  Todo  o  cyclo  de  themas 
H.  da  L.  Clássica,  vol.  !.•  17 


258  Historia  da  Litteratura   Clássica 

poéticos,  que  andava  no  ar,  o  tomou  Camões,  revolvendo-os 
de  todos  os  modos  para  lhes  extrahir  quanto  podiam  offere- 
cer  á  sua  genial  imaginação.  Era  essa  matéria  o  ideal  da 
transcendente  abnegação  amorosa,  já  confessado  nos  senti- 
mentos complexos  e  contradictórios  que  essa  mystica  ado- 
ração em  si  abrigava,  já  explicados  pela  belleza  divina  do 
rosto  que  recebia  essa  adoração;  por  um  lado  a  subtil  psy- 
chologia  da  paixão  amorosa,  por  outro  o  retrato  da  belleza 
sua  inspiradora.  Dentro  destes  dois  pólos,  amplo,  —  porque 
não  infinito?  —  era  o  espaço  aberto  á  imaginação  individual. 
Penetrar  incansavelmente  até  aos  mais  absconditos  escani- 
nhos da  alma;  procurar  a  expressão  ao  mesmo  tempo  intel- 
ligivel  e  bella  desses  novos  mundos  de  sentimento  e  variar 
no  processo  de  produzir  o  conjuncto  de  summa  formosura, 
que  se  queria  delinear;  juntar  o  cunho  pessoal  das  emoções 
da  vida,  metamorphoseando  em  juizos,  sentimentos  e  idéas 
o  que  para  outros  ora  facto  ordinário,  vulgar,  da  existência 
quotidiana,  tal  era  o  horizonte  illimitado  que  á  phantasia 
poética  dum  Camões  se  offerecia.  Ninguém  como  elle  soube 
devassar  esse  horizonte,  percorrendo-o  palmo  a  palmo.  Como 
conseguiu  o  poeta  passar  da  categoria  de  imitador  do  soneto 
petrarcheano  á  categoria  de  creador  do  soneto  camoneano? 
Em  primeiro  lugar  dominando  completamente  a  execução 
externa  do  soneto,  já  quanto  á  estructura  da  phrase  que  se 
lhe  torna  plástica  para  se  moldar  obediente'  ao  seu  propó- 
sito, já  quanto  á  metrificação  que  pratica  com  extrema  cor- 
recção e  fluência,  á  parte  os  fataes  pequenos  deslises;  deste 
modo  conseguiu  Camões  as  condições  do  primeiro  grau  de 
belleza,  a  que  resulta  da  harmonia  e  da  elevaçãp,  da  conci- 
são bem  equilibrada,  da  clareza  da  linguagem,  isto  é,  a  bel- 
leza da  forma,  como  idóneo  instrumento  da  expressão.  Em 
segundo  lugar  manejando  de  modo  novo  e  pessoalíssimo  a 
matéria  que  se  lhe  offerecia.  Dotado  dum  excepcional  poder 
de  intuspecção  e  também  trazendo  em  si  permanentemente 
um   mundo   revolto   de   sentimentos    e  idéas,  Camões  soube 


Historia  da  Lit  ler  atura  Clássica  259 

discriminar  a  emmaranhada  rede  do  seu  mundo  interior, 
decompô-la,  e  a  cada  parte,  a  cada  peça,  a  cada  fio  dar 
expressão  litteraria,  soube  traduzir  em  linguagem  poética 
todo  aquelle  vasto  mundo  de  phenomenos  psychicos,  que 
então  laboriosamente  os  philosophos  ainda  se  acuravam  em 
analysar  e  designar  na  sua  incipiente  terminologia.  Mas 
como  era  poeta  e  não  philosopho,  como  era  só  arte  litteraria 
e  não  psychologia  geral  que  elle  queria  fazer,  dá-nos  desse 
encapellado  mar  da  sua  alma  só  os  movimentos  seus  pró- 
prios, as  variantes  pessoaes,  muito  suas,  da  alma  que  na 
generalidade  humana  os  pensadores  analysavam.  Para  se 
confinar  no  limitado  invólucro  de  quatorze  versos,  Camões 
condensa  a  sua  matéria  tanto  e  tanto  que  torna  o  seu  soneto 
conceituoso,  quasi  sempre  subordinado  a  uma  final  conclu- 
são subtil,  elegante  no  pensamento,  que  indica  que  para  ella 
foi  feito  o  soneto,  que  delia  é  preparação  quanto  a  antecede. 
Á  clareza,  precisão  e  harmonia  da  forma  correspondia  a 
existência  dum  fundo  de  idéa  também  claro,  preciso  e  ele- 
gante, dessa  delicada  elegância  de  pensamento  de  que  foi 
Camões  um  dos  inauguradores  no  mundo.  Em  terceiro  lugar, 
á  comprehensão  do  amor,  corrente  no  mundo  litterario  da 
epocha,  —  um  delicioso  soffrimento,  um  procurar  de  vontade 
a  dor  e  delia  se  lamentar  e  comprazer  —  deu  Camões  tradu- 
cção  poética  por  meio  dos  paradoxos,  que  repetidas  vezes 
ensaiou.  Esse  processo  poético  tão  simples  e  tão  bello,  e  ao 
mesmo  tempo  apparentemente  tão  fácil  de  occorrer,  não  o 
tinham  descoberto  os  quinhentistas:  ao  paradoxal  amor 
pinta-o  Camões  por  paradoxos.  Em  quarto  lugar,  a  esse 
thema,  já  tão  repetido,  do  retrato  da  mulher  supremamente 
bella,  traz  Camões  alentos  novos,  com  variar  as  tintas  do 
quadro,  que  são  umas  vezes  as  cores  da  natureza,  são  outras 
os  effeitos  em  sua  alma  nascidos  da  contemplação  e  são 
ainda  outras  as  divinas  expressões  que  irradiam  as  feições 
bellas  que  contempla.  Estes  retratos,  absolutamente  ideaes 
porque    de    elementos    absolutamente    ideaes    se    compõem, 


260  Historia  da  Litter  atura  Clássica 

representam  sem  duvida  o  acumen  da  inspiração  lyrica  da 
alma  de  Camões,  que  nesses  momentos  como  que  se  librou 
num  transcendente  mundo  de  idealidades,  onde  nem  a  cor 
tinha  .cabida.  E  exprimir  tal  requinte  de  abstracção,  tor- 
nando-o  não  só  intelligivel,  segundo  a  terminologia  philoso- 
phica,  mas  bello,  duma  emoção  intensa  e  profunda,  sem 
deixar  de  pairar  nessa  luminosa  região,  mas  dando-nos  azas 
para  ascendermos  até  ella  —  é  ter  génio.  Por  isso  os  retratos, 
engastados  nos  sonetos  camoneanos,  já  nãb  são  esboços,  di- 
ligencias, estudos  para  um  sonho  de  arte,  são  todos  elles 
ideaes  perfeitos,  formam  uma  galeria  de  obras-primas,  como 
mais  tarde  as  Virgens  de  Murillo,  em  cada  uma  das  quaes  o 
poeta  semrre  varia  o  seu  processo.  É  por  Camões  e  por 
Anthero  de  Quental  que  a  lingua  portuguesa  é  inseparável 
da  evolução  do  soneto,  forma  poética  cosmopolita,  na  qual 
a  nossa  lingua  introduziu  duas  phases  geniaes. 

Postos  de  lado,  alguns  de  intuito  laudatório  ou  comme- 
morativos  de  públicos  acontecimentos,  que  repugnam  á 
essência  intima  do  soneto  e  outros  religiosos  que  não  são 
os  mais  adequados  á  Índole  artística  do  poeta,  os  sonetos 
de  Camões  organizam-se  numa  verdadeira  encyclopedia  poé- 
tica do  amor,  formando  um  poema  com  unidade,  com  sua 
proposição,  sua  acção  intensa,  o  drama  duma  alma  que 
intensamente  amou  e  soffreu,  e  deliciosamente  encontrou  na 
poetização  do  seu  sorfrimento  a  sua  própria  felicidade,  com 
suas  conclusões  e  seus  propósitos  de  edificação  moral. 

Eis  os  caracteres  predominantes  do  mundo  poético  con- 
tido nos  sonetos. 

Xão  será  sem  vantagem  fazer  uma  pequena  exemplifi- 
cação de  quanto  affirmámos.  .Os  sonetos  a  seguir  transcriptos 
mostrarão  Camões  a  manejar  o  paradoxo,  como  magico  remo 
que  o  conduz  com  segurança  no  mar  da  paixão,  batido  de 
ventos  contrários,  o  furacão  irreprimível  do  illogico,  da 
contradicção,  do  irracional,  do  imprevisto: 


Historia  da   Litteratura  Clássica  261 


Tanto  de  meu  estado  me  acho  incerto, 
Que  em  vivo  ardor  tremendo  estou  de  frio ; 
Sem  causa  juntamente  choro  e  rio  ; 
O  mundo  todo  abarco,  e  nada  aperto. 

He  tudo  quanto  sinto  hum  desconcerto  : 

Da  alma  hum  fogo  me  sahe,  da  vista  hum  rio ; 

Agora  espero,  agora  desconfio; 

Agora  desvario,  agora  acerto. 

Estando  em  terra,  chego  ao  Céo  voando  ; 
Num,  hora  acho  mil  annos,  e  he  de  geito 
Que   em  mil  annos  não  posso  achar  humJhora. 

Se  me  pergunta  alguém,  porque  assi  ando, 
Respondo  que  não  sei  :  porem  suspeito 
Que  só  porque  vos  vi,  minha  Senhora. 

Carece  este  soneto  de  intensidade  e  condensação  no 
conceito  final,  que  em  outros  melhor  se  demonstra,  naquel- 
les  em  que  o  poeta  define  o  por  que  «de  matar-se  vive», 
quando  se  entrega  á  felicidade  de  amar  a  «cara  sua  inimiga» 
e  do  tempo  em  que  foi  livre  se  arrepende : 

Amor  he  um  fogo  que  arde  sem  se  ver ; 
He  ferida  que  doe  e  não  se  sente  ; 
He  um  contentamento  descontente  ; 
He  dor  que  desatina  sem  doer ; 

He  hum  não  querer  mais  que  bem  querer  ; 
He  solitário  andar  por  entre  a  gente ; 
He  hum  não  contentar-se  de  contente  ; 
He  cuidar  que  se  ganha  em  se  perder ; 

He  hum  estar-se  preso  por  vontade ; 
He  servir  a  quem  vence  o  vencedor ; 
He  hum  ter  com  quem  nos  mata  lealdade. 

Mas  como  causar  pode  o  seu  favor 
Nos  mortaes  corações  conformidade, 
Sendo  a  si  tão  contrario  o  mesmo  Amor  ? 


262  Historia  da  Litteratura   Clássica 


Que  doudo  pensamento  he  o  que  sigo  ? 
Após  que  vão  cuidado  vou  correndo  ? 
Sem  ventura  de  mi  !  que  não  me  entendo  ; 
Nem  oque  calo  sei,  nem  o  que  digo. 

Pelejo  com  quem  trata  paz  comigo  ; 
De  quem  guerra  me  faz,  não  me  defendo. 
De  falsas  esperanças  que  pretendo  ? 
Quem  do  meu  próprio  mal  me  faz  amigo  ? 

Porque,  se  nasci  livre,  me  captivo  ? 

E  pois  o  quero  ser,  porque  o  não  quero? 

Como  me  engano  mais  com  desenganos  ? 

Se  já  desesperei,  que  mais  espero  ? 

E  se  ainda  espero  mais,  porque  não  vivo? 

E  se  vivo,  que  accuso  mortaes  danos  ? 

Vejamos  como  Camões  elaborou  o  thema  mal  delineado 
por  Sá  de  Miranda  no  seu  melhor  soneto,  o  do  contraste 
entre  o  mudar  cyclico  da  natureza,  que  envelheceu  para 
rejuvenescer,  e  o  mudar  da  vida  humana: 

Mudâo-se  os  tempos,  mudão-se  as  vontades, 
Muda-se  o  ser,  muda-se  a  confiança  : 
Todo  o  mundo  he  composto  de  mudança, 
Tomando  sempre  novas  qualidades. 

Continuamente,  vemos  novidades, 
Differentes  em  tudo  da  esperança  : 
Do  mal  ficão  as  mágoas  na  lembrança. 
E  do  bem  (se  algum  houve)  as  saudades. 

O  tempo  cobre  o  chão  de  verde  manto, 

Que  já  coberto  foi  de  neve  fria, 

E  em  mi  converte  em  choro  o  doce  canto. 

E  afora  este  mudar-se  cada  dia 
Outra  mudança  faz  de  mor  espanto, 
Que  não  se  muda  já  como  sohia. 


Historia  da  Litteratura   Clássica  263 

A  concepção  platónica  do  amor  vasou-a  Camões  no  se- 
guinte soneto,  que  ainda  conserva  vestígios  da  linguagem 
philosophica: 

Transforma-se  o  amador  na  cousa  amada, 
Por  virtude  do  muito  imaginar  : 
Não  tenho  logo  mais  que  desejar, 
Pois  em  mirn  tenho  a  parte  desejada. 

Se  nella  está  minha  alma  transformada, 
Que  mais  deseja  o  corpo  de  alcançar? 
Em  si  somente  pôde  descansar 
Pois  com  elle  tal  alma  está  liada. 

.Alas  esta  linda  e  pura  semidéa, 

Que  como  o  accidente  em  seu  sojeito, 

Assi  com  a  alma  minha  se  conforma  : 

Está  no  pensamento  como  idéa  ; 

E  o  vivo  e  puro  amor  de  que  sou  feito, 

Como  a  matéria  simples  busca  a  forma. 

Esta  identificação  do  sujeito  e  do  objecto  e  a  vivifica- 
ção duma  doutrina  abstracta  em  formoso  pensamento  poé- 
tico revelam  a  multiplicidade  de  dons  da  imaginação  de  Ca- 
mões, que  em  pleno  século  XVI,  á  vontade  e  com  pleno 
êxito,  nos  dava  exemplos  da  forma  do  soneto,  que  no  fim  do 
século  xix  immortalizaria  Anthero  de  Quental. 

Percorramos  agora  alguns  retratos  da  sua  galeria  e 
apontemos  em  cada  um  a  matéria  prima  empregada  para 
desenhar  e  perspectivar  a  causa  primaria  de  todos  os  seus 
anceios,  o  gérmen  que  fecundou  a  sua  alma  com  farta  messe 
de  sonhos,  aspirações,  sentimentos  e  idéas,  aquella  causa 
incoercível : 

Que  dias  ha  que  na  alma  me  têe  posto 
Hum  não  sei  quê,  que  nasce  não  sei  onde ; 
Vem  não  sei  como;  e  doe  não  sei  porque. 


264  Historia  da  Litteratura  Classiet 


Primeiramente  a  belleza  concreta  e  pictórica  dum  rosto 
desenhado  com  as  cores  e  encantos  da  natureza  primaveril 
e  florida : 

Está-se  a  Primavera  trasladando 
Em  vossa  vista  deleitosa  e  honesta 
Nas  bellas  faces,  e  na  boca  e  testa. 
Cecéns,  rosas  e  cravos  deb-oxando. 

De  sorte,  vosso  gesto  matizando, 
Natura  quanto  pode  manifesta, 
Que  o  monte,  o  campe,  o  rio  e  a  floresta, 
Se  estão  de  vós,  Senhora,  namorando. 

Se  agora  não  quereis  que  quem  vos  ama 
Possa  colher  o  frueto  destas  flores, 
Perderão  toda  a  graça  os  vossos  olhos. 

Porque  pouco  aproveita,  linda  Dama, 
Que  semeasse  o  Amor  em  vós  amores, 
Se  vossa  condição  produz  abrolhos. 

No  seguinte  soneto  só  com  gestos  e  expressões  abstra- 
ctas reconstitue  a  ideal  formosura  da  sua  musa: 

Hum  mover  de  olhos,  brando  e  piedoso, 
Sem  ver  de  quê ;  hum  riso  brando  e  honesto, 
Ouasi  forçado ;  hum  doce  e  humilde  gesto, 
De  qualquer  alegria  duvidoso  : 

Hum  despejo  quieto  e  vergonhoso ; 
Hum  repouso  gravíssimo  e  modesto ; 
Huma  pura  bondade,  manife 
Indicio  da  alma,  limpo  e  gra 

Hum  encolhido  ousar;  huma  brandura; 
Hum  medo  sem  ter  culpa ;  hum  ar  sereno ; 
Hum  iongo  e  obediente  sofFrimentc  ; 

Esta  foi  a  celeste  formosura 

Da  minha  Circe,  e  o  magico  veneno 

Que  pôde  transformar  meu  pensamento.- 


Historia  da  Litteratura   Clássica  205 

O  soneto  seguinte,  que  iodos  sabem  de  cór,  é  o  mais 
flagrante  exemplo  do  poder  de  intensa  expressão  de  Camões 
para  traduzir  a  aspiração  vebemente  duma  saudade  apaixo- 
nada. Ha  neste  soneto,  só  prejudicado  pela  sua  extrema 
vulgarização,  a  reverencia  piedosa  duma  oração,  que  como 
que  molda,  contem  e  limita  o  arroubo  desesperado  duma 
grande  dor  sem  consolação,  prestes  a  irromper.  Um  mar 
encapellado  se  adivinba  sob  aquella  apparencia  de  contenção  : 

Alma  minha  gentil,  que  te  partiste 
Tão  cedo  desta  vida  descontente, 
Repousa  lá  no  Céo  eternamente, 
E  viva  eu  cá  na  terra  sempre  triste. 

Se  lá  no  assento  Ethereo,  onde  subiste, 
Memoria  desta  vida  se  consente, 
Não  te  esqueças  de  aquelle  amor  ardente, 
Que  já  nos  olhos  meus  tão  puro  viste. 

E  se  vires  que  pôde  merecer-te 
Algua  cousa  a  dôr  que  me  ficou 
Da  mágoa,  sem  remédio  de  perder-te; 

Roga  a  Deos,  que  teus  annos  encurtou, 
Que  tão  cedo  de  cá  me  leve  a  ver-te, 
Quão  cedo  de  meus  olhos  te  levou. 

E;  no  muito  pouco  pedir  deste  soneto,  apenas  a  recor- 
dação do  antigo  amor,  se  ella  no  ceu  se  consente,  que  sob 
uma  irónica  amargura  se  contem  a  maior  intensidade  de 
sentimento,  em  contraste  com  o  estado  de  extrema  dôr  nas 
outras  partes  do  soneto  revelado. 

Nas  éclogas,  Camões,  encontrando  já  estabelecida  uma 
interpretação,  praticou-a  apenas  accrescentando  esse  pouco, 
que  é  muito,  da  sua  inspiração  poética.  Os  quinhentistas 
fizeram  da  écloga  um  género  lyrico  e  uma  peça  auto-biogra- 
phica;    só   lyrico    é   o  bucolismo   de  Camões,   que  também 


266  Historia  da  Lilteratura   Clássica 

algumas  éclogas  piscatórias  compôs.  Amores  ardentes,  apar- 
tamentos dolorosos,  inconstancias  volúveis,  indifferenças 
desdenhosas  e  lamentações  de  saudade  pelos  que  para  sem- 
pre partiram,  formam  o  fundo  das  éclogas  camoneanas. 
Somente,  a  riqueza  de  imaginação  do  poeta  e  o  seu  senti- 
mento da  natureza  como  que  renovam  esses  themas,  dando- 
lhes  expressões  mais  vivas  e  mais  fieis,  mais  sensibilidade; 
a  sua  forma  é  transparente,  promptamente  deixa  ver  seu 
fundo,  sem  as  subtilezas  rebuscadas  e  difficeis  argucias,  que 
era  uso  attribuirem-se  aos  pastores,  desde  que  a  Diana  os 
intellectualizára,  tornando-os  quasi  sophistas.  De  todas  a 
mais  bella  é  a  quinta,  em  que  falia  um  só  pastor,  o  qual 
confessa  o  seu  amor  ardente  e  firme  até  além  da  morte, 
apesar  da  fria  indifferença  da  amada.  A  riqueza  das  imagens 
e  a  sequencia  de  provas  desse  amor,  que  tudo  alegrava  ou 
entristecia,  exemplo  magnifico  desse  outro  divino  Amor, 
pelo  qual  na  natureza  «se  move  tudo»,  mostram  bem  o 
poder  do  estro  camoneano,  ao  versar  um  thema,  que  para 
outro  poeta  se  tornaria  monótono,  por  ter  de  ir  buscar  fora 
da  sua  imaginação  e  do  seu  coração,  ás  recordações  littera- 
rias,  ás  aiiusões  mythologicas,  aos  conceitos  vulgares  e 
inexpressivos  a  matéria  para  essa  longa  peça. 

No  bucolismo,  Camões  foi  acima  de  tudo  poeta  lyrico. 
E  os  dois  oppostos  escolhes  do  género  pastoral,  —  intele- 
ctualizar os  pastores  rudes,  de  grosseiras  inclinações  e  aca- 
nhadas opiniões  ou,  para  evitar  esse  inconveniente,  descahir 
nessa  mesma  grossaria  e  acanhamento  vulgar  (')  —  não  os 
praticou  Camões,  nem  os  adivinhou  como  navegante  perito 
e  feliz  que  passasse  entre  Scylla  e  Carybdes  sem  o  suspei- 
tar, pois  lyrismo  subjectivo  quiz  fazer  e  não  pequenos  qua- 
dros de  género. 


(*)  O  problema  da  adopção  do  estylo  rústico  no  género  pastoral 
foi  discutido  na  litteratura  portuguesa,  no  século  xvnr,  por  António  Diniz. 
V.  Historia  da  Critica  Littcraria  em  Portugal,  2.a  ed.,  pag.  96-97. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  207 

O  mesmo  mundo  de  sentimentos,  que  Camões  engastou 
nos  sonetos,  deu  a  matéria  poética  para  as  canções,  elegias, 
sextinas  e  odes ;  mas  ahi,  sem  a  severa  limitação  da  estreita 
moldura  do  soneto,  os  sentimentos  do  poeta  correm  livre- 
mente : 

Soltando  toda  a  rédea  a  meu  cuidado. 

Só  do  conteúdo  riquíssimo  da  sua  alma  extrahe  o 
poeta  os  motivos  poéticos,  sempre  variados,  porque  a  sua 
sensibilidade  experimenta  sempre  de  modo  novo  as  mais 
velhas  emoções  e  porque  a  sua  imaginação  se  não  cansa 
de  encontrar  na  natureza  as  mais  delicadas  metaphoras 
e  de  achar  no  próprio  mundo  do  sentimento  as  expres- 
sões mais  subtis  para  traduzirem  os  requintes  da  sua 
alma  e  os  extremos  apaixonados  de  quem  fez  do  Amor  um 
culto  e  da  belleza  feminina  uma  divindade,  para  quem  cons- 
tantemente idealizar  e  sentir  era  um  indispensável  alimento 
espiritual  e  que  erigiu  a  torrente  de  sentimentos  do  seu. 
coração  numa  espécie  de  philosophia,  que  com  esses  mate- 
riaes  sentimentaes.  todos  tecidos  de  pessoaes  emoções,  explica 
a  vida  e  o  mundo.  Para  traduzir  esta  concepção  artistica  é 
necessário  crear  uma  linguagem  própria,  que  á  harmonia 
junte  a  profundeza,  a  intensidade  e  que  não  recue  ante  os 
paralogismos  que  se  lhe  possam  deparar,  antes  obediente  se 
adapte  á  lógica,  á  symetria  e  ás  ultimas  consequências  dessa 
idealissima  architectura.  Ao  fim  o  que  se  achará  não  é  uma 
construcção  que  se  deva  aferir  pelos  valores  correntes  do 
mundo,  nem  pelas  leis  geraes  da  lógica,  mas  que  se  ha-de 
somente  acatar  como  reconstituição  duma  alma  eminente- 
mente esthetica.  É  nesse  todo  que  se  organizam  as  lyricas 
de  Camões.  Não  como  os  sombrios  cavalleiros  do  ideal,  que 
fazem  do  seu  sonho  a  única  realidade  da  sua  vida  e  que  em 
cómicas  decepções  sentem  o  conflicto  da  sua  phantasia  com 
a  positiva  existência,  mas  conciliando  plenamente  o  espirito 


268  Historia  da  Litter -atura  Clássica 

de  realidade  com  a  elaboração  intima  dessa  soffrida  realidade, 
o  poeta  deu- nos.  no  seu  lyrismo  as  ideaes  verdades  de  quem 
com  uma  espécie  de  segunda  vista  vê  as  mais  longinquas 
perspectivas  da  vida  e  que,  onde  outros  se  detinham,  seguia 
avante  na  aza  do  sonho.  Como  um  escholastico  de  olhos 
fechados,  só  pensando,  constrae  o  seu  systema,  só  ao  espirito 
pedindo  materiaes,  avançando  destemido  de  deducção  em 
deducção,  assim  o  poeta  vae  descendo  nas  espiraes  profun- 
das que  ao  intimo  da  sua  alma  conduzem.  Lyricos,  subjecti- 
vos, curiosos  de  si  mesmos,  haviam  sido  os  outros  poetas 
quinhentistas  e  todos  elles  se  apetrecharam  das  formas 
poéticas  novas,  das  correntes  idéas  estheticas,  do  alvião  da 
analyse  e  da  sonda  da  intuspecção,  mineiros  promptos  a 
penetrarem  nas  entranhas  fugidias  da  alma  humana.  Mas  na 
sua  alma  só  havia  superfície,  quando  muito  um  immediato 
sub-sólo.  Só  Camões  em  si  tinha  profundidades  occultas, 
desvãos  esconsos,  meandros  confusos  e  a  esse  labyrinto  des- 
ceu elle  confiadamente  e  pôde  auscultar-se,  sentir  as  palpita- 
ções do  seu  coração  e  largamente  e  em  todos  os  sentidos 
percorrer  esse  novo  mundo  de  liberdade  e  plenitude.  Este 
descobrimento  da  própria  alma  pelo  caminho  da  dor  é  na 
nossa  litteratura  um  momento  de  génio  supremo,  porque  é 
a  vez  primeira  que  se  exemplifica  a  these  de  que  para  ter 
génio  litterario  é  preciso  ter  uma  personalidade  própria,  que 
é  daquelle  a  primeira  creação. 

A  dor  de  amar,  se  limitadamente  porque  a  mais  não 
pôde,  se  com  transporte  porque  só  soffrimento  colhe,  occorre 
a  cada  passo  nas  suas  lyricas  como  thema  sempre  viçoso, 
porque  toda  a  sua  belleza  não  a  podia  colher.  E  vê-se  que 
esse  estado  de  permanente  tensão  da  sua  alma  era  para 
Camões  o  mais  difiicil  de  exprimir,  porque  constantemente 
a  elle  regressa  e  quando  o  exprime,  ora  avança  ás  ultimas 
consequências,  ora  pára  a  restringir  e  aclarar: 


Historia  da  Litteratura  Clássica  269 


Formosa  e  gentil  Dama,  quando  vejo 

A  testa  cTouro  e  neve,  o  lindo  aspeito, 

A  bocca  graciosa,  o  riso  honesto, 

O  collo  de  crystal,  o  branco  peito, 

De  meu  não  quero  mais  que  meu  desejo, 

Nem  mais  de  vós,  que  ver  tão  lindo  gesto. 

Alli  me  manifesto 

Por  vosso  a  Deos  e  ao  mundo ;  alli  mJinflamo 

Nas  lagrimas  que  choro  ; 

E  de  mi  que  vos  amo, 

Em  vêr  que  soube  amar-vos  me  namoro  ; 

E  fico  por  mi  só  perdido  de  arte, 

OuJhei  ciúmes  de  mi  por  vossa  parte. 

Se  por  ventura  vivo  descontente 

Por  fraqueza  d^esprito,  padecendo 

A  doce  pena  qu'entender  não  sei, 

Fujo  de  mi,  e  acolho-me  correndo 

A  vossa  vista ;  e  fico  tão  contente, 

Que  zombo  dos  tormentos  que  passei. 

De  quem  me  queixarei, 

Se  vós  me  dais  a  vida  deste  geito 

Nos  males  que  padeço, 

Senão  de  meu  sogeito, 

Que  não  cabe  com  bem  de  tanto  preço  ? 

Mas  inda  isto  de  mi  cuidar  não  posso, 

Doestar  muito  soberbo  com  ser  vosso. 


Sempre  as  categorias  lógicas  do  seu  mundo  amoroso 
umas  nas  outras  se  penetram,  se  sobrepõem  para  logo  se 
repudiarem  e  em  seguida  se  juxtapôrem  num  incansável  e 
dolorido  esforço  de,  com  phrases  de  sentido  feito,  aquelles 
caixilhos  immutaveis,  aquelles  conceitos  crystallizados  que 
introduziram  no  mundo  dos  sentimentos  e  das  idéas  a 
mesma  descontinuidade  espacial,  que  separa  os  objectos 
materiaes  —  de  com  a  linguagem  commum  dizer  o  que  de 
mais  individual  em  si  havia. 

E  assi  de  mi  fugindo  traz  mim  ando 


270  Historia  da  Literatura  Clássica 

no  desatino  e  no  desconcerto  que  lhe  vêm  de  em  si  trazer 
um  revolto  oceano  de  ideal,  de  cujas  profundezas  se  erguem 
em  grita  aspirações  e  tendências,  de  que  o  poeta  não 
pode  ser  fiel  porta- voz: 

SJeste  meu  pensamento, 

Como  he  doce  e  suave, 

DJalma  pudesse  sair  gritando  fora ; 

E  dando  ouvidos  ás  vozes  que  dentro  em  si  clamam,  o 
poeta  vivamente  sente  o  seu  illogismo  e  a  sua  descommuni- 
dade,  e  por  isso  pede  que  não  julguem  os  effeitos  que  des- 
creve pelo  vulgar  entendimento  humano: 

Canção,  se  quem  te  lêr 

Não  crer  dos  olhos  lindos  o  que  dizes, 

Por  o  que  a  si  s'esconde ; 

Os  sentidos  humanos  (lhe  responde) 

Não  podem  dos  divinos  ser  juizes, 

Senão  hum  pensamento 

Que  a  falta  suppra  a  fé  do  entendimento. 

Quando  o  poeta  pinta  e  descreve  a  natureza,  mistura 
também  ás  tintas  a  coloração  dos  seus  sentimentos,  attri- 
buindo  assim  aos  quadros  uma  expressão  subjectiva,  um 
tom  de  melancholia  calma,  mas  profunda. 

As  suas  obras  menores  em  redondilhas  reservou  o  poeta 
a  elegância  conceituosa,  galante  e  ligeira,  o  commentario 
ameno,  gentil  ou  irónico  do  giro  quotidiano  em  convívio. 
Apartam-se  estas  peças  em  terem  a  sua  belleza  na  sua  mesma 
facilidade,  no  prompto  relevo  com  que  offerecem  todo  o  seu 
conteúdo,  ao  passo  que  as  lyricas  graves,  como  as  canções 
e  os  sonetos,  pertencem  a  este  género  de  arte  que  na  repe- 
tição não  perdem,  porque  como  uma  musica  rica  em  seu 
complexo  de  harmonias  na  successão  das  audições  lentamente 
se  vae  deixando  possuir,  assim  aos  poucos  vae  descobrindo 
o  seu  occulto  mundo  de  emoções. 


Historia  da  Litter atura  Clássica  271 

Como  a  alma,  que  tacs  sentimentos  experimentou,  era 
original  e  complicada,  assim  a  sua  expressão  poética  o  era; 
por  isso,  só  uma  frequência  assídua  nos  descobre  esse  vasto 
mundo. 

Xão  que  a  forma  não  seja  duma  simplicidade  surprehen- 
dente,  mais  duma  vez  quasi  vulgar,  mas  porque  ella  veste 
conceitos  tão  requintados  e  traduz  attitudes  da  alma  tão  pes- 
soaes  e  tão  novas,  que  necessário  se  torna,  para  passar  aiêin 
desse  vestido  singelo  e  gozar  a  intrínseca  belleza,  ter  em 
receptividade  esthetica  um  pouco  daquella  ultra  sensível 
elegância  espiritual  que  Camões  teve  sob  a  forma  de  produ- 
ctiva  actividade.  Não  se  repetiu  Camões,  antes  muito  lhe  fi- 
cou por  dizer,  como  elle  declara  no  fecho  daquella  muito 
formosa  canção  auto-biographica : 

Não  mais,  Canção,  não  mais;  qiTirei  fallando, 

Sem  o  sentir,  mil  annos;  e  se  acaso 

Te  culparem  de  larga  e  de  pesada ; 

Não  pode  ser  (lhe  dize)  limitada 

A  água  do  mar  em  tão  pequeno  vaso. 

O  COiMZDTOGRAPHO 

O  breve  theatro  camoneano.  que  só  de  três  peças  se 
compõe,  não  traz  novidades  á  evolução  do  género,  mas  offe- 
rece  á  critica  algum  interesse  pela  sua  mixta  composição. 
Nessas  três  peças  se  combinam  três  influencias  não  só  muito 
diversas,  mas  até  contradictorias :  a  do  auto  vicentino,  a  da 
comedia  clássica  e  a  do  romance  de  cavallarias. 

Pretendendo  seriar  as  três  peças  chronologicamente, 
aproveitar-nos-hemos  das  informações  históricas  acerca  das 
circunstancias,  que  rodearam  a  sua  representaeão  e  apurare- 
mos que  os  Amphytriões  foram  escriptos  para  um  divertimento 
escolar,  ainda  no  tempo  de  Coimbra ;  que  El-Rei  Seleuco  o  foi 
por   1545  ;  e  que  o  Philodemo  foi  representado  na  índia,  em 


272  Historia  da  Litterainra  Clássica 

1555,  nas  festas  ao  governador  Francisco  Barreto.  Dizemos 
que  este  ultimo  foi  nessa  data  representado  e  não  escripto, 
por  uma  razão  externa  e  uma  interna.  A  razão  de  ordem 
externa  é  a  grande  differença  que  faz  o  texto  conservado 
por  João  Lopes  Leitão  no  seu  Cancioneiro  do  publicado  pos- 
thumamente ;  a  razão  de  ordem  interna  é  que  os  caracteres 
litterarios  dessa  comedia  fazem-nos  crer  que,  por  defeituosa 
em  extremo,  será  da  mocidade  do  poeta,  porventura  o  seu 
primeiro  ensaio  dramático,  e  não  obra  da  plena  maturidade 
do  seu  engenho.  Certamente  o  texto  publicado  em  1587  era 
a  reproducção  da  primitiva  redacção,  que  entrara  em  circula- 
ção. Seguiremos  a  ordem,  a  que  somos  chegados  pelas  nos- 
sas inferências. 

O  Philodemi  no  ..orne  é  theatro.  na  essência  é  uma 

serie  de  quadros  episódicos  juxtapostos  chronologicamente 
e  lado  a  lado  para  nos  fazerem  assistir  a  uma  narrativa. 
O  poeta  conta-nos  um  romance  complicado  de  aventuras,  as 
quaes  decorrem  por  muitos  lugares  e  preenchem  muito 
tempo,  lugares  que  levam  alguns  dias  a  percorrer  e  tempo 
que  abrange  mais  de  um  mês.  Um  irmão  de  D.  Lusidardo, 
uma  das  personagens,  aggravado  de  el-rei,  emigra  para  a 
Dinamarca,  cujo  rei  o  cumula  de  honrarias,  a  que  elie  retri- 
bue  raptando-lhe  uma  filha.  Fogem  numa  galé,  que  já  pró- 
ximo das  costas  de  Hespanha  o  mar  destrue.  Só  a  pobre 
princesa,  adeantadamente  gravida,  consegue  salvar-se,  segura 
a  uma  prancha.  Dá  á  costa,  põe-se  a  caminho,  mas  dando  á 
luz,  junto  duma  fonte,  a  dois  gémeos,  morre  exhausta.  Esses 
recem-nascidos,  creados  por  um  caridoso  pastor,  são  Philo- 
demo  e  Florimena.  O  primeiro,  não  se  resignando  á  vida 
humilde  do  pastoreio  e  tornando-se  galã  e  bem  prendado,  é 
recebido  em  casa  de  D.  Lusidardo,  de  quem  é  sobrinho  sem 
o  saber  e  toma-se  de  amores  pela  filha  do  seu  amo,  Dionysa, 
de  quem  vem  a  ser  primo ;  Florimena,  de  formosura  pere- 
grina, accommoda-se  á  vida  pastoril  e  tranquillamente  vive 
com  seu  pae  adoptivo.  A  alta  ascendência  e  a  procedência,. 


Historia  da  Liitcraíura  Clássica  273 

das  duas  creanças  soube- as  o  pastor  pela  pratica  das  artes 
magicas,  em  que  era  douto.  Um  dia,  Venadoro,  irmão  de 
Dionysa,  vae  á  caça  e  no  impeto  da  carreira  perde-se  do 
seu  monteiro.  Logo  os  seus  o  procuram  por  toda  a  parte,  só 
o  vindo  a  encontrar,  mais  de  um  mês  depois  do  seu  desap- 
parecimento,  quando  se  iam  celebrar  as  suas  bodas  com  a 
pastora  Florimena,  de  quem  se  enamorara  ao  vê-la  junto 
duma  fonte.  Esclarecido  sobre  a  proveniência  de  Florimena 
e  Philodemo  e  sobre  o  parentesco  que  com  elles  tem,  Lusi- 
dardo  consente  com  alegria  em  os  tomar  por  nora  e  genro. 
Se  analysarmcs  a  forma  por  que  Camões  desenvolveu 
esta  narrativa,  facilmente  discriminaremos  os  seus  elemen- 
tos constitutivos,  os  endossaremos  ás  suas  legitimas  paterni- 
dades e  concluiremos  ser  esta  peça  o  que  noutro  lugar  (*) 
chamámos  uma  obra  tecida  com  os  lugares  communs  de  es- 
cola. O  maravilhoso  romanesco  das  creanças  perdidas,  reco- 
lhidas per  um  pastor  e  creadas  em  casa  de  parentes  na  igno- 
rância do  seu  parentesco  ;  a  parte  pastoril  do  entrecho ;  o 
desapparecimento  dum  caçador  que  se  abandonou  ao  impeto 
da  carreira ;  a  eliminação  duma  personagem  supérflua,  a  par- 
turiente dos  futuros  protagonistas,  por  meio  da  morte,  são 
elementos  suggeridos  pelos  romances  de  aventuras,  em  gosto 
na  epocha ;  a  gaiatice  do  creado  Vilardo  e  o  seu  alegre  des- 
contentamento, que  da  própria  situação  precária  se  ri,  bem 
como  a  adopção  do  metro  curto,  de  sete  syllabas,  são  de  Gil 
Vicente,  que  muito  tratou  esse  veio  do  cómico ;  o  papel  de 
Solina  é  confessadamente  semelhante  ao  de  Celestina  em 
Calisto  y  Melibca,  de  Fernando  de  Rojas  ;  e  a  methodica  divi- 
são em  cinco  actos  com  suas  scenas  e  a  ousada  adopção  da 
prosa,  á  mistura,  é  evidente  influencia  da  comedia  clássica. 
Assim  pois,  Camões  organizou  a  sua  peça  com  os  ele- 
mentos heterogéneos,   que  andavam   no   ar,    como  recorda- 


(1}     V.  Historia  da  Litteratura  Romântica,  Lisboa,  1913. 
H.  da  L.  Clássica,  \.°  vol. 


274  Historia  da  Litter 'atura  Clássica 

cão  das  leituras  mais  em  moda.  Esta  confusão  de  géneros, 
romance  e  theatro,  em  suas  estructuras  plenamente  adver- 
sos, dá  causa  a  essa  dispersão  da  acção  no  tempo  e  no  espaço 
—  que  já  vimos  ser  um  grave  defeito  no  theatro  vicentino 
e  que  tem  sido  sempre  um  dos  maiores  óbices  ao  progresso 
do  theatro. 

Os  Amphytriões  têm  por  assumpto  o  thema  da  comedia 
de  igual  nome  de  Plauto :  o  disfarce  do  trefego  Júpiter  em 
Ampkytrião  para  vencer  a  mulher  deste,  a  virtuosa  matrona 
Alcmena,  que  se  consumia  em  saudades  de  seu  marido 
ausente.  São  as  mesmas  as  personagens,  análogo  o  desen- 
volvimento, só  o  cómico  é  menos  grave  que  em  Plauto, 
porque  Camões  com  melhor  veia  cómica  soube  aproveitar 
os  qui-pro-quo,  as  confusões  a  que  dá  lugar  o  desdobra- 
mento de  Amphytrião  e  seu  creado  Sósia  em  duas  persona- 
lidades iguaes,  só  inimigas  por  não  poderem  soífrer  a  pre- 
sença uma  da  outra.  Como  no  Philodemo,  é  a  redondilha  o 
metro  adoptado  e  é  praticada  com  o  mesmo  rigor  a  divisão 
em  cinco  actos  e  suas  scenas.  Sem  duvida  por  influencia  do 
próprio  original  de  Plauto,  a  acção  apresenta-se  mais  con- 
centrada no  seu  desenvolvimento  e  na  sua  localização  e  até 
no  seu  próprio  thema,  bem  se  podendo  dizer  que  Camões 
praticou  a  regra  das  unidades. 

El-rei  Seleuco  é  a  sua  peça  mais  regular.  Tem  por  assum- 
pto o  caso  antigo,  narrado  pelos  auctores  clássicos  e  repetido 
por  um  contemporâneo  de  Camões,  o  Dr.  João  de  Barros, 
homonymo  do  historiador,  no  seu  Espelho  de  Casados,  a  cessão 
que  o  rei  Seleuco  fez  de  sua  própria  esposa  ao  filho,  enteado 
delia  e  delia  enamorado.  Viram  os  contemporâneos  nessa 
peça  uma  allusão  ousada  ao  caso,  parcialmente  semelhante, 
succedido  com  o  rei  D.  João  in,  quando  principe. 

El-rei  Seleuco  compõe-se  dum  prologo  em  prosa,  dialo- 
gado entre  personagens  estranhas  á  peça,  cuja  representação 
estão  preparando  e  aguardando,  e  dum  único  acto  em  redon- 
dilhas  em  que  se  reconstitue  a  doença  moral  do  principe  e 


Historia  da  Litter -atura  Clássica  275 

o  remédio  que  lhe  dá  a  generosidade  do  pae.  O  mérito  prin- 
cipal deste  auto,  como  das  outras  comedias  camoneanas, 
consiste  na  destreza  do  verso,  que  corre  espontâneo  e  fácil, 
já  sem  as  bruscas  quebras  de  tom  e  de  expressão,  que  em 
Gil  Vicente  notámos,  e  em  linguagem  já  mais  avançada  na 
sua  progressiva  evolução,  mais  desligada  das  faixas  dos 
archaismos. 

O  ÉPICO 

Como  a  tragedia,  na  definição  clássica,  deve  expressar 
uma  súbita  mudança  da  fortuna  com  tempestuosa  exaltação 
das  paixões  que  desperte,  no  dizer  dos  theoricos  «o  terror 
e  a  compaixão»,  assim  a  epopéa  tem  por  objecto  prcprio 
o  estado  de  lucta  da  humanidade,  aquelle  estado  em  que 
uma  mudança  violenta  se  opera  nas  consciências  e  nas  con- 
dições sociaes,  fértil  já  de  acontecimentos  heróicos,  já  de 
inspiração  da  phantasia  sacudida  sob  esse  estimulo.  Sem 
diligenciar  achar  a  normalidade  causal,  a  regularidade 
sequente  para  desses  tempos  fazer  exposição  lógica,  serena 
e  explicativa,  como  a  historia,  a  epopéa  escolherá  da  farta 
messe  de  episódios  heróicos  aquelles  que  mais  avultarem 
pelas  proporções,  pelo  agigantado  esforço  que  revelam  e 
pelo  amplo  significado,  comprazendo-se  assim  no  maravi- 
lhoso. A  lucta  que  produz  um  theor  de  vida  maravilhosa, 
a  aventura  feita  de  tradição  e  lenda,  não  já  de  facto  apurado 
e  rigoroso,  mas  visão  collectiva,  synthese  artística  de  peri- 
phrases  e  hyperboles,  constitue  a  matéria  própria  do  poema 
épico.  Ao  trágico,  que  exalça  os  seus  auctores  com  o 
cothurno  e  lhes  dá  retumbante  voz,  importa  principalmente 
a  violência  titânica  das  paixões  que  encapellam  a  alma  dos 
seus  protagonistas,  o  mundo  interior  do  coração  humano 
tornado  lobrega  caverna  onde  rugem  impetuosos  ventos; 
ao  épico  importa  principalmente  a  acção  externa  da  alma  do 

* 


276  Historia  da  Litteraiura  Clássica 

protagonista,  a  sua  agitação  dramática  e  heróica.  E\  pois,  a 
epopêa  movimento  narrativo  mas  sempre  em  tom  heróico,, 
onde  se  canta  com  voz  grandíloqua  a  lucta  temerosa  pela 
realização  dum  grande  ideal  collectivo.  Os  poemas  homéri- 
cos, concebidos  quando  a  intelligencia  grega  ainda  não  for- 
mulara o  ideal  de  pátria,  cantam  as  luctas  duma  família  de 
heroes  e  têem  por  ideal  a  união  familiar  sob  um  commum 
princípio,  o  amor  da  victoria  e  da  honra.  Virgílio  canta  a 
formação  da  pátria  romana;  Dante  expressou  a  aspiração  da 
unidade  italiana. 

Quando  Camões  delineou  o  seu  poema  haveria  em  Por- 
tugal, no  meio  litterario,  o  pensamento  duma  epopêa  ?  Este 
pensamento  andava  no  ar,  era  idéa  que  todos  os  espíritos 
respiravam,  já  suggerida  pelos  modelos  da  antiguidade,  já 
acordada  pelas  circunstancias  históricas  da  nação  portu- 
guesa. O  historiador  Gomes  Eannes  de  Azurara,  em  mais  de 
um  passo  cita  Lucano,  o  creador  da  epopêa  histórica  latina, 
que  pela  sua  Pharsalia  quasi  convertera  o  género  épico  em 
amena  historia  contemporânea,  tanto  carece  de  sopro  épico. 
Em  1533  no  seu  Panegyrico  a  D.  João  III,  o  historiador  João 
de  Barros  muito  francamente  declarava  a  sua  preferencia  da 
epopêa  ao  lyrismo  e  ás  novellas  de  cavallaria :  ...«ás  mesas 
dos  príncipes  e  grandes  senhores  se  cantavam  antigamente 
em  metro  os  feitos  notáveis  dos  .grandes  homens,  donde 
primeiro  nasceu  a  poesia  heróica,  e  segundo  eu  tenho  ouvido 
ainda  neste  tempo  os  Turcos,  em  suas  cantigas,  louvam 
feitos  de  armas  de  seus  capitães,  o  que  se  fosse  usado  em 
Hespanha  e  toda  a  Europa,  se  me  não  engano,  mais  proveito 
de  tal  musica  nasceria,  do  que  de  saudosas  cantigas  e  trovas 
namoradas».  Já  em  1520  o  mesmo  escriptor,  no  seu  romance 
Chronica  do  Emperador  Clarimundo,  introduzira  a  originalidade 
de  embutir  nessa  obra  uma  intenção  de  apotheose  patriótica. 
Na  ultima  parte  da  novella,  um  propheta  prenuncia  a  Clari- 
mundo a  gloria  dos  reis  seus  descendentes,  que  formarão  a 
pátria   portuguesa  e   a  engrandecerão   pelas   navegações  e 


Historia  da  Litteratura  Clássica  277 

•conquistas.  Já  apontámos  em  lugar  próprio  este  facto  e 
registámos  a  possibilidade  de  ter  sido  o  romance  do  Clari- 
mundo  fonte  dos  Lusíadas.  A  própria  forma  poética  de  oitava- 
rima  ou  verso  heróico  é  por  João  de  Barros  exemplificada 
nesse  seu  romance.  António  Ferreira  claramente  suggere 
essa  empresa  a  Pêro  de  Andrade  Caminha,  indicando-!he 
como  personagem  central  um  dos  filhos  de  D.  João  i: 

Dos  mais  claros  Heroes  hum,  que  cante 

Escolha  teu  sprito,  real  sujeito 

Tens  na  alta  geração  do  grande  Inffante. 

Ergue-te,  meu  Andrade,  arca  esse  peito 
Inflamado  dJAppolo,  cante  e  sôe 
igual  tua  voz  ao  teu  tam  alto  objeito. 

Ouça-se  o  grã  Duarte,  por  ti  voe 
Pelas  bocas  dos  horr.ês;  de  sua  mão 
Inda  Palias,  ou  Phebo  te  coroe. 

O  mesmo  poeta,  espécie  de  theorico  do  ideal  clássico  e 
orientador  dos  nossos  primeiros  quinhentistas,  exhortava 
António  de  Castilho  a  organizar  uma  historia  pátria,  cuja 
intenção  e  sentimento  dominante  não  distariam  muito  da 
intenção  e  sentimento  dominante  da  epopêa,  segundo  as  idéas 
da  época: 

Quando  será  que  eu  veja  a  clara  historia 

Do  nome  português  por  ti  entoado. 

Que  vença  da  alta  Roma  a  grã  memoria? 

Igual  incitação  fazia  o  auctor  da  Castro  a  D.  António  de 
Vasconcellos,  na  ode  8.a  do  livro  i.°,  a  António  de  Castilho, 
guarda-mór  da  Torre  do  Tombo,  na  carta  6.a  do  livro  2.°,  a 
Diogo  de  Teive,  poeta  latino.  E  Diogo  Bernardes  em  carta 
a  António  de  Castilho  justificava-se  de  não  tentar  a  empresa 
por  falta  de  um  Augusto,  «a  quem  tão  bom  trabalho  seja 
acceito.  > 


278  Historia  da  Litteratura  Clássica 

A  ventilação  desta  idéa  duma  epopêa  nacional,  ainda 
noutros  passos  dos  Poemas  Lusitanos,  de  Ferreira  alludida, 
(ode  i.a  do  livro  i.°,  carta  3.*  do  livro  i.°  e  ode  i.a  do  li- 
vro 2.0},  a  sua  satyra  contra  os  Chérilos  e  os  epigrammas 
têm  sido  combinadas  de  modo  a  reconstituir  a  celeuma  de 
protestos  e  inimizades  que  o  génio  de  Camões  e  o  seu  ambi- 
cioso projecto  duma  epopêa  haveriam  despertado  na  corte.  (') 

A  própria  historiographia  do  século  XVI  palpita  dum 
sopro  épico;  João  de  Barros  desfigura  em  heroes  de  epopêa 
•  as  personagens  da  historia  que  narra  em  sua  Ásia,  complexo 
de  façanhas  que  Gaspar  Corrêa  appellidou  de  lendas  e  a  que 
elle  mesmo  misturou  seu  elemento  phantastico.  E  a  prefe- 
rencia dada  por  todos  os  historiadores  aos  successos  decor- 
ridos no  remoto  Ultramar,  mesmo  quando  declaradamennte 
a  incumbência  recebida  era  para  tratar  das  coisas  do  reino, 
é  também  um  evidente  signal  da  ufania  dum  povo  que  levara 
a  cabo  grandes  empresas.  Já  no  principio  do  século  XVII, 
Diogo  do  Couto,  quando  nos  seus  diálogos  do  Soldado  Pra- 
tico, investiga  das  causas  da  decadência  do  dominio  portu- 
guês na  índia,  é  aindef  com  critério  épico  que  faz  o  seu 
exame,  pois  ao  amollecimento  do  espirito  guerreiro,  do  en- 
thusiasmo  heróico  attribuia  a  decadência  do  dominio  que, 
em  seu  critério,  só  por  armas  se  devia  manter. 

A  matéria  épica  oíferecia-se  a  Camões,  palpitante  de 
realidade  e  opportunidade.  Toda  a  historia  de  Portugal  de 
Affonso  Henriques  a  D.  João  III  estava  narrada  com  sequen- 
cia de  methodo  e  doutrina;  todos  os  chronistas  haviam  im- 
pregnado suas  obras  de  sentimentos  de  vivo  patriotismo  e 
ardente  piedade  religiosa,  factores  únicos  reconhecidos.  O 
milagre,  o  elemento  cavalheiresco  e  o  elemento  lyrico  e  trá- 
gico  dessa   historia  estavam  também  revelados,  Ourique,  a 


(')  V.  para  exemplo  as  pacientes  e  profundas  investigações  do  sr. 
Doutor  José  Maria  Rodrigues,  Fontes  dos  Lusíadas,  cap.o  7.0,  publ.  no 
Instituto,  de  Coimbra,  trabalho  incompleto. 


Historia  da  L  literatura   Clássica  279 


infanta  D.  Maria,  Ignez  de  Castro,  Nun'Alvares,  os  infantes 
de  Ceuta,  as  lendas  dos  mares  ainda  não  navegados  povoa- 
dos de  gigantes  e  monstros.  Estava  suggerido  o  titulo,  estava 
exemplificada  a  forma,  estava  demonstrada  a  capacidade 
épica  de  figuras  como  Vasco  da  Gama  e  Affonso  de  Albu- 
querque, figuras  centraes  dos  successos  do  Oriente  e  perso- 
nagens principaes  da  historiographia  que  os  narrava.  Esta- 
vam dadas  idéas  para  a  composição  da  obra,  o  processo  da 
prophecia  por  João  de  Barros,  treinada  a  lingua  portuguesa 
num  incessante  exercício  de  metaphoras,  periphrases,  euphe- 
mismos  e  numa  experimentação  continua  de  adjectivos,  de 
modo  que  se  creára  um  estylo  de  austera  grandiloquencia. 
Organizar  esses  dispersos  elementos  sob  a  unidade  duma 
principal  acção,  dentro  delia  sob  a  forma  de  episódios  que 
se  narram  e  que  se  futuram  embutir  a  historia  anterior  e 
posterior  a  essa  principal  acção,  converter  em  symbolos  o 
que  era  typico  e  representativo  nessa  historia,,  revolver  todos 
os  episódios  lyricos,  trágicos  ou  cavalheirescos  para  lhes 
encontrar  a  face  épica  e  para  nós  a  voltar,  visto  que  só  o 
engrandecimento  da  gente  portuguesa  se  tinha  em  vista  — 
era  crear  a  epopêa  nacional.  Tal  emprehendimento  de  syn- 
thetica   intuição   executou-o   Camões   com   os  seus  Lusíadas. 

Após  o  formoso  pórtico  da  proposição,  da  invocação  e 
da  dedicatória,  abeiramo-nos  da  acção,  que,  segundo  manda- 
vam os  theoricos.  desejosos  de  cavar  distincções  nítidas  en- 
tre a  chronica  e  a  epopêa,  já  ia  adiantada. 

Já  os  portugueses  navegavam  no  Oceano  Indico  havendo 
até  lá  passado  muitos  perigos  e  trabalhos,  quando  os  deuses 
do  Olympo  reúnem  seu  concilio  para  deliberar  sobre  se  ha- 
veria de  ser  concedido  aos  navegantes  que  attingissem  a 
almejada  Iadia.  Apesar  da  opposição  de  Bacho,  ciumento 
por  não  querer  que  a  fama  do  seu  domínio  na  índia  se 
perdesse  offuscada  pelo  valor  dos  portugueses,  preva- 
lece a  opinião  de  Marte,  que  nos  navegantes  vê  herói- 
cos  guerreiros    e  protegidos  de  Vénus,  sua  amada.  Essa  é 


280  Historia  da  Litier atura   Clássica 

também   a  vontade  de  Júpiter,*  porque   assim  se  promettia 
nos  Destinos. 

Entretanto  chegam  os  portugueses  a  Moçambique,  onde 
estiveram  a  ponto  de  soffrer  traição,  passam  em  frente  de 
Quiloa  e  surgem  em  Mombaça  onde,  auxiliada  por  Bacho, 
maior  traição  se  prepara  e  de  que  só  escapam  por  virtude 
da  mediação  de  Vénus  e  suas  nymphas,  que  impedem  a 
entrada  da  armada  no  porto.  Novas  instancias  faz  Vénus 
junto  de  Júpiter  pelos  portugueses,  ainda  perseguidos  de 
aventuras  arriscadas,  apesar  do  que  se  deliberara  no  olym- 
pico  concilio. 

Logo  parte  para  a  terra  Mercúrio,  que  em  sonhos  acon- 
selha e  inspira  confiança  em  Vasco  da  Gama,  a  quem 
annuncia  a  próxima  chegada  a  Melinde,  cujo  rei  o  gasalhará 
amigavelmente.  Visitando  o  rei  de  Melinde  a  frota,  pede  a 
Vasco  da  Gama  que  de  noticias  da  situação  geographica  da 
sua  pátria,  do  seu  nobre  rei,  da  historia  delia.  Isso  faz  o 
Capitão  e  essa  narrativa  é  um  dos  muito  habilidosos  artifí- 
cios usados  por  Camões  para  ter  ensejo  de  cantar  a  historia 
anterior  á  viagem  da  índia,  muito  bem  escolhida  para  acção 
fundamental,  porque  ella  foi  a  principal  das  navegações 
portuguesas,  já  assim  considerada  no  seu  tempo,  em  que  se 
reconhecia  ser  ella  o  coroamento  dos  longos  e  sequentes 
esforços  iniciados  pelo  infante  D.  Henrique. 

A  narrativa  ao  rei  de  Melinde  comprehende  a  des- 
cripção  da  Europa,  localização  de  Portugal  nesse  continente 
e  os  feitos  principaes  de  D.  Henrique,  D.  Thereza,  D.  Affonso 
Henriques,  D.  Sancho  I,  D.  Affonso  II,  D.  Sancho  n, 
D.  Affonso  III,  D.  Diniz,  D.  Aífonso  IV,  D.  Pedro  i,  D.  Fer- 
nando, D.  João  I,  D.  Affonso  V  e  D.  João  II.  Mas  como  o 
poeta  épico  canta  e  não  conta,  terá  de  escolher  e  fazer 
avultar  os  episódios  que  ao  seu  propósito  melhor  sirvam. 
E  assim  é  a  batalha  de  S.  Mamede,  em  que  sobresahem  o 
arrojo  e  a  altivez  de  D.  Affonso  Henriques  fundando  uma 
pátria;  é  a  batalha  de  Ourique,  er.tãc  uma  formidável  bata- 


Historia  da  Liderai  ura  Clássica  281 

lha,  que  daria  consagração  bellica  ao  novo  rei,  o  ungiria  de 
sar.cção  divina  e  lhe  daria  o  pleno  acatamento  dos  seus;  é  a 
generosidade  de  AfFonso  IV,  que  ante  as  lagrimas  commovi- 
das  da  filha  depõe  os  seus  resentimentos  contra  o  genro, 
acode  em  seu  auxilio,  contribue  para  a  victoria  e  volta 
desinteressado  dos  despojos;  é  a  morte  de  Ignez,  em  que 
sobresahe  a  vehemencia  do  amor  português  e  a  rigidez  da 
razão  de  estado,  do  interesse  da  rjatria  que  esses  reis  caval- 
leiros  vinham  construindo;  Nun'Alvares  e  Aljubarrota,  o 
heroísmo  santo  e  o  mais  exaltado  amor  da  pátria;  de 
D.  João  ii  os  seus  esforços  por  attingir  a  índia  e  de 
D.  Manuel  a  decisão  de  mandar  a  frota,  que  ora  o  rei  de 
Melinde  visita  e  festeja. 

Mas,  repetimos,  como  Camões  era  poeta  épico  e  não 
historiador,  não  fez  derivar  essa  decisão  da  fria  conclusão 
de  estudos  scientificos  e  das  informações  de  precedentes; 
seria  isso  uma  exposição  de  razões,  que  só  perderia  com  ser 
feita  em  verso.  Como  manejava  symbolos  e  imagens  para 
construir  uma  obra  de  arte  e  não  enseriava  factos  apurados 
para  fazer  uma  obra  histórica,  usou  do  artificio  muito  do 
gosto  clássico,  já  amplamente  exemplificado  em  epopêas  da 
epocha,  dum  sonho;  em  sonho  apparecem  a  D.  Manoel  i  os 
rios  Indo  e  Ganges,  que  pela  voz  do  primeiro  lhe  propheti- 
zam  que  dominará  na  índia,  mas  á  custa  de  dura  guerra. 
Conta  depois  Vasco  da  Gama  como  o  rei  promptamente 
ordenou  a  partida  da  expedição  do  seu  commando,  a  sua 
partida  e  a  sua  viagem  até  á  chegada  áquelle  posto  amigo; 
e  como  a  viagem,  feito  principal  da  nação  portuguesa,  sym- 
boiiza  a  parte  principal  da  actividade  dessa  nação,  a  sua 
parte  de  interesse  humano,  assim  de  symbolos  é  tecida  essa 
narrativa.  É  um  symbolo  o  velho  do  Restello,  personificação 
do  descontentamento  popular,  do  bom-senso  rasteiro,  aziu- 
mento,  mas  a  que  sempre  se  vem  a  reconhecer  razão,  tardia 
razão;  é  um  symbolo  o  episodio  de  Fernão  Velloso,  aventu- 
reiro  gabarola;   é   um   symbolo   a  prosopopêa  magnifica  do 


282  Historia  da  Littcraiura  Clássica 

gigante  Adamastor,  que  é  para  nós,  portugueses,  o  que 
foram  as  columnas  de  Hercules  para  os  phenicios  e  todos  os 
antigos,  o  non  plus  ultra  afinal  desmentido.  Tal  hymno  á 
pátria,  enthusiasticamente  entoado  perante  o  rei  de  Melinde, 
tinha  uma  conclusão,  que  se  não  dirigia  áquelle  longínquo 
soberano,  mas  a  todos  os  portugueses  e  ao  mundo  inteiro: 
que  os  heroismos  portugueses,  verdadeiros  e  duplos  pelo 
que  acommetteram  e  pelo  que  resignadamente  elles  soffre- 
ram  pelo  seu  Deus  e  pelos  seus  reis,  excedem  toda  a  densa 
massa  de  phantasiosas  aventuras  de  phantasiosos  heroes  do 
mundo  antigo  e  moderno,  excedem  a  própria  força  humana: 


Julgas  agora,  Rei,  que  houve  no  mundo 
Gentes,  que  taes  caminhos  commettessem  ? 
Crês  tu,  que  tanto  Eneas,  e  o  facundo 
Ulysses  pelo  mundo  se  estendessem  ? 
Ousou  algum  a  ver  do  mar  profundo, 
Por  mais  versos  que  dJelle  se  escrevessem, 
Do  que  eu  vi  a  poder  d"*esforço,  e  de  arte, 
E  do  que  inda  hei-de  ver,  a  oitava  parte  ? 

Esse,  que  bebeo  tanto  da  agua  Aonia, 
Sobre  quem  têm  contenda  peregrina 
Entre  si  Rhodes,  Smyrna  e  Colophonia. 
Athenas,  los,  Argos  e  Salamina  : 
Essoutro,  que  esclarece  toda  a  Ausonia, 
A  cuja  voz  altisona  e  divina, 
Ouvindo  o  pátrio  Mincio  se  adormece, 
Mas  o  Tibre  coJo  som  se  ensoberbece  : 


Cantem,  louvem,  e  escrevam  sempre  extremos 
BJesses  seus  semideoses,  e  encareçam, 
Fingindo  Magas,  Circes,  Poliphemos, 
Sirenas,  que  coJo  canto  os  adormeçam  : 
Dêm-lhe  mais  navegar  á  vela  e  remos 
Os  Cicones,  e  a  terra,  onde  se  esqueçam 
Os  companheiros,  em  gostando  o  Loto: 
Dêm-lhe  perder  nas  aguas  o  piloto : 


Historia  da  Litteratura  Clássica 


Ventos  soltos  lhe  finjam,  e  imaginem 
Dos  odres,  e  Calypsos  namoradas, 
Harpias,  que  o  manjar  lhe  contaminem, 
Descer  ás  sombras  nuas  já  passadas  ; 
Que,  por  muito,  e  por  muito  se  afinem 
Nestas  fabulas  vãs,  tão  bem  sonhadas, 
A  verdade  que  eu  conto  nua  e  pura, 
Vence  toda  grandíloqua  escriptura. 


Depois  de  farta  e  generosamente  obsequiado  pelo  rei 
de  Melinde,  que  solemnes  promessas  de  viva  amizade 
declara,  põe-se  a  frota  a  caminho,  guiada  por  fiel  piloto 
melindano.  E  prospera  e  confiadamente  vae  navegando, 
quando  Bacho,  vendo  approximar-se  o  termo  da  viagem  que 
o  será  também  da  sua  fama  de  conquistador  do  Oriente, 
reúne  os  deuses  marinhos  e  os  persuade  á  destruição  dos 
seus  zelosos  competidores.  Effectivamente,  as  divindades 
marinhas  afanosas  acodem  em  auxilio  de  Bacho  e  quando 
em  amena  confraternidade  a  marinhagem  ouvia  a  historia 
dos  doze  de  Inglaterra,  pagina  eloquente  do  heroismo  por- 
tuguês, contada  por  Fernão  Velloso,  desencadeia-se  a  tem- 
pestade. Delia  se  salvam  ainda  por  mediação  de  Vénus  que 
com  sua  corte  de  nymphas  e  deusas  abranda  em  ternura 
amorosa  a  fúria  destruidora  dos  ventos.  E  emfim  chegam  a 
Calicut.  Ahi  é  Vasco  da  Gama  festivamente  recebido  do 
Samori.  Entretanto  o  Catual  de  Calicut,  particularmente  in- 
formado da  gente  portuguesa  por  Monçaide,  quer  visitar  a 
armada. 

E  durante  essa  visita  que  Paulo  da  Gama,  explicando  as 
pinturas  das  bandeiras,  que  ornam  as  naus,  vae  expondo  ao 
soberano  indio,  não  já  a  historia  seguida  como  em  Melinde 
fizera  seu  irmão,  mas  uma  galeria  de  episódios  que  nova 
demonstração  sejam  do  heroismo  sobre-humano  dos  portu- 
gueses: Egas  Moniz,  D.  Fuás  Roupinho,  D.  Prior  Theoto- 
nio,  Mem  Moniz,  Giraldo  Sem  Pavor,  Martim  Lopes,  Paio 
Peres  Corrêa,  Gonçalo  Ribeiro  e  outros. 


284  Historia  da  Litteratura  Clássica 

Em  sonho,  é  o  Samori  advertido  por  Bacho  da  supposta 
falsidade  da  gente  portuguesa  e  contra  elles  concebe  má 
suspeita.  Prepara  o  Catual  a  sua  destruição,  dificultando  o 
embarq-ue  do  Capitão  e  impedindo  o  livre  commercio,  entre- 
tendo delongas  sem  fim  á  espera  das  naus  de  Meca  que  po- 
riam em  obra  a  sua  traça.  Conseguindo  partir  a  salvo, 
põem-se  os  portugueses  a  caminho  da  pátria,  quando  Vénus, 
sempre  sua  generosa  protectora,  lhes  prepara  a  grata  sur- 
presa da  ilha  dos  Amores,  éden  terrestre  que  no  caminho 
se  lhes  depara  e  onde  colhem  as  mais  gostosas  delicias  de 
amores  divinos  e  banquetes  divinos.  Novo  ensejo  prepara 
Camões  para  cantar  o  heroísmo  que  os  portugueses  exerci- 
tariam nas  partes  do  Oriente,  cujo  caminho  acabavam  de 
descobrir.  O  artificio  agora  adoptado  é  o  da  prophecia  que 
uma  nympha  cantando  faz,  na  qual  annuncia  aos  enlevados 
portugueses  a  vinda  de  successivas  armadas  por  aquelle  ca- 
minho, agora  devassado,  a  vingadora  destruição  da  traiçoeira 
Calicut,  as  façanhas  sobre-humanas  do  invencivel  Duarte 
Pacheco,  D.  Francisco  de  Almeida,  D.  Lourenço  de  Almei- 
da, Affonso  de  Albuquerque,  a  figura  máxima  do  oriente, 
em  que  o  poeta  põe  o  reparo  da  crueldade,  Soares  de  Al- 
bergaria, Sequeira,  Menezes,  Heitor  da  Silveira  até  D.  João 
de  Castro.  Depois,  subindo  a  um  monte,  Tethys  mostra  ao 
Gama  a  machina  do  mundo  e  a  descreve  circunstanciada- 
mente. E  nessa  descripção  que  se  contém  aquella  estancia 
de  mau  gosto,  que  parece  proceder  de  exigência  da  censura, 
-sempre  sollicita  em  guardar  a  pura  orthodoxia: 

Aqui  só  verdadeiros  gloriosos 
Divos  estão ;  porque  eu,  Saturno,  e  Jano 
Júpiter,  Juno,  fomos  fabulosos, 
Fingidos  de  mortal,  e  cego  engano : 
Só  para  fazer  versos  deleitosos 
Servimos;  e  se  mais  o  trato  humano 
Nos  pôde  dar,  é  so  que  o  nome  nosso 
Nestas  estrellas  poz  o  engenho  vosso : 


Historia  da  Litter 'atura  Clássica  285 

Dentre  desta  composição,  sem  duvida  a  mais  feliz  que 
á  sua  imaginação  se  podia  offerecer,  Camões  não  teve  des- 
falecimentos, quebras  de  tom  épico,  manteve  a  unidade  es- 
tructural,  sóbria  e  equilibrada,  e  a  sequencia  de  levantada 
inspiração.  Só  parece  quebrar  a  unidade  do  poema,  retirar-lhe 
um  pouco  aquelle  caracter  de  exacta  necessidade,  em  que 
cada  parte  está  no  seu  lugar  próprio  e  se  mostra  indispensá- 
vel, a  final  descripção  da  machina  do  mundo.  Porque  faria 
Camões  que  Tethys  tão  circunstanciadamente  descreva  o 
systema  geral  do  mundo,  pondo  assim  um  tão  scientifico  re- 
mate a  umas  horas  de  deliciosos  amores,  remate  que  parece 
inopportuno  ?  Porque,  querendo  os  portugueses  tudo  devas- 
sar na  terra,  mares  e  continentes,  condigna  recompensa  de 
suas  façanhas  seria  erguê-los  ao  intimo  conhecimento  da 
machina  do  universo  ?  Pôde  ser  essa  uma  explicação,  pois 
a  outra,  que  occorre,  de  querer  a  bella  deusa  apontar  as  par- 
tes do  mundo  por  onde  os  portugueses  discorreriam  e  obra- 
riam feitos  illustres,  não  é  defensável,  já  porque  muito  pouco 
lugar  oceupam  os  portugueses  na  oração  da  deusa,  já  por- 
que essa  descripção  de  muito  mais  se  oceupa,  além  dessas 
partes  percorridas  dos  portugueses.  Mesmo  esse  intuito  seria 
mal  servido,  pois  em  presença  dum  tão  grande  todo,  a  acti- 
vidade dos  portugueses  era  bem  pequena  coisa. 

Para  nós,  não  se  offerece  uma  explicação  esthetica 
acceitavel. 

É  sempre  na  clave  heróica  que  Camões  canta  a  maravi- 
lhosa acção,  sequencia  de  causas  e  effeitos  maravilhosos.  Dos 
portugueses  têm  os  deuses  ciúmes ;  por  esses  zelos  se  cava 
a  cizânia  na  corte  celeste ;  deuses  os  perseguem,  deuses  os 
protegem. 

Para  sobre  elles  desencadear  uma  tempestade,  reune-se, 
na  opulenta  e  profunda  corte  de  Neptuno,  um  concilio  de 
deuses  marinhos  e  delles  mandados  rijamente  sopram  sobre 
as  frágeis  naus  os  mais  furiosos  ventos ;  para  impedir  a  des- 
truição visada  por  esses  ventos,  acode  Vénus  e  toda  a  amo- 


286  Historia  da  Litteratura  Clássica 

rosa  corte.  Quem  pretende  oppôr-se  á  passagem  dos  portu- 
gueses e  quem,  delles  vencido,  perpetua  vingança  tirará 
inexoravelmente?  Um  gigante,  deus,  que  na  guerra  dos 
deuses  andara.  É  sempre  no  dominio  da  causação  maravi- 
lhosa que  se  mantém  o  entrecho  dos  Lusíadas. 

Por  isso,  mais  surprehende,  o  gosto  infeliz,  incoherencia 
em  meio  da  geral  congruência  do  poema,  trahido  na  exposi- 
ção do  s}'stema  do  mundo  por  uma  deusa,  que  por  sua  pró- 
pria bocca  declara  não  existir,  só  servir  para  adornar  versos, 
mas  que  no  emtanto  tudo  sabe.  Essa  penúltima  parte  do 
canto  décimo  dos  Lusíadas  é  um  problema  na  comprehensão 
esthetica  do  poema,  talvez  um  enigma. 

Da  symbolcgia  camoneana,  é  a  prosopopéa  do  Adamas- 
tor a  mais  genial  concepção,  sem  duvida  a  pagina  mais 
bella  do  poema  e  uma  das  creações  mais  altas  da  poesia 
humana.  Ignez  de  Castro  e  Aljubarrota  são  de  extrema  bel- 
leza,  mas  os  elementos  seus  componentes  são  bem  conheci- 
dos de  modo  a  limitarem  um  pouco  o  campo  de  pura  creação 
individual  do  poeta,  depois  a  nota  lyrica  do  episodio  da 
morte  trágica  da  amante  de  Pedro,  como  lyrismo  é  dema- 
siado oratório  para  um  poeta  que  repetidas  vezes,  nas  suas 
lyricas,  bateu  á  porta  da  eterna  belleza  ;  e  o  reverso  politico 
e  patriótico  desse  trágico  medalhão  é  muito  secundário. 

O  episodio  de  Aljubarrota,  com  a  parte  de  Nun'Alva- 
res,  é  exemplo  da  eloquência  vibrante  de  linguagem,  da  vi- 
veza movimentada,  da  decisão  heróica,  intensa  e  invencível, 
daquella  imprudência,  que  uma  scentelha  divina  esclarece  e 
guia : 

. .  .são  grandes  as  cousas,  e  excellentes, 
Que  o  mundo  encobre  aos  homens  imprudentes. 

Esses  episódios  são  principalmente  superfícies  bellas, 
opulentamente  adornadas  e  coloridas,  mas  o  Adamastor  é  o 
acumen  do  génio  pcetico  de  Camões  e  da  imaginação  litte- 
raria   dos   portugueses,    o   mais   perfeito   exemplo   do  bello 


Historia  da  Lilteratura  Clássica  2S7 

sublime  da  epopGa.  A  localização,  a  personificação  escolhida 
e  a  historia  desse  monstro,  que  perfigurava  o  medonho  cabo, 
um  todo  único  e  harmónico  formam.  O  medonho  cabo,  que 
constituiu  o  maior  obstáculo  da  navegação  portuguesa,  ver- 
dadeiro cabo  das  Tormentas,  e  depois  de  transposto,  o  maior 
triumpho,  verdadeiro  cabo  da  Boa- Esperança,  não  podia  ser 
melhor  personificado  que  em  um  gigante,  o  maior,  mais 
horrivel  de  aspecto  e  proporções,  que  a  phantasia  humana 
creára.  O  Atlante  da  mythologia  era  muito  impreciso,  inhu- 
mano  e  por  isso  inconcebível,  quasi  uma  abstracção,  e  os 
gigantes-cavalleiros  das  novellas  em  moda  eram  só  homens 
invulgares.  Mas  o  Adamastor  é  um  gigante  humanamente 
concebível,  embora  preencha  todas  as  grandes  disponibili- 
dades dessa  imaginação  perplexa.  E  um  gigante,  que  abra- 
çamos em  todo  o  seu  conjuncto,  a  figura  horrenda  e  domi- 
nadora fechando  os  mares  e  a  sua  historia  triste.  Sobretudo 
a  sua  historia  triste  é  duma  commovente  belleza,  enternece- 
dora  e  põe  nessa  rocha  abrupta  e  medonha  uma  crispação 
humana,  uma  vibração  de  amor,  daquelle  Amor,  eterno 
causador  de  todo  o  bem  e  de  todo  o  mal,  cujos  arcanos 
invios,  em  lingua  portuguesa,  ninguém  percorreu  como 
Camões.  Cumprindo  sempre  rigorosamente  o  seu  propósito 
de  todo  o  maravilhoso  entrecho  sujeitar  a  uma  também 
maravilhosa  causação,  o  poeta  conta-nos,  explica-nos  muito 
coherentemente  porque  alli  se  encontrava  aquelle  gigante, 
em  tão  avio  recanto  do  mundo,  longínquo,  isolado  e  perigoso 
a  mais  não  poder  ser,  até  para  um  deus.  Estava  alli  o  gigante 
porque  amara  e  por  amor  se  rebellára  contra  Júpiter.  Que 
effeitos  surprehendentes  de  belleza  sublime,  dos  mais  arro- 
jados contrastes  nos  deu  Camões  nesse  quadro :  enchendo  o 
horizonte  e  escurecendo  o  mar  immenso  a  figura  colossal  do 
cabo,  ainda  mal  perdidas  as  antigas  formas  humanas ;  sobre 
as  ondas  agitadas,  débeis  e  apoucados,  os  navios  dos  portu- 
gueses ;  e  das  profundidades  cavernosas  uma  voz  enchia  o 
espaço  a  rugir  coléricas  ameaças  e  logo  brandamente  a  dizer 


288  Historia  da  Litter atura  Clássica 

uma  delicada  historia  de  amor  que  enternecera,  humanizara 
até  á  infantilidade  a  extincta  alma  desse  gigante. 

E  quem  acordara  do  seu  silencio  millenario  essa  voz, 
quem  depois  de  Júpiter  com  elle  media  forças  e  o  vencia 
como  só  Júpiter  o  vencera,  quem  vencendo-o  agora  vencia 
o  próprio  Júpiter,  por  cujo  mandado  elle  guardava  aquelle 
passo  ?  Os  portugueses.  Por  isso  dizemos  que  o  intuito  épico 
de  engrandecimento  da  gente  portuguesa  em  nenhuma  outra 
parte  do  poema  se  cumpriu  com  tão  supremo  génio,  como 
nesta  creação  do  Adamastor  —  bella  como  nenhuma  outra 
por  servir  com  exacção  inexcedivel  esse  propósito  e  pelo 
contraste  delicado  entre  a  força  potente  desse  gigante  e  a 
terna  paixão  que  por  Thetis  concebe,  o  contraste  da  audácia 
desse  gigante  rebellado  contra  Júpiter  que  é  afinal  joguete 
duma  frágil  deusa  «única  despida >>. 

Outra  creação  camoneana  de  grande  belleza  e  também 
originalmente  camoneana  é  a  do  velho  do  Restello,  face 
opposta  ao  heroísmo  cavalheiresco.  A  philosophia  desse 
velho,  vulgar,  mas  tão  profunda  e  desdenhada,  sempre  velha 
por  ser  repetida,  sempre  nova  por  não  ser  ouvida,  a  desillu- 
são  sceptica  e  o  bom  senso  conservador,  forma  bello  con- 
traste com  todo  o  furacão  de  heroísmo,  que  bate  as  estancias 
do  poema ;  contraste  que  trinta  e  três  annos  depois,  desen- 
volvido sob  forma  narrativa  e  pittoresca,  daria  matéria  a 
outra  obra  de  génio,  o  D.  Quixote. 

Psychologo,  como  o  vimos  nas  lyricas,  pensador  como 
se  revela  em  todo  o  conjuncto  da  sua  obra  e  particularmente 
nas  muitas  sentenças  argutas  e  profundas,  em  linguagem 
lapidar,  que  esmaltam  o  poema,  narrador  habilissimo  e  des- 
criptor  elegante  e  incisivo,  Camões  fez  convergir  todos  os 
elementos  que  podiam  servir  á  elaboração  da  obra,  mas 
nenhum  lhe  serviu  tão  bem,  além  do  seu  génio  creador  de 
symbolos  e  imagens,  como  esse  deslumbrante  dom  da  lin- 
guagem intensa,  de  hyperboles  que  avultam  as  proporções, 
de    periphrases    que    avultam    a    vulgaridade,    eloquente    e 


Historia  da  Littcratura   Clássica  289 

vibrante  até  ao  enthusiasmo,  ao  exaggero  glorioso.  E  esses 
effeitos  magníficos  do  seu  estylo,  principalmente  nos  discur- 
sos e  diálogos,  conseguiu-os  o  poeta  não  por  meios  artifi- 
ciosos, adjectivos  sonoros,  a  musica  enganosa  das  palavras, 
mas  em  pleno  connubio  de  sentido  e  expressão;  é  o  senti- 
mento que  sobe  a  alturas  ainda  não  attingidas  na  velha 
gamma  dos  affectos  e  comsigo  a  expressão  que  o  veste. 
Elle  é  que  fez  as  phrases  de  sentido  certo,  petrificadas,  que 
evocam  sempre  o  mesmo  sentido,  porque  foi  elle  que  as 
creou  para  seu  uso. 

Está  já  apurado  por  sólidas  investigações  o  que  é  Camões 
como  pintor  da  natureza,  qual  a  verdade  objectiva  da  fauna 
e  da  flora,  que  em  seu  poema  elle  nos  refere,  da  sua  geogra- 
phia  e  da  sua  cosmographia,  quaes  as  prováveis  fontes 
inspiradoras,  quaes  as  idéas  geraes  que  ao  poeta,  como 
moralista  e  como  pensador,  guiaram.  Fazê-las  era  repetir  sem 
opportunidade  os  resultados  dessas  investigações.  (*)  Só  se 
não  tem  feito  muito  a  simples  coisa  de  dar  á  critica  litteraria 
o  poema  como  thema  de  analyse  esthetica,  um  pouco  impres- 
sionista, ainda  que  tende  bem  presentes  valores  litterarios 
menos  caducos  que  os  do  arbítrio  pessoal.  Tempo  é  de  se 
fazer  esse  trabalho. 


Ao  poema  camoneano  seguiram-se  outras  tentativas 
desse  género,  legitimamente  justificadas  já  em  ser  a  epopêa 
um  dos  mais  nobres  géneros  de  gosto  clássico,  já  na  exube- 
rância de  matéria  épica  nacional,  que  aos  poetas  de  engenho 
se  offerecia  e  ainda  proximamente  suggeridas  pelo  êxito 
dos  Lusíadas. 


(')     V.  a  bibliographia  dos  estudos  Camoneanos  na  Critica  Littera- 
ria como  Scicncia,  pags.  185-195. 

H.  da  L.  Clássica,  l.*  vol.  19 


290  Historia  da  Litter atura  Clássica 

Jeronymo  Corte  Real  (')  publicou  em  1574  o  Successo  do 
Segundo  Cerco  de  Dm,  a  Felicíssima  victoria  concedida  dei  cielc 
ai  senor  Don  Juan  d' Áustria,  en  el  golfo  de  Lepanto,  1578,  e  o 
Naufrágio  c  lastimoso  successo  da  perdição  de  Manuel  de  Sousa  de 
Sepúlveda  e  Dona  Lianor  de  Sá,  sua  Mulher  e  Filhos,  posthu- 
mamente  publicado  por  diligencias  de  seu  genro,  António 
de  Sousa,  em  1594.  Luiz  Pereira  Brandão  (2)  escreveu  o 
poema  da  Elegiada,  sobre  a  guerra,  perda  e  morte  do  rei 
D.  Sebastião,  1588,  e  Francisco  de  Andrade  (?)  o  Primeiro 
Cerco  de  Diu,  em  1589. 

Os  dois  poemas  sobre  os  cercos  de  Diu  e  o  outro  sobre 
o  naufrágio  de  Sepúlveda  são  como  pormenorizações  de  epi- 
sódios já  contidos  nos  Lusíadas,  no  lugar  e  papel  que  lhes 
cabia  como  pedras  do  grande  edifício:  os  dois  cercos  entre 
as  prophecias  ouvidas  na  ilha  dos  Amores,  e  o  naufrágio 
no  caudal  de  vinganças  que  o  Adamastor  cobrará  dos  portu- 
gueses. Tirá-los  desse  lugar  para  constituírem  matéria  de 
longos  poemas  só  seria  legitimo,  quando  elles  revestissem 
um  interesse  humano,  superior  ao  seu  significado  episódico, 


(')  Jeronymo  Corte  Real  nasceu  em  Lisboa,  filho  de  Manuel  Corte 
Real,  donatário  da  Ilha  Terceira;  ignora-se  a  data  do  seu  nascimento. 
Exerceu  cargos  militares  em  Africa  e  na  índia,  entre  elles  o  de  capitão- 
mór  duma  armada.  Regressando  ao  reino,  foi  viver  para  uma  sua  quinta, 
próxima  de  Évora,  onde  cultivou  as  artes  e  onde  morreu  em  1588.  É 
frequente  affirmar-se  que  tomou  parte  na  batalha  de  Alcácer  Kibir,  mas 
não  ha  fundamento  seguro  para  tal  asserção.  „ 

(*)  Luiz  Pereira  Brandão  nasceu  no  Porto,  entre  1520  e  1540.  Pro- 
fessou na  Ordem  monastico-militar  de  Christo.  Era  filho  do  capitão  das 
Molucas,  António  Pereira  Brandão.  Tomou  parte  na  batalha  de  Alcácer 
Kibir,  onde  foi  aprisionado.  Conseguindo  a  sua  libertação,  voltou  ao 
reino  onde  morreu  em  lugar  e  data,  que  se  ignoram. 

(3)  Francisco  de  Andrade  nasceu  em  Lisboa;  ignora-se  em  que 
anno.  Foi  filho  de  Fernão  Alvares  de  Andrade,  fidalgo  da  corte  de 
D.  João  ih.  Por  morte  de  António  de  Castilho,  recebeu  os  cargos  de 
guarda-mór  da  Torre  do  Tombo  e  de  Chronista-mór  do  Reino.  Publi- 
cou em  1613  uma  Chronica  de  D.  João  III  e  morreu  em  1614. 


Historia  da  Litter  atura   Clássica  201 

mas  essa  transfiguração  não  souberam  os  poetas  oprrá-la  ou 
não  a  comportavam  tacs  themas.  São,  por  isso,  só  narrativas 
poéticas  só  complicadas  da  apparelhagem  mythologica  e  dos 
artifícios  da  composição  literária.  Estes  reduzem  se  na  Ele- 
giada,  plangente  narrativa  chronologica  da  derrota  de  Mar- 
rocos, matéria  de  todo  destituída  do  espirito  épico.  Quanto 
se  contem  de  melhor,  na  pintura,  na  symbolização  ou  no 
estylo  poético  destes  poemas,  já  está  comprehendido  com 
relevo  inexcedivel  nos  Lusíadas. 


CAPITULO  VIII 


A  PROSA  MYSTICA 

Noutro  lugar  dissemos  que  considerávamos  como  uma 
das  fundamentaes  caracteristicas  da  litteratura  portuguesa  a 
persistência  dum  certo  mysticismo  intellectual  e  summaria- 
mente  expuzémos  o  conteúdo  que  para  nós  comporta  essa 
expressão  de  mysticismo.  Os  tópicos,  que  então  apresentá- 
mos, constituem  um  typo  muito  especifico  de  estados  de 
consciência,  em  que  abunda  certo  Irybridismo,  queremos 
dizer,  em  que  co-existem  as  disposições  de  espirito  mais 
oppostas,  como  são  a  acceitação  do  determinismo  e  da  su- 
perstição, dos  hábitos  creados  pela  educação  scientifica  e 
dos  grosseiros  prejuízos  repetidos  pela  rotina  mais  ingenua- 
mente crédula.  Não  é  deste  mysticismo  na  accepção  de 
estado  da  consciência,  que  nos  queremos  agora  occupar, 
muito  embora  grandemente  delle  participe  aquella  espécie 
de  mysticismo,  para  a  qual  reclamamos  por  alguns  momen- 
tos a  attenção:  o  mysticismo  como  género  litterario. 

O  mysticismo  para  nós  consiste  no  isolamento,  tão  com- 
pleto quanto  possível,  do  mundo  exterior,  e  na  meditação 
sobre  um  thema  único.  Elle  é  um  extremo  de  subjectivismo, 
porque  ou  é  o  próprio  espirito  esse  thema  único  da  medita- 
ção ou,  quando  se  exerce  sobre  outro  thema,  é  o  próprio 
espirito  que  fornece  os  materiaes  para  construir  o  edifício. 
Portanto  o  mysticismo  exclue  toda  a  observação,  procede 
pela  mais   cerrada  lógica  deductiva  e  exerce-se  pela  intus- 


294  Historia  da  Litteratura  Clássica 

pecção,  que  desse  modo  é  a  principal  faculdade  do  espirito 
interessada.  Este  exclusivismo  da  idéa  única,  que  ha  quem 
chame  mono-ideismo,  tanto  pode  conduzir  á  liberdade  espi- 
ritual, pela  pratica  e  aguçamento  do  dom  da  intuspecção, 
como  á  irnmobilidade  espiritual,  attingindo-se  assim  um 
estado  muito  vizinho  da  loucura,  com  total  perda  da  noção 
de  tempo. 

A  idea  de  tempo  tem  como  bases  a  consciência  das 
mudanças,  da  successâo  das  variações  e  a  consciência  da 
repetição  das  mesmas  mudanças.  Essas  variações  e  essas 
repetições  deixa  o  mystico  de  as  surprehender  na  sua  flagrân- 
cia, desde  que  mergulha  na  meditação  da  idea  única,  inespa- 
cialmente  e  intemporalmente,  para  attingir  a  suprema  forma 
do  mysticismo,  o  estado  de  êxtase.  Isso  trahiam  os  próprios 
mysticos,  quando  chamavam  á  eternidade  um  perpetuo  presente. 
O  êxtase  é  um  estado  que  se  caracteriza  pela  máxima  con- 
centração de  espirito,  mas  também  por  uma  actividade  do 
mesmo  absolutamente  simples,  vizinha  da  suspensão,  frontei- 
riça dos  limites  da  consciência.  Durante  elle  não  ha  atten- 
ção,  nem  sensibilidade,  nem  sequer  receptividade  sensorial. 
As  agiographias  contêm  numerosas  descripções  deste  estado 
de  êxtase  mystico,  produzido  por  causas  internas  ao  próprio 
espirito.  Visão  se  lhe  chama  nessas  narrativas,  mas  esse 
modo  de  o  chamar  não  é  exacto,  porque  presuppõe  ainda 
um  desdobramento  para  o  exercício  do  ver,  que  já  não 
existe,  pois  uma  completa  identidade  se  estabelece  então 
entre  o  sujeito  e  o  objecto.  Acode-nos  um  exemplo  extrahido 
dum  prosador  mystico  que  doutro  mystico  escreveu,  uma 
visão  de  S.  Frei  Gil  narrada  por  Frei  Luiz  de  Sousa:  «Cele- 
brava hum  dia  em  Santarém  :  Eis  que  no  meio  da  Missa  fica 
subitamente  arrebatado:  e  a  cabo  de  grande  espaço  torna 
rindo,  e  fazendo  festas  com  huma  alegria  tão  fora  do  ordiná- 
rio, que  deu  em  que  cuidar  a  muitos  Padres,  que  acudirão 
ao  rapto,  chamados  do  ministro,  e  fazião  vários  discursos, 
tendo  por  descomposição  o  que  virão,  em  tal  lugar,  e  tempo. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  295 

Acabada  a  Missa,  fez-lhe  pergunta  o  Prior  polo  que  vira,  e 
ouvira,  como  quem  fora  hum  Sós  que  o  ministro  chamara : 
e  que  causa  houvera  pêra  tal,  sendo  assi  que  sempre  acabava 
aquelles  santos  mysterios  com  lagrimas,  e  as  extasis  com 
queixas,  e  sospiros.  Não  pode  o  Santo  negar  nada,  a  quem 
inquiria  como  Prelado,  e  foi-lhe  contando,  que  naquella  hora 
se  lhe  representara,  e  vira  com  os  olhos  corporais  a  alma  de 
hum  grande  seu  amigo,  e  grande  Santo,  que  se  hia  ao  Ceo 
cercado  de  resplandores  de  gloria,  e  levada  por  mãos  de 
Anjos.»  O 

O  mysticismo  é  um  estado  de  espirito  eminentemente 
litterario,  participa  até  de  attributos  do  lyrismo,  disposição 
moral  que  deu  origem  ás  maiores  obras  primas  das  litteratu- 
ras  do  mundo;  delle  se  differença  porém  porque  o  lyrismo 
é  sentimental,  e  o  mysticismo  é  também  racional  e  tanto  o  é 
que  deu  base  a  uma  philosophia  das  mais  coherentes  e  har- 
mónicas construcções  metaphysicas.  Também  participa  do 
moralismo,  mas  delle  se  aparta  em  que  o  moralismo  pode 
ser,  e  é-o  frequentemente,  activo,  e  o  mysticismo  é  sempre 
passivo. 

Na  sua  forma  religiosa,  o  mysticismo  foi  fomentado  pela 
religião  christã.  É  elle  «a  doutrina  philosophica,  que  acceita 
a  communicação  com  a  divindade  e  que,  como  processo, 
consiste'  na  indagação  introspectiva  do  que  se  passa  num 
espirito,  fiscalizando  severamente  todo  o  seu  mecanismo,  não 
vá  elle  afastar-se  um  passo  da  vereda  directa  que  a  Deus 
conduz.  .  .»  (2j,  ou  mais  simplesmente,  segundo  a  pratica  de 
cada  um,  a  realização  do  reino  de  Deus  a  dentro  da  própria 
consciência.  Esta  simples  coisa  foi  a  innovação  essencial  do 
christianismo  e  a  maior  revolução  da  historia.  A  principio 
pela    abnegação,    logo    a   seguir   pelo   flectir-se    do    espirito 


(')     Primeira  Parte  da  Historia   de  S.  Domingos,   Lisboa,  1866, 
vol.  i.°,  pag.  233-4. 

(2)     Características  da  litteratura  portuguesa.  Lisboa,  1915,  2.a  ed. 


296  Historia  da  Litteratura  Clássica 

sobre  si  mesmo,  os  primeiros  christãos  desinteressaram-se 
dos  bens  do  mundo  terreno,  renunciaram  á  felicidade  terrena 
do  bem  estar,  que  os  bens  terrenos  unicamente  podiam  pro- 
porcionar, e  sentindo  dentro  do  próprio  espirito  a  liberdade, 
a  eternidade  e  a  felicidade,  architectaram  a  bella  fabrica  da 
sua  fé,  o  reino  de  Deus. 

Os  quatro  escriptores,  que  constituem  o  assumpto  deste 
capitulo,  são  exemplos  dos  muitos  espiritos  que  pela  histo- 
ria adeante  vieram  reconstituindo  esse  extincto  sonho.  Per- 
dendo a  realidade,  a  aspiração  do  reino  de  Deus  foi  ganhando 
em  recursos  imaginosos,  em  pictórico,  em  variedade  e  com- 
plexidade. Em  vez  dum  simples  quadro,  a  ridente  paisagem 
oriental,  assoalhada,  um  lago  tranquillo,  um  bando  de  po- 
bres, que  da  pobreza  se  orgulhavam,  e  os  ensinamentos 
aprazíveis,  em  parábolas,  imperativas  sentenças  e  exemplos 
dum  mestre  adorável,  em  vez  do  seu  martyrio,  no  seu  tempo 
muito  commum,  que  taes  eram  os  materiaes  que  á  medita- 
ção dos  primitivos  mysticos  se  offereciam  —  os  futuros  mys- 
ticos  tiveram  todo  o  grande  edifício  do  christianismo  como 
instituição  social,  como  moral,  como  philosophia,  como  or- 
gânica concatenação  de  todos  os  sentimentos,  actos  e  pensa- 
mentos da  consciência  humana;  tiveram  tudo  que  a  historia 
multi-secular,  a  imaginação  e  o  commentario  dos  Padres  da 
Igreja  accrescentou  ao  primitivo  christianismo  galileu. 

Isto  fez  do  mystico  um  pensador  e,  quando  se  aprimo- 
rou na  moda  de  registar  e  expressar  a  sua  meditação,  um 
escriptor.  Era  agora  bem  differente  do  antigo  mystico  que, 
segundo  Renan  «  sans  rêve  millénaire,  sans  paradis  chiméri- 
que,  sans  signes  dans  le  ciei,  par  la  droiture  de  sa  volonté 
et  la  poésie  de  son  âme,  saurait  de  nouveau  créer  en  son 
cceur  le  vrai  royaume  de  Dieu  !  » 

E  o  século  XVI  que  em  Portugal  produz  os  primeiros 
corypheus  desse  género.  A  religiosidade  medieval,  sentin- 
do-se  tranquilla  e  ao  abrigo  de  intimas  dissenções  e  sem  os 
progressos  mentaes,   que   a  Renascença  traria,  foi  esponta- 


Historia  da  I Alter  atura  Clássica  207 

neamente  descuidada,  só  se  applicando  em  defender-se  com 
as  armas  da  guerra  dos  inimigos  externos,  dos  infiéis.  Mas 
as  grandes  scisões  da  reforma  lutheriana  obrigaram  o  chris- 
tianismo  a  defender-se  dos  seus  inimigos  internos  com  as 
mesmas  armas  e  também  com  as  armas  do  espirito.  O  mys- 
ticismo  litterario  toma  assim  um  caracter  doutrinário,  de  ca- 
techese,  e  em  Portugal  ainda  o  de  refugio  de  alguns  espí- 
ritos combalidos,  pois  três  dos  escriptores  representantes 
deste  género,  Frei  Heitor  Pinto,  Frei  Thomé  de  Jesus  e  Frei 
Amador  Arraes,  só  numa  phase  adeantada  do  quinhentismo 
se  revelam,  quando  as  desgraças  da  pátria  já  eram  matéria 
de  sérias  apprehensões. 


SAMUEL  USQUE 


A  obra  de  Samuel  Usque,  judeu  português,  muito  douto 
e  entre  os  seus  contemporâneos  muito  venerado,  appareceu 
em  1553  sob  o  titulo  de  Consolaçam  ás  tribulaçoens  de  Israel, 
publicada  em  Ferrara,  annos  depois  do  êxodo  violento  dos 
seus  correligionários  ordenado  por  D.  Manuel  I.  Aos  seus 
companheiros  de  exilio  e  de  soffrimento  se  dirigia  na  lingua 
que  fallavam  na  pátria  que  os  havia  expulsado,  para  os  con- 
solar dos  males  presentes  com  a  recordação  de  mais  acerbos 
males  passados  e  a  perspectiva  de  melhores  dias,  segundo 
asseguravam  os  seus  prophetas.  Esta  obra  de  edificação 
religiosa  e  de  intuitos  moraes  emprega  para  o  seu  objectivo 
não  só  os  elementos  que  a  mesma  religião  proporciona:  a 
resignação  ao  soffrimento  e  a  interpretação  do  transcendente 
significado  desse  soffrimento,  mas  também  uma  odienta 
cólera.  E  uma  obra  nobilíssima,  que  honra  a  lingua  portu- 
guesa, cujos  recursos  de  expressão  da  dor  serena  e  da  espi- 
ritualidade religiosa  se  não  evidencia  nesta  obra  menos  do 


298  Historia  da  Litter atura  Clássica 

que  com  os  mysticos  christãos  se  ha-de  evidenciar  (1).  Abre 
o  livro  uma  dedicatória  â  benemérita  dona  israelita,  Gracia 
Nasci,  que  sacrificou  o  seu  bem -estar  e  pôs  os  seus  haveres 
ao  serviço  dos  seus  correligionários.  Depois  num  prologo 
explica  o  auctor  os  motivos  da  obra  e  a  forma  de  composi- 
ção adoptada. 

Quiz  Usque  fazer  decorrer  ante  a  imaginação  maravi- 
lhada do  leitor  o  passado  grandioso  da  sua  pátria  e  as  des- 
graças que  sobre  ella  cahiram  ;  para  esse  fim  adoptou  uma 
perfiguração  muito  ao  gosto  do  seu  tempo :  o  dialogo  e  o 
scenario  pastoril.  Icabo,  anagramma  de  Jacob,  representando 
Israel,  embrenha-se  pelos  bosques  penando  suas  pungentes 
e  desesperadas  maguas,  como  fizera  a  narradora  da  Menina  e 
Moça  ;  encontram-no  casualmente  Numeo,  derivado  de  Nahum, 
e  Zicareo,  derivado  de  Zahariahu,  pastores,  aos  quaes  conta 
a  sua  triste  historia  e  dos  quaes  recebe  consolações.  O  meio 
pastoril,  em  que  decorre  a  perfiguração  symbolica  da  obra, 
era  o  obrigado  disfarce  da  epocha,  a  composição  obrigada 
para  todas  as  obras  onde  a  phantasia  tomava  largo  fôlego, 
quando  se  não  tratasse  de  géneros  prefixamente  regulados. 
Também  modernamente,  quando  os  poetas  querem  interpre- 
tar artisticamente  a  historia  dum  povo  numa  larga  synthese, 
adoptam  o  processo  posto  em  voga  por  Victor  Hugo  e  entre 
nós  praticado  com  brilho  pelo  sr.  Guerra  Junqueiro^  na  sua 
Pátria :  representar  a  evolução  histórica  desse  povo  nos  seus 
mais  salientes  vultos  e  episódios  e  fazê-los  desfilar  ante  nós, 
fallando  em  inflados  alexandrinos. 

Ao  tempo  de  Samuel  Usque  era  o  disfarce  pastoril  o 
usado.  Eloquentemente  se  lamenta  Icabo,  a  todas  as  partes 
do  mundo  dirigindo  o  seu  protesto  vehemente  e  a  sua  plan- 
gente  confissão,    e   nessas  passagens  põe  Usque   um   senti- 


(1)  De  Samuel  Usque,  israelita  português,  ignora-se  toda  a  bio- 
graphia,  incluindo  o  próprio  lugar  de  naturalidade  e  as  datas  de  nasci- 
mento e  morte. 


Historia  da   Litteratura  Clássica  299 

mento  tão  profundo  de  desespero,  de  saudade  e  de  cólera, 
que  só  a  muito  viva  lembrança  de  males  recentes  poderia 
inspirar-lhe  essas  litanias  vehementes :  «O  mundo  mundo, 
jaa  que  tuas  racionaes  creaturas  nam  consentes  se  doiam  de 
minhas  tribulações  e  lazeiras,  se  nas  insensíveis  influíram  os 
çeos  algum  modo  secreto  de  piadade,  daa  licença  aos  rios 
que  daltas  montanhas  com  espantoso  rumor  vem  quebrar 
suas  escumosas  agoas  em  bayxo,  que  detendo  o  seu  arreba- 
tado passo,  com  manso  e  lamentoso  roydo,  acompanhem  o 
cõtinuo  cursso  de  minhas  lagrimas,  e  em  seu  correr  cansado, 
mostre  novo  sentimento  de  minhas  longuas  misérias:  e  vos 
outros  princepes  de  todos  elles,  Nilo,  Ganges,  Eufrates,  Ti- 
gre, que  desatandouos  do  paraíso  terrestre  desenfreados  vin- 
des abreuar  os  sequiosos  Egípcios,  os  molles  e  cheirosos  Yn- 
dios,  e  torcedo  o  passo,  e  escondedouos  nas  áreas  por  muitos 
dias,  sahis  depois  a  mostramos  aos  bárbaros  e  queimados 
guineos,  e  sobindo  e  descendo  por  ásperos  e  montanhosos 
desertos,  ys  tambê  saudar  os  guerreiros  e  cruéis  tártaros 
pois  laa  vos  comunicaes  coaquelle  tam  desejado  mèsageiro 
que  em  carro  e  caualos  de  fogo  arrebatado  foi  leuado  aos  ecos, 
rogouos  que  aqui  manso  me  digaes  este  segredo. 

«Quando  cansaram  meus  males,  e  fadigas,  minhas  injurias 
e  offensas,  minhas  saudades,  e  misérias,  as  feridas  nalma  e 
minhas  magoas,  as  bemaventuranças  em  sonhos,  as  desauen- 
turas  certas,  os  males  presentes,  e  esperanças  longas  e  tam 
cansadas ;  e  quando  terá  paz  tanta  guerra  contra  um  fraco 
subgeito,  temor,  sospeita,  reçeos  de  minhas  entranhas,  tee 
quando  gemerei,  respirarei,  matarei  a  sede  co  as  lagrimas 
de  meus  olhos ?•*  (T)  Corno  os  pastores,  prophetas  disfarçados, 
o  surprehendessem  e  pedissem  lhes  referisse  a  causa  de  tão 
grande  desalento,  elle  referiu-lhes  a  sua  historia,  que  é  afinal 
a  historia   do  povo  de  Israel,  commentada  com  lamentos  e 


(1)     V.   Consolaçam  às  Trihulaçoens  de  Israel.  Coimbra,  1906,  ed, 
do  sr.  Mendes  dos  Remédios,  i  o  vol.,  pag.  B  i. 


300  Historia  da  Litter atura  Clássica 

apreciações.  E  Icabo  conta-lhes  toda  a  sua  vida,  como  o 
Doido  da  Pátria,  do  sr.  Junqueiro.  São  paginas  formosas  pelo 
seu  poder  descriptivo  e  pictórico,  e  mais  aindas  pelos  senti- 
mentos que  a  impregnam,  paginas  de  prosa,  onde  sobra 
inspiração  poética. 

A  historia  dramática,  mais  duma  vez  intensamente  trá- 
gica, de  Israel,  onde  o  sobrenatural,  o  maravilhoso  e  a  cer- 
teza da  intervenção  divina  andam  sempre  presentes,  impri- 
mem esse  cunho  tão  caracterisco  a  essa  chronica,  tal  como 
tradicionalmente  se  teceu,  da  Biblia  e  dos  prophetas. 

Os  factos  argamassou- os  Samuel  Usque  com  a  sua 
imaginação,  organizando  uma  visão  plangente,  dominada  de 
fatalidade,  que  é  também  uma  interpretação  histórica,  ainda 
que  nella  predomine  a  sensibilidade  artística  e  um  propósito 
de  edificação  e  de  apologética.  Um  vivo  sentimento  da 
realidade  impregna  a  obra :  aconselha  Usque  resignação  aos 
divinos  desígnios  e  apella  para  o  effeito  consolador  da  reli- 
gião porque  muito  soffrera  e  vira  sorfrer,  e  porque  em  toda 
a  historia  de  Israel  só  via  misérias,  perseguições,  um  vento 
permanente  de  desgraça.  Esta  circunstancia,  esta  base  de 
realidade  dá  ao  seu  mysticismo  um  caracter  especial,  torna-o 
mais  sentido,  mais  vivido,  mais  eloquente  e  mais  tocante. 
Ordinariamente,  o  mystico  christão  aborrece  o  mundo  e 
contra  elle  se  indigna,  contra  elle  dirige  as  suas  invectivas 
coléricas,  sem  o  haver  visto  e  soffrido,  quantas  vezes  em 
plena  mocidade  feliz  e  em  meio  de  propicio  bem- estar. 
E  de  olhos  fechados,  com  a  alma  posta  em  Deus,  que  elle 
phantasia  o  mundo  da  graça,  só  conhecendo  e  só  reconhe- 
cendo o  soffrer  de  Christo  e  dos  martyres,  que  o  repetiram. 
Dos  nossos  mysticos  christãos,  só  Fr.  Thomé  de  Jesus,  o 
heróico  captivo  de  Marrocos,  possuiu  um  pouco  o  dote  emi- 
nente de  Samuel  Usque,  o  espirito  de  realidade,  apparente- 
mente  tão  opposto  á  posição  moral  dum  mystico  religioso. 
Sobre  esse,  outros  dotes  litterarios  avivam  a  obra:  o  estylo 
parenetico,    vibrante    de    convicção,    caloroso,    em    intensas 


Historia  da  Litter atura  Clássica  :>()1 

evocações  ;  a  todos  os  povos,  a  toda  a  terra,  a  todos  os  ele- 
mentos se  dirige  para  que  todos  e  tudo,  juntamente,  oiçam 
as  desgraças  sem  nome  de  Israel,  para  que  unisonamente 
vibrem  com  as  lamentações  tétricas  de  Icabo :  « Sede  pre- 
sentes gentes  a  ouuir,  e  vós  outros  povos  pêra  estar  attentos, 
ouça  a  terra  e  quanto  nella  ha,  a  redondeza  e  todas  suas 
plantas,  que  a  yra  do  Senor  vem  sobretodalas  gentes,  e  seu 
furor  sobre  todos  seus  exércitos,  com  maldições  as  offereceo, 
e  ao  sacrifício  e  matança  as  entregou  para  que  seja  seus 
mortos  arremessados,  e  de  seus  corpos  se  levante  pestenen- 
cial  fedor,  e  estilem  os  montes  com  seus  sangues,  apodrecera 
também  todo  o  exercito  celeste,  e  revolverseam  os  ceeos 
como  o  volume  de  hum  livro  se  revolve,  e  todo  seu  exercito 
cahirá  como  cahem  as  folhas  da  vide  e  figueira. »  Mais  duma 
vez  a  sua  linguagem  attinge  uma  intensidade  de  expressão 
e  uma  violência  de  sentimentos  até  então  inteiramente  des- 
conhecidas na  nossa  lingua.  A  máxima  expressão,  intensa 
até  á  violência,  e  o  lyrismo  eloquente  foram  cordas  pela 
primeira  vez  desferidas  na  historia  da  nossa  litteratura 
por  Samuel  Usque,  que  só  Ferreira  repete  na  sua  Castro, 
pela  bocca  do  infante  D.  Pedro  e  pelo  coro  final  do 
4.0  acto,  e  que  só  Camões  excedeu  nos  seus  Lusíadas. 
A  cada  passo  se  trahe  uma  imaginação  habituada  a  pre- 
sencear  desgraças,  incestos  e  sacrilégios,  a  só  meditar 
nos  casos  mais  terríficos  da  maldade  humana,  a  vibrar  de 
piedade  religiosa  e  a  confranger-se  de  horror  perante  blas- 
phemias  e  destruições  iconoclastas.  O  soffrimento  perde  o 
caracter  de  dôr  physica  para  ascender  á  sublimidade  de 
sagrada  cólera  determinada  por  offensas  a  Deus,  sem  numero 
e  sem  nome.  Usque  soffre  principalmente  como  creatura  que 
com  Deus  tem  alguma  communicação,  que  pelo  menos  sem- 
pre sobre  si  postos  sente  os  olhos  perscrutadores  dum  Deus 
vingador  e  inexorável.  «Vi  daquelles  que  desatinados  da 
incomportauel  fome,  sem  temerem  outra  morte  (por  mais 
crua  que  fosse)  que  aquella  de  que  começauam  jáa  a  morrer, 


302  Historia  da  LdM&r atura  Clássica 

entregarsse  híía  grande  cãtidade  nas  mãos  do  cruel  ymigo 
q.  no  cerco  estava ;  e  vivos  lhe  abrirem  as  barrigas  os  árabes 
assyrios  que  em  fauor  de  Titos  vieram,  buscando-lhe  o  ouro 
dètro  nas  entranhas,  que  algús  auião  englutido  pelo  não 
auerem  os  tiranos  da  pátria  :  assi  que  sahyam  da  bocca  da 
loba  faminta  ;  e  cahiam  nas  unhas  do  esfaimado  lião,  como 
Yehaschel  primeiro  antevio  dizendo :  De  fogo  sahiram  e 
fogo  os  queimará,  o  lião  que  faz  cerca  de  suas  cidades  tudo 
o  que  delias  sahir  espedaçará. 

«E  per  remate  e  concrusão  de  todos  meus  males:  com 
cornos  de  brauo  touro  dos  desertos  despanha,  e  com  forças 
de  ensanhado  lião  Africano  entre  ouelhas,  e  cõa  raiua  vnhas 
e  bico  de  monstruoso  Tigre  de  Hircania  trás  os  filhos  rou- 
bados, vi  entrar  em  Yerusalaim  aquella  Águia  romana  nas 
mãos  do  fero  Titos,  desatando  as  azas,  ensanguentando  o 
bico,  estragando  bosques  de  humanas  criaturas,  inglutindo 
carnes,  chupado  sangues,  destríçãdo  ossos,  espedaçando 
membro  a  membro  milhões  de  corpos,  de  sacerdotes,  prín- 
cipes, velhos,  mancebos,  molheres  prenhes,  formosas  meças, 
e  de  criaturas  pouco  antes  nacidas ;  e  cõ  o  duro  bico  (ve- 
dando os  santos  sacreficios)  ateou  o  foguo  nelles,  e  em  todo 
o  corpo  do  divino  templo,  tee  penetrar  no  mais  interior  e 
vedado,  e  voando  com  elle  ligeirissimamente  na  soberana 
altura  das  torres  o  sobia,  nos  muros,  e  em  todolos  ricos 
edeficios  e  ingeniosa  architetura  da  maravilhosa  cidade  o 
pegava. 

«  Aqui  muitos  sacerdotes  posto  que  lançandose  da  parte 
dos  romanos,  se  podia  salvar,  antes  se  lançavão  elles  mes- 
mos no  foguo,  por  se  queimar  cõ  o  templo,  entre  os  quaes 
foram  Merio,  filho  de  Belga,  e  Joséfo,  filho  de  Darea,  e  ou- 
tros muitos  côas  arcas  e  caixões  do  tisouro  em  cinza  se  con- 
verterõ...»  (l).  E  após  uma  descripção  tão  viva,  a  lamentação 


(l)     Ed.  cit.  i.°  vol.,  pag.  xix  e  xx. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  308 

tão  intensa:  «Ay  derribada  he  minha  fortaleza,  donde  me  de- 
fendia dos  dous  ymigos,  desfeito  he  o  ninho  da  única  Fé- 
nix, arrancada  a  arvore,  que  de  seus  divinos  frutos  me 
mantinha,  secas  sam  suas  folhas,  que  me  faziam  delitosa 
sombra,  sobida  hc  aos  ceos  a  verdadeira  Alma  do  meu  espi- 
rito, tendido  deixa  em  terra  nas  unhas  das  cruas  feras  o 
corpo  onde  morava.  Ó  misquinho  de  mi,  que  me  lançarom 
do  meu  terrestre  paraizo,  pisarõ  cõ  os  pés  as  virgens  de  Is- 
rael, que  eram  suas  boninas  e  flores,  de  que  estava  semeado, 
destruíram  a  gentil  mancebia  e  grave  velhice,  seus  novos 
cedros  e  antiguos  aciprestes  que  suas  raizes  tinhão  sobello 
derradeiro  ceco  arreigadas;  turbarom  com  sangue  e  amar- 
gura as  suas  claras  agoas  de  ley  divina  que  os  regava,  asso- 
larom  os  justos  e  prophetas  cerca  de  seus  muros,  que  repa- 
ravam as  yras  do  senor,  finalmente  o  meu  claro  Sol  se  escu- 
receo,  e  em  profunda  tenebra  me  deixou  envolto  Num  paiz 
de  forte  tradição  litteraria  e  apurado  gosto,  esta  obra,  se 
houvesse  podido  circular  livremente,  teria  grandemente  con- 
tribuído para  dois  importantes  effeitos  litterarios :  revelar  os 
recursos  de  arte  da  historia  de  Israel,  que  tanta  matéria  trá- 
gica contem  e  offereceu  aos  poetas  do  tempo  de  Luiz  xiv, 
com  o  que  desempenharia  papel  um  pouco  semelhante  ao  do 
Génic  do  Christianisme ,  cerca  de  três  séculos  mais  tarde  ;  e 
preparar  o  gosto  épico,  grandiloquo  e  evocativo,  tão  próprio 
do  nosso  quinhentismo  que  desse  gosto  sahiu  a  sua  obra- 
prima,  os  Lusíadas. 

A  obra  fecha  consoladoramente  com  o  annuncio  de  me- 
lhores tempos  para  Israel,  segundo  a  mesma  vontade  de 
Deus,  que  deixara  os  maiores  males  arHigircm  o  seu  povo. 
E  assim  a  obra  de  Usque  é,  para  os  israelitas,  rigorosamente 
orthodoxa  e  para  nós  eminentemente  litteraria,  duma  belleza 
original,  exemplo  de  ardente  amor  da  pátria  alliado,  con- 
fundido a  fervorosa  religiosidade,  ambos  expressos  com  bri- 
lhante relevo. 


304  Historia  da  LÁtteratura  Clássica 


FREI  HEITOR  PINTO 

Frei  Heitor  Pinto  (')  publicou  a  sua  famosa  obra  Ima- 
gem da  Vida  Christã,  em  1563.  Grande  foi  o  seu  êxito,  por- 
que varias  vezes  se  reeditou  e  para  varias  linguas  foi  tradu- 
zida. 

A  reedição  e  a  traducção  eram  já  então,  como  agora,  as 
formas  supremas  do  triumpho  litterario  por  denunciarem  a 
existência  dum  largo  publico  de  leitores.  Modernamente  só 
accresceu  a  homenagem  da  critica. 

O  titulo  completo  da  obra  já  indica  o  seu  conteúdo  : 
Imagem  da  Vida  Christã  ordenada  por  diálogos,  como  mêòros  de 
sua  composiçam.  Os  diálogos  são  seis :  Da  verdadeira  philoso- 
phia ;  da  religião  ;  da  justiça ;  da  tribulação  ;  da  vida  solitária  ;  da 
lembrança  da  morte. 

O  primeiro  dialogo,  entre  um  ermitão  dos  campos  de 
Coimbra  e  um  philosopho,  decorre  todo  em  torno  da  res- 
posta, que  o  ermitão  dera  ao  philosopho  que  o  cumprimen- 
tara: «Eu  nõ  estou,  nê  tenho  hu  soo  ano  de  idade,  e  o 
mesmo  pode  de  si  dizer  todos  os  homês».  Como  o  philoso- 
pho, com  grande  copia  de  argumentos,  pretendesse  rebater 
a  asserção  do  eremita,  este  justifica-se  depois  longamente. 
Esta  justificação  constitue  o  segundo  capitulo,  em  que  pro- 
cura provar  a  brevidade  da  vida  humana,  comparada  á  vida 
eterna.  A  sua  demonstração  é  tirada  do  « thesouro  infallivel 


(*)  Frei  Heitor  Pinto  nasceu  na  Covilhã,  suppõe-se  que  em  1528. 
Professou  no  convento  dos  Jeronymos,  de  Belém,  e  seguiu  os  seus  estu- 
dos no  convento  da  Costa,  na  Universidade  de  Coimbra  e  na  de  Si- 
guenza.  Em  1565  teve  a  nomeação  de  reitor  do  Collegio  de  Coimbra  e 
em  1571  foi  eleito  provincial  da  sua  ordem.  Ensinou  na  Universidade  de 
Coimbra,  na  cadeira  de  Escriptura,  para  elle  especialmente  creada.  No- 
bremente aífecto  á  causa  nacional,  que  D.  António,  Prior  do  Crato,  re- 
presentava, foi  affastado  do  ensino  e  transferido  por  ordem  de  Filippe  11 
para  o  convento  dos  Jeronymos  de  Silla,  onde  morreu  em  1584. 


Historia  da  Litter atura  Clássica  305 


da  sagrada  Scriptura  e  da  liçam  dos  Doctorcs  Theologos  » 
(pag.  10).  E  conclue  do  seguinte  modo  muito  elucidativo 
quanto  ao  processo  lógico  da  sua  demonstração :  « E  com 
isto  ficam  provadas  as  duas  proposições,  que  eu  auia  de 
provar,  que  nem  eu  estaua,  nê  tinha  dias  de  idade.  E  não 
vos  enganeis  cõ  vos  parecer  que  me  vedes  estar,  porq.  assi 
como  híí  home  qu  vay  níía  náo  com  todas  as  velas  despre- 
gadas a  força  dos  vetos  atrauessando  as  duuidosas  ondas, 
caso  q.  elle  vá  assêtado,  todavia  anda  chegãdose  ao  porto, 
assi  eu  ainda  q.  pareça  que  estou,  cõ  tudo  caminho  para  a 
morte.  E  olhay,  quã  pouco  ha  q.  vos  aqui  topey,  que  des 
então  ategora  passey  hila  hora  de  vida,  q.  agora  tenho  me- 
nos. E  esta  perdi  este  espaço  que  vivi,  porq.  viver  he  per- 
der a  vida,  &  perdela  he  morrer,  e  morrer  he  deixar  de  ser, 
q.  o  nosso  viver  &  o  nosso  ser  andam  ao  livel  unidos,  &  in- 
separáveis híí  do  outro.  Dõde  se  colhe  q.  quê  deyxa  de  vi- 
ver, vay  deixando  de  ser,  &  deixado  de  ser,  não  está  sem- 
pre níí  ser.  E  daqui  se  cõclue  ser  falso  o  que  vos  dizeis, 
que  me  vieis  cõ  vossos  olhos  viver  &  estar.  Porq.  como  vi- 
ver seja  passar  a  vida,  &  passar  seja  não  estar,  seguese  que 
se  me  vedes  viver,  vedesme  passar  &  nã  estar.  Quanto  mais 
q.  me  não  vedes  viver.  Hiía  cousa  he  verdesme  vivo,  outra 
he  verdesme  viver.  A  primeira  he  verdadeira,  a  segílda  falsa. 
Porq.  se  me  vísseis  viver,  verieis  ir  caminhando  a  vida,  & 
ella  não  se  vê,  dado  q.  se  vejam  seus  effeytos ;  porque  como 
â  cor  seja  objecto  da  vida  corporal,  &  ella  nam  possa  ser  se- 
não cousa  corada,  porq.  nenhiía  cousa  se  vê  senão  por  meo 
da  cor,  &  a  vida  não  tenha  cor,  seguese  que  he  invisivel. 
Dõde  está  clarissimo  que  me  não  vedes  viver»  (pags.  130  e 
seg.). 

Como  o  philosopho,  sollicito  em  defender  os  sentidos, 
fizesse  um  caloroso  elogio  da  vista,  cujos  dados  particular- 
mente o  ermitão  refutara,  este  rebate-o,  allegando  entre 
outros  argumentos  o  de  que  a  vista  contenta  o  coração  e 
distrahe  o  pensamento  cujo  único  objecto  deve  ser  Deus. 
H.  da  L.  Clássica,  vol.  1.»  20 


306  Historia  da  Litteratura  Clássica 

Confessando,  como  confessa,  o  seu  horror  da  observação 
sensorial,  Frei  Heitor  Pinto  mostra  o  seu  perfeito  estado  de 
sincero  mysticismo.  Apontando  os  perigos  do  homem  prestar 
attenção  aos  dados  dos  sentidos,  é  levado  a  definir  a  sua 
idéa  de  Deus:  «Ninguém  he  bom  senão  só  Deus.  Assi  como 
o  centro  he  hú,  &  indivisível,  &  está  no  meo,  &  delle,  sae 
as  linhas  para  a  circuferencia,  assi  Deus  he  hua  unidade 
simplicíssima,  hu  acto  puríssimo,  q.  está  em  todas  as  cousas, 
do  qual  procede  os  rayos  da  fermosura  das  creaturas.  Elle 
está  d£tro  em  nós,  &  he  fonte  de  todo  o  ser  sendo  mesmo 
nosso  ser,  mais  intimo  a  nós  q.  nós».  E  algumas  linhas 
abaixo:  <  DEOS  he  hum  principio  sem  principio,  a  mesma 
bondade,  dõde  vem  tudo  o  que  he  bom.  A  fermosura  da 
terra  com  suas  heras,  flores,  plantas,  rios  &  animaes:  a 
beleza  do  ceo  com  toda  a  tapeçaria  das  claras  &  resplande- 
centes estrellas,  toda  a  graça,  sapiência,  virtudes,  &  orna- 
mètos  cTalma,  finalmete  toda  a  fermosura  assi  interior,  como 
exterior,  he  hum  resplandor  dos  rayos  da  divina  fermosura. 
Tudo  vem  de  Deos,  daquella  fermosura  antigua,  daquella 
sapiência  infinita,  daquella  bondade  immensa,  daquelle  cen- 
tro summo  &  sempiterno,  que  he  Deos».  (Pag.  iS  e  18  v.). 
A  verdadeira  philosophia  deve  começá-la  o  homem  pelo 
conhecimento  de  si  mesmo,  e  deste  conhecimento  de  si 
próprio  virá  elle  ao  conhecimento  supremo  de  Deus,  porque 
seria  com  conhecer-se  bem  a  si  que  elle  poderia  medir  a 
terrena  miséria  e  por  contraste  alcançar  a  infinita  grandeza 
de  Deus.  Mas  conhecer-se  o  homem  a  si  mesmo  é  conhe- 
cer somente  aquella  parte  digna  de  alguma  meditação  e 
analyse,  a  alma,  porque  a  outra,  o  corpo,  era  uma  parte 
inferior  do  género  humano,  que  não  merecia  que  nella  se 
attentasse.  Este  conhecimento  da  alma,  esta  intuspecção  da 
própria  consciência,  ainda  que  quanto  ao  methodo  se  appro- 
ximasse  da  moderna  psychologia,  era  quanto  ao  fim  coisa 
muito  diversa,  porque  não  visava  ao  conhecimento  da  indi- 
vidualidade moral  de  cada  um,  ao  mecanismo  espiritual  do 


Historia  da  Ldtter atura  Clássica  307 

commum  dos  homens,  sequer,  mas  apenas  a  chegar  ao  con- 
vencimento da  baixa  origem  do  género  humano,  e  a  pro- 
duzir a  mais  contricta  humildade.  Porque  nalgum  tempo  os 
homens  se  affastaram  da  pratica  do  amor  de  Deus  e  da 
humildade  e,  em  contrario,  se  possuíram  de  enfatuada  pro- 
sápia, é  que  se  tornou  necessária  a  vinda  de  Jesus.  «E 
estando  o  mundo  feito  híí  labirintho  de  incomportáveis  erros, 
falsas,  &  diabólicas  opiniões,  avendo  Deos  misericórdia  do 
home  que  criara,  mandou  seu  filho  unigénito,  Christo,  nosso 
Deos,  para  nos  salvar.  Veo  o  bom  Jesus,  aquelle  explendor 
da  Gloria,  como  lhe  chama  S.  Paulo,  &  figura  de  sua  subs- 
tancia, veo  aquella  verdade  sempiterna,  aquella  verdadeyra 
vida,  aquella  sapiência  sem  fim,  aquella  bondade  immensa, 
aquelle  lume  do  lume,  aquelle  verbo  divino  nosso  summo 
bem,  &  tomada  nossa  humanidade  conversou  cõnosco  para 
nos  ensinar,  &  mostrar  o  caminho  da  bemaventurança  & 
allumiar  nosso  entendimento.  Porque  nas  cousas  sobrenatu- 
raes  sem  o  lume  divino  está  cego  o  engenho  humano». 
(Pag.  34  v).  Depois  de  explicar  a  encarnação  de  Jesus,  para 
sob  a  forma  humana  maior  diffusão  poder  dar  ás  suas  dou- 
trinas, de  narrar  o  seu  ensino  e  a  sua  morte  generosa,  Frei 
Heitor  Pinto  chega  á  conclusão  sobre  a  verdadeira  philoso- 
phia  que  é  o  amor  de  Deus  com  todas  as  suas  consequências: 
conhecermo-nos  a  nós  mesmos,  subirmos  por  este  próprio 
conhecimento  ao  de  Deus,  amá-lo  de  todo  o  coração,  a  elle 
nos  entregarmos  totalmente,  e  amar  ao  próximo  como  a 
nós  mesmos,  desinteressando-nos  de  todos  os  valores  da 
vida,  não  receando  a  morte,  fugirmos  das  vaidades  e  enga- 
nos do  mundo,  mais  velar  que  dormir. 

O  segundo  dialogo  decorre  entre  dois  frades  portugue- 
ses, que  se  encontram  na  Lombardia,  entre  Parma  e  Plasen- 
cia.  Conversando  das  saudades,  que  um  delles,  frade  Jero- 
nymo,  tinha  da  tranquilla  clausura  que  em  Portugal  gozara, 
antes  de  partir  a  tratar  de  negócios  da  sua  Ordem,  este  faz 
o  elogio  da  vida  monástica.  Com   grande  belleza,  logo  de 


308  Historia  da  Ldtteraiura  Clássica 

entrada  nos  aponta  a  felicidade  do  repouso  solitário:  «O  ramo 
da  oliveira  com  que  a  pomba  hia  contente  ]evando-o  no  bico, 
he  a  esperança  de  certa  &  propinqua  tranquillidade,  na  qual 
posta' híía  alma  fica  clara,  ainda  que  antes  estivesse  escura. 
Que  isto  tem  a  quietação:  aplacar  o  espirito  &  aclarar  o 
entendimento.  Assi  como  agua  dum  tanque,  se  a  moverdes  e 
removerdes,  fica  turva,  e  escura,  mas  acabado  todo  o  movi- 
mento, estando  ella  em  paz,  e  sem  se  bolir,  fica  clara  e  limpa, 
assi  alma  distrahida  e  perturbada  está  escura  e  cuja,  mas 
quietando-se  e  repousando,  vae-se  aclarando  até  que  de  todo 
fica  limpa.  E  assi  como  estando  agua  turva  e  bascolejada 
nam  vos  vedes  nella,  mas  como  está  quieta,  vos  representa 
logo  vossa  imagem,  assi  o  desassossego  e  perturbaçam  na 
alma  faz  com  que  vos  não  vejaes  nella,  mas  sua  quietação 
e  repouso  faz  com  que  vos  esteis  nella  conhecendo  e  vendo 
quem  sois.  De  maneira  que  a  tranquillidade  do  espirito  he 
como  híí  espelho,  que  vos  está  pondo  ante  os  olhos  vossa 
própria  imagem.  E  creio  eu  que  não  haí  lugar  onde  se  ella 
milhor  alcance  &  conserve,  que  no  recolhimento  do  mosteiro 
e  da  cella».  Distinguindo  a  religião,  como  virtude  moral, 
do  estado  da  religião,  como  modo  de  viver  separado,  explica 
a  etymologia  da  palavra,  delia  extrahindo  ora  o  sentido  de 
ligação  espiritual,  que  a  religião  estabelece,  ora  o  de  aparta- 
mento a  que  obriga  os  que  a  ella  se  votam.  Depois  enumera 
as  virtudes  e  os  hábitos  espirituaes,  que  cabem  ao  religioso. 
O  terceiro  dialogo,  sobre  a  justiça,  decorre  entre  um 
doutor  theologo,  um  mathematico  e  um  cidadão.  As  idéas  e 
sentimentos  expostos  neste,  como  nos  seguintes  diálogos  são 
todos  os  que  uma  viva  imaginação  pôde  extrahir  da  fé  chriatã 
fervorosa;  prevê-se  por  isso  que,  muitas  vezes  antes  e  depois 
dos  Diálogos  de  Frei  Heitor  Pinto,  hajam  sido  affirmados. 
Não  são  o  mérito  principal  e  muito  menos  a  razão  da  origi- 
nal belleza  da  obra;  o  que  se  distingue  caracteristicamente 
é  o  estylo  calmo,  serenamente  analytico,  que  da  comparação 
a  cada  passo  se  soccorre  e  que,  todo  preoccupado  em  fazer 


Historia  da  Litter  atura  Clássica  o  O  9 

comprehender,  não  se  detém  ante  a  mais  longa  metaphora, 
a  mais  minuciosa  descripção. 

Vejamos  esta  que  allude  á  influencia  dos  sentimentos 
sobre  os  juizos:  «Assi,  disse  o  mathematico,  como  o  sol 
que  entra  pelas  vidraças,  tal  cor  representa,  qual  he  a  das 
vidraças,  assi  qual  he  a  affeição,  tal  he  a  sentença.  O  sol 
quando  nasce,  &  quando  se  põe  parece  mayor  que  ao  meio 
dia  sendo  elle  sempre  de  hti  tamanho,  mas  enganam-nos  a 
vista  os  vapores,  que  pela  manhã  e  á  tarde  se  nos  põem 
ante  os  olhos,  atravessando-se  entre  nós  &  o  sol,  os  quaes 
vapores  nos  servem  de  óculos,  em  que  os  raios  visuaes 
batem  como  em  vidros  transparentes,  e  estendendo-se  por 
elles,  fazem  parecer  o  sol  mór  do  que  parece  ao  meio  dia,  & 
doutra  cor,  porque  quanto  os  rayos  visuaes  mais  se  alargam, 
tanto  mór  nos  parece  a  cousa  que  vemos.  Estes  vapores, 
que  sobem  da  terra,  são  nossas  affeições,  que  são  de  nós, 
que  somos  terra:  &  elles  são  os  que  atravessando-se- nos 
diante  dos  olhos  d'alma  nos  fazem  parecer-nos  as  cousas 
vistas  mayores,  &  doutra  cor.  E  assi  enganado  o  juizo,  e 
corrupto  o  entendimento,  julgamos  as  cousas  nam  segundo 
a  verdade  delias,  mas  segundo  afeiçam  do  amor,  ou  do 
ódio  que  lhe  temos.  E  esta  he  causa  porque  na  terra  ha  tão 
pouca  justiça.  Assi  como  o  pintor  per  arte  de  perspectiva 
nos  faz  parecer  as  cousas  altas  e  baixas,  sendo  a  taboa  igual 
e  toda  lisa,  assi  nossa  estimativa  per  industria  da  affeiçam, 
nos  faz  parecer  híías  mesmas  obras  em  híís  grandes  e  emi- 
nentes, e  em  outros  pequenas  &  escuras,  sendo  a  substancia 
delias  níía  mesma  igoaldade  &  resplandor.  E  desta  enganosa 
perspectiva  da  affeiçam  ser  commíl  a  muitos,  vem  a  desen- 
ganada justiça  a  estar  em  poucos  >  (Pag.  91).  Em  Heitor 
Pinto  as  comparações,  muito  numerosas,  desempenham  ver- 
dadeiramente o  papel  de  razões  e  argumentos,  e  sobre  ellas 
construe  o  seu  raciocínio  e  delias  extrahe  conclusões,  con- 
fundindo com  um  trabalho  de  lógica  demonstração  o  que  só 
é  trabalho  de  artística  approximação.  Alem  da  profusão  das 


310  Historia  da  Litteratura  Clássica 

circunstanciadas  comparações,  frequentemente  tão  longas 
que  envolvem  miúdas  descripções,  uma  característica  saliente 
do  seu  estylo  é  a  serenidade,  já  de  concepção  já  de  expres- 
são, que  o  affasta  dos  modos  de  dizer  muito  intensos,  muito 
extremos,  dos  superlativos  categóricos.  Comparando  e  des- 
crevendo, mostra  a  cada  passo  procurar  a  fiel  expressão, 
não  a  mais  concisa,  mas  sempre  a  mais  verdadeira.  Que  o 
estylo  lhe  mereceu  carinhos  de  artista,  provao  a  exuberância 
de  metaphoras  e  circumloquios,  já  referida,  e  também  o 
gosto  relativamente  frequente  das  formas  parallelisticas  e  dos 
contrastes:  «...  mais  descontente  me  faz  a  lembrança  do 
contentamento  que  tive,  que  o  descontentamento  que  tenho. 
Bem  passaria  com  o  trabalho,  senão  fosse  a  lembrança  do 
descanso  que  perdi :  porque  então  causam  insoffrivel  dor  os 
males  presentes,  quando  são  acompanhados  da  memoria  dos 
bens  passados».  (Pag.  49).  Os  Diálogos  são  um  tratado  de 
psychologia,  semelhante  aos  que  modernamente  se  publicam 
como  auxiliares  da  auto-educação  do  caracter.  Os  processos 
são  os  mesmos,  analysando  a  consciência  intima  e  nella 
influindo,  ou  sejam  a  intuspecção  e  auto-suggestão;  os  obje- 
ctivos é  que  são  oppostos.  Nos  tratados  hodiernos  ensaia-se 
excitar  a  actividade,  avigorar  a  energia  e  despertar  impulsos 
combativos,  ensina -se  a  luctar  e  a  triumphar,  graças  ao 
esforço  diligente  e  vigilante,  á  persistência  e  á  audácia  — 
como  não  podia  deixar  de  ser  numa  sociedade,  em  que  são 
de  lucta  as  condições  normaes,  e  o  ideal  é  o  triumpho  fácil 
dessa  lucta.  Nos  Diálogos  Frei  Heitor  Pinto  ensina  o  homem 
a  conhecer-se  a  si  mesmo,  para  que  desolado  da  sua  mesqui- 
nhez extirpe  os  vícios,  os  seus  mais  terrenos  attributos, 
vença  as  paixões,  evite  o  fragor  do  mundo,  suas  ambições, 
seus  vãos  triumphos,  suas  enganosas  seducções,  para  se 
entregar  na  solidão  á  meditação  das  verdades  christãs  e  a 
ellas  aspirar,  esperando  a  morte  terrena  sem  a  recear,  só 
após  a  qual  começará  verdadeiramente  a  viver.  São  dois 
ideaes   oppostos,   a   febril   actividade   de  hoje  e  a  obstinada 


Historia  da  Litler atura  Clássica  311 

passividade  do  mystico  quinhentista.  A  dor,  que  este  ideal 
activo  e  combativo  de  hoje  pretende  evitar  a  todo  o  transe, 
como  o  maior  inimigo  da  felicidade  humana,  aponta-a  Heitor 
Pinto  como  uma  maneira  de  superiormente  viver  a  vida, 
porque  sendo  a  paciência  uma  virtude  essencial,  só  o  soffri- 
mento  a  gerava:  «Mas  não  haverá  paciência,  senão  havendo 
tribulação.  E  por  isso  he  a  tribulação  necessária  pois  obra 
paciência.  Diz  S.  Joam  no  Apocalypsi,  que  vio  ante  o  throno 
de  Deus  grande  numero  de  sanctos  com  palmas  na  mão,  & 
que  lhe  disse  bit  delles:  Estes  são  os  que  vieram  da  grande 
tribulação.  Isto  he  o  que  dizia  Christo  a  seus  discipuios: 
O  mundo  será  ledo  e  vós  tristes,  mas  a  vossa  tristeza  se  con- 
verterá em  alegria.  Oppõe  o  mundo  aos  discípulos  como 
cousas  contrayras,  como  se  dissesse:  Os  que  são  do  mundo 
terão  aqui  alegria,  mas  ser-lhe-ha  convertida  em  perpetua 
tristeza,  mas  os  meus  terão  aqui  tristeza,  de  que  depois  nas- 
cerá eterna  alegria.  O  falsos  prazeres  do  mundo  convertidos 
tão  azinha  em  pesares,  ó  enganosos  contentamentos  que  logo 
no  principio  da  viagem  sossobram,  e  antes  de  verem  a  barca 
se  vão  ao  fundo,  suecedendo  em  seu  lugar  insoffriveis  tormen- 
tos. Diz  Salomão  que  o  pranto  oceupa  o  fim  do  contentamento. 
E  assi  como  a  serenidade  do  gosto  dos  mãos  se  torna  em  dilu- 
vio de  lagrimas,  assi  o  diluvio  das  lagrimas  dos  bons  se  torna 
em  serenidade  de  contentamentos>.  (Pag.  139  v).  Mostra  neste 
particular  Frei  Heitor  Pinto  um  claro  conhecimento  da  alma 
humana,  dos  effeitos  vários  que  nella  operam  a  alegria  e  a  dor, 
já  empedernindo  e  couraçando  de  egoismo,  já  afinando-a,  re- 
quintando-lhe  a  sensibilidade  e  a  generosa  sympathia:  «assi 
com  híía  mesma  tribulação  hus  se  afinam,  outros  se  queimam, 
hus  se  mostram  soffridos,  outros  impacientes,  finalmente  hús 
se  melhoram,  outros  se  empeóram».  (Pag.  142  v). 

Só  da  sua  calma  se  afFasta  o  escriptor,  quando  abeira 
themas  que  para  elle  comportavam  matéria  para  arrebatada 
eloquência,  Deus  e  Christo.  Então  anima-se  e  procura  deli- 
beradamente a  expressão  intensa,  os  termos  extremos. 


3íã  Historia  da  Liiteratura  Clássica 


FR.  AMADOR  ARRAES 

E-de  1589  a  i.a  edição  dos  Diálogos,  de  Fr.  Amador 
Arraes,  re-impressos  em  1600,  após  revisão  cuidadosa  de 
seu  auctor.  E,  portanto,  á  2.a  edição  que  nos  referimos  na 
nossa  resenha.  (') 

Sobre  os  Diálogos  dá  uma  informação  inteiramente  ines- 
perada o  P.°  Pereira  Sotto  Maior  (? — 1632),  no  seu  Tratado 
da  Cidade  de  Portalegre:  «...  foi  muito  bom  letrado  e  estu- 
dioso. Acabou  hus  Diálogos  que  o  Doctor  Hieronymo  a  Rais 
s^u  irmão,  auia  começado,   cheos  de  muita  Doctrina  e  eru- 


('')  Frei  Amador  Arraes  nasceu  em  Beja  em  1530.  Em  1546  pro- 
fessou na  ordem  dos  carmelitas  descalços;  cursou  a  Universidade  de 
Coimbra  onde  se  doutorou  em  theologia.  Foi  pregador  régio  com  D.  Se- 
bastião, coadjuctor  do  cardeal  infante  D.  Henrique,  quando  este  gover- 
nou o  arcebispado  de  Évora,  e  esmoler-mór  do  reino,  quando  o  mesmo 
reinou.  De  Filippe  11  teve  a  nomeação  de  bispo  de  Portalegre,  onde  pas- 
toreou de  1582  a  1596,  anno  em  que  renunciou  á  dignidade  episcopal, 
recolhendo-se  a  Coimbra,  onde  morreu  em  1600.  —  Sobre  Frei  Amador 
Arraes,  principalmente  sobre  o  seu  governo  do  bispado  de  Portalegre, 
sua  personalidade  moral  e  motivos  que  o  levaram  a  renunciar  esse  cargo, 
ha  noticias  desenvolvidas  e  muito  curiosas  num  manuscripto  recente- 
mente publicado  pelos  srs.  A.  J.  Torres  de  Carvalho  e  Luiz  Keil,  o  pri- 
meiro como  editor  e  o  segundo  como  prefaciador  e  revisor,  intitulado 
Trotado  da  Cidade  de  Portalegre- e  de  suas  anliguidadas  e  fundação, 
bispos  que  nélla  residiram,  e  outras  antigualhas  e  curiosidades,  feií o  pelo 
Padre  Diogo  Ver  eira  ae  Solo  Maior j  indigno  capellão  em  a  Sane  ta  See 
da  dita  cidade,  dirigido  a  Dom  Rodrigo  da  Cunha,  bispo  de  PorlalegrÇ, 
ele.,  Elvas,  1919,  si  63  vn  pags.  E  no  capitulo  9.0,  pags.  25-29,  que 
Sotto  Maior  se  oceupa  de  Arraes,  3.0  bispo  daqueila  diocese,  mostrando 
o  seu  caracter  dadivoso  e  caritativo,  sóbrio,  disciplinador  e  voluntarioso. 
Resignou  o  bispado  por  motivo  duma  demanda  contra  el!e  intentada  pelo 
Cabido  sobre  os  redditos  de  certa  igreja.  Como  a  sentença  não  fosse 
inteiramente  conforme  ao  "*?ç:u  juizo  opinioso,  retirou-se.  Do  valor  das 
noticias  ministradas  por  Sotto  Maior  póde-se  julgar  pela  declaração  se- 
guinte: «Eu  sou  testemunha  e  fallo  verdade  que  estive  em  sua  compa- 
nhia quasi  dous  annos,  até  sua  partida.  (Pag.  29). 


Historia  da  Litteraiura  Cíassioa  3Vó 

dição  pêra  todo  o  fiel  Xpão  se  aproueitar  delles. »  (Pag.  29). 
Não  podemos  negar  valor  a  este  informe,  porque  Sotto 
Maior  viveu  na  privança  do  escriptor  e  é  geralmente  exacto 
nas  suas  noticias,  mas  não  podemos  derimir  claramente  o 
assumpto.  Não  encontramos  nas  bibliographias  referencia  a 
Jeronymo  Arraes,  nem  vestigio  de  relevo  da  sua  existência. 

A  obra  do  benemérito  bispo  de  Portalegre  é  inteira- 
mente semelhante  á  de  Frei  Heitor  Pinto,  quanto  á  compo- 
sição, mas  delia  se  aparta  quanto  á  Índole,  intrinsecamente. 
Como  o  auctor  da  Imagem  da  Vida  Christã,  ordenou  a  sua 
exposição  sob  a  forma  de  diálogos,  em  que  um  interlocutor 
é  a  alma  a  catechisar,  que  com  suas  objecções  e  resistência 
provoca  a  argumentação  do  outro,  que  expõe  a  doutrina  do 
auctor.  Esse  dialogo  não  é  natural,  pois  a  naturalidade  não 
era  sequer  o  propósito  do  auctor,  é  lento  e  longo,  profuso, 
representando  verdadeiramente  a  conversa  sincera  do  auctor 
com  a  sua  consciência,  expondo  todas  as  razões  de  crer,  em 
voz  alta  pensando  e  respondendo  a  todas  as  duvidas  que  se 
possam  levantar,  accumulando  todos  os  argumentos  possí- 
veis, os  da  intelligencia  e  observação,  os  da  historia  clás- 
sica e  os  elementos  da  biographia  das  grandes  individualida- 
des. A  erudição  é  também  um  bom  subsidio  para  argumentar. 

Trata  Frei  Amador  Arraes  nos  seus  Diálogos :  das  queixas 
dos  enfermos  e  curas  dos  médicos ;  da  gente  judaica;  da  gloria  e 
triumpho  dos  lusitanos ;  das  condições  do  bom  príncipe ;  da  conso- 
lação para  a  hora  da  morte ;  da  paciência  e  fortaleza  christã ;  do 
testamento  christão ;  da  invocação  de  nossa  senhora.  Como  se  vê 
deste  enunciado,  Frei  Amador  Arraes  é  mais  comprehensivo 
na  sua  obra  que  Frei  Heitor  Pinto;  este  é  o  verdadeiro 
mystico  só  para  as  coisas  da  alma  voltado;  aquelle  também 
para  a  matéria  profana  volve  olhos  attentos  e  delia  se  occupa. 

O  segundo,  terceiro  e  quarto  diálogos  versam  assumpto 
mundanal,  são  mesmo  dissertações  profanas;  um  expõe  a 
historia  judaica,  dispersão  do  povo  judaico,  sua  situação  nos 
paizes  catholicos  e  explicação  da  mesma,  outro  faz  o  desen- 


314  Historia  da  Litteratura  Clássica 

volvido  perfil  moral  dum  príncipe  modelo,  justíssimo,  pru- 
dentíssimo e  christianissimo,  e  outro  resume  a  historia  de 
Portugal,  incluindo  a  velha  Lusitânia,  e  occupa-se  dos  des- 
cobrimentos e  conquistas  de  alêm-mar.  E  claro  que  o  pensa- 
mento religioso  domina:  os  judeus  eram  justamente  punidos 
do  procedimento  havido  com  Jesus  Christo;  o  príncipe  justo 
e  bom,  só  com  justiça  e  bondade  seria  ajudado  de  Deus  e 
serviria  a  sua  causa;  e  os  portugueses  haviam  subordinado 
todo  o  seu  esforço  ao  pensamento  de  derramar  a  fé,  e  só 
com  a  ajuda  de  Deus  se  podiam  explicar  os  seus  triumphos. 
Mas  o  sentimento  religioso  de  Fr.  Amador  Arraes  não  tem 
a  exaltação  do  de  Frei  Heitor  Pinto,  e  por  isso  também  é  o 
seu  estylo  mais  equilibrado,  com  menor  brilho  artístico, 
menos  profusamente  ornado  das  poéticas  metaphoras,  em 
que  o  auctor  da  Imagem  da  vida  christã  tanto  se  comprazia. 
Isto  mesmo  se  vê  nos  diálogos  que  só  versam  matéria  de 
edificação  religiosa.  Frei  Amador  Arraes  até  mostra  estimar 
a  cultura  litteraria  e  humanística,  e  curiosa  é  a  passagem 
dos  seus  Diálogos,  em  que  expõe  o  que  seria  a  illustração 
dum  espirito  elevado  e  distincto  do  seu  tempo,  a  qual  de 
seguida  reproduzimos:  «Herc. — Não  me  digaes  nada  porque 
me  sobeja  razão. 

Também  entendo  o  que  entendo,  e  tenho  mêu  pedaço 
de  latim,  e  grego,  e  de  Tópicos,  e  elêchos,  e  dos  Metheoros : 
e  sei  algo  da  sphera,  porque  quando  Pêro  Nunez  a  lia  a 
certos  homês  Principes,  eu  me  achava  presente.  E  li  as 
décadas  de  João  de  Barros,  e  o  Petrarcha  em  sua  lingua,  e 
essa  mercê  me  fez  Deus,  que  pronuncio,  e  escreuo  o  Italiano, 
quomo  se  fora  hum  dos  naturaes;  e  li  as  historias  do  Jonio 
en  latim,  e  as  antiguidades  de  Florião  de  Campo  en  Caste- 
lhano, e  o  summario  de  Esteuam  de  Gariba  Cãtabro,  e  a 
historia  Imperial  do  vezinho  de  Sevilha,  e  a  Pontifical  do 
Illescas  de  Duenas,  e  as  Republicas,  e  os  lettreiros  do  Mo- 
raes Cordubense:  e  sabe  de  mim  que  faço  sonetos,  que  corre 
por  este  Reino,  festejados,  sen  se  saber  o  nome  do  auctor. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  315 

Deixo  o  saber  do  paço,  estimado  de  muitos,  por  ser  galante, 
e  não  ganhado  ao  fumo  da  candea,  quomo  o  scholar  dos 
Bacharéis,  que  nenhum  primor  tem,  nem  passo  substancial 
para  homês  de  arte:  na  qual  cuido  ninguém  me  fazer  vanta- 
gem, en  saber  cometer  híía  mõ  de  cortesãos.  Também  sou 
lido  nas  chronicas  dos  Reys,  e  sei  as  linhajes  dos  fidalgos 
de  sua  casa,  e  os  modos  per  que  alcançarão  medrança:  cou- 
sas essenciaes  do  paço.»  (Pag.  42,  ed.  1589). 

Em  Amador  Arraes  ha,  a  par  do  fervoroso  sentimento 
religioso,  que  a  seu  serviço  pôs  a  penna  do  escriptor, 
maior  observação  da  vida  e  do  seu  tempo,  mesmo  certo 
fundo  de  bom  senso,  revelado  principalmente  no  dialogo 
sobre  as  qualidades  moraes,  que  deve  ter  um  bom  príncipe. 
Todavia,  convém  limitar,  muito  sahe  do  seu  tempo  e  da 
observação  da  commum  natureza  humana,  para  procurar 
argumentos  na  velha  antiguidade.  Assim,  exemplificando, 
para  atacar  a  medicina  terrena,  á  qual  contrapõe  a  medicina 
espiritual  dos  consolos  religiosos,  não  se  refere  a  vivos,  «pois 
a  enueja  os  persegue,  e  roe  com  seu  dente  canino»,  mas 
disputa  sobre  Hippocrates  e  Galeno. 

FR.  THOMÉ  DE  JESUS 

Os  Trabalhos  de  Jesus,  escriptos  no  captiveiro  de  Marro- 
cos, em  meio  das  mais  agras  atribulações,  foram  dedicados 
á  nação  portuguesa,  que  á  data  soffria  todo  o  cortejo  de 
consequências  do  desastre  de  Alcácer- Kibir.  Na  carta,  datada 
de  158 1,  que  Fr.  Thomé  de  Jesus  endereçou  aos  seus  com- 
patriotas, explica  com  vivo  patriotismo  e  viva  uncção  reli- 
giosa o  por  que  o  fazia  e  o  que  tinha  em  vista.  Podia  ser 
que,  sob  o  peso  de  tão  amargas  humilhações  do  dominio 
estrangeiro,  os  portugueses  perdessem  a  paciência  e  a  resi- 
gnação, que  são  essenciaes  virtudes  christãs  e  dos  maiores 
méritos  da  vida.  Era,  por  isso,  opportuno  lembrar-lh'as  e 
exhortá-los  ao  amor  de  Deus,  como  aos  povos  dTtalia  fizera 


316  Historia  da  Litter atura  Clássica 

Santo  Agostinho,  fundador  da  ordem  a  que  pertencia 
Fr.  Thomé  de  Jesus  (*),  quando  o  vento  da  desgraça  furiosa- 
mente soprara  por  sobre  elles.  Diz  o  escriptor,  tendo  apon- 
tado as  separações  no  género  humano,  que  resultam  das 
variedades  de  opinião  sobre  matérias  incontroversas:  «A 
reformação  destas  variedades,  e  desatinos  do  humano  coração 
consiste  em  entender,  que  huma  só  he  a  cousa  no  ceo,  e  na 
terra,  no  tempo,  e  na  eternidade  importante,  que  he  cumprir- 
se  a  divina  vontade  em  tudo  por  sua  honra,  e  gloria,  e  em 
o  querer  assi  como  o  entende  com  humilde  sujeição.  Aqui 
está  a  fonte  de  todos  os  bens  quantos  de  Deos  podemos 
esperar,  e  o  remédio,  e  cura  de  todos  os  males  quantos 
causam,  e  fazem  pesada,  e  perigosa  a  vida  humana,  e  a 
quietação  do  humano  coração  em  todas  as  mudanças,  e  per- 
turbações da  vida.»  (Pag.  xxn).  Seria  necessário  que  os  por- 
tugueses, longe  de  se  abysmarem  no  desespero,  levantassem 
o  pensamento  para  o  muito  que  pela  humanidade  Christo 
soffrêra,  considerassem  no  muito  de  favor  e  protecção  que 
de  Deus  haviam  recebido,  se  conformassem  agora  na  adver- 
sidade á  vontade  divina  e  ainda  agradecessem  o  haverem 
sido  por  Deus  eleitos  para  lhe  provarem  a  perseverança  da 
sua  fé  e  executarem  a  sua  divina  vontade.  «Fundados  nestas 
puras  e  eternas  verdades,  charissimos  meus,  e  Christianissi- 


(')  Frei  Thomé  de  Jesus  nasceu  em  Lisboa  em  1529,  filho  do  alto 
funccionario  da  coroa,  Fernão  Alvares  de  Andrade.  Entrou  e  fez  o  novi- 
ciado no  Convento  dos  Agostinhos,  da  Graça,  de  Lisboa,  onde  professou 
em  1544,  anno  em  que  passou  ao  Coliegio  de  Coimbra  a  concluir  os  seus 
estudos.  Regressando  a  Lisboa  exerceu  o  delicado  cargo  de  mestre  de 
noviços.  Para  mais  se  isolar,  retirou-se  para  o  convento  de  Penafirme 
no  termo  de  Torres  Vedras,  onde  exerceu  o  priorado.  Foi  também  visi- 
tador da  ordem.  Em  1578  acompanhou  a  expedição  de  D.  Sebastião, 
tomando  parte  na  batalha  de  Alcacer-Kibir,  onde  foi  ferido  e  aprisionado, 
quando  exhortava  os  combatentes  e  acudia  aos  feridos.  No  cárcere  soífreu 
os  peóres  tratos  e  humilhações,  com  piedosa  resignação  até  á  sua  morte, 
oppondo-se  sempre  a  que  o  resgatassem.  Morreu  em  1582. 


Historia  da  hitteratura  Clássica  317 

mos  Portugueses,  não  façais  conta  da  ignorância  dos  que  vos 
têm  por  nação  já  desamparada  de  Deos,  e  desfavorecida 
delle  pelos  muitos  trabalhos  que  nos  tempos  presentes  vos 
deo.  Mas  conhecendo  a  paternal  condição  do  amor  de  nosso 
Deos  que  aos  filhos  que  mais  ama,  mais  castiga  (como  diz  a 
Divina  Escriptura)  e  aos  que  lhe  são  mais  acceitos  menos 
defeitos  lhes  soffre,  agora  vos  havei  por  mais  lembrados 
delle  e  confiai  que  vossos  presentes  trabalhos  são  para  muitos 
maiores  bens:  e  que  serão  vossas  dores  as  medidas  de  vossas 
consolações:  não  pêra  se  medirem  huma  por  huma,  mas  por 
cada  huma  muitas.  Lembrai-vos  das  grandes  mercês  que 
vossa  oração  tem  de  Deos  recebido,  e  a  muita  honra  que 
por  ellas  entre  todas  as  nações  quiz  esse  Senhor  que  tivésseis. 
E  confiai  que  nenhumas  mudanças  são  poderosas  para  escu- 
recer vosso  nome:  se  da  vossa  parte  não  faltar  firme  fé,  e 
segura  confiança  na  bondade,  e  poder  daquelle  Senhor  que 
sempre  até  agora  vos  alentou  e  favoreceo.  Agradecei,  Chris- 
tianissimos  Portugueses,  a  nosso  Senhor  ser  de  vós  escolhi- 
dos entre  todas  as  nações  do  mundo  por  hum  muito  principal 
instrumento  de  accrescentar  por  vós  a  gloria  do  seu  santo 
nome,  e  quantas  e  largas  mercês  para  isso  vos  fez,  das  quaes 
vos  deveis  lembrar  para  não  acabarem  os  castigos  presentes 
de  derribar  vossos  corações.  Mas  tomarde-los  com  humildade, 
por  disposições  pêra  procurardes  mais  com  a  vida,  e  sangue, 
fazendas  e  forças,  de  prosseguir  o  accrescentamento  de  sua 
honra  por  todo  o  mundo :  e  accenderdes  mais  seu  amor  em 
vossos  corações,  e  resplandecer  mais  agora  em  vós  seu  ser- 
viço á  Christandade.»  (Pag.  xxv).  Os  portugueses,  que 
longe  da  metrópole,  em  captiveiro  duro  dos  infiéis,  não 
podiam  presenciar  os  soffrimentos  que  no  reino  occorriam, 
não  soffreriam  menos.  Se  os  males,  que  aos  portugueses 
livres  da  metrópole  affligiam,  tinham  maior  resonancia, 
«maior  toada»  pelos  tempos  adeante,  tinham  também  as 
consolações  da  livre  pratica  do  culto,  da  frequência  dos  tem- 
plos, da  privança  dos  ministros  da  igreja,  das  consolações  e 


818  Historia  da  hitUr atura  Clássica 

arrimos  que  de  taes  fontes  provêm.  Porem,  os  captivos  dos 
mouros,  entre  os  quaes  se  contava  Frei  Thomé  de  Jesus,  ao 
tempo  da  redacção  da  sua  capital  obra,  soffriam  como  os 
outros,' mas  ainda  com  o  aggravamento  de  não  terem  aquellas 
consolações  e  de  correrem  grande  risco  de  queda  espiritual» 
a  do  desespero,  da  duvida  ou  da  cólera.  Para  consolar  os 
seus  irmãos  da  pátria  e  de  amarguras,  desses  soffrimentos 
dentro  e  fora  do  captiveiro  é  que  Frei  Thomé  de  Jesus  com- 
pôs os  Trabalhos  de  Jesus,  bálsamo  de  piedade  ineffavel,  que 
pelas  circunstancias  adversas  em  que  foram  escriptos  e  pelo 
acabamento  e  êxito  alcançados  o  próprio  auctor  julgava 
dictados  por  inspiração  divina.  Elle  no-lo  diz:  «Fazendo-me 
Deos  do  numero  destes  seus  filhos  atribulados,  e  posto  só 
em  escura  prisão,  ora  em  ferros,  ora  sem  elles,  com  os  mais 
annexos  do  estado  de  captivo,  sabendo  quanto  maior  era 
minha  fraqueza  que  a  de  todos  os  outros,  assi  como  sem 
meus  merecimentos  me  fez  mercê  destes  trabalhos,  assi  só 
por  sua  bondade  me  fez  de  me  inspirar  que  passasse  o  tempo 
nelles  (que  tinha  desoccupado)  em  recopilar  os  Trabalhos 
de  Jesus,  que  me  podiam  ser  allivio  certo  de  minhas  affli- 
cções.  Commetti  esta  obra,  havendo  por  industria,  e  muito 
segredo  papel  e  tinta,  e  escrevendo  as  mais  das  vezes  sem 
mais  luz  que  a  que  entrava  por  gretas  da  porta,  ou  agulhei- 
ros e  buracos  das  paredes.  Furtava  para  isto  o  tempo,  por 
me  não  verem,  e  os  mais  aparelhos  necessários,  senão  só  o 
que  de  graça  a  luz  divina  a  meus  interiores  e  cegos  olhos 
dava,  sem  eu  lh'o  merecer.  Cuidei  no  começo,  fazer  huma 
muito  breve  recopilação  dos  trabalhos  do  Senhor;  e  confesso 
a  sua  bondade,  que  nem  sabia  por  onde  começasse,  nem 
como  continuasse,  nem  em  que  acabasse.  Mas  indo  escre- 
vendo, e  levado  não  de  meu  cabedal,  senão  da  sua  mão, 
costumada  a  guiar  as  ovelhas  perdidas,  achei-me  no  cabo 
com  dous  volumes  feitos,  a  historia  de  seus  trabalhos,  consi- 
derações e  exercícios,  e  doutrinas  que  sobre  elles,  elle,  sem 
eu  o  ouvir,  me  ensinou,  As  quaes,  confesso  a  sua  misericor* 


Historia  da  Litteratura  Clássica  319 

dia,  que  nunca,  nem  antes,  nem  depois,  nem  então  soube 
sentir  da  maneira  que  m'o  elle  fazia  escrever.  E  como  isto 
foi  sem  nenhuma  ajuda  de  livros,  e  sem  nenhum  uso  de 
escrever  cousas  desta  matéria;  ainda  que  eu  não  queria, 
ficam  todas  as  faltas  e  imperfeições  desta  obra  minhas,  e  o 
que  nestes  livros  pode  aproveitar  só  fazenda  sua.»  (Pag. 
XXVI  e  xxvil). 

O  plano  dos  Trabalhos  de  Jesus  é  muito  differente  do  das 
outras  obras  congéneres,  anteriormente  referidas;  não  tem  o 
cunho  artístico  da  de  Frei  Heitor  Pinto,  nem  de  Samuel 
Usque  ou  de  Frei  Amador  Arraes ;  é  mais  didáctico.  Divi- 
dem-se  em  duas  partes:  a  primeira  alcança  vinte  e  cinco 
trabalhos  soffridos  por  Jesus  desde  o  seu  nascimento  até  á 
Paixão;  a  segunda  toda  a  Paixão.  Cada  trabalho  é  circuns- 
tanciadamente narrado,  em  seguida  devidamente  interpretado 
e  apreciado  nos  chamados  exercícios,  que  propõem  matéria 
para  meditação.  Alem  dos  exercícios  correspondentes  aos 
•vinte  e  cinco  trabalhos  narrados  em  cada  parte  da  obra,  ha 
alguns  exercícios  extraordinários  sobre  outras  matérias. 
Conhecimento  da  natureza  humana,  grande  resignação  ao 
soffrimento,  conceitos  substanciosos  e  argutos,  linguagem 
límpida  e  as  mais  das  vezes  fluentíssima,  são  as  principaes 
feições  dos  Trabalhos  de  Jesus,  obra  traduzida  para  varias 
línguas  (*). 


(')  V.  a  lista  das  traducções  inglesas  em  *Os  Trabalhos  de/esus», 
de  Frei  Thomé  de  Jesus,  do  sr.  Edgar  Prestage,  publicado  no  iv  vol.  do 
Boletim  da  Segunda  Classe  da  Academia  das  Sciencias  de  Lisboa,  Lisboa, 
191 1.  Para  as  traducções  francesas  ver  Biblioilieque  de  la  Compagnie  de 
Jesus,  Bibliographie,  tomo  i.°  Ha  também  traducções  em  italiano,  hespa- 
nhol  e  latim. 


CAPITULO  IX 

GÉNEROS  MENORES 
A.  -  ESCRIPTOS    MORALISTAS 

Abre  esta  pequena  galeria  o  Dr.  João  de  Barros  (')  com 
seu  Espelho  de  Casados,  publicado  em  1540  e  reproduzido  em 
1874  por  esforços  de  Tito  de  Noronha  e  António  Cabral. 
O  manuscripto,  que  se  guarda  na  Bibliotheca  de  Évora,  com 
o  titulo  de  Doze  razões  sobre  o  casamento,  deve  ser  uma  pri- 
meira redacção  do  Espelho  de  Casados.  Nessa  obra,  o  auctor 
impregnado  da  philosophia  dos  antigos  e  conciliando-a  em 
sua  consciência  com  o  christianismo,  propõe-se  tirar  conclu- 
sões úteis,  pragmáticas  da  vasta  sciencia,  pois  como  elle  diz, 
citando  Aristóteles,  vários  são  os  fins  com  que  cada  um 
pretende  saber.  Doze  são  as  razões  que  João  de  Barros  reu- 


(*)  João  de  Barros,  que  é  necessário  não  confundir  com  o  auctor 
das  Décadas,  seu  homonymo,  era  natural  do  Porto,  segundo  uns,  e  de 
Braga,  segundo  outros,  entre  elles  fundadamente  Camillo ;  foi  doutor  em 
leis  pela  Universidade  de  Coimbra.  Foi  ouvidor  do  arcebispo  de  Braga, 
escrivão  da  camará  de  D.  João  111  desde  1548  e  desembargador  dos  aggra- 
vos  em  1549.  Fez  parte  duma  commissão  encarregada  de  rever  os  im- 
postos e,  por  ordem  do  Cardeal  D.  Henrique,  dirigiu  a  reforma  dos 
cartórios  de  vários  conventos.  ígnoram-se  as  datas  do  seu  nascimento  e 
morte.  O  sr.  Frazão  de  Vasconcellos  deu  alguns  informes  sobre  a  famí- 
lia deste  escriptor  no  opúsculo,  Ascendência  materna  do  Desembargador 
João  de  Barros,  Lisboa,  1917,  e  o  sr.  António  Baião  publicou  alguns  do- 
H.  da  L.  Clássica,  vol.  1.»  21 


322  Historia  da  Litter atura  Clássica 

niu  dentre  as  allegadas  contra  o  casamento,  as  quaes  enun- 
cia e  rebate,  segundo  os  processos  demonstrativos  da  epocha 
já  por  nós  referidos  noutros  passos. 

Essaá  razões  são  as  seguintes :  ser  o  matrimonio  um  es- 
tado cheio  de  encargos;  o  desgosto  a  que  se  sujeitam  os  ca- 
sados com  perderem  os  filhos ;  a  servidão  que  no  fundo  elle 
é  ;  a  inferioridade  moral  e  mental  da  mulher ;  a  inconstância 
delia ;  a  sua  incontinência ;  as  discórdias  acarretadas  pelo 
adultério  ;  a  impossibilidade  de  viver  com  a  adultera ;  as 
«tachas  e  manhas»  das  mulheres;  a  pobreza,  a  doença  e  a 
velhice;  a  desegualdade  de  haveres;  a  indissolubilidade  do 
casamento.  A  estas  razões  de  opposição  contrapõe  João  de 
Barros  outras  tantas  em  defesa  do  casamento ;  a  necessidade 
de  o  homem  se  perpetuar ;  ser  um  sacramento  divino ;  a  sua 
gloria  e  alegria ;  o  exemplo  dos  antepassados ;  a  grande  re- 
petição do  casamento  mesmo  entre  os  modernos ;  os  praze- 
res da  paternidade ;  a  honra;  o  respeito  da  amizade  ;  o  proveito 
que  delle  resulta  para  o  paiz  ;  a  ajuda  que  ao  homem  traz  a  mu- 
lher ;  ser  com  o  estado  de  religião  dos  dois  únicos  estados  polí- 
ticos admissíveis  ;  e  evitar  o  peccado.  Numa  terceira  parte  nova 
discussão  e  additamentos  fez  o  auctor  a  estas  doze  razões,  e 
numa  quarta  e  ultima  parte  enunciou  doze  requisitos  que  se 
devem  observar  para  que  os  casamentos  sejam  felizes. 


cumentos  a  elle  referentes  na  seguinte  collecção  valiosíssima:  Documen- 
tos inéditos  sobre  João  de  Barros,  sobre  o  escriptor  seu  homonymo  con- 
temporâneo, sobre  a  família  do  historiador  e  sobre  os  continuadores  das 
suas  cDécadas»,  no  Boletim  da  Segtmda  Classe  da  Academia  das  Scien- 
cias,  vol.  ii,  Coimbra,  1917.  Os  documentos  biographicos  sobre  o  auctor 
cio  Espelho  de  Casados,  divulgados  pelo  sr.  A.  B.,  são  :  alvará  de  1562, 
pelo  qual  se  faz  mercê  de  quatro  moios  de  cevada  emquanto  servir  o 
cargo  de  escrivão  das  cousas  da  comarca  da  Extremadura,  que  declara 
desempenhar  ha  quatorze  annos,  ou  seja  desde  1548;  declaração  de  1586 
sobre  a  successão  dum  padrão  de  juros  concedido  em  1563 ;  mercê  de  di- 
nheiro em  1571 ;  carta  de  aposentação  no  cargo  de  escrivão  da  comarca 
da  Extremadura,  em  1572;  mercê  de  dinheiro  em  1575. 


Historia  da  Litter atura  Clássica  323 

Todo  o  arrazoado  de  João  de  Barros,  feito  de  fundamen- 
tos tirados  da  generalidade  da  natureza  humana  e  de  auctori- 
dade  dos  antigos,  mostra  bem  o  desconhecimento  em  que  se 
compraziam  estes  auctores  a  respeito  da  diversidade  infinita 
dos  caracteres  e  a  sua  completa  carência  de  instincto  psy- 
chologico.  Mais  original  é  o  pequeno  tratado  encomiástico 
do  licenciado  Ruy  Gonçalves  intitulado  Dos  privilégios  e  pre- 
rogativas  que  o  género  feminino  iem  por  direito  commum  éf  orde- 
nações do  Reyno  mais  que  o  género  masculino,  publicado  em 
1557.  Essa  obrinha,  dedicada  á  rainha  D.  Catharina,  tida 
como  um  exemplo  das  superioridades  femininas  defendidas 
pelo  autor,  tem  uma  evidente  intenção  de  galantaria,  a  que 
até  se  adequou  a  forma  extrínseca,  que  lhe  dá  o  aspecto  do 
que  hoje  .se  chama  uma  plaquettc.  Com  grande  erudição  e 
grande  copia  de  argumentos,  que  não  excluem  certa  inge- 
nuidade, o  auctor  enuncia  as  seguintes  virtudes,  em  que  as 
mulheres  igualaram  ou  excederam  os  homens,  do  que  dá 
exemplos  :  doutrina  e  saber  ;  conselho ;  devoção  e  temor  de 
Deus;  liberalidade:  clemência  e  misericórdia,  castidade  e 
outros  elevados  dotes  moraes ;  a  seguir  aponta  algumas  es- 
peciaes  disposições  legaes,  que  beneficiavam  o  sexo  femi- 
nino. Ruy  Gonçalves  tratou  este  assumpto,  tão  fecundo  de 
matéria  litteraria,  muito  mecanicamente,  só  com  erudição  e 
muito  pequena  observação  da  alma  feminina.  Bem  merece, 
não  obstante,  ser  lembrado,  porque  a  sua  voz  foi  a  primeira 
que  se  ergueu  a  defender  o  sexo  das  opiniões  tradicionaes, 
que  sobre  elle  pesavam, 

O  historiador  das  Décadas  também  nos  deixou  escriptos 
de  moral,  mas  em  exposição  didáctica,  sem  qualquer  propó- 
sito de  arte  ou  mesmo  alguma  implícita  belleza  artística  na 
dicção.  Os  escriptos  moraes  de  João  de  Barros  são  a  Ropi- 
capnefma,  de  1532  (*);  o  Dialogo  de  João  de  Barros  com  dons  fi- 


(')     V.  a  edição  do  Visconde  de  Azevedo:   Compilação  de  varias 
obras  do  insigne  portitguês  João  de  Barros— Contem  a  Ropica  Pnefma  e 


324  Historia  da  LitUr  atura  Clássica 

lhos  seus  sobre  preceitos  moraes  em  forma  de  jogo,  1540;  e  o 
Dialogo  da  Viciosa  Vergonha,  (*)  do  mesmo  anno.  São  todos 
estes  escriptos  trabalhos  de  educador  e  por  elles,  bem  como 
pela  sua  Cartinha  e  pela  sua  Gramática  da  lingua  portuguesa, 
se  prende  indissoluvelmente  o  nome  de  João  de  Barros  á 
historia  da  educação  em  Portugal. 

A  Viciosa  Vergonha  tinha  já  sido  promettida  no  prologo 
da  Cartinha  e  com  ella  e  com  a  Grammatica  forma  um  sys- 
tema  de  educação  da  primeira  infância.  A  moral  que  domina 
estes  escriptos  é  a  ethica  enrista,  acerescida  de  sentimentos 
activos,  como  o  amor  da  gloria  e  o  heroísmo,  a  dedicação 
civica,  que  trahem  influencia  de  Plutarcho,  o  biographo  dos 
grandes  caracteres  da  antiguidade,  e  que,  também,  se  har- 
monizavam perfeitamente  com  a  concepção  histórica  do  au- 
ctor  da  Ásia.  De  arte  só  têm  a  forma  em  diálogos  e  as  per- 
sonificações de  sentimentos,  de  faculdades  da  alma  ou  de 
abstractas  idéas:  na  Ropicapnefma  são  interlocutores  o  tempo, 
o  entendimento,  a  vontade  e  a  razão.  Além  do  interesse,, 
que  devem  merecer  ao  historiador  das  idéas  moraes  e  das 
idéas  sobre  educação  da  mocidade,  estas  obras  são  um  ves- 
tígio bem  accentuado  da  influencia  de  Plutarcho  e  Séneca, 
auetores  verdadeiramente  cosmopolitas  pela  acceitação  in- 
fluente que  em  toda  a  parte  tiveram. 

A  pequena   obrinha   de   D.   Francisco   de  Portugal  (2)r 


o  Dialogo  com  dons  filhos  seus  sobre  preceitos  moraes.  Porto,  mdccclxix, 
340  pags. 

(i)  V.  Compilação  de  varias  obras  do  insigne  porluguez  foão  de 
Barros,  Lisboa,  mdcclxxv,  340  pags. 

(2)  D.  Francisco  de  Portugal,  i.°  Conde  do  Vimioso,  nasceu  etn 
Évora  em  anno  que  se  ignora,  e  foi  filho  de  D.  Affonso  de  Portugal, 
depois  bispo  daquella  cidade.  Gozou  de  grande  prestigio  entre  os  seus 
contemporâneos  e  desempenhou  missões  de  responsabilidade  e  confiança  : 
acompanhou  D.  Manuel  1  numa  sua  viagem  a  Castella,  acompanhou  a 
princesa  D.  Isabel  na  sua  viagem  para  a  Allemanha,  para  se  casar  com 
Carlos  v.  Distinguiu-se  por  seus  feitos  militares  em  Arzilla.  em  1509, 


Historia  da  Litteratura  Clássica  '525 

Sentenças,  é  o  primeiro  escrito  deste  género,  máximas,  em 
lingua  portuguesa.  Só  em  1605  seu  neto  D.  Henrique  de 
Portugal  publicou  as  Sentenças,  o  que  faz  attribuir  a  esta 
publicação  tardia  e  fora  das  vistas  de  seu  auctor  as  irregula- 
ridades de  texto  e  deficiências  de  pontuação,  que  evidente- 
mente existem  na  obra,  hoje  mais  divulgada,  graças  á 
reedição  que  delia  fez  em  1805  o  sr.  Prof.  Mendes  dos 
Remédios.  Contém  o  livrinho  duzentas  e  quarenta  e  seis 
sentenças  em  prosa  e  cento  e  trinta  e  oito  em  metro,  as 
quaes  versam,  na  sua  grande  maioria,  a  natureza  humana, 
vista  através  dum  pessimismo  normativo,  que  simultanea- 
mente reprehende  e  quer  ensinar.  Elias  e  o  theor  de  vida, 
activa,  digna,  esmoler  e  despretensiosa  do  seu  auctor,  attes* 
tam  uma  elevada  vocação  de  moralista.  E  se  nós  fizermos 
uma  combinação,  nem  muito  profunda,  nem  muito  subtil- 
mente philosophica,  das  tendências  da  moral  christã,  do 
estoicismo  de  Cicero,  da  lição  dos  grandes  varões  de  Plu- 
tarcho  e  do  pessimismo  aristocrático  e  severo  de  Séneca, 
teremos  recomposto  o  conteúdo  dessa  curiosa  obra.  Já  por- 
que a  lingua  ainda  então  não  possuía  a  necessária  malleabi- 
lidade,  já  porque  D.  Francisco  de  Portugal,  collaborador  do 
Cancioneiro  Geral,  de  Garcia  de  Rezende,  não  se  acurasse 
em  limar  o  seu  estylo  de  modo  a  produzir  a  máxima  ex- 
pressão e  relevo,  como  mais  tarde  La  Rochefoucald,  de  quem 
se  conhecem  differentes  redacções  das  mesmas  máximas, 
a  dicção  das  Sentenças  nem  sempre  é  clara,  antes  muitas 
vezes  o  seu  pensamento  é  obscurecido,  mesmo  occulto  por 
uma  redacção  infeliz.  Isto  succede  mais  frequentemente  nas 
sentenças  em  verso  do  que  nas  sentenças  em  prosa.  Numas 


em  Azamôr,  em  1513,  tendo  chegado  a  governar  esta  praça  em  substi- 
tuição do  Duque  de  Bragança,  D.  Jayme.  Foi  vedor  da  fazenda  de  D. 
Manuel  1  e  de  D.  João  in  e  camareiro-mór  dos  filhos  deste  rei.  No  fira 
da  Tida  resignou  a  vida  publica  e  retirou  para  Évora,  onde  morreu  em 
1549,  deixando  de  si  a  recordação  da  muita  beneficência  que  praticara. 


326  Historia  da  Litteratura  Clássica 

e  noutras  predomina  a  forma  parallelistica,  quanto  ao  sentido; 
cada  quadra  tem  dois  pensamentos,  que  se  exprimem  por 
dois  versos,  mas  nem  sempre  o  segundo  termo  joga  com  o 
primeiro  em  correspondência  lógica.  D.  Francisco  de  Portu- 
gal, porque  viu  muito  mundo  e  porque  o  soube  ver,  conheceu 
bem  a  fragilidade  da  argilla  humana,  interesseiramente  astuta 
e  malévola  e  ás  vezes  um  pouco  inclinada  ao  bem,  emquanto 
essa  rara  inclinação  não  envolve  compromettimento.  Essa 
fragilidade  a  aponta  elle  repetidamente,  ensinando  também 
algumas  boas  e  sãs  normas  de  prudência,  de  senso  e  gene- 
rosidade. Devemos,  porem,  notar  que  é  mais  arguto  e  mais 
amplo  na  comprehensão,  emquanto  observa  e  expande  o  seu 
desilludido  pessimismo,  do  que  na  reprehensão,  quando 
construe  a  sua  moral.  Esta  é  um  conjuncto  de  máximas 
abstractas,  que  seriam  o  proceder  duma  consciência  christã, 
justa  e  desambiciosa.  O  seu  lado  negativo  é  todo  fundamen- 
tado na  observação ;  o  lado  positivo  deriva  da  contemplação 
dum  ideal  inattingivel,  quando  muito  de  alguns  casos  em 
que  a  verdade  e  a  justiça  se  revelavam  ostentando  o  caudal 
das  suas  consequências.  Surprehende  como  um  fidalgo  da 
corte  de  D.  Manuel  I  pôde  ter  da  vida  uma  visão  tão  desan- 
nuviada  de  preconceitos  e  uma  tão  critica  interpretação,  que 
o  levaram  a  formular  as  opiniões  seguintes,  corajosamente 
declaradas : 


O  que  está  na  pessoa  se  deve  estimar ;  tudo  o  mais  é  da  fortuna. — 

Calando  se  desonra  quem  com  medo  se  cala. — 

Bem  basta  para  desprezar  o  mundo,   serem  os  homés  julgados  pellos 

homés. 
O  poder  endurece  os  máos,  e  justifica  os  bôs. 
A  justiça  como  as  mãos  do  sorurgião  com  quanta  mais  leuidão  cura 

melhor  he. 
A  desestima  dos  bons  dá  ousadia  aos  máos. 
Para  conhecer  quem  cada  hú  he,  não  ha  differença  de  estados. 
O  home  somente  a  Deos,  &  á  vergonha  deve  auer  medo. 
O  saber  comú"  aproua  o  q.  se  usa. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  327 

O   estado  dos  Reys  são  os  homés,  o  que  os  tem  melhores  he  mais 

poderoso. 
O  poderoso  deve  somente  usar  do  poder  da  razão. 
Ao  bom  somente  obriga  o  em  que  a  virtude  obriga. 
0  Rey  deve  ser  triaga  contra  a  mentira. 
Quem  não  emmudece  vendo  que  falia  com  as  orelhas  dos  homés,  &  não 

com  os  corações  dos  homés  ! 
Os  homens  são  jornaleiros  do  mundo ;  paga  mal  a  quem  o  despreza. 
Mais  se  sente  ao?  Reys  calãdolhe  ( sic )  verdades  que  dizendolhe  {sic) 

mentiras. 
O  verdadeiro  a  si  mais  que  a  todos  deseja  satisfazer.  — 
Espanto  he  sosterse  o  mundo  côa  idolatria  dos  poderosos.  — 
Ser  sogeito  a  outrem  he  desterro  da  vontade.  — 
Quem  quizér  emmendar  o  mundo  seja  em  si. — 
Quem  deseja  ordenar  o  mudo  não  segue  o  mudo.  — 
Os  homens  são  alcatruzes  do  mudo,  pellos  sãos  vem  a  ordem,  e  pellos 

quebrados  se  vay  a  virtude. 

Estas  sentenças,  que  escolhemos  e  reproduzimos,  mos- 
trarão que  D.  Francisco  de  Portugal,  entre  desdenhoso  e 
desilludido,  bem  conheceu  os  homens,  bem  penetrou  os 
motivos  das  suas  acções,  intelligentemente  mediu  o  grande 
lugar  que  o  mal  occupa,  só  limitado  pelo  medo.  A  sua 
analyse  profunda  a  todos  observou,  não  detendo  a  sua  curio- 
sidade nem  ante  os  prejuízos  do  mundo,  nem  ante  os  pode- 
rosos, nem  ante  os  reis.  A  todos  apontou  o  mal  e  o  bem, 
mas  como  este  é  só  uma  aspiração,  desdenhou  o  mundo, 
fugiu  delle,  acoitando-se  á  sua  consciência  e  a  Deus ;  á  sua 
consciência  porque  era  um  individualista  e  a  Deus  porque 
era  christão. 

Ser  tão  declarada  e  affoitamente  individualista  e,  sendo 
christão,  construir  para  expansão  do  seu  individualismo  uma 
moral  tão  nobre  e  tão  ampla,  e  também  tão  estranha  ao  mys- 
ticismo,  tão  laica,  como  hoje  se  diria  —  é  em  que  consiste  a 
originalidade  destas  Sentenças,  escriptas  num  tempo  em  que 
o  mysticismo  era  a  solução  de  todos  os  pessimismos.  O  que 
D.  Francisco  de  Portugal  pretendia  era  que,  desilludido,  se 
procurasse  bem  proceder: 


328  Historia  da  Litteratura  Clássica 

He  ignorância  esperar 
Por  outro  tempo  melhor 
E  no  presente  acertar 
Convém  sempre  ao  Sabedor. 

Apesar  de  claramente  haver  escripto:  não  ha  buraco  na 
mundo  para  escapar  do  mundo  senão  Deos,  o  auctor  das  Senten- 
ças nunca  teve  em  mira  a  renuncia  do  mysticismo.  Disso  o 
preservaram  as  suas  leituras  dos  moralistas  clássicos,  prin- 
cipalmente de  Cicero,  Séneca  o  Philosopho  e  Plutarcho,  que 
ha  a  certeza  de  serem  bem  conhecidos  nesse  tempo  em  Por- 
tugal. 

A  obrinha  de  Joanna  da  Gama,  (*)  Ditos  da  Freira,  publi- 
cada a  primeira  vez  em  1555  (?)  foi  muita  mal  conhecida  até 
á  reproducção  feita  por  Tito  de  Noronha.  Consta  de  vários 
pensamentos,  ordenados  alphabeticamente  por  seus  títulos, 
a  saber:  affeição,  adversidade,  amizade,  amor,  amor  próprio, 
arreceios,  auctoridade,  abilidades  (sicj,  bem  do  espirito,  bens 
temporaes,  bemaventurança,  bons,  contentamento,  castidade, 
cegueira  do  coração,  consultação,  conselho,  conversação, 
cortezia,  cólera,  coração,  culpa,  costume,  cobiça,  Deus,  des- 
canso, discreção,  desenganos,  desejo,  desassocego,  descuido, 
dor,  etc,  etc.  Sobre  tão  vasta  e  múltipla  matéria  compôs 
Joanna  da  Gama  os  seus  pensamentos  cuja  philosophia  se 
reduz  ao  desengano  dum  coração  que  reconheceu  a  inani- 
dade dos  bens  terrenos,  expresso  de  modos  muito  communs, 
que  não  aceusa  a  perspicácia  psychologica  nem  a  redacção 
concentrada  de  D.  Francisco  de  Portugal.  Modestamente,  a 


í1)  Joanna  da  Gama  nasceu  em  Yianna  do  Castelo  em  anno,  que 
se  ignora.  Após  a  morte  de  seu  marido,  retirou-se  para  Évora,  onde 
fundou  o  Convento  de  S.  Salvador  do  Mundo,  no  qual  praticou  as  regras 
de  S.  Francisco  até  ao  momento  em  que,  por  ordem  do  cardeal  D.  Hen- 
rique, as  recolhidas  se  dispersaram.  Morreu  em  Évora,  em  1586.  A  sua 
obra  corre  na  impressão  dirigida  por  Tito  de  Noronha,  Porto,  1872. 


Historia  da  Litter -atura  Clássica  320 

auctora  explica  a  sua  obrinha:  «Estes  ditos  me  estam  amea- 
çando que  por  elles  heide  ser  condemnada  no  juizo  de  muv- 
tos:  se  a  ignorância  sobeja  me  faz  sel-o  que  tenha  necessi- 
dade de  perdão,  d'aqui  o  peço  aos  que  o  lerem. 

Assaz  de  muita  pequice  e  pouca  prudência,  grande  ou- 
sadia e  alta  presunçam  seria  a  minha  se  cuidasse  que  ha 
ninguém  de  achar  sumo  ou  sabor  nestes  ditos,  pois  sam  fei- 
tos de  quem  nam  sabe;  pêra  mim  só  os  fiz  por  ter  fraca 
memoria»  (1).  São  effectivamente  reflexões  dum  espirito 
propenso  ao  isolamento  e  já  conhecedor  dos  valores  do 
mundo,  que  curioso  de  a  si  mesmo  se  conhecer,  de  organi- 
zar o  seu  corpo  de  opiniões  e.  sentimentos,  se  deu  ao  tra- 
balho de  registar  o  que  lhe  ia  occorrendo.  Não  tem,  nem 
pretendem  ter  originalidade,  nem  profundeza,  nem  brilho 
litterario.  Acompanham  os  Ditos  algumas  peças  poéticas, 
onde  não  sobra  a  inspiração  e  que  repetem  as  reflexões  da 
parte  em  prosa. 

B- ROTEIROS  DE  VIAGENS 

Dcs  muitas  viagens,  que  por  mar  e  por  terra,  aventuro- 
samente fizeram  os  portugueses  no  século  XVI,  numerosas 
narrathas  se  fizeram,  sem  se  limitarem  aos  trágicos  episó- 
dios dcs  naufrágios,  quando  das  maritimas  se  occupavam, 
como  os  auctores  dos  opúsculos  colleccionados  sob  o  titulo 
genérico  de  Historia  Tragico-maritima .  Estas  narrativas  mais 
circurstanciadas  foram  os  roteiros  e  itinerários,  que  só  por 
coincilencia  podem  constituir  géneros  litterarios,  por  coinci- 
denciaporque  o  seu  objectivo  não  era  deliberadamente  pro- 
curar a  emoção  esthetica,  mas  servir  os  estudos  geographi- 
cos  e  .  curiosidade  de  exotismo  e  maravilha.  Litteraria- 
mente,    aes    obras    participam    de    caracteres    próprios    do 


(*)    \  Ditos,  Pag.  23,  ed.  de  1872. 


330  Historia  da  Litter atura  Clássica 

romance,  da  historia  e  das  memorias.  Como  o  romance  de 
cavallaria,  são  apologias  do  heroimo  individual  e  das  virtu- 
des da  perseverança,  da  abnegação  e  espirito  de  sacrifício, 
ainda  .como  o  romance  de  cavallaria  no  maravilhoso  roma- 
nesco cifram  o  seu  interesse,  e  as  suas  aventuras  decorrem 
em  paizes  exóticos  litterariamente  tão  vagos  como  os  da 
phantastica  geographia  dos  Amadises  e  Palmeirins  onde 
por  consequência  cabia  toda  a  aventura.  Da  historia  têm  o 
escrúpulo  de  exactidão  e  das  memorias  a  intenção  autobio 
graphica;  divergem,  porem,  daquellas  porque  visam  mais  i 
narrar  as  deslocações  affoitas  e  complicadas  do  auctor-pro- 
tagonista  no  espaço,  do  que  os  feitos  no  tempo  dum  rei  ou 
governador,  e  das  memorias  porque  não  têm  os  juizos  e 
reflexões,  que  estes  sempre  comportam,  as  intimas  revela- 
ções que  delias  fazem  o  principal  mérito.  Quem  escreve  me- 
morias abstrahe  por  completo  do  publico  e  sente-se,  por 
isso,  numa  posição  amplamente  livre.  Ora  este  cunbo  das 
opiniões  e  julgamentos  dos  auctores  é  que  não  exiíte  nos 
roteiros  itinerários. 

Um  dos  mais  curiosos  e  mais  úteis  roteiros  é  o  da  via- 
gem de  Vasco  da  Gama,  attribuido  a  Álvaro  Velhq  o  qual 
é  certamente  de  todos  o  menos  litterario.  D.  João  di  Castro 
(1500- 1548),  o  famoso  vice-rei  da  índia,  escreveu  tós  rotei- 
ros e  projectou  um  quarto,  que  provavelmente  de  projecto 
não  passou.  São  esses  três  o  Roteiro  em  que  se  contem  a  viagem 
que  fizeram  os  portugueses  no  anno  de  1541  de  Gôa  aii  Suez, 
publicado  em  Paris,  em  1833,  por  diligencias  do  3outor 
Nunes  de  Carvalho;  o  Roteiro  da  Costa  da  índia,  de  Gã  a  Dio, 
publicado  no  anno  de  1843  por  Diogo  Kõpke;  e  <  Roteiro 
de  Lisboa  a  Gôa,  editado  em  18S2  com  importantef  annota- 
ções  históricas,  geographicas,  náuticas  e  astronómicas  por 
Andrade  de  Corvo.  O  projectado  teria  sido  um  oteiro  de 
outra  parte  das  costas  da  índia.  Estas  obras  intressam  á 
historia  da  sciencia  náutica  principalmente,  pois  são  a  nar- 
rativa, em  forma  de  diário,  das  viagens  do  illustrí guerreiro, 


Historia  da  Litter atura  Clássica  331 

em  que  cada  dia  é  designado  sob  a  rubrica  de  caminho,  e  ó 
o  caminho  que  realmente  se  descreve,  só  dessa  descripção 
sahindo  para  nos  referir  as  operações  do  calculo  da  altura 
do  sol,  fazer  as  suas  notações  e  extrahir  os  seus  corollarios. 

A  seguinte  passagem  dará  uma  idéa  do  texto,  naquella 
parte  menos  tomada  pelas  operações  astronómicas :  «Sesta  feira 
3 1  de  maio  todo  dia  foi  o  vento  calma ;  quanto  a  naao  gouer- 
naua,  rizemos  o  caminho  ao  susueste  e  ao  sul  quarta  de 
sueste :  (l)  o  Piloto  e  mestre  tomarão  o  sol,  e  acharanse  em 
20  grãos  -T-:  este  dia  vimos  muitos  (*)  grajaos  e  Rabiforca- 
dos. 

De  noite  toda  foi  o  vento  nordeste  e  lesnordeste  muito 
bonança ;  ao  quarto  da  prima  gouernamos  ao  sul  quarta  de 
sueste  e  ao  susueste ;  mas  a  modorra  e  alua  gouernamos  ao 
susueste  e  ao  sueste  quarta  do  sul »  (3). 

O  Padre  Francisco  Alvares  (4)  contou  o  que  observara 
na  corte  do  negus  da  Abyssinia,  que  longamente  privou,  na 
obra    Verdadera  informaçam  das  terras  do  Preste  João...    1540. 

De  Frei  Gaspar  da  Cruz  (5)  possuímos  uma  curiosa  obra 


(')     Altura  do  meo  dia.  Nola  de  D.  João  de  Caslro. 
(2;     Aves  aparecerão.  Idem. 

(')  V.  Roteiro  de  Lisboa  a  Gôa,  ed.  da  Academia  Real  das  Scien- 
cias,  Lisboa,  1882.  Pag.  178. 

(4)  Francisco  Alvares,  cuja  biographia  em  grande  parte  se  ignora, 
fez  parte  da  embaixada  que,  em  1515,  D.  Manuel  1  enviou  ao  soberano 
da  Abyssinia,  de  que  foi  chefe  Duarte  Galvão,  morto  no  caminho.  Suc- 
cedeu-lhe  no  cargo  D.  Rodrigo  de  Lima,  que  o  P.e  Alvares  acompanhou 
do  mesmo  modo,  residindo  na  Abyssinia  até  1526.  Em  1527  voltou  a 
Lisboa,  donde  ainda  sahiu  para  acompanhar  a  Roma  um  embaixador 
abexim.  Os  seus  serviços  foram  recompensados  por  D.  João  rn. 

(5)  Frei  Gaspar  da  Cruz  nasceu  em  Évora  em  data  desconhecida 
e  professou  no  convento  de  Azeitão.  Em  1548  partiu  para  a  índia  com 
mais  doze  religiosos,  sob  a  direcção  do  vigário  Diogo  Bermudes.  Viveu 
em  Gôa  e  Malaca,  onde  activamente  trabalhou  pelos  progressos  da  reli- 
gião enrista,  esteve  no  reino  de  Cambaia  e  em  1556  passou  a  missionar 
na  China,  onde  foi  o  primeiro  apostolo.  Igual  ministério  exerceu  no  reino 


332  Historia  da  Litteratura  Clássica 

de  informação,  mais  quantiosa  de  noticias  que  os  simples 
roteiros  e  itinerários,  o  Tratado  em  que  se  contam  muito  por 
extenso  as  cousas  da  China,  com  suas  particularidades ,  e  assim  do 
reino  de  Ormus,  Évora,  1570. 

António  Tenreiro,  Fr.  Pantaleão  de  Aveiro  e  Fernão 
Cardim  contaram  também  o  itinerário  de  suas  viagens.  Po- 
rém sobre  todos  destaca  Fernão  Mendes  Pinto,  (*)  auctor  da 
Peregrinação,  na  qual  alem  do  interesse  geographico,  que  é  o 


de  Ormuz.  Em  1569  regressou  ao  reino.  Provido  por  D.  Sebastião  no 
cargo  de  bispo  de  Malaca,  declinou  essa  dignidade.  Falleceu  em  Setúbal, 
em  1570,  victima  de  peste,  quando  se  oceupava  na  caridosa  enferma- 
gem dos  pestíferos. 

(')  Fernão  Mendes  Pinto  nasceu  em  Montemór-o-velho  provavel- 
mente em  1509,  de  familia  humilde.  Em  1521  um  seu  tio  trouxe-o  para 
Lisboa,  onde  serviu  uma  senhora  nobre,  de  cuja  casa  fugiu  por  causas 
que  não  confessa,  embarcando  logo  numa  caravella  que  partia  para  Se- 
túbal. Nessa  viagem  foi  a  caravella  accommettida  por  piratas,  que  apre- 
saram Mendes  Pinto  com  outros  tripulantes.  No  caminho  para  Marrocos, 
aonde  ia  ser  vendido,  os  piratas  assaltaram  uma  nau,  que  vinha  da 
Africa,  com  opulenta  carga,  pelo  que  abandonaram  os  captivos  na  costa 
de  Portugal  para  poderem  vender  no  norte  da  Europa  a  carga  roubada. 
Servindo  vários  amos  se  conservou  no  reino  até  1537,  anno  em  que  par- 
tiu para  a  índia.  No  Oriente  correu  as  aventuras  extraordinárias,  que  na 
sua  Peregrinação  conta,  e  regressou  a  Lisboa  em  1558.  Passou  o  resto 
da  vida  em  Almada,  onde  morreu  em  1583.  Filippe  1  concedeu-lhe  uma 
tença  de  dois  moios  de  trigo.— Devem-se  ao  sr.  Christovam  Ayres  pro- 
gressos importantes  no  conhecimento  das  relações  de  Fernão  Mendes 
Pinto  com  o  Japão,  consignados  nas  duas  memorias  Fernão  Mendes 
Pinto  —  Subsídios  para  a  sua  biographia  e  para  o  estudo  da  sua  obra, 
Lisboa,  1904,  127  pags.,  e  Fernão  Mendes  Pinlo  e  o  Japão,  Lisboa,  1906, 
1.55  pags.  A  primeira  funda-se  sobre  cartas  de  padres  da  Companhia  de 
Jesus,  contemporâneos  do  viajante,  das  quaes  existe  uma  collecção  na 
Bibliotheca  da]  Academia  Real  das  Sciencias,  e  reconstitue  completa- 
mente a  viagem  de  Fernão  Mendes  ao  Japão,  desde  a  sua  sahida  de  Gôa 
em  18  de  abril  de  1554  até  á  chegada  ao  porto  japonês  de  Bungo  em 
principio  de  julho  de  1556,  e  depois  a  viagem  de  regresso  a  Lisboa, 
aonde  chegou  em  22  de  Setembro  de  1558.  A  segunda  memoria  escla- 
rece vários  pontos  importantes,  como  as  relações  do  viajante-escriptor 
com  a  Companhia  para  cujo  grémio  entrara  por  occasião  dos  solemnes 


Historia  da  Litter atura  Clássica  :]:):) 

principal  nas  obras  dos  outros  auctores  nomeados,  se  exem- 
plificam dotes  litterarios.  A  Peregrinação  só  publicada  em 
1614  é  um  notável  exemplo  da  arte  de  serenamente  contar, 
que  em  grau  eminente  possuíram  os  portugueses  do  século 
xvi,  minuciosos  chronistas  da  historia  episódica,  e  exempli- 
fica também  flagrantemente  o  que  era  a  vida  aventureira  dos 
viajantes  e  exploradores  do  seu  tempo,  que  anciosos  de  ver 
e  observar  pacientemente  corriam  os  maiores  riscos  e  sof- 
friam  humilhações  para  homens  de  hoje  incomportáveis. 
Esse  homem,  que  foi  o  primeiro  europeu  que  desembarcou 
no  Japão,  muitos  trilhos  novos  percorreu  no  Extremo  Oriente 
e  muitas  cortes  e  costumes  exóticos  revelou  á  Europa.  Na 
fluência  da  sua  linguagem,  feita  de  serenidade  narrativa  e 
sincera  simplicidade,  e  na  matéria,  uma  fieira  complicada  de 
aventuras,  que  vão  do  martyrio  á  extravagância  complicadai 
da  extrema  miséria  á  grandeza  cumulada  de  honrarias,  se 
cifra  o  interesse  litterario  da  obra.  Os  outros  interesses, 
que  ella  pode  despertar,  são  de  natureza  geographica.  como 
obra  de  informação,  pela  sua  prioridade  e  veracidade. 

C  -  RELAÇÕES  DE  NAUFRÁGIOS 

As  relações  dos  naufrágios  foram  um  dos  géneros  crea- 
dos  pelo  theor  de  vida  que  em  Portugal  se  viveu,  durante  o  se- 


funeraes  de  S.  Francisco  Xavier  e  donde  sahiu  por  causas  mal  conheci- 
das, e  a  prioridade  do  seu  descobrimento  do  império  japonês.  A  discus- 
são deste  ponto  ultimo,  ainda  não  derimido  de  modo  definitivo,  é  feita 
á  luz  de  fontes  japonesas,  a  par  de  outras  europêas. —  São  também  de 
apreciar  as  contribuições  do  sr.  Jordão  de  Freitas  com  os  dois  estudos 
Subsídios  para  a  bibliographia  portuguesa  relaliva  ao  Japão  e  para  a 
biographia  de  Fernão  Mendes  Pinto,  no  Instituto,  vols.  51. °  e  52. °,  Coim- 
bra, 1904-1905,  e  Fernão  Mendes  Finto  —  Sua  ultima  viagem  a  China 
(ijj4-ijjS),  no  Archivo  Histórico  Português,  3.0  vol.,  Lisboa,  1905. 
Este  segundo  escrito  contem  uma  carti  do  P.e  Luiz  Froes,  não  mencio- 
nada entre  as  divulgadas  pelo  sr.  Christovam  Ayres. 


334  Historia  da  Litter atura  Clássica 

culo  xvi.  Como  eram  periódicas  as  partidas  de  armadas 
para  a  índia  e  para  o  Brasil,  repetidos  eram  os  naufrágios, 
consequência  já  do  permanente  estado  de  guerra  com  mou- 
ros e  piratas,  já  de  insufficiencias  da  construcção  naval,  que, 
apesar  de  muito  aperfeiçoada  pelos  nossos  navegantes  e  de 
ser  a  navegação  regida  por  sólidos  princípios  scientificos, 
ficava  áquem  da  ousadia  dos  longos  e  perigosos  percursos 
transcorridos.  Ansiosa  era  a  curiosidade  de  noticias  das  ar- 
madas que  partiam,  pois  grandes  eram  os  perigos  e  escassos 
os  meios  de  haver  essas  noticias.  Tão  raras  eram  ellas  que 
frequente  era  darem-se  por  mortos  parentes  ausentes,  cujo 
destino  longo  tempo  se  ignorava,  os  quaes  mais  tarde  ines- 
peradamente appareciam.  Este  regresso  inesperado  de  paren- 
tes, do  marido  sobre  todos,  proporcionou  alguma  matéria 
litteraria  aos  comediographos  deste  século,  como  já  vimos 
no  capitulo  respectivo.  Esses  auctores  é  que  não  extrahiram 
todos  os  recursos  que  esse  thema  comporta,  o  que  Garrett 
muito  mais  tarde  fez  com  superior  inspiração  dramática.  Para 
satisfazer  a  curiosidade  de  noticias  e  para  divulgar  os  nau- 
frágios sensacionaes,  pelo  grande  perigo  corrido  ou  pelo 
heroismo  revelado,  surgiu  um  género  litterario  novo,  a  rela- 
ção dos  naufrágios,  folha  volante,  que  pela  repetição  e  actua- 
lidade, se  approximava  um  pouco  do  caracter  periódico  e 
noticioso  do  jornal  moderno.  Era  um  jornal  sinistro  que  só 
pretendia  divulgar  as  fúnebres  noticias  das  mortes,  incêndios 
e  mil  misérias  que  corriam  no  mar  os  que  se  aventuravam  a 
essas  longas  travessias.  Eram  seus  auctores  humildes  narra- 
dores, que  reproduziam  quanto  haviam  presenciado  ou  que 
compunham  o  que  sabiam  de  outiva  dos  próprios  figurantes 
desses  pungentes  dramas  no  alto  mar.  Numerosas  teriam 
sido  essas  folhas  volantes,  de  que  muitas  se  conservam  ainda, 
e  cujo  gosto  durou  alem  do  século  xvi.  No  século  xviii, 
um  erudito  curioso  e  de  gosto,  Bernardo  Gomes  de  Brito 
(1688  —  ?)  reuniu  uma  collecção  apreciável  desses  opúsculos 
em  circulação,  sob  o  titulo  geral  e  bem  appropriado  de  His- 


Historia  da  Litleratura  Clássica  335 

toria   Tragico-maritima,  cujos  dois  primeiros  volumes,  únicos 
publicados,  appareceram  em  173,5  e  1736  (*). 

Nessa  suggestiva  collectanea  estão  comprehendidas  as 
seguintes  relações  de  naufrágios  occorridos  dentro  do  alcance 
chronologico  deste  livro:  do  galeão  S.João,  em  1552;  da 
nau  S.  Bento,  em  1554;  da  nau  Conceição,  em  1555;  viagem 
e  successo  das  naus  Águia  e  Graça,  em  1559;  da  nau  Santa 
Maria  da  Barca,  em  1559;  da  nau  S.  Paulo,  em  1561  ;  e  da 
nau  de  Jorge  de  Albuquerque,  em  1505.  Estas  relações  são 
o  que  nós  chamaremos  arte  litteraria  por  coincidência,  pois 
não  nasceu  dum  deliberado  propósito  de  crear  belleza  per- 
duradora.  A  vivacidade  de  linguagem,  impregnada  de  reali- 
dade, o  tom  simples  da  narrativa  de  casos  por  si  mesmos 
intensamente  emocionaes,  que  dispensam  adornos  e  artifícios, 
a  novidade  das  situações  que  descreve  —  o  perigo  extremo 
no  alto  mar  • —  fizeram  dessas  narrativas  verdadeiras  obras 
de  arte.  Por  ellas,  entrou  no  quadro  dos  themas  litterarios 
o  naufrágio,  e  duma  delias  nasceu  até  um  poema  épico,  o 
Naufrágio  de  Septtlveda.  Essas  relações  abrem  horizontes 
novos  aos  olhos  cansados  de  verem  o  mar  através  dos 
poemas  homéricos  e  da  Eneida,  com  suas  tempestades  regu- 
ladas por  aquelles  modelos  e  povoadas  de  nymphas;  as 
relações  revelam  o  mar  tal  como  o  viram,  singraram  e 
soffreram  os  marinheiros  da  índia.  Grandes  paginas  de  dor 
humana  alli  se  contêm  em  esboços  rápidos,  mas  não  pouco 
vigorosos.  E  desenhando  esses  rápidos  esboços,  os  narrado- 
res fazem-no  como  comparsas  dos  grandes  dramas,  pungen- 
tes e  desesperados,  que  para  sempre  ficariam  ignorados  sem 
esses  humildes  e  vibrantes  chronistas.  Fieis  á  verdade  e 
entendidos  na  arte  e  nos  perigos  da  navegação,  não  se 
preoccupam    só    com    os   effeitos    dramáticos,    dizem-nos    a 


(')  Em  1904-1907  appareceu  nova  edição  da  Historia  Tragico-ma- 
ritima,  em  12  pequenos  volumes.  Ao  texto  primitivo  aggregaram-se  ou- 
tras relações  posteriores. 


336  Historia  da  Litteratura  Clássica 

causa  próxima  do  naufrágio,  qual  a  peça  da  mastreação  que 
primeiro  o  vento  levou,  e  porque  a  não  puderam  reparar, 
quaes  as  velas  despedaçadas  e  porque  é  que  o  novo  leme,  á 
pressa-  construido,  se  não  pôde  collocar  em  seu  lugar. 
Frequentemente  o  narrador  «se  achou  no  dito  naufrágio»; 
por  isso  nos  descreve  com  tão  intensas  cores  essas  horas 
trágicas  de  lucta  com  os  ventos  no  mar  deserto,  com  a 
única  companhia  e  o  único  testemunho  da  viva  fé  religiosa. 
Esses  transes  agudos  foram  provas  bem  árduas  da  tempera 
heróica  desses  homens  de  enérgica  vontade,  de  estreita 
solidariedade  e  forte  crença  em  Deus.  Após  o  perigo  maior, 
«dissimulando  cada  um  quanto  podia  o  interno  descor- 
çoamento  que  levava»,  enérgica  e  confiadamente  corriam  a 
novos  riscos.  Raros  momentos  de  confusão  nos  são  referidos, 
pois  no  ultimo  lance  quasi  todos,  resignadamente,  se  despe- 
diam, imploravam  perdão  de  passados  aggravos  e  aguar- 
davam a  morte.  Sem  duvida  a  mais  pungente  narração  é  a 
do  naufrágio  de  Sepúlveda  e  dos  seus  sorfrimentos  em  terra 
de  cafres,  daquelle  Sepúlveda  que  enlouqueceu  e  morreu  de 
dor,  á  vista  da  mulher  e  dos  filhos,  nus,  mortos  de  tantas 
vexações  e  privações. 

Outras  collecções  de  narrativas  de  naufrágios,  inéditas, 
se  guardam  nas  Bibliothecas  Nacional  de  Lisboa  e  Munici- 
pal do  Porto  (x). 

D  -  EPISTOLOGRAPHIA 

Este  género,  só  sob  a  forma  poética  teve  cultivo  intenso 
no    século   XVI,   ao   contrario   do  que  veio  a  succeder  nos 


(')  V.  Navegação  portuguesa  dos  séculos  xn  e  xvii  —  Naufrágios 
inéditos  {Novos  subsídios  para  a  Historia  Tragico-maritima  de  Portugal, 
Carlos  de  Passos,  O  Instituto,  vol.  64. °,  n.°  2,  Fevereiro  de  1917,  Coim- 
bra, pags.  69-93.  O  auctor  dá  minuciosa  descripção  da  collecção  manus- 
cripta  da  Bibliotheca  do  Porto  e  publica,  escrupulosamente  copiadas, 
seis  relações  inéditas. 


Historia  da  Litter  atura  Clássica  337 

séculos  subsequentes,  em  que  quem  alguma  coisa  tinha  a 
dizer  com  pruridos  litterarios,  sempre  adoptava  a  forma  de 
carta,  quando  não  tivesse  preferido  o  dialogo  pastoril,  por 
já  muito  exhausto.  Em  lingua  portuguesa,  pois  cí  arte  litte- 
raria  elaborada  com  a  matéria  prima  da  lingua  portuguesa 
sempre  nos  referimos,  merecem  especial  menção  as  Cartas  Por- 
tuguesas do  bispo  de  Silves,  D.  Jeronymo  Osório  (l).  É  muito 
curiosa  esta  faceta  do  espirito  do  benemérito  erudito,  tão 
profundo  e  probo  em  seus  estudos  humanísticos  como 
preoccupado  do  bem  publico.  São  cinco  as  cartas  recopila- 
das em  1819  e  foram  endereçadas  ao  rei  D.  Sebastião  para 
o  demover  do  seu  projecto  da  jornada  a  Marrocos,  ao  mesmo 
aconselhando-o  a  casar  com  princesa  da  casa  real  francesa, 


(')  D.  Jeronymo  Osório  (1506-1580)  é  uma  das  mais  illustres  figu- 
ras do  humanismo  português  do  século  xvi  e  ainda  das  menos  estudadas, 
posto  que  as  suas  obras  sejam  de  importância  grande  para  a  historiogra- 
phia,  para  a  historia  da  philosophia,  para  a  do  direito  e  para  a  do  uso 
litterario  da  lingua  latina,  em  que  brilhou  entre  os  seus  contemporâneos. 
A  fonte  principal  para  a  sua  biographia  é  o  esboço,  redigido  por  seu 
sobrinho  e  homonymo,  que  precede  as  suas  Opera  Omnia,  Roma,  1592. 
Da  sua  estada  em  Salamanca  é  difficil  colher  novas  noticias,  porque  o 
archivo  universitário  apresenta  grandes  lacunas  correspondentes  a  essa 
epocha.  Da  sua  chronica  De  rebus  Emmanuelis  geslis,  publicada  em  1571, 
deu  Filinto  Elysio  uma  traducçâo  portuguesa  em  1804-1806.  As  suas  car- 
tas chamam-se  portuguesas  em  opposição  á  que  em  latim  dirigiu  em 
1567  a  Isabel  de  Inglaterra,  a  quem  exhortava  a  voltar  ao  catholicismo. 
O  texto  dessas  cartas  é  variável  segundo  os  editores.  Publicaram-nas  no 
todo  ou  em  parte  Barbosa  Machado,  o  Marquez  de  Pombal,  (nas  Provas 
da  Deducção  Chronologica),  Bento  José  de  Sousa  Farinha,  António 
Lourenço  Caminha  e  Alvares  da  Silva.  Recentemente  a  Imprensa  da 
Universidade  fez  uma  edição,  em  que  adopta  os  textos  de  Barbosa 
Machado  e  Alvares  da  Silva  e  exclue  uma  6.a  carta,  endereçada  ao 
Cardeal-rei  D.  Henrique,  que  defende  a  candidatura  de  Filippe  11,  de 
Hespanha,  ao  throno  português.  Cândido  José  Xavier  deu  uma  resenha 
da  edição  de  Alvares  da  Silva,  Paris,  1819,  nos  Annacs  das  Sciencias, 
das  Artes  c  das  Letras,  vol.  4.°,  Paris,  1819,  em  que  aponta  importantes 
variantes  textuaes. 

H.  da  L.  Clássica    vol.  1.»  22 


338  Historia  da  Litteratura  Clássica 

ao  Padre  Luiz  Gonçalves  da  Camará  acerca  da  politica  do 
reino  e  das  influencias  que  sobre  o  moço  rei  deleteriamente 
se  exerciam,  á  rainha  D.  Catharina  solicitando-lhe  que  não 
sahisse  do  reino,  ao  rei  sobre  um  litigio  em  Tavira  occorrido 
por  motivo  dum  conflicto  entre  os  direitos  reaes  e  as  commu- 
nidades  ecclesiasticas.  Todas  ellas  tém  grande  desenvoltura 
de  linguagem  e  ostentam  coragem  civica,  desassombro  e 
tino  politico  de  quem  muito  havia  estudado  nos  livros  e  nos 
homens.  As  duas  cartas  sobre  o  casamento  do  rei,  sobre  a 
jornada  de  Africa  e  sobre  as  influencias  cortesanescas  que 
sequestravam  o  rei  do  convívio  e  até  o  forçavam  a  residir 
em  Lisboa,  são  muito  frizantes  exemplos  dos  dotes  litterarios 
e  moraes  dessas  cartas,  que  deixam  a  perder  de  vista  as 
quasi  gaguejantes  cartas  de  Sá  de  Miranda,  salvo  o  mérito 
da  prioridade  no  uso  da  quintilha.  E  muito  curioso  e  muito 
fecundo  de  effeitos  lógicos  o  processo  usado  em  duas  cartas 
por  Jeronymo  Osório,  de  começar  por  defender  e  suppôr  já 
realizado  justamente  o  que  elle  depois  vae  impugnar. 


CONCLUSÃO 


De  harmonia  com  a  nossa  concepção  critica,  procu- 
ramos descrever  nos  seus  caracteres  mais  geraes,  explicar 
pelas  suas  próximas  determinantes  e  apreciar  nos  seus  va- 
lores de  maior  vulto  a  productividade  de  arte  litteraria 
desde  1502  a  15S0,  desde  o  theatro  vicentino,  que  ao  renas- 
cimento deveu  alentos,  até  que  a  perda  da  independência 
nacional,  o  mysticismo,  o  sebastianismo  e  o  desenvolvimento 
próprio  dos  germens  de  mallogro,  que  em  si  mesma  trazia 
essa  litteratura,  puzeram  termo  a  essa  epocha  litteraria  e 
iniciaram  nova  epocha,  mais  psychologica  que  artística.  E 
agora  que  a  consideramos  no  seu  conspecto  geral,  bem  po- 
deremos concluir  que  tal  litteratura  não  cumpriu  o  seu  pro- 
gramma.  Não  que  alguma  vez  esse  programma  chegasse  a 
ser  posto  duma  maneira  clara,  objectiva,  mas  porque  todas 
as  litteraturas  neo-classicas  tiveram,  implicito  ou  declarado, 
se  não  um  ambicioso  programma,  pelo  menos  um  sentido  de 
evolução,  um  destino  próprio.  E  esse  destino  não  poderia 
deixar  de  ser  o  autonomizarem-se  das  litteraturas  antigas 
para  viverem  de  vida  sua,  não  poderia  deixar  de  ser  o  fazer 
uma  construcção  nova  sobre  as  velhas  e  solidas  fundações, 
que  gregos  e  latinos  lhes  offereciam.  A  imitação  dos  velhos 
clássicos  foi  um  bordão  para  o  alvorecer  da  nova  phase  das 
litteraturas  europêas,  que,  após  a  dissolução  do  gosto  me- 
dieval, bárbaro  e  infecundo,  a  tal  bordão  tiveram  de  se  arri- 


340  Historia  da  Litteratura  Clássica 

mar  emquanto  não  puderam  caminhar  com  segurança,  alfor- 
riadas dessa  tutela.  Mas,  em  breve,  por  toda  a  parte  onde 
esse  feracissimo  movimento  do  Renascimento  produziu  seus 
fructos,  esse  bordão  tornou-se  supérfluo,  e  delle  nada  mais 
ficou  que  o  sentido  geral,  o  cunho  dominante  dentro  de 
cujos  moldes  se  executou  a  evolução  histórica  das  modernas 
litteraturas  ou  a  esperança  e  o  recurso  a  que  sempre  se  re- 
gressou, quando  as  forças  de  creação  desfalleciam. 

Effectivamente  é  este  o  cunho  geral,  esta  atmosphera  de 
antiguidade  que  por  toda  a  parte  caracteriza  o  conjuncto  da 
elaboração  litteraria  dos  séculos  XVI,  xvu  e  xviii  ;  e  são 
essas  reviviscencias  do  espirito  clássico  que  repetidamente 
contemplamos  durante  esse  transcurso  de  tempo. 

Mas  também  o  que  vemos  é  que  os  vários  géneros,  nas- 
cidos da  imitação  dos  antigos,  ou  porque  conservassem  ele- 
mentos medievos  ou  porque  encorporassem  outros  poste- 
riormente accrescidos,  soffreram  transformações  profundas, 
de  modo  que,  dentro  desse  espirito  de  antiguidade,  diver- 
síssimos são  os  idyllios  de  Theocrito  e  as  bucólicas  de  Ver- 
gilio  da  Arcádia  de  Sannazaro,  a  Eneida  de  Vergilio  do  Or- 
lando de  Ariosto  ou  dos  Lusíadas  de  Camões,  o  theatro  de 
Aristophanes  e  Plauto  do  de  Molière,  a  tragedia  de  Euripi- 
des  da  tragedia  de  Corneille,  como  diversíssimos  são  os 
princípios  por  que  taes  obras  se  apresentam  á  nossa  admira- 
ção. Mas  dos  modelos  primeiros  a  estes  exemplos  modernos 
decorreu  uma  evolução  complicada,  sequente  e  consciente. 
Verificou-se,  em  Portugal,  essa  evolução  complicada,  se- 
quente e  consciente  ?  Crearam  os  géneros  vida  própria  e  por 
seu  mesmo  passo  acharam  trilhos  novos,  formas  novas  e  bel- 
lezas  novas?  E  ao  que  vamos  diligenciar  responder. 

Logo  á  primeira  vista  se  reconhecerá  que  tendo  esta 
incipiente  elaboração  litteraria,  que  nós  designámos  de  qui- 
nhentismo,  soffrido  o  remate  violento  de  1580,  com  as  suas 
consequências,  incluindo  a  da  penetração  hespanhola,  não 
poderia  dentro  do  escasso  currículo  de  três  quartéis  verifi- 


Historia  da  Litteratura  Clássica  341 

car-se  toda  uma  evolução  litteraria  —  como  em  parte  ne- 
nhuma se  verificou.  Em  Itália,  a  litteratura  clássica  apresen- 
ta-se  já  então  em  plena  maturidade,  mas  por  ter  sido  prece- 
dida de  alguns  séculos  de  preparação,  a  todas  se  anteceden- 
do; em  Hespanbe  só  no  século  xvn  alguns  géneros  attin- 
gem  plena  florescência,  como  em  Inglaterra ;  e  em  França 
igualmente  no  século  xvn  se  forma  a  sua  epocha  de  esplen- 
dor. O  século  xvi  foi  a  epocha  de  iniciação,  em  que  os  imi- 
tadores, sem  qualquer  noção  de  progresso  litterario  e  de  na- 
cionalidade em  litteratura,  apenas  procuravam  servilmente 
imitar  os  velhos  modelos.  Igualmente  o  foi  em  Portugal, 
mas  aqui  dessa  phase  não  passou. 

Por  esta  razão  nos  insurgimos  contra  o  dizer  daquelles 
auctores  que  qualificam  o  século  xvi  como  a  epocha  áurea 
da  nossa  literatura,  e  insurgimo-nos  não  porque  no  século  xix 
localizemos  esse  esplendor,  mas  porque  percorremos  atten- 
tamente  toda  a  nossa  evolução  litteraria  sem  nella  nunca  en- 
contrarmos esse  esplendor,  em  parte  alguma.  O  quinhen- 
tismo  foi  um  embryão  lançado  á  terra,  que  se  não  achava 
convenientemente  preparada  para  o  receber  e  fazer  germinar 
com  exuberância,  e  a  esse  mesmo  lento  germinar  veio  um  con- 
juncto  de  circunstancias  fazer  abortar,  A  terra,  neste  caso  o 
espirito  nacional  representado  pelos  seus  escriptores,  não  se 
achava  convenientemente  preparada,  porque  não  havia  em 
Portugal  nem  viva  tradição  humanística,  nem  os  hábitos  do 
esplendido  mecenatismo.  O  humanismo  ao  tempo  dos  en- 
saios de  Sá  de  Miranda  reduzia-se  ao  conhecimento  de  pou- 
cos auctores  da  antiguidade,  restricto  a  um  escasso  numero 
de  eruditos :  só  depois  da  reforma  da  Universidade  e  da 
creação  dos  collegios  das  artes,  em  1537  e  1548,  por  D. 
João  iii,  a  corrente  dos  estudos  de  humanidades  engrossou  e 
avultou,  chegando  a  produzir  nomes  illustres  no  cultivo  des- 
ses estudos,  como  os  Gouvêas,  os  Estaços  e  os  Caiados.  Ay- 
res Barbosa,  o  primeiro  professor  universitário  de  grego,  re- 
geu em  Salamanca  e  já  no  primeiro  quartel  do  século.  E  es- 


342  Historia  da  Litteratura  Clássica 

tes  eruditos  portugueses  professaram  no  estrangeiro  e  re- 
gressaram a  Portugal,  chamados  já  por  D.  João  ni,  de  modo 
que,  embora  elles  hajam  attingido  grande  saber  e  capaci- 
dade, não  foram  obreiros  da  renascença  litteraria  da  sua  pá- 
tria, antes  foram  delia  derivados,  do  espirito  que  ella  infun- 
dia e  derramava,  foram  uma  consequência  e  não  uma  causa, 
ao  invés  do  que  lá  fora  succedêra.  Creado  em  Coimbra,  por 
esforços  de  D.  João  in,  um  foco  de  cultura  humanística  — 
no  amplo  sentido  que  esta  designação  pode  comportar  — 
logo  as  devassas  e  perseguições  da  Inquisição  e  a  perda  da 
independência  politica  o  dispersam.  E  quanto  a  mecenatismo 
igualmente  poderemos  allegar  que  os  escassos  actos  de  pro- 
tecção ás  jletras  que  nos  são  conhecidos  partem  exclusiva- 
mente, de  reis  e  principes,  ás  letras  se  reduzem  e  a  pedir 
copias  de  obras  e  conceder  tenças  se  limitam .  Dahi  a  estimu- 
lar com  o  gosto  sincero  e  esclarecido,  a  organizar  um  meio 
idóneo,  a  recompensar  com  amplas  munificencias  que  elevem 
e  dignifiquem,  vae  grande  distancia. 

A  infanta  D.  Maria  com  suas  damas  é  mais  uma  mulher 
illustrada,  que  se  compraz  na  leitura  e  no  estudo  que  uma 
protectora  das  letras.  As  grandes  obras  do  mecenatismo  são 
a  creação  do  cargo  de  chronista-mór  do  reino,  ainda'  no 
século  XV,  por  D.  Duarte,  e  o  acolhimento  dado  no  paço 
ao  theatro  de  Gil  Vicente,  que  á  rainha  D.  Leonor  princi- 
palmente foi  devido.  Infelizmente  o  cargo  de  chronista- 
mór  vinha  servir  uma  intenção  interesseira  do  amor  próprio 
dos  reis,  e  a  protecção  dada  a  Gil  Vicente  não  tendo  sequen- 
cia não  pôde  salvar  o  auto  da  morte  a  que  a  sua  condição 
interna  o  condemnava. 

Mas  a  estas  duas  causas  geraes,  outras  accresciam  tam- 
bém de  determinante  influencia,  como  eram  a  incultura 
espiritual,  o  theor  de  vida  nacional,  a  falta  de  espirito  critico 
e  philosophico,  a  [Inquisição  e  a  perda  da  nacionalidade 
em  1580. 

A  sociedade  portuguesa  desse  tempo  não  era  uma  socie- 


Historia  da  Litteratura  Clássica  343 

dade  de  intensa  cultura  intellectual.  Estranha  ao  movimento 
scientifico  da  Renascença,  ainda  que  para  elle  de  modo 
decisivo  houvesse  contribuído  com  os  seus  descobrimentos 
maritimos  e  conquistas  ultramarinas,  quasi  se  reduzia  a  sua 
actividade  puramente  intellectual  ao  exercício  poético,  e  o 
seu  ensino  na  única  Universidade  se  concentrava,  cujo  func- 
cionamento  fora  modernizado  só  por  D.  João  III,  como  já 
referimos.  Pedro  Nunes,  um  mathematico,  Garcia  da  Orta, 
um  botânico,  Francisco  de  Mello  e  os  humanistas  já  nomea- 
dos, Rezende,  um  archeologo  e  antiquário,  constituem  o 
escol  da  mentalidade  scientifica  e  philosophica. 

Mas,  ou  pela  sua  Índole  de  ténue  influencia  sobre  o 
vulgo  ou  por  s*e  haverem  exercitado  e  divulgado  fora  de 
Portugal,  esses  estudos  de  modo  nenhum  podiam  crear  uma 
sociedade  culta,  de  gosto  litterario  elevado  e  exigente,  de 
fino  espirito  critico,  um  publico  criterioso,  exigente  com  sóe 
ser  o  das  grandes  epochas  litterarias,  que  são  funcção  da 
productividade  dos  auctores  e  das  solicitações  e  receptividade 
do  publico.  Sem  esse  publico,  não  pode  haver  a  potenciação 
de  talento  creador,  multiplicando-se  em  cambiantes  vários, 
que  está  no  fundo  de  todas  as  epochas  de  esplendor  litterario. 
Não  podia  a  sociedade  portuguesa  ser  uma  sociedade  de 
refinada  cultura  espiritual  também  porque  todas  as  suas 
energias  e  recursos,  o  melhor  sangue  do  seu  sangue,  tudo 
absorvia  no  emprehendimento  bellico  das  navegações  e 
conquistas;  esse  emprehendimento  era  um  esforço  titânico 
para  um  paiz  de  minguados  cabedaes,  de  gente  e  dinheiro. 
Annualmente,  no  bojo  dos  navios  que  partiam,  se  ia  boa 
parte   da  sua   riqueza  ('),   que   não  era  resgatada  pelos  pro- 


(')  Seria  de  extrema  utilidade  para  vários  géneros  de  estudos 
elaborar  quadros  das  armadas  partidas  do  reino,  como  os  que  delineou 
o  sr.  Braamcamp  Freire  para  os  annos  de  1488  a  1490,  nos  quaes  se 
dessem  informaçôss  sobre  a  data  da  partida,  destino,  [composição  da 
armada,   capitão,  tripulação  e  demora  da  viagem,  quando  chegavam  a 


344  Historia  da  Litteratura   Clássica 

ventos  da  troca  dos  productos  coloniaes,  troca  dirigida  por 
uma  defeituosa  administração  económica.  Era  um  empobre- 
cimento continuo,  uma  absorpção  das  attenções  para  o  alèm- 
mar,  que  desnorteava  os  espíritos  e  os  inadequava  para  o 
trabalho  sereno  da  meditação.  E,  porGm,  de  justiça  esclarecer 
que  este  modo  de  vida  nacional  se  por  um  lado  contribuiu 
para  a  impossibilidade  de  crear  um  meio  litterario,  solido  e 
elevado,  na  metrópole,  não  foi  de  todo  infecundo  litteraria- 
mente  porque  abriu  novos  horizontes,  revelou  novas 
emoções,  assim  dando  origem  a  géneros  novos,  como  a 
historiogcaphia  colonial,  os  roteiros,  as  narrações  de  naufrá- 
gios e  a  epopêa  das  navegações,  a  todos  vivificando  com  o 
espirito  novo  da  aventura.  Se  não  houve'  rspirito  critico, 
e  menos  ainda  critica  litteraria,  limitada  aos  conselhos  e 
suggestões  de  Ferreira,  se  esta  epocha  litteraria  não  teve 
a  presidi-la  e  guiá-la  a  acção  normativa  da  critica,  quizéram 
as  circunstancias  do  viver,  que  então  em  Portugal  se  vivia, 
que  ella  formasse  um  conjuncto  do  certa  originalidade,  e 
essa  originalidade  consiste  no  cunho  que  sobre  ela  imprimiu 
esse  theor  de  vida  nacional,  já  suggerindo  alguns  novos 
themas  á  litteratura  clássica  ou  metropolitana,  já  determi- 
nando a  creação  de  novos  géneros.  A  essa  originalidade 
corresponde  um  interesse  e  uma  curiosidade,  certo  prazer 
de  leitura,  que  são  dominados  pelo  exotismo,  que  prompta- 
mente  cansa  e  se  esgota. 

Influiu  a  Inquisição  nos  destinos  desta  litteratura,  con- 
tribuiu mesmo  para  o  seu  mallogro  ?  Evidentemente.  Pequeno 
paiz,  cansado  do  sobresalto  permanente  que  era  o  seu  normal 
viver,  empobrecido  pelo  esforço  gigantesco  que  representava 


bom  termo.  V.  Expedições  e  Armadas  nes  mino*  de  140S  e  1498.  Lisboa, 
1915,  192  pags.  V.  também  do  mesmo  auctor  Emmcnta  da  Casa  da  índia, 
copia  manuscripta  dum  livro  fundamenta]  da  escripturação  da  Casa  da 
índia,  na  qual  se  dão  noticias  das  armadas  desde  1503  até  1583.  Foi 
publicada  no  Boletim  da  Sociedade  de  Geographia,  Lisboa.  1907. 


Historia  da  Litteratura  Clássica  345 

a  manutenção  dos  seus  emprehendimentos  colonizadores  e 
pela  expulsão  dos  judeus,  homens  do  dinheiro  e  de  multípli- 
ces capacidades,  levando  a  vida  incerta  duma  fictícia  pros- 
peridade mercantil,  quando  a  Inquisição  assentou  em  Lisboa, 
Coimbra,  Évora  e  Goa  os  seus  rigorosos  tribunaes,  começou 
as  suas  devassas  e  exemplificou  os  seus  cruéis  rigores, 
servindo  umas  vezes  a  intolerância  religiosa  e  outras  a  cupi- 
dez do  rei,  abriu-se  uma  era  de  terror,  —  o  que  poderia  ser 
ainda  um  estimulante  de  enei-gias  de  curto  fôlego  e  de  fisca- 
lização dos  rumos  que  o  pensamento  seguia.  —  e  esta  espécie 
de  severa  policia  espiritual  é  que  veio  estancar  as  fontes  da 
originalidade  creadora.  Servida  pelos  Índices  expurgatórios 
e  pelas  complicadas  formalidades  de  exames  e  licenças  que 
precediam  a  publicação  dum  livro,  essa  policia  espiritual 
correu  uma  cortina  sobre  os  vastos  horizontes  do  mundo 
profano  e  da  heterodoxia,  limitando  por  longo  tempo  e 
inexoravelmente  o  campo  da  creação  á  matéria  religiosa,  á 
estreitamente  afim  ou  intimamente  de  accordo  com  ella.  A 
publicidade  morosa  e  dirficil  reduziu-se  consideravelmente, 
a  leitura  limitou-se  de  tal  modo  que  alguns  auctores  e  algumas 
obras  esqueceram,  apagaram-se  da  memoria  nacional,  dor- 
mindo um  vasto  somno  de  catalepsia,  só  terminado  á  força 
ie  sacudidelas  da  erudição.  Em  taes  casos,  como  era  possível 
uma  tradição  litteraria  nacional  ? 

Poderia  a  Inquisição,  com  as  suas  devassas  e  defesas, 
com  a  sua  tyrannia,  impellir  a  originalidade  creadora  para 
nova  vereda,  a  do  mysticismo,  onde  os  auctores  e  o  publico 
encontrassem  a  mesma  pujança  de  lyrismo,  a  mesma  vehe- 
mente  eloquência,  a  mesma  delicadeza  conceituosa  que  nou- 
tra parte  buscavam.  Para  tal  acontecer  seria  necessária  uma 
potencia  creadora,  que  entre  nós  não  existia  então  e  que, 
pequeno,  centralizado  e  combatido  como  era  o  Portugal  de 
então,  se  não  deixasse  absorver  inteiramente  pela  acção  illa- 
queadora  do  Santo  Officio.  Isso  conseguiu  a  Hespanha,  paiz 
muito  maior,  que  no  seu  imperialismo  europeu  ampla  com- 


34 G  Historia  da  Litter  atura  Clássica 

pensação  encontrava  para  as  despesas  de  energia  feitas  na 
America  e  que  possuia  forças  creadoras  muito  superiores. 
Isso  succedeu  em  Hespanha,  mas  só  no  século  immediato, 
em  que  a  Inquisição  e  a  liberdade  de  creação  litteraria  pode- 
ram  coexistir,  porque  esta  soube  encontrar  uma  plataforma 
acceitavel. 

Para  o  mysticismo  pela  via  do  sebastianismo  derivou 
effecti vãmente  o  espirito  nacional,  mas  com  tão  completa 
obliteração  do  senso  critico  que  seria  pedir-lhe  o  impossivel 
esperar  delle  novas  creações  litterarias. 

Mas  muito  melhor  se  verificará  a  veracidade  do  nosso 
modo  de  apreciar  o  quinhentismo  português  se  nós  apontar- 
mos o  destino  que  seguiu  cada  género  litterario  do  que  se 
nos  limitarmos  a  considerações  geraes,  necessariamente  teci- 
das com  espirito  deductivo. 

Ora  esse  exame  á  saciedade  nos  demonstrará  que  o 
embryão  do  classicismo,  a  esthetica  clássica,  não  fructificou 
em  Portugal,  pois  das  suas  varias  partes  umas  morreram 
sem  successão,  outras  continuaram-se  sem  brilho  e  outras 
ainda  só  fora  de  fronteiras  conseguiram  a  plena  expansão 
dos  seus  recursos. 

Em  matéria  de  theatro,  esta  epocha  litteraria  produziu 
os  autos  vicentinos,  os  medíocres  ensaios  de  comedias  clás- 
sicas, de  António  Ferreira  e  Jorge  Ferreira  de  Vasconcellos 
e  as  tragedias  Vingança  de  Agamenon  de  Victoria  e  Castro 
do  mesmo  Ferreira.  O  auto  —  género  feito  de  indetermina- 
ção, lyrico,  satyrico,  pastoral,  cavalheiresco,  patriótico,  ple- 
beu no  tom,  baixo  na  linguagem  —  morreu  com  Gil  Vicente, 
pois  os  seus  continuadores  nenhum  movimento  lhe  atribuí- 
ram, que  comportasse  modificações  estructuraes. 

E  se  fossem  repetir  os  progressos  mais  ousados,  conse- 
guidos por  Gil  Vicente,  mais  e  mais  se  arrastariam  do  cami- 
nho do  aperfeiçoamento  do  theatro.  Se  se  houvesse  chegado 
a  estabelecer  uma  creação  dramática  nacional,  outro  não 
poderia  ter  sido  o  sentido  dessa  tradição  senão  a  fusão  do 


Historia  da  Litteratura  Clássica  -'U7 

auto  vicentino  e  da  comedia  clássica;  o  auto  tomaria  da 
comedia  a  sua  perfeição  estructural,  pois  estulto  é  querer 
arripiar  caminho  e  desdenhar  os  resultados  da  experiência 
seleccionadora  dos  séculos;  a  comedia  acceitaria  do  auto  a 
nova  matéria  cómica  que  elle  mesmo  soubera  achar.  Deste 
modo  se  tornaria  consciente,  autónomo  e  nacional,  esthetica- 
mente  differenciado,  o  theatro,  e  não  teríamos  visto  morrer, 
afundado  no  anonymato  e  na  insignificância  da  litteratura 
popular,  a  magnifica  creação  de  Gil  Vicente,  como  não  se 
limitaria  ás  servis  imitações,  que  só  possuímos,  o  nosso  thea- 
tro clássico,  de  Paulo  e  Terêncio  tomando  as  intrigas  e  os 
meios  servis,  em  que  decorrem. 

Em  El-Rei  Seleuco  Camões  fez  uma  tentativa  feliz ;  gra- 
ciosa, mas  com  os  defeitos  próprios  do  auto  e  por  isso  mesmo 
extemporânea,  foi  a  tentativa  de  D.  Francisco  Manuel  de  Mello, 
com  seu  Fidalgo  Aprendiz.  As  modificações  em  seu  theatro 
introduzidas  por  António  José  da  Silva,  já  no  século  xvin 

—  texto  mixto,  prosa  e  verso,   e  elemento  musico  e   coral 

—  não  puderam  eliminar  o  hybridismo  desse  theatro,  antes 
o  complicaram.  Foi  em  Hespanha  que  o  auto  vicentino  con- 
tinuou a  sua  evolução,  onde  o  génio  de  Lope  de  Vega,  Cal- 
deron  de  la  Barca  e  Tirso  de  Molina  lhe  esgotaram  todo  o 
conteúdo,  levando-o  ás  suas  ultimas  consequências.  Das 
imperfeições  do  género  triumpharam  a  imaginação,  o  instin- 
cto  dramático  e  o  estro  lyrico  destes  poetas. 

É  certo  que  foi  António  Ferreira  quem  primeiro  ensaiou 
a  nova  forma,  que  a  tragedia  iria  revestir  e  que  faria  o 
triumpho  desse  género  em  França,  mas  como  não  teve  con- 
tinuadores e  como  todas  as  novidades  em  historia  litteraria 
se  costumam  datar  daquelles  que  as  fizeram  triumphar, 
perdeu-se  o  significado  do  seu  papel  innovador.  De  theatro 
trágico,  apenas  teremos  muito  depois,  já  no  movimento  res- 
taurador da  Arcádia  Lusitana,  de  António  Diniz,  aquella 
abundante  profusão  de  peças,  que  se  dizem  trágicas,  mas  a 
que   totalmente  falta  o  espirito  trágico.  Durou  essa   moda 


348  Historia  da  Litteraiura  Classim 

até  ao  século  xix,  e  nella  chegou  a  cooperar  o  próprio 
Garrett. 

Do  lyrismo,  conseguiu-se  estabelecer  uma  tradição  para 
o  soneto,  que  vivificado  pelo  génio  de  Camões,  acompanha 
desde  então  a  nossa  lingua.  Vimo-lo  nascer,  sob  a  influencia 
de  Petrarcha,  cultivado  com  êxito  pequeno  por  Sá  de  Miranda 
e  seus  discípulos,  vimos  formar-se  um  mundo  poético  próprio 
do  soneto,  por  todos  tentado,  mas  só  por  Camões  ampla, 
original  e  genialmente  tratado.  Conhecemos  outras  modali- 
dades, como  o  soneto  laudatório  e  o  soneto  mystico.  Umas 
e  outras  serão  cultivadas  depois,  o  soneto  mystico  de  Antó- 
nio das  Chagas,  o  soneto  gongorico,  o  soneto  bocageano,  o 
soneto  pinturesco  e  o  soneto  philosophico.  Estranho  a  limi- 
tações de  escolas,  este  pequenissimo  género  poético  todas 
atravessará  e  de  todas  escolherá  os  elementos  que  melhor  se 
adaptarem  á  sua  estructura,  e  o  seu  êxito  muito  dependerá 
da  conservação  dessa  mesma  estructura  incólume. 

A  novellistica  de  fora  veio  e  para  fora  regressou,  O 
triumpho  da  novella  pastoral  deve-se  a  um  português,  Jorge 
de  Montemor,  que  por  haver  escripto  em  lingua  hespanhola 
á  historia  da  litteratura  hespanhola  pertence.  De  fora  nos 
veio,  porque  a  sua  modalidade  pastoril  é  de  proveniência 
italiana  e  a  sua  modalidade  cavalheiresca,  embora  se  prove 
a  existência  duma  redacção  portuguesa  do  Amadis  de  Gaula, 
não  é  originalmente  portuguesa.  Para  fora  regressou  porque 
foi  em  Hespanha  com  Cervantes,  em  França  com  Lesage 
e  em  Inglaterra  com  Fõe  que  novas  e  progressivas  formas 
revestiu.  Em  Portugal  o  género  continuou-se  sob  a  forma 
pastoral,  tecido  de  lugares  communs  da  escola,  sem  accres- 
cimo  de  novidade  ou  interesse,  e  um  dos  seus  continuadores 
immediatos  foi  Rodrigues  Lobo,  fatigante  auctor  da  trilogia 
da  Primavera. 

A  historiographia  foi  quantiosa,  mas  deixou-se  impregnar 
em  excesso  de  espirito  épico,  que  lhe  dá  o  tom  grandíloquo 
e   exaggerador,   que  nella  observamos  e  lhe  retira  espirito 


Historia  da  Litter atura  Clássica  :U0 

critico;  carece  geralmente  de  espirito  de  proporção,  de  cri- 
tério de  realidade  e  na  maior  parte  dos  casos  é  uma  narra- 
tiva de  factos  miúdos,  que  se  não  apreciam,  antes  se  avul- 
tam. Este  defeito  nota-se  mais  na  parte  colonial  que  na 
metropolitana.  E  todavia  meritória  por  trazer  á  tela  histórica 
mundos  e  povos  até  então  mudos  para  os  europeus  e  ainda 
pelo  caracter  pittoresco  que  ostenta.  Esse  caracter  da  nossa 
historiographia,  grandemente  colonial,  affastou-a  do  typo 
humanístico  de  construcção  histórica,  creado  pela  Itália, 
como  em  seu  próprio  lugar  referimos.  Dessa  tendência  huma- 
nística poucos  são  os  signaes  em  Portugal,  a  saber:  o  en- 
cargo commettido  a  Matheus  Pisano  e  a  D.  Frei  Justo  Ba!- 
dino,  bispo  de  Ceuta,  ambos  italianos,  de  traduzirem  para 
latim  as  chronicas  do  reino;  a  obra  do  bispo  de  Silves, 
D.  Jeronymo  Osório,  De  rebus  Emmanuelis  gestis  ;  e  a  traducção 
parcial  da  obra  do  italiano  Sabellico  (1436- 1506)  Enneades  ou 
Rhapsodice  historiarum,  por  D.  Leonor  de  Noronha,  (1488- 
x563)-  O  Tomamos  como  signal  de  tendência  humanística  o 
projecto  da  traducção  para  latim  das  chronicas  porque  esse 
trabalho  não  se  limitaria  a  uma  rigorosa  versão,  seria  antes 
uma  paraphrase,  uma  recomposição  da  obra,  como  era  usual 
na  epocha  e  como  ainda  Pisano  chegou  a  fazer  no  seu  Livt0 
da  Gueira  de  Cetita,  em  relação  a  Azurara.  Em  se  affastar  do 
typo  humanístico  da  historiographia  italiana  e  se  crear  um 
typo  próprio,  a  chronica  ultramarina,  consistiu  a  originali- 
dade da  nossa  historiographia  quinhentista.  Enganar-se-hia 
porem  de  todo  em  todo  quem  a  essa  historiographia  fosse 
pedir  complicada  philosophia  histórica  ou  elevados  dotes 
litterarios,  reconstituições  psychologicas ,  vivas  descripções, 
pois  geralmente  o  seu  estylo  é  apathico  e  uniforme,  só  se 
animando  para  louvar  e  encarecer.  A  fidelidade  da  narrativa 
vem   a  reduzir- se  consideravelmente,  porque    o  mvsticismo 


( 1 )     V.  Coronyca  geral  de  Marco  António  Cocio  Sabeliro  des  Jm. 
começo  do  mundo  ate  nosso  tempo. . .,  Coimbra,  2  vols.,  1550  e  1553. 


350  Historia  da  Litter atura  Clássica 

virá  obliterar  essa  rudimentar  forma  de  espirito  critico,  verda- 
deiramente mais  probidade  que  outra  coisa.  A  historiographia 
alcobacence  e  os  historiadores  mysticos  introduzirão  neste 
género  uma  credulidade  dogmática,  e  Jacintho  Freire  de 
Andrade  fará  avultar  o  seu  tom  oratório. 

Será  uma  excepção  a  Historia  de  los  movimientos ,  separa- 
cion  y  guerra  de  Cataluíia,  en  tiempo  de  Felipe  IV,  que  por  ser 
escripta  em  lingua  castelhana,  como  a  Diana,  á  litteratura 
castelhana  pertence.  Será  a  Academia  Real  da  Historia, 
creada  por  D.  João  V,  que  abrirá  uma  nova  epocha  de  pro- 
bidade histórica.  Todavia,  cumpre  registar,  será  sempre  o 
século  xvi,  a  epocha  que  estudámos,  a  parte  mais  florescente 
da  nossa  historiographia,  e  pelo  seu  assumpto  o  de  mais 
largo,  mais  humano  interesse. 

Na  épica,  conseguiu  o  génio  de  Camões  crear  uma  epo- 
pêa  nacional,  conciliando  os  moldes  clássicos  com  o  espirito 
do  seu  tempo  e  as  condições  históricas  do  seu  paiz.  Em  que 
consistiu  a  originalidade  do  poema  camoneano,  em  seu  pró- 
prio lugar  o  dissemos.  Agora  perguntaremos  se  as  frias 
narrativas  rimadas,  sem  espirito  épico,  que  se  lhe  seguiram, 
bastam,  com  a  sua  abundância  quantiosa,  para  podermos 
considerar  como  vivificado  o  género  épico  na  lingua  portu- 
guesa e  através  dos  séculos  XVII  e  XVIII  vivendo  de  vida 
própria,  intensa  e  sempre  nova?  Evidentemente  que  o  poema 
épico  com  Camões  morreu,  pois  nunca  mais  outro  génio 
creador,  como  o  poeta  dos  Lusíadas,  abeirou  esse  género  e 
nunca  mais  a  vida  politica  e  social  de  Portugal  offereceu  tão 
abundante  e  inspiradora  matéria  épica  como  a  que  no  século 
XVI  Camões  tomou,  nem  teve  mais  originalidade  igual. 

A  prosa  mystica  estabeleceu-se  e  perdurou,  até  com 
variantes  e  progresso,  principalmente  no  P.e  Manuel  Bernar- 
des, conceituoso  e  purista. 

E  aquelles  géneros,  que  das  especiaes  condições  da  vida 
do  tempo  nasceram  e  que  ao  gosto  do  exotismo  ou  da  origi- 
nalidade e  aventura  correspondiam,  necessariamente  morre- 


Historia  da  Litteratura  Clássica  351 

ram  logo  quo  essas  condições  caducaram  e  essa  curiosidade 
satisfeita  verificou  a  sua  forçosa  monotonia.  Só  por  coinci- 
dência eram  elles  obras  litterarias,  não  podiam  por  isso 
multiplicar  e  variar  attractivos  que  não  tinham  em  vista. 

É  esta  litteratura  suficientemente  rica  e  variada  para 
ser  appellidada  do  século  áureo,  epocha  de  esplendor,  como 
Irmos  em  tantos  auctores,  até  nos  de  melhor  critério,  e  como 
se  ensina  nas  escolas  publicas?  Se  assim  fosse,  ainda  mais  po- 
bres, insufficientes  e  escassos  de  originalidade  deveriam  ser  os 
séculos  anteriores  e  posteriores  da  nossa  historia  litteraria. 

Se  o  quinhentismo,  por  nós  descripto,  clássico  porque 
dentro  dos  moldes  estheticos  da  antiguidade  decorreu,  clás- 
sico porque  já  não  é  medieval  e  ainda  não  é  romântico,  se 
este  quinhentismo  português  fosse  também  clássico  por  ser  a 
phase  mais  rica  de  valores  litterarios,  mais  significativa  pela 
sua  comprehensão  humana,  se  elle  fosse  para  nós  o  que  foi 
para  a  França  o  século  de  Luiz  xiv,  o  que  foi  para  a  Ingla- 
terra a  epocha  da  rainha  Anna  e  de  Jorge  1,  o  que  foi  para 
a  Allemanha  a  epocha  de  Herder,  Goethe,  Lessing  e  Schil- 
ler,  o  que  foi  para  Itália  a  epocha  de  Ariosto,  Machiaveli  e 
Tasso  —  certamente  encontraríamos  nelle  outras  mais  altas 
virtudes  estheticas  que  as  que  lhe  apontámos.  Elle  não  seria 
tão  imitador,  viveria  mais  de  si  mesmo,  da  concentração  das 
suas  próprias  forças  creadoras  e  teria  capacidades  de  expan- 
são penetradora,  de  suggestiva  irradiação;  embora  elabo- 
rasse elementos  outrora  recebidos  de  fora,  reagiria  podero- 
samente e  seria  uma  epocha  litteraria  de  capacidades 
determinantes  e  estimulantes,  irradiaria  mais  do  que  pediria. 
E  assim  não  succedeu. 

Nessa  hypothese,  a  nossa  litteratura  quinhentista  teria 
produzido  os  melhores  modelos  da  boa  linguaguem  portu- 
guesa, perfeita  como  meio  de  expressão  e  instrumento  de 
belleza  e  a  ella  teríamos  sempre  de  regressar  para  tonificar- 
mos a  nossa  lingua  em  pureza,  belleza,  elegância,  poder 
expressivo  por  meio  da  lição  desses  clássicos. 


352  Historia  da  LiHcratiira  Clássica 

Ora  isso  não  succede:  não  são  do  século  XVI  os  melho- 
res clássicos  da  lingua  portuguesa,  antes  muito  posteriores, 
como  Vieira,  Bernardes,  Frei  Luiz  de  Sousa  e  Lucena,  e  nús 
não  cremos  que  entre  Damião  de  Góes,  João  de  Barros,  Gil 
Vicente  ou  Moraes,  d'um  lado,  e  Vieira,  Lucena,  Bernardes 
e  Frei  Luiz  de  Sousa  possa  haver  hesitação  quando  se  quizér 
discriminar  quaes  são  verdadeiramente  os  clássicos  da  lingua 
portuguesa.  O  quinhentismo  não  teve  esses  clássicos  —  por- 
que a  lingua  não  attingira  o  acumen  da  sua  perfeição  — 
referimo-nos  ao  nosso  ponto  de  vista  esthetico  e  critico  e 
não  philoiogico,  pois  para  o  philologo  uma  lingua  esthetica- 
mente  perfeita  é  um  monstro.  A  lingua  dos  quinhentistas  ou 
está  muito  próxima  da  sua  phase  archaica,  como  em  Gil 
Vicente,  Sá  de  Miranda,  Bernardim  Ribeiro  e  Christovam 
Falcão,  ou  não  assimilou  ainda  a  grande  riqueza  lexicogra- 
phica,  syntaxica  que  os  estudos  humanísticos  lhe  proporcio- 
navam, nem  achou  ainda  a  vasta  variedade  de  modos  de 
dizer  que  a  necessidade  e  a  própria  experiência  da  arte  de 
escrever  ensinariam,  como  vemos  nos  auctores  restantes.  Se 
ella  tem  em  João  de  Barros  certa  gravidade  e  em  Fernão 
Mendes  Pinto  certa  simplicidade  pittoresca,  em  todos  carece 
de  variedade,  é  monótona,  move-se  dentro  de  alguns  poucos 
caixilhos  que  enquadram  e  apertam  o  discurso,  comprimem 
a  expressão.  Essa  monotonia  em  Damião  de  Góes  desce  até 
á  pobreza,  quasi  até  á  uniformidade.  A  lingua  dos  nossos 
quinhentistas  será  um  passo  progressivo  na  historia  da  lin- 
gua portuguesa,  está  porém  longe  da  sua  forma  perfeita. 

Um  pouco  hirto,  sem  plasticidade,  esse  estylo  estava 
ainda  virgem  de  certas  adaptações,  como  o  estylo  philoso- 
phico  e  scientifico,  com  suas  complexas  e  bem  definidas 
terminologias. 

Uma  condição  só,  cremos  nós,  se  verifica,  ao  menos 
Darcialmente,  no  nosso  quinhentismo  daquellas  três  que 
usualmente  ostentam  as  epochas  de  esplendor  das  varias 
litteraturas,   e   é  ella  o  ter  um  forte  cunho  nacional.  Ainda 


Hwtona  <fa   IÀtteratum  Clássica  3§8 

que  limitado  pelo  patriotismo,  esse  cunho  nacional  é  evidente 
e  caracteriza  se  principalmente  por  aquelles  géneros  e  aquel- 
les  themas  provindos  das  especiaes  condições  de  vida  do 
paiz  e  que  nós  já  apontámos.  Mas  esse  nacionalismo  não 
teve  energia  para  reduzir  a  dependência  das  litteraturas 
estrangeiras  em  que  se  encontrava  a  litteratura  portuguesa. 

Estas  três  condições  —  independência  ante  as  litteraturas 
estrangeiras,  perfeição  da  língua,  fiel  reproducção  do  caracter 
nacional  —  discriminou-as  Brunetière  nos  períodos  áureos 
das  varias  litteraturas  da  Europa,  e  da  convergência  das  três 
extrahiu  a  noção  de  classicismo,  não  já  com  referencia  aos 
velhos  modelos  de  Grécia  e  Roma.  mas  em  sentido  abstracto, 
de  bom,  de  perfeito.  Não  as  verificamos  nós  no  nosso  século 
xvi.  Depois,  se  applicarmos  ás  creações  deste  século,  pura- 
mente artísticas,  theatro,  poesia  ou  romance,  um  módulo  de 
valores  litterarios,  se  formos  indagar  que  themas  elaborou 
que  ainda  hoje  fallern  com  emoção  á  nossa  consciência  de 
homens  e  de  portugueses,  mesmo  feitas  as  necessárias  acla- 
rações da  relatividade  do  gosto,  acharemos  em  quasi  todos 
esses  themas  um  caracter  de  frívola  infantilidade,  que  não 
interessa,  nem  commove,  nem  edifica  moralmente  e  que  faz 
um  contraste  desagradável  com  o  esforço  desses  gigantescos 
homens  de  acção,  heróicos  e  temerários,  que  eram  os  guer- 
reiros, os  navegadores  e  os  missionários  de  Marrocos,  da 
índia  e  do  Brasil.  São  exemplos  disso  sobretudo  o  bucolismo, 
os  ensaios  de  theatro  clássico  e  os  romances.  Estes  ainda 
têm  a  attenuante  de  servirem  com  sua  enredada  intriga  a 
necessidade  de  distracção  e  devaneio  por  meio  da  frequência 
ideal  dum  falso  mundo,  tido  como  tal  e  por  isso  mesmo 
attrahente,  o  mundo  da  maravilha.  Esses  romances  eram 
para  os  leitores  do  século  xvi  o  que  são  hoje  para  as  crean- 
ças  as  historias  phantasticas.  A  belleza  da  vulgaridade  quo- 
tidiana só  souberam  achá-la  mais  tarde  outros  auetores  e 
outro  publico, 

Do  que  fica  dito  se  conclue   o  infundado  da  doutrina 

H.    Vi    L.    O.ARR1CA,  TOl.   !.• 


354  Historia  da  Litter atura  Classie-a 

daquelles  escriptores  modernos  que,  concordes  em  que  é 
necessário  promover  uma  reviviscencia  das  letras  portuguesas, 
apontam  como  solução  o  que  elles  chamam  o  regresso  á 
tradição  portuguesa  representada  na  sua  idade  de  ouro,  este 
abortado  e  exhausto  século  xvi.  Sollicitados  para  exemplifi- 
carem a  sua  doutrina,  grandes  seriam  as  suas  perplexidades. 
De  facto,  se  puzérmos  de  lado  prejuizos  nacionalistas,  feitos 
de  exaltado  patriotismo  e  de  outros  sentimentos,  mas  não 
inspirados  por  imparcial  espirito  critico,  poderemos  procurar 
com  attenção,  paciência  e  infinita  boa- vontade  que  nunca 
lograremos  saber  qual  a  capacidade  determinante  da  obra  de 
Sá  de  Miranda  ou  do  theatro  de  Jorge  Ferreira  ou  do  buco- 
lismo abundante  desse  século.  Será  licito  esperar  uma  epocha 
fecunda  de  valiosas  obras  dramáticas  da  leitura  e  imitação 
de  Gil  Vicente?  O  que  ultimamente  se  tem  presenceado  já 
responde  pela  negativa,  pois  da  moda  vicentina  não  vieram 
forças  novas  para  os  géneros  dramáticos,  entre  nós  em  ex- 
trema decadência.  Será  licito  esperar  que  a  lição  dos  chro- 
nistas  determine  a  restauração  dos  estudos  históricos  e  o 
apparecimento  dalgum  moderno  historiador,  de  larga  com- 
pleição intellectual  como  para  esse  districto  dos  estudos  se 
exige?  Não,  porque  até  uma  das  boas  normas  de  quem 
modernamente  pretenda  fazer  historia,  será  reduzir  cada  vez 
mais  a  leitura  e  o  acatamento  dos  clássicos,  por  menos  dignos 
de  crédito.  Terá  fundamento  legitimo  a  esperança  de  que 
da  novellistica  quinhentista  possa  provir  uma  nova  forma  ao 
moderno  romance  português?  Não,  porque  desde  então  até 
ás  formas  ultimas  do  romance  grande  caminho  se  ha  percor- 
rido, e  insensato  seria  querer  regressar  a  uma  forma  obsoleta 
ou  delia  querer  extrahir  o  que  os  séculos  já  ha  muito  extra- 
hiram  e  lentamente  elaboraram. 

Não,  decididamente,  não  é  aos  quinhentistas  que  se 
hão-de  ir  buscar  as  forças  credoras  de  novas  bellezas  littera- 
rias,  mas  á  vida  moderna,  representada  já  nos  estados  de 
consciência,   que  nas  modernas  litteraturas    estrangeiras  se 


Historia  da  Lit ter atura  Clássica  355 

trahem,  já  na  vida — triste  vida!  —  que  em  Portugal  se  vive. 
Ter-se-ha  de  inaugurar  uma  epocha  de  imitação,  de  ampla  e 
insatisfeita  neophilia,  de  vasto  cosmopolitismo,  haverá  que 
se  intensificar — deixemo-nos  de  euphemismos — ,  haverá  que 
se  iniciar  o  gosto  dos  estudos  críticos  e  philosophicos,  pois 
não  ha  litteratura  superior  sem  espirito  critico  e  sem  espirito 
philosophico. 

Sahindo  do  estricto  nacionalismo,  essa  litteratura  aberta 
a  todas  as  influencias  veria  entrar  em  seu  seio,  trazidos  por 
fortes  rajadas  de  pensamento  e  de  arte,  os  germens  fecundos 
de  novas  formas  e  novas  idéas.  Desnacionalizada  a  principio 
e  fecundada  depois  pelo  pollen  vigoroso  que  um  vento  de 
novidade  de  longe  lhe  trouxera,  cobraria  alentos  e  elaboraria 
de  maneira  própria  esses  germens,  nacionalizá-los-hia.  O 
nosso  mal  tem  sido  a  obstinação  em  querermos  ser  só  portu- 
gueses, esquecendo-nos  que  essa  qualidade  tem  de  convergir 
com  outras,  a  de  europeus  e  a  de  homens.  Ora,  sem  um  fundo 
de  permanentes  valores  humanos  e  sem  a  solidariedade  ideal 
que  liga  todas  as  principaes  litteraturas  europêas,  não  é 
possível  um  progressivo  movimento  litterario. 

Deste  modo,  a  revolução  a  fazer  seria  de  sentido  inverso  á 
que  Herder  levou  a  cabo  no  seu  paíz,  conduzindo  a  litteratura 
allemã  da  imitação  estrangeira  á  originalidade  nacional. 


ADDIÇÕES  E  CORRECÇÕES 

A  2.*  EDIÇÃO) 


Pags.  38-39  .  .  Os  créditos  litterarios  de  Fernão  Lopes,  cujo  estude» 
desenvolvido  estava  fora  do  plano  deste  livro,  têm 
subido  grandemente  nos  últimos  tempos,  graças  á 
monographia,  que  lhe  dedicou  o  insigne  lusitani- 
sante  Mr.  Aubrey  F.  G.  Bell  e  que  é  a  2.a  da  serie 
portuguesa  das  Hispanic  Notes  o  Monographs,  que 
a  Hispanic  Society  of  America  vem  publicando ;  e 
aos  três  volumes  cia  vuigarisaçâo  das  suas  mais 
formosas  paginas,  que  lhe  destinou  na  sua  Anlholo- 
,í,ia  Portuguesa  o  sr.  Prof.  Agostinho  de  Campos. 
Cabe  a  estes  dois  illustres  campeões  da  nossa  cultura 
litteraria  a  gloria  do  inicio  dum  movimento  de  sym- 
pathia  e  curiosidade  pelo  velho  chronista,  á  luz  dum 
gosto  mais  esclarecido  e  também  mais  liberto  da 
concepção  clássica  dos  valores  litterarios. 
A  esta  corrente  de  opinião  pretende  oppôr-se  .Mr.  W. 
Bentley,  que  da  comparação  do  texto  da  Chronica 
de  D.  João  1  com  o  dum  manuscripto  da  Bibliotheca 
Nacional  conclue  ter  sido  Fernão  Lopes  somente  um 
plagiário. 
Pag.  60,  nota.  .  Além  dos  notáveis  estudos  vicentinos,  apontados  a 
pags.  176-180  da  Critica  Litteraria  como  Sciencia, 
a  sr.*  D.  Carolina  Michaclis  de  Vasconcellos  fez 
recentemente,  quando  já  estava  impresso  o  capi- 
tulo deste  livro  sobre  Gil  Vicente,  uma  importan- 
tíssima publicação,  pelo  Centro  de  Estudos  Históri- 
cos de  Madrid,  Autos  portugueses  de  Gil  Vicente  e 
da  escola  vicentina.  É  uma  introducção  á  edição  fac- 
similada  de  19  autos  a  saber: 


358  Addições  e  Correcções 


Summario  da  Historia  de  Deus  e  Auto  de  Inês  Pereira, 
de  Gil  Vicente  ;  Auto  do  Nascimento  e  Auto  de  Santa 
Caterina,  de  Balthazar  Dias;  Auto  de  Santiago  e 
Auto  de  Santo  António,  de  Affonso  Alvares;  Auto 
do  Dia  de  Juízo,  anonymo  ;  Auto  das  Re gat  eiras,  de 
António  Ribeiro  Chiado ;  Auto  dos  Dous  Ladrões, 
de  António  de  Lixbôa ;  Auto  de  Florença,  de  Joam 
de  Escovar;  Auto  da  Bella  Menina,  de  Sebastião 
Pires ;  Auto  do  Duque  de  Florença,  anonymo ;  Farsa 
penada,  anonyma ;  Auto  de  Vicente  Anes  Joeira,  ano- 
nymo; Auto  de  D.  Fernando,  anonymo;  Auto  dos 
Capellos,  anonymo;  Auto  dos  enanos,  anonymo; 
Auto  de  D.  André,  anonymo;  e  Atuo  de  D.  Luiz  e 
dos  Turcos,  anonymo. 
A  gloriosa  auctora  recapitula  as  conclusões,  a  que  che- 
gou nas  Notas  Vicentinas,  precedentemente  publi- 
cadas, descreve  externamente  os  opúsculos  avulsos 
que  bibliographicamente  formam  os  autos,  cuja 
existência  lhe  foi  revelada  por  D.  Ramon  Menén- 
dez  Pidal,  e  apresenta  noticias  sobre  os  auctores  e 
dados  novos  acerca  da  censura  inquisitorial.  Como 
se  vê,  a  publicação  que  este  trabalho  prefacia,  vem 
enriquecer  de  espécies  desconhecidas  e  noticias 
inéditas  a  modesta  historia  do  theatro  português  do 
do  século  xvi. 

Pag.  69,  lin.  io.a    Em  vez  de  1532  leia-se  1535. 

Pag.  69,  lin.  i2.a    Em  vez  de  1470  leia-se  1535. 

Pags.  257-271.  .  Só  em  1920  lemos  as  conferencias  de  Joaquim  Nabuco 
sobre  Camões  e  os  Lusíadas,  proferidas  nos  Esta- 
dos-Unidos,  das  quaes  se  publicou  modernamente 
uma  traducção  em  lingua  portuguesa,  devida  ao 
sr.  Arthur  Bomilcar.  Entre  a  nossa  apreciação  do 
lyrismo  camoneano  e  a  interpretação  delle  pelo 
insigne  orador  brasileiro  ha  pontos  de  coincidência, 
que,  sem  aíTectarem  a  nossa  inteira  autonomia 
espiritual,  muito  nos  lisonjeiam. 

Pags.  339-355-  •  A  conclusão  deste  livro  foi  redigida  á  luz  dum  con- 
ceito esthetico  inteiramente  clássico,  com  o  qual 
fomos  aferir  os  valores  litterarios  do  nosso  quinhen- 
tismo  —  designação  menos  compromettedora  que  a 
de  classicismo ,  porque  apenas  tem  sentido  chrono- 
logico  sem  prejuízo  esthetico  — e  compará-lo  com 


Addições  e  Correcções  359 


a  avoluçâo  litteraria  de  outros  povos,  de  condições 
históricas  e  moraes  bem  diversas  das  da  sociedade 
portuguesa.  A  bellezae  a  originalidade  da  litteratura 
nacional  do  século  xvi  reside  precisamente,  exce- 
pção feita  de  Camões,  nas  obras  e  nos  géneros  que 
mais  se  apartam  do  typo  neo-classico  do  |  umanis- 
mo :  theatro  vicentino,  historiographia  colonial  e 
narrativas  de  viagens.  Taes  obras  e  taes  géneros 
affastar-se-hão  dos  cânones  helleno-romanos,  mas 
são  os  que  mais  fielmente  traduzem  a  individuali- 
dade nacional,  no  momento  supremo  da  sua  exis- 
tência histórica. 
Assim  fica  suggerído  o  caminho  a  futuros  impugna- 
dores. 


ÍNDICE 


N»TA   TRÉTIA 5 

Ihtbcducção  :  A  litteratura  medieval.  —  O  humanismo.  —  O  re- 
nascimento          7* 

Capitulo        1  —  Gil  Vicente 53 

i.a  phase  (1502-1508) 59 

2.a       »       (1508-1516) 62 

3.a       »       (1516-1536; 70 

Capitulo      II  —  Sá  de  Miranda : 

A  vida 99 

O  homem 105 

O  poeta 107 

O  comediographo 119 

Capitulo     III  —  0  theatro  c/assico  : 

A  —  A  tragedia 129 

B  —  Comedia 144 

Capitulo    IV  —  0  Lyrismo 153 

Bernardim  Ribeiro 154 

Christovam  Falcão 157 

António  Ferreira 166 

Pedro  de  Andrade  Caminha 173 

Diogo  Bernardes 176 

Fr.  Agostinho  da  Cruz 178 

Capitulo      V  —  As  novellas 183 

João  de  Barros 187 

Jorge  de  Montemor 190 

Francisco  de  Moraes 191 

Bernardim  Ribeiro 204 

Jorge  Ferreira 211 


362  Índice 


PAG. 


Capitulo    VI  —  A  historiographia 215 

João  de  Barros 220 

Damião  de  Góes  , 230 

Braz  de  Albuquerque 243 

Fernão  Lopes  de  Castanheda                                ,  245 

Gaspar  Corrêa 247 

Capitulo    VII  —  Camões: 

Ávida ^       .       .       .  253 

O  lyrico. 257 

O  comediographo 271 

O  épico 275 

Capitulo  VIII  —  A  prosa  mystica      ........  293 

Samuel  Usque     ........  297 

Frei  Heitor  Pinto 304 

Frei  Amador  Arraes.       ......  312 

Frei  Thomé  de  Jesus "    .       .  315 

Capitulo    IX  —  Géneros  menores : 

A  —  Escriptos  moralistas 322 

B  —  Roteiro  de  viagens 329 

C  —  Relações  de  naufrágios    .....  333 

D  —  Epistolographia 336 

Conclusão 009 

Addições  e  corkkcções 357 


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